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Míriam Leitão: Primeiros e difíceis trabalhos de Biden

Não há mal que sempre dure. O governo Trump acaba e hoje começa a administração Joseph Biden e Kamala Harris. Não será um tempo fácil. Os Estados Unidos chegam a impensáveis 400 mil mortos por coronavírus e a recessão ceifa empregos. Biden terá que tomar decisões urgentes contra a pandemia. Por ordens executivas ele vai revogar políticas de Trump, principalmente na área externa. Tentará aprovar o pacote de US$ 1,9 trilhão de socorro aos trabalhadores e à economia e, como disse ontem Janet Yellen, a nova secretária do Tesouro, a mudança climática será assunto central na administração.

O economista José Alexandre Scheinkman, professor de Columbia, e professor emérito de Princeton, descreve o quadro em que o novo presidente assumirá:— Biden está em situação complicada. A pandemia está acelerando, e os números previstos para os próximos meses são muito ruins. É difícil mudar a trajetória a curto prazo. O desemprego está com um número alto. Ele tem maioria apertada na Câmara e no Senado, e uma fração não desprezível da população está convencida, por fake news, evidentemente, de que Trump ganhou a eleição.

Em compensação, Scheinkman se diz muito impressionado com a qualidade da equipe que Biden escolheu em áreas fundamentais como economia e ciência:

— Janet Yellen é uma economista com merecida e ótima reputação, e todo mundo concorda que a conduta dela no Fed foi excelente. Para o Conselho de Assessores Econômicos, escolheu minha ex-colega de Princeton Cecilia Rouse, que respeito muito. É muito melhor do que qualquer dos conselheiros de Trump. Ele escolheu como assessor científico Eric Lander, que liderou nada menos que o Human Genome Project, extraordinariamente competente. E elevou o cargo ao nível de ministro. Depois de um governo que não acreditava em ciência, ele nomeou um cientista de primeiríssima linha.

Biden começa assim com uma mudança radical de atitude, mas seu primeiro trabalho, segundo Scheinkman, será “apagar incêndios”.

— Mudança climática é um desses incêndios. Evidentemente, os Estados Unidos voltarão ao Acordo de Paris. Trump tomou várias decisões nos últimos dias que se forem implementadas vão acelerar a crise climática. Biden terá de rever. Mas o mais imediato é reduzir a mortalidade da pandemia. E ele terá que negociar seu pacote, que ainda é apenas uma intenção e será alterado no Congresso. Sobre a economia, há um relativo otimismo de que a vacinação permitirá a volta — diz Scheinkman.

O professor diz que a crise de 2008, que Obama enfrentou ao assumir, destruiu o sistema financeiro, e a economia teve dificuldades. Não havia dinheiro, não havia empréstimos, nem investimentos. Agora, é diferente:

— Esta tem um aspecto que a gente não entende. A demanda pode voltar, mas os pequenos negócios podem ter desaparecido. Aqui em Nova York, todos gostam de café, mas alguns podem ter fechado. Muitos donos de loja desistiram do negócio.

Scheinkman diz que a vacinação é um grande desafio, porque há mais vacina produzida e entregue ao governo central do que as que estão sendo aplicadas pelos estados. Há um problema federal e outro estadual. Ele foi vacinado na segunda-feira, em Nova York:

— O processo ficou muito lento aqui, mas Cuomo (Andrew Cuomo, governador de Nova York) fez alterações. Uma delas é a de incluir professores de todas as redes, inclusive universitários, e pessoas de mais de 65 anos.

O mundo mudará radicalmente hoje, porque a direção da principal potência do mundo será outra, a partir do meio-dia. O Brasil sente nos últimos dias o peso da estúpida opção pelo isolamento. É uma das maiores nações do mundo, em extensão e em PIB, mas o presidente, seus assessores internacionais e seu ministro das Relações Exteriores são adeptos de teorias da conspiração. Ernesto Araújo chegou a dizer “que seja um país pária”. Ontem, o país não conseguia receber as vacinas da Índia, tinha dificuldades de diálogo com a China, e Bolsonaro viu o fim do governo do seu idolatrado Donald Trump. É um crime fazer isso com o Brasil, que sempre teve uma competente diplomacia. No caso dos Estados Unidos, a política externa de Bolsonaro cometeu o erro mais primário, o de confundir país com governo. Criou relações com Trump, que era transitório, em vez de ser com os Estados Unidos, hoje sob nova direção.


