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El País: Decisão sobre Lula expõe volatilidade do STF e submete Lava Jato a incertezas

Advogados aproveitam brecha para pedir que Moro envie todo o processo envolvendo o petista para a Justiça de São Paulo

A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal que retirou das mãos do juiz Sérgio Moro trechos de um processo envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lança incertezas na relação da Corte com a Operação Lava Jato e é mais um exemplo da inquietante volatilidade das posições do tribunal, pois contraria determinação tomada seis meses atrás. Três analistas ouvidos pelo EL PAÍS acreditam que a decisão abre um precedente para outros casos similares - ou seja, mais ações em curso podem sair da alçada de Moro. Ponderam, porém, que não é razoável dizer que, se processos forem julgados por outros juízes, a operação será estancada ou que todos os políticos, doleiros, marqueteiros e empresários implicados acabarão inocentados.

“Criou-se uma ideia de que o Moro é o juiz universal do Brasil. Que vai salvar todo o mundo e acabar com a corrupção. O que não é verdade”, afirmou o professor de direito processual penal Afrânio Silva Jardim, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e crítico da Lava Jato. Na visão deste jurista, que é livre docente, outros juízes que trabalham nos desdobramentos da Lava Jato acabaram sendo mais rigorosos que o próprio Sérgio Moro. “No Rio, o Marcelo Bretas é muito mais severo que o Moro. Aliás, o Moro é severo com alguns. Os diretores e gerentes da Petrobras, que admitiram desvios e devolveram 60% do que pegaram, estão em prisão domiciliar. E o Lula está preso”.

A dúvida que pairava nos casos envolvendo Lula, e outros investigados pela Lava Jato, é a seguinte: em qual comarca o processo deve tramitar, na em que os crimes teriam ocorrido ou na que se descobriu os delitos? O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti, diz que é “absolutamente normal” a discussão sobre a competência dos processos envolvendo qualquer investigado. Afirma que, se atuasse no caso Lula, ele próprio poderia defender tanto os que querem que o caso tramite em Curitiba como os que querem que siga para São Paulo. Mas disse estranhar e ver com preocupação a mudança de posicionamento da segunda turma do STF. “O que causou estranheza foi o giro de 180 graus, em embargos de declaração sobre uma causa decidida em unanimidade”.

Em outubro, os cinco ministros da turma negaram um pedido da defesa e decidiram que os trechos nos quais os delatores relatam o suposto repasse de verbas indevidas para Lula, incluindo a reforma de um sítio de Atibaia (SP), não estavam relacionados diretamente com a Petrobras, que é a investigação original da Lava Jato, portanto, não deveriam ficar com o magistrado em Curitiba. Essa decisão foi revista ontem. Mantiveram o posicionamento de outubro os ministros Edson Fachin e Celso de Mello. Aderiram ao novo entendimento os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski. “Neste momento há insegurança jurídica. E isso é o oposto do que deveria fazer o Supremo. Sem julgar o mérito. Dar guinadas em qualquer matéria só porque algum ministro mudou de opinião não é positivo para o sistema jurídico brasileiro”, avaliou o procurador Robalinho.

Dizendo-se perplexo com a decisão, o promotor de Justiça em São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, afirma que espalhar por diversas seções judiciais processos que aparentemente têm relação entre si é negativo para a eficiência processual. “Agora, você tem a óbvia possibilidade de se ter decisões conflitantes.” A opinião é compartilhada pelo procurador Robalinho. “O juiz Moro e os colegas da força-tarefa em Curitiba fazem um trabalho excepcional. Retirar de um juiz que já está em conhecimento profundo do processo, em fase final de instrução, nunca é positivo seria uma atitude temerária da Justiça”, afirmou.

Já o professor Silva Jardim diz que o Supremo pode estar tentando arrumar erros cometidos no passado, quando alguns dos réus já haviam solicitado essa transferência de comarca, mas não haviam conseguido. “A euforia com a Lava Jato está acabando. O endeusamento dos procuradores e do juiz, as premiações, as entrevistas midiáticas, tudo tem diminuído”.

Embates judiciais
Neste ambiente de incertezas, iniciou-se um embate entre os procuradores da Força-Tarefa da Lava Jato e os advogados de Lula. Embasados na decisão da 2ª Turma do STF, os procuradores enviaram um documento ao juiz Moro no qual defendem a permanência dos processos de Lula na vara de Curitiba. Dizem ainda que há um “lamentável tumulto processual”.

