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Merval Pereira: Verdades escondidas

Uma disputa domina os bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionada ao processo politicamente delicado de declaração de parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula pelo triplex do Guarujá. Trata-se da permissão à defesa do ex-presidente Lula pelo ministro Ricardo Lewandowski  de ter acesso aos diálogos entre o então juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato de Curitiba, notadamente Deltan Dallagnol, roubados por hackers.

Nesta terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal toma uma decisão fundamental para o desenrolar do julgamento, que deve ser finalizado ainda nesse primeiro semestre. Os ministros Carmem Lucia e Edson Fachin já votaram a favor de Moro, considerando que não há provas de ilegalidades no processo. Restam os votos de Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que votam em conjunto contra a Lava-Jato, e o de Nunes Marques, cujo voto pode revelar qual é a posição do presidente Bolsonaro.

Só que essa questão, que precede a principal, deveria ser definida pelo plenário do STF, de acordo com decisão anterior do ministro Edson Fachin, que é o relator dos casos da Lava-Jato. O ministro Ricardo Lewandowski, por uma manobra dos advogados de Lula, e falha da secretaria-geral do Supremo, recebeu o habeas-corpus sobre as mensagens roubadas e autorizou o que Fachin anteriormente negara. Pretende levar o caso para a  2ª Turma, onde, acredita ter maioria contra Moro, antes que o plenário decida.

Embora o que esteja em pauta na 2ª Turma seja apenas o caso do triplex, já há um movimento para que a eventual anulação atinja todos os processo contra Lula. O que está por trás dessa disputa é a tentativa de suplantar a Lei da Ficha-Limpa, permitindo que ele concorra à presidência em 2022. Não seria nem preciso que os próprios ministros antilavajatistas pedissem a extensão da anulação, pois bastaria que os advogados de Lula requeressem essa extensão para abrir-se uma nova disputa judicial sobre  os efeitos da anulação.

A outra condenação em segunda instância de Lula foi pelo caso do sítio de Atibaia, mas com um detalhe específico: embora Moro tenha começado o processo, saiu antes do fim para assumir o ministério da Justiça do governo Bolsonaro, e quem condenou Lula foi a juíza Gabriela Hardt. Mas há quem defenda a tese de que se Moro orientou o processo, ele também tem que ser anulado.

Até agora, todas as acusações contra o juiz são baseadas nos diálogos roubados por hackers, o que tornaria essas provas inválidas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já definiu que elas não podem ser usadas, mas a defesa de Lula recorreu ao STF. Em contraponto, a defesa do ex-ministro Sérgio Moro recorreu diretamente ao ministro Edson Fachin, contra a decisão de Lewandowski de liberar os diálogos, considerando que ele não é o “juiz natural” do caso.

Fachin faz parte da 2ª Turma, e deve reivindicar na terça-feira que seja cumprida sua decisão de levar o tema a plenário. O uso retórico dos diálogos como base da acusação de parcialidade de Moro está sendo feito há muito tempo, desde que foram revelados pelo site The Intercept Brazil, mas até agora não houve uso formal. Se o plenário do STF reafirmar que provas conseguidas ilegalmente não podem ser usadas, os ministros da 2ª Turma que votam contra Moro perderão seus argumentos. Terão apenas a primeira acusação da defesa de Lula, de que aceitar de ser ministro de Bolsonaro denotaria sua parcialidade, o que é muito frágil.

Caso prevaleça a tese de que provas ilegais podem ser usadas em favor do condenado, haverá uma avalanche de anulações, e não apenas dos casos de Lula. A “suspeição” de Moro poderá ser arguida por vários condenados por ele que porventura apareçam nos diálogos,  ou que se julguem prejudicados por relações indiretas com outros processos, o que nos levaria a uma situação paradoxal: anular as prisões?  Tornar sem efeito várias, ou todas, as delações premiadas? O que fazer do dinheiro devolvido pelos condenados? O que fazer com os escândalos de corrupção confessados minuciosamente durante os processos do “petrolão”? Jogá-los para baixo do tapete? Fingir que nada aconteceu?


