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Folha de S. Paulo: Maioria isenta Bolsonaro por mortes na pandemia, aponta Datafolha
Para 42% dos brasileiros, no entanto, condução da pandemia pelo presidente é ruim ou péssima
Thiago Amâncio, Folha de S. Paulo
As mais de 181 mil mortes registradas no Brasil pela Covid-19 não podem ser colocadas na conta do presidente da República, Jair Bolsonaro, na avaliação da maioria dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha.
Para 52% dos entrevistados, Bolsonaro não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pelo novo coronavírus no Brasil. Outros 38% disseram crer que o presidente é um dos culpados, mas não o principal, e 8% afirmaram que ele é o principal culpado pelas mortes.
Em diversas ocasiões o presidente da República menosprezou a gravidade da pandemia da Covid-19, que já matou mais de 1,6 milhão de pessoas em todo o mundo.
A declaração mais famosa foi de que a doença seria apenas uma “gripezinha”, mas Bolsonaro acumulou outras pérolas, ao dizer, por exemplo, “e daí?” ou “eu não sou coveiro”, ao ser questionado sobre número de mortes.
Mais recentemente, chegou a dizer que o Brasil deveria “deixar de ser um país de maricas” e, apesar da nova alta de número de casos, disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.
Mesmo assim, cresceu a parcela da população que isenta o presidente: eram 47% os que diziam que ele não tinha culpa nenhuma em pesquisa feita pelo Datafolha em agosto.
Embora a maioria da população isente Bolsonaro da responsabilidade pelas mortes, isso não quer dizer que o desempenho do chefe do Executivo é bem avaliado pela população brasileira.
Dos entrevistados, 42% avaliam como ruim ou péssima a atuação de Bolsonaro em relação à pandemia. Já 27% veem as ações do presidente como regulares, e 30% avaliam como ótimas ou boas.
Mulheres tendem a avaliar o desempenho do presidente na pandemia pior do que homens (47% delas consideram ruim ou péssimo, contra 35% deles), e há diferença grande entre mais ricos (55% avaliam mal) e escolarizados (57%), além de quem vive nas grandes cidades (onde 49% avaliam mal as ações do presidente, contra 36% no interior).
A maior parte dos entrevistados (53%) disse acreditar que o Brasil não fez o que era preciso para evitar as mais de 181 mil mortes pela Covid-19, enquanto se dividem igualmente o restante que pensa que nada que o país fizesse evitaria esse número (22%) e os que pensam que o Brasil tomou as atitudes necessárias para evitá-lo (22%).
A pesquisa Datafolha mostra também que está em baixa a avaliação do desempenho do Ministério da Saúde na condução da pandemia.
Hoje, 35% consideram o desempenho da pasta como ótimo ou bom. Esse número chegou a 76% em 3 de abril, quando o ministério era chefiado por Luiz Henrique Mandetta (DEM), médico e deputado federal que se contrapunha ao presidente ao defender medidas de distanciamento social e concedia entrevistas diariamente para divulgar dados e ações do governo.
Após uma série de atritos com Bolsonaro, que negava a gravidade da doença e que fez aparições públicas que provocavam aglomerações, Mandetta foi demitido em 16 de abril.
Assumiu, em seu lugar, outro médico, Nelson Teich. Datafolha de 27 de abril mostrava que 55% das pessoas avaliavam como bom ou ótimo o desempenho do Ministério da Saúde na época.
Menos de um mês após assumir o cargo, no meio de maio, Teich também deixou a pasta, após embates com o presidente, que queria incluir a recomendação da cloroquina para pacientes infectados com o vírus mesmo sem evidência científica da eficácia do medicamento.
Em seu lugar ficou, a princípio interinamente e depois efetivado, o secretário executivo da pasta, o general Eduardo Pazuello, sem formação médica e muito próximo do presidente. Sob a gestão do militar, a avaliação do desempenho do ministério da Saúde continuou em queda.
Pazuello tem protagonizado uma disputa com o governo de São Paulo, que anunciou importação, produção e administração de vacinas contra a Covid-19 de forma independente do governo federal.
O ministro tem se contraposto ao governador João Doria (PSDB), que antagoniza com Bolsonaro e usa o plano de vacinação como principal arma política para uma candidatura à Presidência em 2022.
Pazuello ainda não apresentou à população um plano de vacinação, embora a imunização já tenha começado no Reino Unido e esteja prestes a iniciar nos Estados Unidos.
Em resposta a ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal cobrando um plano federal, Pazuello encaminhou um documento à corte que não prevê data e estima vacinar apenas um terço do necessário. Enquanto o tribunal tornava público o documento, no sábado (12), o ministro tirou parte do dia para almoçar com o cantor sertanejo Zezé Di Camargo.
Após a divulgação do documento, pesquisadores que constam como autores do plano afirmaram que nem sequer chegaram a ver o texto.
O Datafolha mostra ainda que a avaliação que a população faz da atuação dos governadores é melhor que a do presidente —41% dos entrevistados considera o desempenho frente a pandemia como bom ou ótimo, e 30% considera ruim ou péssimo.
É no Sudeste onde a população avalia pior o governante —35% considera o desempenho do mandatário estadual durante a pandemia ótimo ou bom, enquanto 36% o considera ruim ou péssimo, e 29% diz ser regular. Já na região Sul, 52% consideram o desempenho do governador bom ou ótimo, enquanto apenas 19% o avaliam mal.
Por fim, o Datafolha também perguntou aos entrevistados sobre como veem o desempenho dos prefeitos de suas cidades na condução da pandemia: aprovados por 42% e reprovados por 30%.
A pesquisa Datafolha foi feita entre 8 e 10 de dezembro com 2.016 brasileiros adultos em todas as regiões e estados do país, por telefone, com ligações para aparelhos celulares (usados por 90% da população). A margem de erro é de dois pontos percentuais.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro tomou vacina contra o horror que promove no país
Base social do presidente mudou, mas é incerto que crise de 21 abale avaliação
Pelo menos desde o início da epidemia, a oposição a Jair Bolsonaro espera que a popularidade do capitão da extrema direita descambe para um nível crítico. Não aconteceu até agora.
O motivo da resistência bolsonariana seria o auxílio emergencial, argumenta-se com obviedade. Uma vez findo o benefício, a pobreza renovada e ampliada deve se voltar contra Bolsonaro, ainda mais porque sua base mudou desde o início do ano, sendo agora majoritariamente composta de pessoas de renda menor.