Já os defensores do petista entraram com um pedido na mesma vara judicial para que o magistrado Moro encaminhe para livre distribuição da Justiça de São Paulo as ações penais a que o petista responde sobre o sítio de Atibaia (onde Lula é suspeito de tê-lo recebido em um ato de corrupção) e sobre a compra de um terreno para seu instituto.

O ex-presidente é réu em sete processos e está preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba por ter sido condenado em um deles, o que tratava do triplex do Guarujá. Lula cumpre pena de 12 anos de prisão.


Merval Pereira: Precedente perigoso

A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de tirar da jurisdição do juiz Sergio Moro, de Curitiba, partes da delação da Odebrecht, sob a alegação de que não têm relação com a corrupção da Petrobras, abre um caminho perigoso para a sociedade e benéfico para Lula, que pode chegar até à anulação da condenação do ex-presidente pelo TRF-4.

O objetivo da defesa é, anulando a condenação de segunda instância, tornar o ex-presidente elegível, livrando-o da Ficha Limpa. Ao fim de uma batalha judicial que já leva vários meses, a tese da defesa de que Sergio Moro não é o juiz natural para julgar os casos não diretamente ligados à corrupção da Petrobras ganhou a chancela de três ministros do STF: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.

Ao mesmo tempo, a defesa do ex-presidente entrou com dois recursos no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), para o STJ e o STF, contra a condenação no caso do tríplex de Guarujá (SP), alegando diversas irregularidades no processo, inclusive que o juiz Sergio Moro não deveria estar à frente do julgamento que condenou o ex-presidente Lula.

No recurso especial, a defesa do ex-presidente pede que o STJ absolva Lula ou decrete a nulidade de todo o processo. Os dois recursos também pedem que “seja afastada qualquer situação de inelegibilidade de Lula”. Esse é um recurso obrigatório pela Lei de Ficha Limpa, para que o direito de defesa seja exercido na sua integridade.

Com a decisão de ontem do Supremo, esses recursos acabaram ganhando conotação diferente, pois ela demonstra que o Supremo, em teoria, pode acolher a tese de que Moro não é o juiz natural também do processo do tríplex do Guarujá. Essa tese havia sido rejeitada tanto por Moro quanto pelo TRF-4.

Os advogados de Lula alegavam que, ao afirmar que o tríplex não está diretamente ligado à corrupção na Petrobras, o juiz Sergio Moro desfigurou a denúncia do Ministério Público. A explicação do juiz Moro na ocasião foi de que havia sido reconhecido na sentença que houve acerto de corrupção em contratos da Petrobras, e que parte do dinheiro da propina combinada foi utilizada em benefício do ex-presidente.

Para o juiz, não há nenhuma relevância para caracterização da corrupção ou lavagem de onde a OAS tirou o dinheiro para o imóvel e reformas. Dinheiro é fungível, isto é, pode ser trocado por outros valores iguais. O próprio Sergio Moro escreveu em uma de suas sentenças: “Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos da Petrobras foram usados para pagamento indevido para o ex-presidente”.

Para Moro, não importa de onde a OAS tirou o dinheiro, mas somente que a causa do pagamento tenha sido contrato da Petrobras. No caso da Odebrecht, por exemplo, o dinheiro usado para pagar os diretores da Petrobras vinha de contratos no exterior sem relação com a estatal, mas tinha como objetivo ganhar concorrências na empresa.

Dinheiro não é carimbado com sua origem, mas havia conta-corrente de propina que era abastecida com dinheiro proveniente de corrupção na Petrobras. O detalhe tragicômico é que a decisão do Supremo foi tomada no quarto agravo regimental de petição, com base em embargos de declaração no agravo regimental no agravo de instrumento.

Outro agravo que a Segunda Turma vai ainda examinar foi encaminhado pelo ministro Edson Fachin, que diz que ele perdeu seu objetivo porque os embargos dos embargos já foram julgados inconsistentes pelo TRF-4. A reclamação da defesa é de que a ordem de prisão de Lula foi dada antes que todos os embargos fossem analisados. Os embargos dos embargos, pelo próprio nome, é uma aberração, uma ação protelatória. A prisão foi decretada porque os embargos dos embargos não têm a menor possibilidade de mudar a condenação. São essas distorções do nosso Sistema Jurídico que levam à impunidade.

Em uma disputa em Goiás, Carlos Alberto Sardenberg mostrou na CBN ontem que houve oito embargos de declaração, dois agravos e dois embargos dos embargos do agravo. A ementa do STJ repete 12 vezes a expressão sem sentido “embargo de declaração dos embargos de declaração dos embargos de declaração”.