El País: Derrocada da Lava Jato expõe Moro como guia da força-tarefa, e escândalo cai no colo do STF

Mensagens do ex-juiz com procurador Deltan Dallagnol obtidas pela defesa do ex-presidente Lula têm potencial de anular processos em andamento, segundo juristas. Caso já é chamado de “maior escândalo da Justiça no Brasil”

Carla Jiménez, Felipe Betim e Regiane Oliveira, El País

Sete anos após provocar uma reviravolta sem precedentes na política e na economia do Brasil, a outrora poderosa Operação Lava Jato viveu nesta quarta-feira, 3 de fevereiro, um melancólico apagar de luzes com o anúncio de que já não existe mais —ao menos não da forma como ficou conhecida. A força-tarefa de Curitiba deixa de existir e torna-se um apêndice do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). O desfecho acontece após a operação entrar numa espiral de descrédito no mundo jurídico, que culminou com a exposição de diálogos entre o ex-juiz Sergio Moro e o então chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol.

O conteúdo, tornado público nesta segunda-feira, 1, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandovski a pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, confirma parte das informações que já haviam sido reveladas pelo The Intercept Brasil, na sérieVaza Jato. Publicada desde 9 de junho de 2019, a série trazia alguns diálogos de Dallagnol e Moro, mas principalmente conversas entre os procuradores da força-tarefa do Ministério Público Federal do Paraná. Um total de 105 reportagens foram escritas por diversos veículos de imprensa, incluindo o EL PAÍS Brasil, a partir do material obtido pelo The Intercept.

No entanto, o material exposto nesta segunda-feira vai muito além do que o exposto pela Vaza Jato. E tem o potencial de reescrever a história da operação. Em 50 páginas de mensagens selecionadas pelo perito Cláudio Wagner, a pedido da defesa do ex-presidente Lula, lê-se de maneira cristalina como Moro, que deveria ser neutro para julgar os processos apresentados pelos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba, tinha comunicação permanente com integrantes da força-tarefa, especialmente com o ex-chefe da operação, Deltan Dallagnol. Entre setembro de 2015 e junho de 2017, há registros de trocas sistemáticas de diálogos entre os dois pelo aplicativo Telegram —fora dos ritos processuais— para tratar de detalhes de decisões em andamento, em que o então juiz do caso cobra informações e sugere ao menos uma fonte para ser ouvida pelo Ministério Público no processo do ex-presidente Lula. “O material que o moro nos contou é ótimo. Se for verdade, é a pá de cal no 9 e o Márcio merece uma medalha”, diz Dallagnol numa comunicação feita pouco depois das 19h, em 29 de julho de 2016. As mensagens estão sendo apresentadas neste texto com a grafia em que aparecem nos arquivos apreendidos; o número “9” é como os procuradores tratavam, de forma pejorativa, o ex-presidente Lula, em função da ausência de um dos dedos da mão, perdido em um acidente de trabalho.

Não era a primeira vez que Moro sugeria caminhos para a investigação. Em trecho de 7 de dezembro de 2015, ele dá dicas ao procurador: “Entao. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou entao repassando. A fonte é seria”, lembrou o juiz. No que Deltan agradeceu a corteisa. “Obrigado!! Faremos contato”. Para Moro valia a pena seguir a pista, afinal, “seriam dezenas de imóveis”. A fonte, em questão, não se mostrou crível como apontou a continuação do diálogo. A fala havia sido revelada em junho de 2019 pelo The Intercept. Na ocasião, Moro afirmou ao Estadão, que repercutiu a fala, que “tudo o que chegava que era relevante, ou a gente encaminhava para a polícia ou Ministério Público, seja lá se a informação eventualmente beneficiava defesa ou acusação”. Segundo ele, o objetivo era “descobrir a verdade”. Os métodos tornados públicos agora, porém, são considerados condenáveis por irem contra todo o princípio de imparcialidade que se espera, ainda mais num caso de extrema delicadeza com potencial de alterar os rumos políticos do país —a Lava Jato foi responsável por enquadrar o ex-presidente na Lei da Ficha Limpa e retirá-lo da corrida presidencial contra Bolsonaro em 2018.

Em outro trecho de 14 de dezembro de 2016 Deltan informa Moro sobre o andamento de duas denúncias. “Denúncia do Lula sendo protocolada em breve. Denúncia do Cabral será protocolada amanhã”, informa o procurador, citando ali o ex-governador do Rio, Sergio Cabral. O então juiz responde a comunicação extraoficial quase como um torcedor: “Um bom dia afinal”, seguido de um emoticon feliz.