Pode até ser. Mas o argumento supõe que o auxílio emergencial faz com que muito brasileiro seja indiferente à selvageria, à negligência e à incompetência de Bolsonaro ou as tolere (aqueles 30% que o avaliam como “regular”). Se é verdade, temos problema mais profundo. Além do mais, o prestígio resistente mesmo depois de tanta atrocidade faz lembrar de Donald Trump e de sua votação imensa na eleição deste ano, fenômeno que escapa a explicações econômicas, sociais ou regionais rudimentares.
Além de aprovação, há identificação com o jeito e as causas de Bolsonaro, mostram sociólogas e antropólogas, coisa difícil de medir, no entanto; seu governo tem bem mais aprovação de homens do que de mulheres.
Popularidade, de resto, depende de haver alternativas, reais ou imaginárias. O prestígio de Dilma Rousseff, que andava pela casa de 60% em junho de 2013, caiu pela metade em duas semanas, quando os brasileiros descobriram que eram infelizes e não sabiam, na frase do cientista político André Singer. Mas não há liderança política alternativa, oposição ou um convite a imaginar vida diferente desta sob Bolsonaro e seu governo militar.
O prestígio de Bolsonaro jamais foi tão alto, segundo o Datafolha, 37% de “ótimo/bom”. Mas está mais ou menos onde sempre esteve. A média desde o início do mandato é de 33%. Bolsonaro teve 36% dos votos no primeiro turno de 2018.
Não se trata, porém, das mesmas classes de brasileiros. Da eleição até o fim de 2019, em torno de 30% daqueles que apoiavam Bolsonaro eram os mais pobres, que ganham até 2 salários mínimos. Passaram a 50% desde meados do ano. De modo menos marcado, a base bolsonariana passou a ter mais pessoas com ensino fundamental ou menos.
Foram abalados pela economia? A inflação da comida chegou agora aos 21% ao ano, inédito desde 2003. Aumentou o desemprego, um dado muito distorcido pelo ambiente de epidemia, porém. O auxílio emergencial caiu pela metade.
Por outro lado, a população com algum trabalho começou a aumentar desde agosto ou setembro, quando também houve alguma reabertura econômica; o comércio recuperou as perdas da epidemia.
Virado o ano, o auxílio será zerado, não haverá emprego para a dezena de milhões de desocupados deste 2020 e a comida cara pesará ainda mais. Mas, se Bolsonaro perder todos os pobres que agregou à sua base neste ano, sua popularidade ainda estará perto de 30%, tudo mais constante.
Os 180 mil mortos da epidemia não abalaram de modo decisivo a popularidade do capitão. A negligência com as vacinas pode ser fatal? E se Bolsonaro conseguir fazer um show mínimo de vacinação, o povo miúdo entenderá o problema? O povo soube que o auxílio emergencial foi obra do Congresso, não de Bolsonaro? O 30% de bolsonarismo raiz se importa com o estelionato eleitoral de o governo se entregar ao centrão, achincalhado em 2018? De Sergio Moro ter sido escorraçado (afora o lacerdismo de classe média alta e ricos minoritários)? De não haver governo além daquele tocado pela burocracia?
Hum.
Elio Gaspari: A Chernobyl pessoal de Bolsonaro
A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil
Em abril, o general Luiz Eduardo Ramos disse o seguinte:
“No jornal da manhã, é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite, é caixão, corpo e número de mortos. (…) Não tá ajudando. Ninguém aqui está dizendo que tem que esconder. Os senhores (jornalistas) têm que também… Eu conclamo e peço encarecidamente, tem tanta coisa positiva acontecendo”.
Naquele dia, a Covid havia matado 165 pessoas, e o total dos caixões já passava de 20 mil. Notícia boa, se houvesse, deveria ser procurada na patética reunião ministerial daquele mesmo dia, durante a qual Jair Bolsonaro emparedou Sergio Moro, o ministro da Educação propôs a prisão dos “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal, e o da Economia sugeriu o retorno da jogatina de grife.
Ramos falou com a alma. Ele realmente acreditava que as sepulturas incomodavam, mas acreditava também que com menos imagens de caixões mudava-se a natureza do problema. Passaram-se oito meses, e as imagens são outras. Pessoas sendo vacinadas na Inglaterra, e governos anunciando o início de programas de imunização para as próximas semanas. No Brasil, só caixões, brigas e o general-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atarantado.
A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil.
Apesar das enormes diferenças entre as duas tragédias, a conduta pessoal do capitão Bolsonaro e dos generais Ramos e Pazuello diante do coronavírus guarda uma triste semelhança com a reação dos comissários soviéticos em Chernobyl.
A explosão ocorreu na madrugada de 26 de abril de 1986. Quando o chefe da Defesa Civil da usina mostrou ao diretor que a radiação chegara a níveis intoleráveis, o burocrata expulsou-o da sala: “Seu medidor está quebrado”. Pela manhã, o vice-presidente do conselho de ministros disse que religaria o reator, e o ministro da energia da Ucrânia explicou-lhe:
— Não existe mais reator.
— Você é um alarmista — respondeu o comissário.
“Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, disse Bolsonaro, em março, quando 165 pessoas já haviam morrido. Dias antes, ele dissera que a pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde “não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.
O negacionismo seguiu cursos diferentes na fase seguinte, ambos estimulando a inércia. Em Chernobyl, quando o chefe da Defesa Civil mencionou a necessidade de evacuar a população da cidade, um comissário da região foi breve: “Sente-se. Isso não é da sua conta”. O Ministério da Saúde concordava com ele.
Em Pindorama, Bolsonaro chamou os governadores que defendiam o isolamento social de “destruidores de empregos”, e o general Pazuello ainda acha que não se deve falar nisso.
A cidade próxima ao reator Chernobyl só foi evacuada no dia seguinte. Trinta e seis horas depois da explosão não haviam sido disparadas as medidas previstas nos protocolos da Defesa Civil. Vídeos mostram cenas de um casamento e de vida normal em vários lugares.
Quando Bolsonaro falava em gripezinha, o presidente mexicano, Manuel López Obrador, dizia que a Covid “não equivalia a uma gripe”, e o primeiro ministro inglês, Boris Johnson, desdenhava o perigo. Johnson foi parar numa UTI, abandonou o negacionismo e pediu desculpas por ter dado informações erradas. Obrador orgulhosamente anunciou seu plano de imunização dos mexicanos, começando neste mês pelos profissionais de saúde.