El País: STF muda de ideia e retira de Moro delação da Odebrecht que cita Lula

Segunda turma, que em outubro havia enviado trechos a Curitiba, agora diz que caso não é da Lava Jato. Defesa de Lula celebra e Gilmar Mendes sinaliza que decisão pode ter repercussão ampla

A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde 7 de abril em Curitiba, teve uma rara e surpreendente vitória contra a Operação Lava Jato e o juiz Sérgio Moro cujas implicações completas ainda estão por ser conhecidas. Por maioria de votos, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta terça retirar das mãos de Moro parte das delações da Odebrecht que citam Lula e remetê-las à Justiça de São Paulo. Para três dos cinco ministros, os trechos nos quais os delatores relatam o suposto repasse de verbas indevidas para Lula, incluindo a reforma de um sítio de Atibaia (SP), não estão relacionados diretamente com a Petrobras, que é a investigação original da Lava Jato, e portanto, não deveriam ficar com o magistrado em Curitiba. O mais curioso é que os mesmos ministros haviam negado um recurso da defesa do petista em outubro no mesmo caso - e por unanimidade. Agora, mudaram de ideia os ministros Antonio Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que acabou desempatando o jogo a favor do ex-presidente.

O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, comemorou e disse que a decisão corrobora o argumento reiterado da defesa de que nenhum caso do ex-presidente deveria estar nas mãos de Moro - uma vara que seus advogados consideram artificial em Curitiba após o desmembramento da Lava Jato para juízes em vários Estados. "Entendemos que essa decisão da Suprema Corte faz cessar de uma vez por todas o juízo de exceção criado para Lula em Curitiba, impondo a remessa das ações que lá tramitam para São Paulo", disse Zanin, em nota.

Apesar das palavras de Zanin, no entanto, Moro - que condenou Lula no caso do triplex do Guarujá pelo qual ele está preso - segue, pelo menos por ora, como o juiz que sentenciará o petista em dois outros casos, só que não poderá, a princípio, usar os trechos das delações da Odebrecht que o STF resolveu enviar a São Paulo. Porém, é inegável que a decisão é um revés tanto para juiz como para os procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.

Em um dos processo que estão em Curitiba, Lula é acusado de supostamente ter recebido propina no valor de 12,5 milhões de reais da Odebrecht. O valor é referente a um terreno em São Paulo onde, segundo delatores, seria construída a nova sede do Instituto Lula, e um imóvel vizinho ao seu apartamento em São Bernardo do Campo. Na outra ação, o ex-presidente é acusado de receber das empreiteiras OAS, Odebrecht e Schahin vantagens indevidas no valor de 1,1 milhão de reais por meio de reformas em um sítio em que frequentava em Atibaia (SP). No caso do sítio, por exemplo, a denúncia contra Lula, de março do ano passado, fala especificamente que entre 2010 e 2011, o ex-presidente se associou criminosamente à Odebrecht, "e em detrimento da Petrobras", para desviar 700.000 reais em reformas em Atibaia.

Não foi assim que entenderam nem Toffoli nem os ministros que concordaram com ele. “Não diviso, ao menos por ora, nenhuma imbricação específica dos fatos descritos (na delação) com desvios de valores operados no âmbito da Petrobras”, lançou o ministro, de acordo com o relato da assessoria do STF. Em outro momento, o magistrado comenta que os delatores falam de favores prestados "como contrapartida pela influência política exercida pelo ex-presidente em favor do grupo", mas não especificamente ligado aos contratos da estatal petroleira.

Porta aberta para questionar Moro
A forma de desmembramento da Lava Jato, que começou em Curitiba, é um dos grandes debates da operação. Não só Lula, mas réus como Paulo Skaf (MDB), da FIESP e pré-candidato ao Governo de Estado de São Paulo, já tentaram tirar os casos de Moro - Skaf com sucesso. Nesse sentido, a derrota desta terça pode ser um sinal de alerta para Curitiba. Gilmar Mendes, que costuma enviar recados em suas frequentes manifestações à imprensa, disse que a sentença pode, sim, abrir a porta para questionar os casos sob a responsabilidade da Lava Jato no Paraná. Após o julgamento, Mendes respondeu: "Qual vai ser a implicação? Obviamente que, se se declinou para São Paulo, os processos terão que ir para lá". "Poderá haver recurso em relação a processos que estão com Moro sob argumento de que não se trata de Petrobras. E isso pode vir até aqui em outro contexto. Eu não sei quais implicações em todos os casos", disse o magistrado, segundo O Globo.