As conversas fora dos autos foram captadas pela Operação Spoofing, a investigação da Polícia Federal que prendeu hackers que invadiram celulares dos procuradores da Lava Jato e tiveram acesso aos arquivos de mensagens dos procuradores no aplicativo Telegram —e foram base para a Vaza Jato. Depois, os diálogos foram obtidos na íntegra pela PF. A defesa de Lula solicitou os trechos que diziam respeito ao processo do ex-presidente. Nelas, os dois maiores protagonistas da Lava Jato mostram intimidade de parceiros de trabalhos, partilhando emojis, risos em linguagem de internet, pedindo reuniões reservadas com parte dos integrantes da força-tarefa e até orientando melhores caminhos para a comunicação com a imprensa. “Precisamos conversar com urgência. Hj as 1430 ou as 1500 vcs podem? Mas melhor virem em poucos pois melhor mais reservado. Quem sabe vc, o lima, Athayde e Orlando?”, propõe Moro a Dallagnol, mencionando, possivelmente, Carlos Fernando Lima, Athayde Ribeiro Costa e Orlando Martello Jr.

Se a Vaza Jato provocou um terremoto e representou uma perda de prestígio da operação e de Moro, as mensagens conhecidas nesta segunda podem jogar uma pá de cal na credibilidade de algumas decisões tomadas pela Lava Jato, segundo juristas ouvidos por este jornal. O escândalo bate à porta do Supremo Tribunal Federal que tem um encontro marcado com Moro no julgamento do pedido da defesa do ex-presidente Lula de suspeição do ex-juiz e consequente anulação da condenação do petista no caso do triplex do Guarujá. Lula foi preso em abril de 2018 por ter supostamente recebido o apartamento em seu nome em troca de favores para a empreiteira OAS. Saiu 580 dias depois, em novembro do ano seguinte, após uma mudança de interpretação do STF sobre prisão de condenados em segunda instância.

A comunicação fluída entre Moro e Dallagnol viola a relação juiz-procurador e rompe o princípio da imparcialidade aos olhos do Direito. “Este é o maior escândalo da história da Justiça no Brasil”, diz o jurista Rafael Valim. Marco Aurélio de Carvalho, líder do grupo Prerrogativas —que reúne cerca de 1000 juristas, incluindo advogados de réus da Lava Jato que militam contra as práticas açodadas da operação—, segue a mesma linha. “O Supremo tem uma chance única de reacreditar o sistema de Justiça. Nesse processo, perdeu-se muito de credibilidade com a politização do Judiciário”, diz Carvalho.

A Lava Jato participou de investigações que levaram a 278 condenações, algumas de réus confessos, como o empresário Marcelo Odebrecht, que sustentava um departamento de propina para políticos na empreiteira, ou Pedro Corrêa, ex-deputado do PP, que mencionou troca de apoio aos Governos petistas em troca de ministérios, além de cargos em diretorias de empresas públicas como a Petrobras. “O mesmo que se fazia nos Governos anteriores. Inclusive com o entendimento e favores a empresários, igualzinho a todos os Governos que participei desde 1976”, ressaltou ele, em entrevista ao Paraná Portal. Em sua delação aos procuradores, Correia apontava corrupção na Petrobras desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1999-2002).

O problema são os juízos onde as investigações tiveram atropelos com consequências diretas para os rumos políticos do Brasil. A Vaza Jato já havia revelado conversas que mostravam as estratégias de divulgação para a imprensa e o contato direto dos procuradores com movimentos de rua que torciam pela queda da então presidente Dilma Rousseff em 2016, retroalimentando a pressão popular para favorecer os pleitos da Lava Jato. Mesmo quando passavam por ilegalidades, como a exposição de um telefonema entre o ex-presidente Lula e Rousseff, em que eles discutiam a futura noemação do ex-presidente para um cargo de ministro. A celeridade da condenação de Lula também causou uma clara sensação de parcialidade, incluindo a confirmação de pena em segunda instância.

Divisor de águas

O julgamento da suspeição de Moro pode, assim, ser um divisor no passado de glórias da Lava Jato e vaideterminar o futuro do combate à corrupção no Brasil. Os trechos de arquivos apreendidos pela Operação Spoofing mostram que o sucesso da operação teve um custo alto para a imagem da Justiça brasileira, com excessos que afetam a credibilidade do sistema Judiciário. Ignorar esses desvios seria um golpe que contaminaria o mesmo Supremo. O processo está nas mãos do ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas e já avisou que ele poderá ser julgado pela Segunda Turma do Supremo ainda no primeiro semestre deste ano. Em tese, as informações divulgadas tornariam mais difícil aos ministros da Corte justificarem um comportamento que vai contra o princípio da imparcialidade do Direito brasileiro.