Como os burocratas soviéticos, Johnson e Obrador pensavam que mandavam e disseram besteiras, mas corrigiram-se. Bolsonaro ainda não entendeu o que está acontecendo e continua brincando com os diminutivos.
No dia em que o número de mortos pela “gripezinha” havia chegado a 179 mil, com a média móvel em alta, ele disse que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”.
Seu governinho tem uma dificuldadezinha com a realidade.
Temer no aquecimento
O nome de Michel Temer entrou na roda dos possíveis convidados para um ministério modificado. Ele iria para o Itamaraty, substituindo o cataclísmico Ernesto Araújo.
Um retorno de Temer a Brasília como chanceler seria êxito garantido, porque depois de Araújo qualquer coisa serve. O ex-presidente nunca se meteu em fantasias diplomáticas, teve uma boa relação com Joe Biden e o chinês Xi Jinping. Ambos sabem que o doutor não é pancada.
Biden esteve no Brasil em 2016, como vice-presidente, e reuniu-se com Dilma Rousseff por duas horas. Temer, então vice, foi deixado de fora e, a convite de Biden, visitou os EUA meses depois.
Temer é um pajé do centrão e vem ajudando nas costuras para a presidência do Senado. Quando o governo de Dilma Rousseff começou a fazer água, ela o colocou na coordenação política do Planalto. Temer costurou acordos e foi fritado pelo comissariado petista. Deu no que deu.
À época, ele se queixava de que fazia combinações usando seu crédito e foi deixado ao sol. A prudência recomenda que corte seu cartão caso retorne a Brasília.
BRETAS E NYTHALMAR
Só o juiz Marcelo Bretas sabe quão próximas eram suas relações com o advogado Nythalmar Dias Ferreira. Surfando a onda da Lava-Jato, esse doutor formou um plantel de clientes que foi do ex-deputado Eduardo Cunha ao empresário Fernando Cavendish.
Dependendo da proximidade, Bretas precisará de um bom advogado. Nythalmar é investigado pela Polícia Federal e poderá achar conveniente colaborar com a Viúva.
Não seria desejável que o magistrado deixasse a narrativa em mãos alheias.
FUX NA VACINA
Se Bolsonaro continuar encrencando com a CoronaVac, em janeiro a questão da vacina acabará chegando ao Supremo Tribunal Federal, e os litígios cairão no colo do ministro Luiz Fux, plantonista da Corte durante o recesso.
Fux e sua assessoria já estão estudando o assunto.
CÂMARA
A qualidade da preferência do Planalto na disputa pela presidência da Câmara pode ser avaliada por um fato singelo.
Podendo sinalizar interesse pela candidatura da deputada Tereza Cristina, atual ministra da Agricultura, Bolsonaro deixou a bola passar.
Os De Gaulle e os Kennedy
É excelente a biografia do general Charles De Gaulle (1890-1970) escrita por Julian Jackson.
Ele governou a França por dez anos, até 1969. Tinha uma filha e um filho longe da política.
Outra filha, Anne, nasceu em 1928 com síndrome de Down. Mal enxergava e não falava. De Gaulle nunca se afastou dela, e os dois brincavam por horas.
Já o milionário americano Joseph Kennedy mandou sua filha Rosemary, uma adolescente com distúrbios nervosos, para ser submetida a uma lobotomia. Deu tudo errado.
Anne De Gaulle morreu em 1948. “Agora ela ficou como as outras”, disse De Gaulle. Um ano depois, Rosemary Kennedy foi escondida numa casa de religiosas. Ela sobreviveu aos pais e aos irmãos John e Robert. Morreu em 2005, aos 86 anos.
Janio de Freitas: A conduta na balbúrdia da vacina basta para justificar impeachment de Bolsonaro
A conduta na balbúrdia da vacina basta para justificar impeachment
É impossível imaginar o que falta ainda para a única providência que salve vidas —quantas, senão muitos milhares?— da sanha mortífera de Jair Bolsonaro. Mas não é preciso imaginar a indecência da combinação de "elites" e políticos, para ver o que e quem concede liberdade homicida em troca de ganhos.
Pessoas com autoridade formal para o conceito que têm emitido, além de suas respeitabilidades, como o jurista Oscar Vilhena Vieira, o ex-ministro da Justiça e criminalista José Carlos Dias e o médico Celso Ferreira Ramos Filho, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, entre outros altos quilates, têm qualificado com clareza e destemor a anti-ação de Bolsonaro e seus militares na mortalidade pandêmica. Crime, criminoso(s), organização familiar criminosa, homicidas, desumanidade —são algumas das palavras e expressões aplicadas ao que é feito contra a vida. Contra o próprio país, portanto.
A conduta da Presidência e de seus auxiliares na Saúde, na balbúrdia da vacina, basta para justificar o processo de interdição ou de impeachment, sem precisar dos anteriores crimes de responsabilidade e outros cometidos por Bolsonaro e pelo relapso general Eduardo Pazuello. Nem se sabe mais o número de requerimentos para processo de impeachment apresentados à Câmara. Sobre eles, Rodrigo Maia, presidente da casa, lançou uma sentença sucinta: "Não há agora exame de impeachment nem vai haver depois".
Nítido abuso de poder, nessa recusa a priori. É dever do presidente da Câmara o exame de tais requerimentos, daí resultando o envio justificado para arquivamento ou para discussão em comissões técnicas. Rodrigo Maia jamais explicou sua atitude. Daí se deduz que não lhe convém fazê-lo, com duas hipóteses preliminares: repele a possível entrega da Presidência ao vice Mourão ou considera a iniciativa inconveniente a eventual candidatura sua a presidente em 2022.
Seja como for, Rodrigo Maia macula sua condução da Câmara, bastante digna em outros aspectos, e se associa à continuidade do desmando igualado ao crime de índole medieval. Os constituintes construíram um percurso difícil e longo para o processo de impeachment, e que assim desestimulasse sua frequência. Mas deixaram com um só político o poder de consentir ou não na abertura do processo. Fácil via para o abuso do poder. E sem alternativa para o restante do país, mesmo na dupla calamidade de uma pandemia letal e um governo que a propaga.