Gilmar Mendes minimizou ter mudado de ideia sobre o recurso da defesa de Lula tão pouco tempo - ele que também alterou seu entendimento sobre a questão da prisão após condenação em segunda instância. Seja como for, na imprevisibilidade que domina o STF, Toffoli deixou a porta aberta para mudar de opinião mais uma vez. Disse, de acordo com a assessoria, que "a investigação se encontra em fase embrionária" e que, por isso, "sua decisão não firma, em definitivo," com qual juiz devem ficar as delações.


Eliane Cantanhêde: Pulga atrás da orelha

Ao tornar Demóstenes Torres elegível, o STF lança uma boia para salvar candidatura Lula?

Dúvida atroz: por que o Congresso não reagiu ao Supremo Tribunal Federal, quederrubou a inelegibilidade do ex-senador Demóstenes Torres, cassado e tornado inelegível pelo Senado? E a independência entre os Poderes?

Há a suspeita de que Demóstenes foi beneficiado pelo Supremo para abrir caminho para outros políticos que estejam ou venham a estar inelegíveis. Por exemplo, Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba. Se vale para Demóstenes, pode valer para outros. Se vale para outros, por que não para Lula?

Em 2012, o plenário do Senado cassou o mandato e tornou Demóstenes inelegível por 8 anos após o fim da atual Legislatura, ou seja, até 2027. Entretanto, a Segunda Turma do Supremo (a boazinha) acaba de manter a cassação do atual mandato, mas derrubando a inelegibilidade. Estranho, não é?

Procurador do Ministério Público de Goiás e acusado de ser uma espécie de funcionário de luxo do bicheiro Carlinhos Cachoeira no Senado, Demóstenes continua cassado, mas com direito a se candidatar em outubro de 2018. A Segunda Turma alegou que as provas contra ele haviam sido anuladas, porque ele tinha foro privilegiado e não poderia ser grampeado sem autorização do Supremo. E, se foram anuladas, está também anulada a inelegibilidade. Mas mantida a cassação (?!).

É o samba do Brasil doido e vale destacar que os votos para devolver a elegibilidade de Demóstenes foram, primeiro, uma liminar do ministro Dias Toffoli, acompanhado depois na turma por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. O resultado foi por 3 a 2, com votos contrários dos ministros Celso de Mello e Edson Fachin.

“Estamos indo de encontro à decisão do Senado Federal”, disse Fachin com todas as letras, ao discordar de Toffoli, Gilmar e Lewandowski – que, aliás, presidiu a sessão do impeachment de Dilma Rousseff no Senado, que criou uma nova forma: cassação do mandato, mantida a elegibilidade. Ninguém entendeu nada, a não ser que houve um acordão entre as forças políticas, articulado pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros, e ratificado pelo então presidente do Supremo – o próprio Lewandowski.

Se a Segunda Turma do STF agora desautoriza uma consequência natural da cassação de Demóstenes (a inelegibilidade), por que senadores e deputados não se impregnaram de indignação e de brios institucionais para reclamar e clamar por autonomia?

Por que os atuais presidentes do Senado, Eunício Oliveira, e da Câmara, Rodrigo Maia, não questionaram a decisão da Segunda Turma – agora do próprio Supremo –, alegando interferência entre Poderes? A resposta parece constrangedora, mas é razoavelmente simples: porque assim como “pau que dá em Chico dá em Francisco”, também funciona o contrário: decisões pró-Demóstenes hoje podem muito bem ser pró-Lula amanhã e depois, consolidadas, de todos os implicados que tenham se tornado inelegíveis.

A diferença entre Lula e Demóstenes, neste caso, é que o ex-presidente está automaticamente tornado inelegível pela Ficha Limpa, depois de condenado por um colegiado, o TRF-4. Se, e quando, ele registrar sua candidatura, ela será alvo de questionamento e a chapa deverá ser indeferida pela Justiça Eleitoral.

Quanto a Demóstenes, ele foi cassado em 2012 e tornado automaticamente inelegível com base na Lei Complementar 64, de 1990, que estabelece causa e efeito: cassado, o político se torna inelegível por 8 anos.

Lula é ficha-suja, Demóstenes caiu na Lei 64, mas o fato é um só: assim como houve um jeitinho para Dilma e outro para Demóstenes, por que não haveria um para Lula e para sabe-se lá quantos depois? A Lava Jato não está com uma, mas com várias pulgas atrás da orelha.