Bernardo Mello Franco: Um bolsonarista na casa de Rio Branco

O presidente eleito terá um chanceler à sua imagem e semelhança. Ernesto Araújo emula o discurso do chefe contra o ‘globalismo’ e é admirador de Donald Trump

O novo presidente terá um chanceler à sua imagem e semelhança. O futuro ministro Ernesto Araújo não é apenas um bolsonarista de carteirinha. Ele também emula o chefe no discurso contra o “globalismo”, a “ideologia de gênero” e o “marxismo cultural”.

O ideário do novo chefe do Itamaraty pode ser consultado no blog “Metapolítica 17”. A página é dedicada a uma militância fervorosa a favor do capitão e contra o PT. Ele se refere à sigla como “Partido Terrorista”. Em tom imodesto, diz que pretende “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”.

“Se o PT ganhar, vai extinguir todas as luzes da decência e da liberdade”, escreveu, a uma semana da eleição. Ele acusou os petistas de tramarem um “regime de partido único, ditatorial, (...) um governo que controlará sua vida a partir da educação pré-escolar, que administrará sua família, que controlará o que você pensa e diz”.

O futuro chanceler também ecoa Bolsonaro na pregação contra a China, maior parceira comercial do Brasil. Ele sugere que é preciso resistir à “China maoísta que dominará o mundo”. O discurso parece levemente fora de época. A potência asiática começou a abandonar o maoísmo em 1978, com as reformas de Deng Xiaoping.

Em outro post, o embaixador que nunca chefiou uma embaixada repete clichês da direita hidrófoba. Diz que o socialismo “perverte o milagre da concepção com a ideologia do aborto, perverte o sexo com a ideologia de gênero e o feminismo” e “perverte a fé cristã”.

O anti-intelectualismo também desponta nos textos de Araújo. Para ele, “o povo é muito mais são e sábio do que a classe instruída”. As crianças brasileiras receberiam uma “educação cínica e anti-patriótica onde [sic] se ensina uma história sem heróis e onde professores sub-marxistas tentam criar pequenos militantes”.

Num artigo mais extenso, publicado em 2017 na revista “Cadernos de Política Exterior”, o diplomata ostenta admiração por Donald Trump. Compara o presidente americano a Reagan e Churchill e sustenta, sem ironia, que ele pode “salvar o Ocidente”. Ao que tudo indica, o Itamaraty está prestes a entrar num novo período de alinhamento automático à Casa Branca.


El País: Acuado, Trump lança seu maior ataque contra o promotor que investiga a ‘trama russa’

Presidente acusa a equipe de Robert Mueller de estar infiltrada por “democratas e defensores da corrupta Hillary”

O nervosismo cresce na Casa Branca. À medida que o promotor especial que investiga a chamada trama russa, Robert Mueller, se aproxima do seu alvo final, é cada vez maior a inquietação do presidente Donald Trump. Em uma virulenta série de tuítes, o mandatário lançou neste fim de semana seu primeiro ataque direto contra Mueller e sua equipe, acusando-os de estarem infiltrados por democratas – “alguns deles defensores da corrupta Hillary” – e de não ter nenhum republicano em seus quadros. “É justo isso?”, perguntou-se Trump, ao mesmo tempo em que chamava de mentirosos o ex-diretor do FBI James Comey e seu número dois, Andrew McCabe, principais fontes de uma possível acusação por obstrução à justiça.

Os Estados Unidos estão testemunhando como seu presidente, rompendo as regras do respeito institucional, dispara sua artilharia tuiteira contra o promotor Mueller e sua investigação. Ele seria não só a “vítima de uma caça às bruxas”, como gosta de recordar; agora, afirma que os agentes nomeados pelo Departamento de Justiça do seu próprio Governo fazem parte de uma gigantesca conspiração contra o presidente. “A investigação de Mueller jamais deveria ter começado, porque não houve conluio nem delito. Baseou-se em atividades fraudulentas e num dossiê enganoso pago pela corrupta Hillary e pelo Comitê Nacional Democrata, e foi usado indevidamente perante os tribunais para investigar minha campanha. Caça às bruxas!”, clamou Trump na tarde de sábado.