Há denúncias protocolares da situação por entidades, não muitas, e por um número também baixo de pessoas tocadas, de algum modo, pelo senso de responsabilidade, a inquietação, a dor. Movimento para que os genocidas vocacionais sejam enfrentados, nenhum. As camadas sociais que continuam tranquilas com seus rendimentos são, entende-se, as que podem manipular os ânimos públicos. São também as que têm mais noção do que se passa, mas sem que isso atenue o seu egoísmo e desprezo pelas camadas abaixo. Assim, não há reação ao duplo ataque. Diante de todos os desastres que o corroem, o Brasil parece morto.
Mas nem com esse aspecto, ou essa realidade, precisaria descer tão baixo na imoralidade. Sobrassem alguns resquícios de decência nas classes que, a rigor, são o poder no Brasil, a descoberta de que a Abin, a abjeta Agência Nacional de Informação, foi mobilizada para ajudar Flávio Bolsonaro no processo criminal da "rachadinha" criaria alguma indignação. E levaria ao pronto afastamento de todos os beneficiários e comprometidos com esse crime contra a Constituição, as instituições, os trâmites da Justiça e a população em geral.
O general Augusto Heleno Pereira negou a revelação da revista Época. É um velho mentiroso. Isso está provado desde os anos 90, quando me escreveu uma carta negando sua suspeita ligação com Nicolau dos Santos Neto, o juiz da alta corrução no TRT paulista. Tive provas documentais para desmenti-lo. Estava então no Planalto de Fernando Henrique. Com Bolsonaro, além de desviar a Abin em comum com Alexandre Ramagem, que a dirige, Augusto Heleno já esteve em reuniões com os advogados de Flávio, que é agora quem o desmente.
Ramagem, por sua vez, é o delegado que Bolsonaro quis na direção da Polícia Federal, causando a saída de Sergio Moro do governo. Fica demonstrado, portanto, pelas figuras de Augusto Heleno e Ramagem no desvio de finalidade da Abin, que Bolsonaro tentou controlar a PF para usá-la na defesa de Flávio, de si mesmo, de Carlos, de Michelle, de Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia e demais componentes do grupo.
Se nem essa corrupção institucional levar à retirada de toda a corja, será forçoso reconhecer um finalzinho. Não da pandemia, como disse Bolsonaro. Do Brasil, mesmo.
Ricardo Noblat: Dê-se a Bolsonaro o que ele tanto se esforça por merecer
A coragem de um presidente que diz o que pensa e deseja
A lerem-se os fatos com as lentes dos bolsonaristas de raiz, o presidente da República acertou em cheio nos seus comentários sobre a pandemia da Covid-19 desde que ela se insinuou por aqui em março último. Pode ter errado ao estimar que o vírus mataria, se tanto, oitocentas pessoas. Corrigiu-se depois e falou em algo como três mil. O número já ultrapassou a casa das 180 mil mortes.
Sim, mas é daí? Quem poderia ter acertado na mosca? Bem, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, muito antes de ser demitido por Bolsonaro, disse a ele que se nada fosse feito para deter a pandemia, em dezembro o número de mortos chegaria a 180 mil. Mandetta disse isso a Bolsonaro de corpo presente e também por escrito para que ele não esquecesse. Não adiantou.
Outra vez: e daí? Bolsonaro não é coveiro. Prescreveu remédios para a cura do vírus – a cloroquina foi um deles. Ordenou ao Exército que os produzisse em grande quantidade. Milhões de brasileiros se encharcaram com eles. E não se assistiu a nenhuma marcha de consumidores enganados pelo presidente. O governo gastará mais de 200 milhões para desovar o estoque das drogas.
Quem tinha que morrer, morreu ou ainda morrerá – outra observação afiada de Bolsonaro que foi mal compreendida por muitos, mas que está sendo confirmada pela realidade. E não será o uso da máscara, nem medidas de isolamento que porá um fim ao avanço da doença. Ela só será detida, como Bolsonaro sempre garantiu, quando contaminar 70% da população. Taokey?
Daí porque não há pressa para dar início à vacinação em massa. E quando ela finalmente começar, só deve ser vacinado quem quiser. Quem não quiser, novamente como Bolsonaro afirmou, poderá estar sendo negligente com a própria vida, mas jamais com a vida dos outros. Afinal, liberdade é mais importante do que a própria vida mesmo que ponha em risco a vida alheia.
A mais recente pesquisa Datafolha, divulgada ontem, mostra que aumentou o número dos que não pretendem tomar uma vacina contra o novo coronavírus. 22% dos entrevistados disseram que não planejam se vacinar, enquanto 73% disseram que vão participar da imunização. Cerca de 5% declararam não saber o que fazer. Em agosto passado, os dispostos a se vacinarem eram 89%.
Sejamos isentos: trata-se ou não de mais um triunfo de Bolsonaro que costuma dizer o que pensa doa em quem doer? Sua posição sobre a vacina da China, berço do vírus, passou a ser compartilhada pelos que o escutam. Metade dos entrevistados do Datafolha respondeu que não tomará a Coronavac de jeito algum. Preferem uma vacina americana ou inglesa. Até mesmo russa.
O fato é que os verdadeiros ou falsos profetas só costumam ser reconhecidos para além do tempo em que pregaram.
Eliane Cantanhêde: Troféu dos 180 mil vai para...
Com plano confuso de vacinas, Saúde quer mesmo é desovar cloroquina contra o 'bichinho'
Acerta o ministro Paulo Guedes em deixar de lado o foco fiscal e se dispor a destinar até R$ 20 bilhões para a vacinação em massa contra a pandemia. Erra o ministro Eduardo Pazuello ao entrar numa guerra política insana e planejar gastar R$ 250 milhões na distribuição de um remédio encalhado e desautorizado para a covid em todo o mundo.
Tão fundamental, o equilíbrio das contas públicas é sempre ignorado pelo Brasil, entra governo, sai governo, mas não é hora de pensar nisso e, sim, em como combater o maior mal do século. Dinheiro para vacinação não é gasto, é investimento: na vida, na volta à normalidade, na sustentabilidade do sistema público e privado de saúde, na recuperação da economia e na volta dos empregos.
Não basta, porém, a decisão de investir, é preciso ter no que investir. Ou seja: é obrigatório ter planejamento, cronograma, meta, acordos com fornecedores de luvas, seringas, embalagens, refrigeradores e, o mais importante, vacinas. O Ministério da Economia diz que tem dinheiro, o da Saúde tem o plano? Qual a consistência do que foi entregue ao STF?