Merval Pereira: Todo cuidado é pouco

Amanhã pode ser armada uma tempestade perfeita no Supremo Tribunal Federal, quando estarão em julgamento dois temas delicados para o futuro institucional do país. É provável que não haja tempo para tratar dos dois assuntos na mesma sessão, ou outra circunstância impossibilite o julgamento de um deles, mas é sempre bom ficar alerta.

Trato da votação do fim do foro privilegiado da maneira como o conhecemos hoje, que já tem oito votos favoráveis e foi liberada para a pauta depois de um pedido de vista do ministro Dias Toffoli que durou cinco meses, e da nova Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) apresentada pelo PCdoB com o intuito de abrir a porta da cadeia para o ex-presidente Lula. Outra ação, aquela que o Partido Nacional Ecológico (PEN) tentou retirar, também está pronta para ser votada.

Embora o ministro Marco Aurélio já tenha anunciado que levará a ação à mesa para votação do plenário, não é mais certo que o fará, pois essa iniciativa do PCdoB ficou muito marcada como uma manobra para favorecer Lula, desde a propositura de um partido político satélite do PT quanto pelo patrono da ação, o advogado Celso Antônio Bandeira de Mello, empenhado há muito tempo em denunciar o que chama de arbitrariedades do juiz Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba.

Caso o tema vá a votação no plenário amanhã, não é certo que se confirme a nova maioria que é apontada na ação como sua justificativa. Isso porque, mesmo que o ministro Gilmar Mendes mude seu voto de 2016, como vem apregoando, de a favor da prisão em segunda instância para apoiar o início do cumprimento da pena só após condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), não é certo que outros ministros apoiem a nova ação, seja porque ela ficou muito caracterizada como um caso específico a favor de Lula, quanto pela necessidade de manter a jurisprudência atual por mais tempo, dando segurança jurídica às decisões do STF, como defende a ministra Rosa Weber.

Já a questão do fim do foro privilegiado nos termos em que ele hoje está colocado, a maioria já está formada em favor da visão de que ele só se aplica a casos acontecidos durante o mandato, e por causa dele. Essa nova versão do foro, proposta pelo ministro Luís Roberto Barroso, já tem oito votos favoráveis, e caso nenhum ministro mude de opinião, deve ser aprovada. Como se sabe, um ministro pode mudar de opinião até a proclamação do resultado, que só acontece ao final da votação.

Há, porém, uma questão de conflito de poderes que pode provocar mais uma vez a paralisação da discussão. O Congresso também está estudando um Proposta de Emenda Constitucional (PEC) sobre o tema, que é muito mais abrangente que a do Supremo. Pela proposta que estava tramitando, o foro privilegiado acabaria para todos que o detém hoje, cerca de 50 mil servidores públicos, inclusive os próprios ministros do STF. Somente os chefes de Poderes teriam direito a ele.

A discussão no Congresso foi paralisada pela intervenção na segurança pública do Rio, pois nesse período é proibido mudar a Constituição. Como em tese a intervenção terminará em dezembro, só depois disso será possível retomar a discussão.

É provável que outro ministro peça vista do processo, justamente para dar tempo ao Congresso de legislar sobre o tema. A aprovação do fim do foro privilegiado é um avanço institucional, mas se combinada com uma eventual decisão de colocar um fim na permissão para o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, se tornará um retrocesso.

Nessa combinação, a maioria dos políticos que está sendo processada no STF veria seus casos retornando à primeira instância, e a partir daí teriam todos os recursos à disposição, até chegar novamente ao STF, de onde vieram, num círculo vicioso prejudicial à democracia.

Como a experiência já nos demonstrou, os processos levariam anos para terminar, e quase ninguém iria para a cadeia, se não pela reforma da sentença em uma das várias instâncias da Justiça, no mínimo pela prescrição das penas.


Merval Pereira: Tempos estranhos

Estamos vivendo tempos estranhos, vive repetindo o ministro Marco Aurélio, em tom crítico, quando alguma coisa acontece no plenário do Supremo com que ele não concorde. Os ministros que formam hoje a minoria no plenário fazem parte da maioria da Segunda Turma, que é vista como mais condescendente com os réus da Lava-Jato, e Marco Aurélio, que comunga com a visão dessa maioria, está deslocado na Primeira Turma, quase sempre saindo derrotado.