É a primeira vez que os ataques se voltam diretamente contra Mueller. Sempre discreto em aparições públicas, o promotor especial é uma lenda viva do FBI. Nomeado diretor da agência em 2001 por George W. Bush, foi confirmado no cargo pelo Senado com todos os votos a favor. Uma semana depois de assumir, teve de lidar com os atentados do 11 de Setembro. Após 10 anos no cargo, sua gestão, aplaudida por republicanos e democratas, o levou a ser mantido no cargo por Barack Obama até 2013. Já aposentado, a escandalosa demissão de Comey da chefia do FBI, em maio do ano passado, levou o secretário-adjunto de Justiça, Rod. J. Rosenstein, a escolhê-lo para abrir uma investigação especial e aquietar as suspeitas de que o Departamento de Justiça estaria tentando acobertar a trama russa.

Em suas investigações, Mueller busca principalmente esclarecer se houve coordenação entre a equipe de campanha de Trump e o Kremlin. Mas, paralelamente, outro ramo da investigação apura se o presidente obstruiu o funcionamento da Justiça – uma suspeita que se baseia na demissão de Comey, que perdeu o cargo por se negar a engavetar o inquérito. Chamado a depor pelo Comitê de Inteligência do Senado, Comey revelou as reiteradas pressões que sofrera por parte do Trump, incluindo um jantar a sós na Casa Branca. Essas declarações poderiam sustentar, segundo os especialistas, uma acusação de obstrução, abrindo as portas a um remoto processo de impeachment.

Frente a esse horizonte, Trump tentou solapar a credibilidade de Comey, retratando-o como um pau-mandado dos democratas. “Uau, vejam o Comey mentindo sob juramento […]”, escreveu o presidente num tuíte na madrugada deste domingo, fazendo referência a um depoimento do ex-diretor do FBI no Senado em que ele negou que tenha sido uma fonte anônima ou soubesse quem foi. Esse golpe, na já emaranhada meada do caso, se refere ao ex-número dois do FBI, Andrew McCabe, que, num memorando interno, foi acusado de fornecer informações sigilosas a um meio de comunicação. A infração foi a justificativa para que McCabe fosse demitido na sexta-feira, 26 horas antes de se aposentar.

McCabe, cuja esposa foi candidata democrata numa recente eleição local na Virgínia e recebeu recursos de doadores de Hillary Clinton, revelou ter preparado um relatório sobre todos os seus encontros com Trump, o qual entregou ao promotor especial da trama russa. “Passei pouquíssimo tempo com Andrew McCabe, mas ele nunca tomou notas quando esteve comigo. Não acredito que tenha escrito esses memorandos senão para a sua própria agenda, e provavelmente numa data posterior. O mesmo ocorre com o mentiroso James Comey. Podemos chamá-los de falsos memorandos?”, tuitou o presidente.

Mr. President, the American people will hear my story very soon. And they can judge for themselves who is honorable and who is not.

— James Comey (@Comey) 17 de março de 2018

Essas arremetidas mostram que Trump, com as eleições legislativas de novembro à vista, quer desmantelar a todo custo a investigação, ou pelo menos neutralizá-la mediante sua politização. Alarmado pelo desgaste que o caso provoca, elevou o tom de seus ataques, e seus advogados já pediram publicamente a Mueller que encerre o inquérito. O entorno do promotor especial guarda silêncio. Alguns meios de comunicação norte-americanos informam que ele já teria concluído a parte relativa à obstrução e que está à espera de finalizar as vinculadas à Rússia e as finanças. Comey, que nos últimos dias sofreu vários ataques, é dos poucos que respondem a Trump na mesma linguagem, a do Twitter: "Senhor presidente, os norte-americanos escutarão minha história dentro de muito em breve, e poderão julgar por si mesmos quem é honrado e quem não é”.