Perdido, depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro a negociar a vacina do Instituto Butantã, Pazuello joga datas ao léu e agora fala em dezembro. Mas, se o presidente diz que a pandemia “está no finalzinho”, o que está mesmo no finalzinho é dezembro, é 2020. O que foi feito, foi; o que não foi, não foi. Com o mundo inteiro desesperado por vacinas, os países que chegaram primeiro nas farmacêuticas chegam primeiro aos seus cidadãos. O resto fica chupando dedo.
Sem vacina em tempo e em quantidades seguras, o Ministério da Saúde imagina atalhos espinhosos, como “requisitar” (ou confiscar?) vacinas de quem foi mais diligente e criar um “kit covid” para desovar os estoques de cloroquina encomendados teimosamente por Bolsonaro ao amigão Trump e aos laboratórios das Forças Armadas. Senão, vai ter de prorrogar a validade da cloroquina, como a gente não faz com o iogurte da geladeira, mas eles fizeram com os 7 milhões de testes jogados no almoxarifado da incompetência.
Agora, é torcer para a pressão que partiu de São Paulo chegar ao resto do País e gerar senso de urgência e ação, porque somos 210 milhões e é necessário apostar no máximo de vacinas, com rapidez, segurança e a confiança da população na nossa Anvisa, de tão boa imagem, serviços prestados e quadros de excelência.
Enquanto isso, o País e os próprios governadores se dividem. Ronaldo Caiado (GO), errático, está irado com João Doria (SP) – que “criou dois Brasis, um com e outro sem vacina”, ao anunciar para 25 de janeiro uma vacina ainda sem autorização da Anvisa –, mas passa a mão na cabeça de Bolsonaro, quem efetivamente criou esses dois Brasis.
(Detalhe: médico ortopedista, Caiado já fez 32 testes, todos negativos, mas sua mulher e duas filhas estão com covid. Nenhuma das três tomando cloroquina...)
O curioso, ou drástico, é como as situações se confundem nos Estados Unidos e no Brasil, onde o coronavírus ganha a guerra e vai fazer uma grande festa no Natal e no ano-novo. Há, porém, duas diferenças. Nos EUA, a vacinação está para começar e tudo muda de figura em janeiro. Lá, há definição e horizonte. Cá, indefinição e nebulosidade.
À Globonews, na sexta-feira passada, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta previu uma segunda onda em março/abril e contou como fez de tudo para tentar convencer Bolsonaro da gravidade do vírus, desde um denso documento até explicar que é “um bichinho que entra pelo nariz e passa de uma mão para outra”. E avisou: no pior cenário, se nada fosse feito, o Brasil chegaria a 180 mil mortes em dezembro. Bolsonaro optou pelo ego e os terraplanistas. Para quem vai o troféu dos 180 mil?
Luiz Sérgio Henriques: Entre o centro e o centrão
O Exército de Brancaleone.
Um governo como o de Jair Bolsonaro tem o caráter de desafio imprevisível e continuado. As provações a que submete a institucionalidade democrática se sucedem umas às outras, como num alucinante trem fantasma que não parece chegar nunca mais à estação terminal. Seria um tanto ofensivo invocar o cineasta Mario Monicelli, um convicto homem de esquerda, mas o fato é que a atual equipe dirigente lembra quase automaticamente a armata Brancaleone, com a arregimentação desregrada de militares, a trazer acentuadas preocupações sobre o papel das Forças Armadas, e a ação de um autoproclamado “núcleo ideológico” em guerra permanente contra a modernidade, praticamente confundida com o “comunismo”. A estes dois grupos, de resto conflagrados entre si, se acrescenta a cota bem nutrida dos incompetentes, ainda que, nisso tudo, as linhas de separação sejam muito difíceis de traçar.
Os otimistas sublinham a resiliência das instituições: elas não se submeteram ao assalto aberto, às manifestações subversivas, à tropelia das milícias reais ou digitais. O próprio presidente, num dado momento, sem abandonar a truculência verbal e as decisões irracionais, como na triste guerra das vacinas em que ora empenha seus generais e sua armata, passou a valer-se de modo mais regular dos poderes convencionais do Executivo. Passou a usar, em suma, a tal “caneta” cheia de tinta, não a Montblanc de antes, mas uma Bic incomparavelmente mais perigosa. No STF ainda não tomou assento o ministro “terrivelmente evangélico”, mas o primeiro voto importante do recém-empossado jurista conservador, confeccionado sob medida para aplainar o caminho do presidente do Senado e barrar o da Câmara, não deixa dúvida sobre o que se pode esperar.
O centrão amorfo, expressão consumada da “velha política”, reaparece com nobres e altas funções. Longe de ser exorcizado pelo refrão do samba de Bezerra da Silva, como se queria nos tempos “heroicos” da campanha eleitoral, agora está metamorfoseado na frente parlamentar que já funciona como dique contra qualquer impeachment e possivelmente, a partir de fevereiro de 2021, funcionará como suporte da agenda reacionária do governo, se derem certo os cálculos do estado-maior da armata. Dali para a frente, quem gritar “pega ladrão” irá encontrar, vai-se lá saber, uma pequena multidão de ministros e dirigentes acotovelados em secretarias e estatais, a cumprir ritos e preceitos franciscanos – não os do inquieto Papa argentino, mas os que, pondo de lado o disfarce das boas intenções, pavimentam o caminho de negócios e transações, muitas das quais tenebrosas, a julgar pelos precedentes.
Um ponto específico deve ser aqui mencionado. O ressurgimento em grande estilo do centrão, tal como desenhado nas pranchetas da batalha, implicará abrir brechas de demorada reversão nas fileiras de um centro parlamentar ordenadas a duras penas por gente como o deputado Rodrigo Maia. Nestas fileiras confluíram mais estavelmente, nos dois primeiros anos da legislatura, partidos como o DEM, o PSDB e o MDB, além de siglas menores, mas simbólicas, como o Cidadania. Vez por outra, uma boa surpresa: víamos parlamentares de outros partidos da centro-direita, relativamente desconhecidos, a opinar com lucidez sobre leis e medidas provisórias, demonstrando apreço pelo interesse público. De particularíssimo relevo, além disso, os variados canais de comunicação mantidos pela presidência da Câmara com a esquerda “pura e dura”, cuja representação, evidentemente, não é lícito ignorar.