A dúvida, no entanto, é se eles vão admitir as mensagens como legítimas ou tomá-las como provas ilícitas, diz o advogado Alberto Toron, que defende réus da Lava Jato. “Reconhecidamente esse material foi interceptado de forma ilícita [pelos hackers que invadiram os celulares dos integrantes da Lava Jato e de Moro], o que abre uma grande discussão no processo penal, pois não valem para acusar alguém. Mas e para se defender ou mostrar parcialidade de um juiz?”, questiona Toron.

A montanha de mensagens confirma o que advogados de defesa dos réus reclamavam desde o início da operação, em 2014. “Um juiz precisa ser equidistante e assegurar à acusação e à defesa as mesmas condições. Isso é a negação radical desse princípio fundamental do exercício da magistratura”, afirma o advogado Maurício Dieter, professor de criminologia da USP. Os procuradores e o juiz encarnaram uma espécie de “tenentismo togado”, como escreve o jurista e cientista político Christian Edward Cyril Lynch —numa alusão aos tenentes que se revoltaram contra a República Velha na década de 1930— os novos heróis, no caso juízes e promotores da Lava Jato, assumiram para si a tarefa de limpar a política, “se não mais a golpes de metralha, pelo menos de vazamentos, delações premiadas e rigorosas condenações judiciais”. Foram bem sucedidos por um tempo em sua “Revolução Judiciarista”.

Moro nunca reconheceu o teor das conversas e sempre afirmou que podiam ter sido adulteradas. Após o movimento de Lewandowski, o ex-ministro da Justiça do Governo Jair Bolsonaro voltou a repetir sua justificativa: “Não reconheço a autenticidade das referidas mensagens, pois como já afirmei anteriormente não guardo mensagens de anos atrás”, disse em nota. “As referidas mensagens, se verdadeiras, teriam sido obtidas por meios criminosos, por hackers, de celulares de procuradores da República, sendo, portanto, de se lamentar a sua utilização para qualquer propósito, ignorando a origem ilícita”. O problema desse argumento é que a própria Polícia Federal, acionada pelo então ministro Moro quando a Vaza Jato publicava suas reportagens, fez a perícia das mensagens e constatou que são verdadeiras. O MPF de Curitiba informou por meio da assessoria de imprensa que não comenta o caso.


Maria Hermínia Tavares: Ligações perigosas

Conversas inadequadas entre juiz e promotores, intimidade entre políticos e empresas são tão comuns quanto reprováveis

Graças ao ministro Ricardo Lewandowski, do STF, tem-se agora acesso ao registro das conversas privadas —e tóxicas— do então juiz Sergio Moro com procuradores da Operação Lava Jato quando se instruía a denúncia contra o ex-presidente Lula. As 50 páginas de transcrições desvendam uma relação mais do que imprópria entre um magistrado, que deveria primar pela isenção, e os membros do Ministério Público responsáveis pelas alegações que justificassem transformar o líder do PT em réu no célebre caso do tríplex do Guarujá.

Advogados relatam que conversas inadequadas entre juiz e promotores durante o processo de instrução são tão comuns quanto reprováveis, pois se dão sempre em prejuízo do acusado. Mas, além de inaceitável do ponto de vista ético, o escambo entre Moro e os acusadores de Curitiba produziu um resultado politicamente letal: excluiu do jogo, na marra, o candidato que, goste-se disso ou não, detinha àquela altura a preferência dos eleitores, constatada nas pesquisas.

Aos que se debruçarem sobre o texto agora liberado --ou o seu resumo na imprensa-- recomenda-se fortemente a leitura de "A Organização", da competente jornalista Malu Gaspar.

Melhor livro brasileiro de análise política publicado no ano passado, ali está a narrativa da irresistível ascensão da Odebrecht no negócio da construção pesada, à sombra de todos os governos democráticos desde meados de 1980.

As relações de intimidade da empresa com os líderes do PT e de outros partidos que compartilhavam o poder, descritas em sua crueza, são o centro do exemplo notável do que a literatura especializada chama de "rent seeking", a busca de ganhos privilegiados, em tradução livre. Ou seja, a obtenção por empresas privadas de lucros à margem da competição no mercado --graças a ligações espúrias com líderes políticos e agentes públicos de alto escalão.