A resultante de todo este esforço foi claramente, no primeiro biênio legislativo, uma Câmara e um Congresso capazes de tomar iniciativas, como no caso da reforma previdenciária e do auxílio emergencial, mas também, efundamentalmente, capazes de mostrar que seus destacamentos mais relevantes estavam firmemente postados nas trincheiras da institucionalidade. Em outras palavras, a construção de um centro parlamentar ativo, um valor em si mesmo, tornou possível algum contato produtivo com a(s) esquerda(s), garantindo o protagonismo do legislativo em certos casos e, em outros, o veto a nefastas proposições governamentais. Um resultado nada desprezível, se considerarmos o contexto de divisões, conflitos e até rancores que envenenaram a política e a nação nos últimos (muitos) anos.
Na renovação das mesas diretoras, em particular da Câmara dos Deputados, uma parte das esquerdas poderá escolher o caminho da candidatura própria, autodispensando-se de negociações e apregoando farisaicamente a própria nobreza de intenções. Conseguirá, assim, meia dúzia de votos e proclamará à sua maneira um lema de inspiração brancaleônica: pocos, pero sectarios. Outra parte poderá embarcar na atração fatal do carro governista – pois, nesta altura, pouca dúvida há de que, com a rearticulação congressual do centrão, volta a se animar a virulenta agenda destrutiva dos tais “conservadores cristãos” que constituem a alma populista deste governo. E não se trata de firulas ou pruridos: ninguém pode ignorar os pesados reflexos que teria sobre o cotidiano da população a aprovação de medidas que reduzam o âmbito e o escopo dos direitos humanos ou facilitem a disseminação ainda mais acentuada de armas e balas, para nada falar da tragédia ambiental em andamento.
Tudo isso pode estar certo, mas – dirão ainda – o centro parlamentar representado por Maia tem um lado negativo que impede alianças. É que ele também se fez protagonista de reformas liberais, e estas, na visão de uma certa esquerda, nunca são razoáveis nem passíveis de reparos legislativos que pelo menos atenuem a perda de direitos ou até ajudem a vislumbrar, e quem sabe afirmar, outros direitos de novíssima geração. Neste caso se afirmaria à esquerda uma posição de mera recusa, radical mas impotente. Uma impotência que se agravaria com o tempo, pois é certo que, além da agenda regressiva de valores, a troca do centro pelo centrão tornaria bem mais viável o liberalismo à la Guedes, por sinal um ingrediente bizarro que seria tremendamente injusto esquecer se de armata Brancaleone falamos.
Marcus Pestana: Bússola, anestesia e imobilismo
Já são 180 mil vidas perdidas para a COVID-19 em terras brasileiras. 2020, o ano que quase não existiu, aproxima-se do final. A genial divisão gregoriana do calendário tem o condão de industrializar a esperança, como decifrou Drummond. Miramos o futuro, enxergamos um novo ano: certamente será melhor. A esperança é o motor do desenvolvimento humano. Mas sabemos que o destino não é roteiro de teatro previamente estabelecido. As circunstâncias históricas impõem limites, mas não somos seres passivos, escravos dos desígnios do inevitável. O futuro depende de nossas escolhas, da bússola que nos orienta, da capacidade de agir e transformar a realidade.
No Brasil, vivemos a segunda onda da pandemia. O número de casos e mortes voltou a crescer. A sólida articulação interfederativa, ponto forte do SUS, foi perdida. O Ministério da Saúde renunciou à coordenação nacional do sistema. O embate com estados e municípios virou uma constante. Até hoje não temos um protocolo clínico nacional. O plano nacional de imunização não veio à tona. A polêmica sobre as vacinas seria cômica se não fosse trágica. E, ao invés de agilizar a importação de seringas, refrigeradores de alta potência e vacinas, o governo zera a alíquota do imposto de importação de pistolas e revólveres.
Além do desafio sanitário, resta o nebuloso cenário social e econômico para 2021. O desemprego bateu acima dos 14% envolvendo 13,5 milhões de brasileiros. Sem falar nos milhões de desalentados. A retomada não será fácil dados o recuo do cenário internacional derivado da segunda onda da pandemia, a fragilidade fiscal brasileira e a volta da ameaça inflacionária.
Também neste front, parece que estamos sem rumo e bússola. A ação da política econômica é errática. Nunca o Ministro Paulo Guedes esteve tão distante do Congresso. O Palácio do Planalto não compra a agenda de mudanças, reformas e ajustes necessários. O Congresso tem produzido importantes mudanças microeconômicas como as votações recentes dos novos marcos regulatórios dos setores de saneamento, gás e petróleo, navegação de cabotagem e da independência do Banco Central. Mas, do ponto de vista das reformas estruturais macroeconômicas estamos devagar quase parando. As reformas tributária, administrativa e a PEC emergencial foram empurradas para 2021, com viés de baixa no grau de mobilização em seu favor. As privatizações descansam em berço esplêndido, paradas. Sequer o Orçamento Geral da União, mais do que nunca necessário para dar transparência no tocante à responsabilidade fiscal, será votado. Estamos qual um pescador tranquilo, otimista e alienado, deitado dormindo em sua jangada em meio a um maremoto.
Boa parte do imobilismo presente se deve ao efeito anestésico do pacote de ampliação de gastos excepcionais para combater os efeitos da pandemia. Ninguém duvida que era necessário. O mundo inteiro fez. Foi hora de todo liberal neoclássico vestir o jaleco keynesiano. Mas a bolha de consumo gerada em 2020 e o aumento de despesas públicas são insustentáveis. Foram bancados com um extraordinário aumento da dívida. Bilhões de reais de despesas presentes a serem pagas pelas gerações futuras.
Tudo o que não precisamos é de uma bússola quebrada, uma anestesia alienante e um imobilismo paquidérmico. Precisamos de clareza, rumo, liderança e ação.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Bolívar Lamounier: Presença do blefe na atualidade política brasileira
O coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso
Nas condições em que se travou a disputa no segundo turno da eleição presidencial de 2018, era mesmo difícil imaginar que chegaríamos a 2020 com um governo sério e competente.
Agora, porém, somos forçados a admitir que a situação é bem pior que a inicialmente prevista, e não só por causa da pandemia. Os desafios, tanto na área econômica como na sanitária, são aterradores, e não há como conceber um alívio substancial nos próximos meses.
A vitória de Jair Bolsonaro foi a consumação de um blefe meticulosamente construído. Seu programa era um amontoado de metas altissonantes – como convém a um bom blefe –, grudadas entre si pelo visgo da malícia. Naquele amontoado desconexo e irrealista destacava-se a erradicação da “velha” política, ponto que retomarei adiante. Mas o que realmente interessava, naquele momento, era apresentar-se como o polo antipetista, o resto era recheio.
O blefe tem uma longa história na vida política brasileira. Seu marco cronológico clássico foi a eleição de Jânio Quadros em 1960 e sua renúncia em agosto de 1961. A vassoura, marca registrada do personagem que criou, já sugeria a intenção de combater a corrupção e a “velha” política – podendo nesse aspecto ser vista como uma avant-première do bolsonarismo. Mas o melhor estava por vir. Seria a renúncia, em agosto de 1961, comunicada em carta ao Congresso. Jânio imaginou que os parlamentares passariam vários dias discutindo a carta, engalfinhando-se enquanto o País entrava em convulsão. Dessa forma, ele voltaria ao Planalto nos braços do povo, com poderes ampliados. Mas o Congresso não foi na conversa e o homem da vassoura ficou a ver navios.
Em 1963, fazendo das tripas coração para exercer de fato a Presidência, João Goulart oferecia ao Brasil o banquete das “reformas de base”, uma promessa de reformar o Brasil de alto a baixo. Enquanto isso, Leonel Brizola ameaçava o Congresso (“reforma agrária na lei ou na marra”) e fazia soar seu estribilho: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”. Vinte e poucos anos depois seria a vez de José Sarney. Seu Plano Cruzado elevou-o aos píncaros da popularidade e ele optou por ficar lá, em vez de desfazer as ilusões subjacentes ao congelamento de preços e salários. A queda, como se sabe, sempre equivale à altura do galho.
Quem hoje monitora o drama político brasileiro logo percebe que a Bolsonaro só o que interessa é a reeleição em 2022. Seu ministro da Saúde parece um aprendiz de ventríloquo, o da Educação ainda não disse a que veio e o das Relações Exteriores tornou-se um órfão de Donald Trump. Nesse quadro, a pandemia não deixa de ser útil ao presidente, pois disfarça o vazio de seu governo e lhe fornece os adereços de que necessita para se manter visível na cena pública.
Seria tudo muito engraçado se não fosse trágico – a “gripezinha” já se aproxima de 200 mil óbitos – e perigoso, porque o coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso.
Retrocesso: peço licença para inserir aqui algumas breves considerações sobre essa palavra. O apolitismo brasileiro é de tal ordem que muitos, quiçá a maioria de nossos compatriotas imagina que o regime democrático existe num estado estacionário. Que não vai para a frente nem para trás. Não vai para a frente, segundo o discurso mais batido, porque nenhum político presta. Vai para trás? Talvez, mas, e daí? Para alguns a questão nem faz sentido, pois estão convencidos de que não temos, nunca tivemos e nunca teremos uma “verdadeira” democracia. Outros, só para exercitar um discurso bilioso, e outros falando a sério, apregoam que um retrocesso total seria na verdade a solução, pois qualquer ditadura seria melhor que a contrafação democrática que nos rege. Curiosamente, essa conversa é por sua vez um blefe, pois quem aí se detém nunca dedica sequer meia hora a uma reflexão séria sobre o que está dizendo. A ascensão de Hitler e o massacre de milhões foram a solução para os problemas (cuja gravidade ninguém desconhece) da Alemanha do entreguerras? Sem ir tão longe, Hugo Chávez e Nicolás Maduro livraram a Venezuela de seus difíceis problemas?
De fato, aqueles que não dispõem de meia hora para refletir sobre essas questões não precisam se preocupar com um possível retrocesso. Permito-me, porém, lembrar-lhes que a ditadura benigna com que sonham, ou que se dispõem a tolerar, não pode ser obra de amadores. O antigo molde latino-americano, aquele que conhecemos tão bem, já não basta. Somos um país de 220 milhões de habitantes, com um potencial de conflito gigantesco e até com bandos de cangaceiros high-tech, como os que dias atrás atacaram e aterrorizaram cidades em Santa Catarina, em São Paulo e no Pará. Um regime ferreamente totalitário como o da China? Há quem aprecie.
Seja como for, convençam-se de que nenhuma varinha de condão nos vai tirar do angu em que nos encontramos. Nenhum passe de mágica, nenhum estalar de dedos vai oportunamente nos transportar para o Primeiro Mundo.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Marco Antonio Villa: Bolsonaro conspira contra a saúde pública
Transformar a vacinação em instrumento de guerra política é uma enorme crueldade. Estamos falando de vidas que podem ser salvas
Como esperado — infelizmente — Jair Bolsonaro está partindo para o confronto aberto com os brasileiros. É inaceitável o que o presidente da República está fazendo com as diversas vacinas para combater a Covid-19. O negacionismo está sendo elevado à potência máxima. É imperiosa a necessidade de iniciar o mais rapidamente possível a campanha nacional de vacinação. Transferir este evento para março de 2021 pode significar a morte de mais de 30 mil brasileiros, isto se a média macabra de óbitos se mantiver. É incompreensível vacinar apenas 1/3 da população. Neste ritmo a imunização vai demorar mais de dois anos.
Bolsonaro passou o ano inteiro conspirando contra a saúde dos brasileiros. Demitiu dois ministros da Saúde, atacou o distanciamento social, o uso de máscara, álcool em gel e demais cuidados. Afirmou inúmeras vezes que o novo coronavírus não passava de uma simples gripe, isto quando já sabíamos dos efeitos na Ásia e na Europa. Atrelou o combate à pandemia à política de Donald Trump. Os efeitos logo se manifestaram, ao norte do Rio Grande, que separa o México dos EUA, com o maior número de infectados e de óbitos. No nosso país a tragédia só não foi maior graças às ações corajosas de governadores e prefeitos, que, vale registrar, foram sistematicamente atacados e desqualificados por Bolsonaro e seus asseclas.
A situação presente é muito grave. Não é possível que até hoje o ministério da Saúde não tenha efetuado as compras preventivas das diversas vacinas. E mais: não estabeleceu uma campanha nacional de vacinação e, muito menos, uma articulação com as secretarias estaduais de Saúde. O improviso e a irresponsabilidade são as características principais da gestão de Pazuello. Contudo, o general nada faz sem a anuência do capitão-presidente.