A amizade entre dois presidentes —o da Odebrecht e o da República— e um sofisticado esquema de financiamento arquitetado pela empresa sob o elegante codinome "Departamento de Operações Estruturadas" tornaram possíveis tanto a expansão dos contratos públicos da construtora quanto o financiamento, via caixa dois, de expoentes de partidos governistas.

Revelada pela Lava Jato, a trama de relações perigosas em torno da Petrobras desnudou o mecanismo do "rent seeking", tão corriqueiro como venenoso para a democracia.

Talvez a prática não possa ser de todo eliminada. Resta, por isso mesmo, encontrar formas de reduzir a sua radioatividade política, sem atropelar as boas condutas jurídicas. Eis o desafio permanente para os democratas.


Merval Pereira: O Comandante

Mais importante, a longo prazo, que as denúncias pontuais feitas ontem ao ex-presidente Lula pela Operação Lava-Jato é a caracterização dele como “o comandante máximo do esquema de corrupção da Petrobras” ou “o verdadeiro maestro dessa orquestra criminosa”, palavras duras usadas pelo procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa de Curitiba.

As denúncias podem levar, a curto prazo, à condenação de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas é a acusação explícita de que ele é o chefe do esquema de corrupção que foi montado em seu governo desde o mensalão até o petrolão que o atinge politicamente de maneira quase letal, ao mesmo tempo que gerará a maior pena, caso seja aceita quando apresentada.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que está a cargo do processo-chave sobre o esquema de corrupção, já disse em alguns despachos que Lula é o chefe do grupo criminoso. Como já escrevi aqui, a Justiça brasileira levou quase dez anos para ter condições políticas de denunciar o ex-presidente Lula como chefe da quadrilha, que todo mundo sabia que era desde o início, no mensalão.

Agora ficou demonstrado que mensalão e petrolão são a mesma coisa — um segmento do mesmo esquema de corrupção montado pelo PT no Palácio do Planalto, que não poderia funcionar sem que Lula fosse o chefe, como sublinhou Dallagnol ontem. A denúncia dos procuradores de Curitiba foi contextualizada dentro de um esquema de corrupção que teria três objetivos: montar uma base política no Congresso, a perpetuação no poder, e o enriquecimento ilícito de lideranças políticas.

O apartamento tríplex no Guarujá e o armazenamento de pertences pessoais de Lula por cinco anos, a cargo da empreiteira OAS, são apenas parte desse último ramo do esquema, e não apenas eles. Lula ainda está sendo investigado pelo pagamento de palestras que os investigadores desconfiam que foram superfaturadas, e em alguns casos nem existiram; pelo lobby a favor de empreiteiras em países amigos; e pelo sítio em Atibaia, que também teve outra empreiteira, a Odebrecht, a fazer reformas e melhorias.

Essas e outras denúncias serão reforçadas pelas delações premiadas de Leo Pinheiro, da OAS, e Marcelo Odebrecht. Pinheiro já disse na delação que foi anulada por Janot que o tríplex foi abatido da propina devida ao PT. A obstrução da Justiça, para evitar a delação de Nestor Cerveró, é outra investigação que está em progresso.

Juntando-se as vantagens pessoais com o esquema de corrupção montado a partir da sua chegada ao Planalto para comprar apoio político e manter o PT no poder o maior tempo possível, temos um retrato de um grupo político criminoso que tomou de assalto as instituições do país. E que pode ter cometido crimes antes mesmo de chegar ao poder central.

A Lava-Jato está também exumando outro fato escabroso, os aspectos políticos do assassinato do exprefeito Celso Daniel, de Santo André. O publicitário Marcos Valério confirmou ao juiz Sérgio Moro que foi procurado para resolver uma questão financeira envolvendo uma chantagem do empresário Ronan Maria Pinto contra os líderes do PT José Dirceu e Gilberto Carvalho.

Ele confirmou que o empréstimo do banco Schahin foi para pagar essa chantagem, e em troca o banco ganhou uma encomenda bilionária da Petrobras para compra de sondas. Valério, no entanto, recusou- se a revelar a razão da chantagem, assumidamente por receio de ser alvo de represálias.

“O senhor não pode garantir a minha vida”, disse a Moro. Bruno, irmão de Celso Daniel, e outros parentes do ex-prefeito de Santo André consideram que foi crime político; ele teria sido assassinado para evitar que denunciasse esquemas de corrupção em financiamento de campanhas petistas e de aliados.

O conjunto da obra não é nada favorável àquele que já foi o maior líder político deste país. (O Globo – 15/09/2016)


Fonte: pps.org.br