Estamos muito próximo de uma situação caótica no campo da saúde pública. Os brasileiros querem a vacinação o mais rápido possível. Ninguém aguenta mais o que estamos passando desde o primeiro trimestre deste ano. O país clama pelo enfrentamento da Covid-19, evidentemente de forma segura e científica. Transformar a vacinação em instrumento de guerra política é de uma enorme crueldade. Estamos falando de vidas que podem ser salvas. Estamos falando de um país que necessita o mais rapidamente possível retomar a normalidade econômica. Postergar a vacinação em massa, certamente, vai encontrar uma enorme resistência popular. Espero que Bolsonaro não pague para ver.
Hélio Schwartsman: A bússola moral de Bolsonaro
É preciso fazer exatamente o contrário do que o presidente sugere
O Brasil tem a incrível capacidade de, retrospectivamente, transformar presidentes incompetentes em estadistas. Quando eu comecei no jornalismo, sob a gestão de José Sarney, que assumira o posto com a inflação em 242% e o entregou com ela em 1.973%, parecia impossível imaginar uma liderança pior que a dele, mas aí veio Fernando Collor de Mello e tivemos de reconsiderar.Na comparação, o valentão alagoano nos fez sentir saudades do poeta maranhense. Jair Bolsonaro também consagra Dilma Rousseff, apesar de ela ter arruinado a economia e tolerado corrupção.
Bolsonaro, porém, tem uma peculiaridade que o distingue de outros maus presidentes. Ele se revela um desastre não só na condição de gestor mas também nos aspectos simbólicos do cargo.
Presidentes desempenham sempre dois papeis. Precisam ser capazes de montar uma equipe de governo que entregue resultados, mas também exercem influência pelos exemplos que dão e pela forma como se posicionam diante das grandes questões que se apresentam para o país --algo que antigamente chamávamos de bússola moral.
A pandemia dá especial relevo ao segundo papel. Enquanto líderes de outros países se desdobram para conseguir vacinas e fazem questão de ser os primeiros a receber a injeção diante das câmeras, Bolsonaro não cessa de dar declarações que diminuem a gravidade da epidemia, aparece quase sempre sem máscara e ainda sabota iniciativas de imunização planejadas por rivais.
Parte da população, em especial seus simpatizantes, imita suas atitudes. Um bom exercício acadêmico para os próximos anos será estimar qual o excesso de mortes que pode ser atribuído ao gestual do presidente.
Mas talvez eu exagere nas críticas a Bolsonaro. Ele, afinal, continua funcionando como uma bússola moral. Desde que se saiba que é uma com os polos invertidos, dá para orientar-se fazendo exatamente o contrário do que o presidente sugere.
Demétrio Magnoli: O Doria da vacina contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público
Suspeito que, em 2022, todas as versões do governador marcharão juntas, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo
"Os dois fazem política com a vacina" —no rastro do bate-boca entre João Doria e Eduardo Pazuello, sobraram analistas dispostos a colocar um sinal de equivalência entre o governador paulista e Jair Bolsonaro. A pretensa identidade sustenta-se na ideia de que a política é um domínio tóxico —e no corolário segundo o qual, quando se trata de uma pandemia, deve ser substituída pela pura razão científica.
Nenhuma nação enfrentou a pandemia sem apelar à razão política, pelo simples motivo de que existem argumentações científicas capazes de justificar diversas abordagens (embora nem todas: cloroquina não vale!). A Itália aplicou rígidos "lockdowns". A Alemanha, quarentenas moderadas. A Suécia, suaves restrições sanitárias. Nos três casos, especialistas conceituados divergiram entre si e os governos adotaram as decisões finais, guiadas pela política. No caso da vacina, Doria faz a boa política, norteada pelo interesse público mais vital —e, se isso o beneficia politicamente, melhor para ele.
O lance magistral foi a divulgação antecipada do cronograma de vacinação paulista. O xeque ao rei obrigou o governo Bolsonaro a mover suas peças.
O governo federal apostou tudo numa única vacina, a de Oxford/AstraZeneca, cujos testes sofreram atraso. Ignorando a Coronavac, que mantém contrato com o Butantan, Pazuello anunciara o início da imunização para as calendas de abril. De repente, açoitado por Doria, o ministro da Doença girou 180 graus, negociando a compra de estoques da vacina Pfizer/BioNTech, algo que antes descartara. Mais: no compasso do pânico, antecipou o começo da vacinação para "dezembro ou janeiro", um compromisso que dificilmente poderá honrar.
O plano original de Brasília era usar a Anvisa para postergar a aprovação do imunizante que o presidente rotula como "vacina chinesa" até depois da inoculação das primeiras doses da "vacina federal". Tratava-se de sacrificar deliberadamente as vidas de milhares de brasileiros no altar da febre ideológica bolsonarista e dos cálculos eleitorais de Bolsonaro. Doria frustrou a ofensiva da infantaria presidencial contra a saúde pública.
A guerra prossegue, em novos teatros. O contra-almirante Barra Torres, chefe da Anvisa, um soldado raso tão obediente quanto o submisso general Pazuello, ameaça enrolar a avaliação da Coronavac por infinitos 60 dias, que valem (na cotação atual) cerca de 39 mil óbitos. Mas, sob pressão da opinião pública e da peregrinação de estados e municípios às portas do Butantan, é provável que o Congresso ou o STF dispersem a caravana da irracionalidade, impondo a vacinação geral.
O Doria da vacina, que emerge vitorioso do bom combate, contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público.
O primeiro é o governador que propiciou o fechamento eterno das escolas paulistas. Pelo mundo afora, em nações ricas e pobres, estudos avalizados pela OMS comprovam que escolas não são focos significativos de contágios. O prolongado cancelamento das aulas presenciais cobra preço devastador das crianças pobres e de seus pais. Mas, curvado à resistência corporativa dos professores e ao compreensível temor de famílias assustadas, Doria virou as costas à ciência na qual proclama se inspirar.
O segundo é o governador que cumpre a promessa eleitoral de proteger uma polícia treinada no esporte de "atirar para matar". A letalidade policial em São Paulo bate recordes históricos, vitimando centenas de jovens nas periferias —sem, obviamente, arranhar os negócios do PCC. O Doria da vacina, que é o da vida, convive pacificamente com o Doria da morte, um político semibolsonarista pronto a surfar a onda da barbárie.
Qual Doria se apresentará como alternativa a Bolsonaro em 2022? Suspeito —e espero estar errado— que todos eles marcharão juntos, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.