Foi na Segunda Turma, por exemplo, que a Lei da Ficha Limpa foi solenemente ignorada para permitir que o ex-senador Demóstenes Torres possa se candidatar ao Senado nas próximas eleições. Cassado por seu envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, o ex-senador estava inelegível automaticamente. No entanto, os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes deram-lhe o direito de concorrer sem que a cassação de seu mandato tenha sido anulada pelo Senado.

Só assim, em tempos menos estranhos, ele poderia se livrar da Lei da Ficha Limpa, que diz expressamente que políticos condenados em segunda instância ou cassados tornam-se inelegíveis. Se três ministros do Supremo se dão ao direito de ignorar uma lei em vigor, vivemos mesmo em tempos estranhos.

O ministro Lewandowski manteve o tom crítico em seu voto em reunião recente do Supremo ao defender o direito de Paulo Maluf aos embargos infringentes, mas acabou sendo derrotado. Insinuou que o país vive um momento de exceção, como se não estivéssemos numa democracia plena.

Disse o ministro: “Em momentos de crise, como este que estamos vivendo, é preciso encarar com uma generosidade ainda maior do que normalmente o fazemos a possibilidade de interposição de recursos e a impetração de habeas corpus. Todos sabemos que acabamos de sair de um impeachment e estamos testemunhando uma intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, uma das maiores unidades de nossa federação, e a intervenção federal é um instrumento constitucional que permite a substituição da legalidade ordinária por uma legalidade extraordinária assim como ocorre no estado de defesa e no estado de sítio. É por isso mesmo que a lei maior não permite a votação de emendas constitucionais quando estejam vigentes estes institutos. Estamos, portanto, vivendo sem dúvida nenhuma uma situação excepcional”.

Lewandowski propositalmente esqueceu de esclarecer que a intervenção federal foi na Segurança Pública, e não se compara ao estado de defesa ou ao estado de sítio, que suspendem as garantias individuais, o que não acontece no Rio de Janeiro. O mesmo Lewandowski se refere ao impeachment da então presidente Dilma, episódio em que teve papel preponderante como presidente do Supremo Tribunal Federal, supervisionando os trabalhos do Senado.

E foi com seu consentimento que se rasgou ali a Constituição com uma interpretação esdrúxula do artigo que trata do impeachment, inventando uma vírgula para permitir que a presidente sancionada não perdesse seus direitos políticos. Uma das mais vergonhosas decisões dos últimos tempos, com a chancela de Lewandowski, que agora dá tons épicos à defesa dos embargos infringentes com apenas um voto da Turma, na tentativa de abrir uma senda sem fim para que, recursos sobre recursos, os réus da Lava-Jato possam escapar das punições.

A interpretação canhestra da Lei da Ficha Limpa pode ser uma nova tentativa de não inviabilizar a candidatura do ex-presidente Lula à Presidência. A defesa do ex-presidente terá que entrar brevemente com um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para tentar anular sua inelegibilidade, o que dificilmente acontecerá. Pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem adotado a Lei da Ficha Limpa, ele provavelmente não passará. Mas sempre restará um recurso adicional ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ali veremos se a interpretação teratológica que deu ao senador Demóstenes Torres o direito de se candidatar mesmo estando cassado terá guarida na maioria do plenário.


Fernando Gabeira: O bloco da saudade

Fica difícil olhar para a frente. A questão da impunidade não foi resolvida porque há um forte núcleo de resistência no STF

O verão está no fim. Sinto pela temperatura da água, pelos ventos mais frios. Na Europa, segundo Hermann Hesse, há verão que tem morte súbita: uma trovoada, dias de chuva e ele não volta mais.

Não é adequado falar das estações do ano numa página de política. Elas nos remetem à passagem do tempo, aos lances da vida passada, e só servem para ressaltar a tristeza do momento no Brasil.

Caminhamos para uma eleição imprevisível não apenas por causa das pessoas que a disputam, mas também pela falta de dados sobre o que farão, caso cheguem ao poder.

Fica difícil olhar para a frente. A questão da impunidade não foi resolvida porque há um forte núcleo de resistência no STF.

Os ministros desse núcleo não consideram o caso encerrado, pelo contrário, estão dispostos a uma luta permanente, a uma guerrilha técnica para soltar os que estão presos e impedir a prisão dos que ainda estão na rua.

Lewandowski e Toffoli são simpáticos ao PT e desprezam a luta contra a corrupção, talvez pela própria análise da esquerda que a considera um fato de pé de página nos livros de história.

Gilmar Mendes não tinha essa posição, mas ao longo desses anos tornou-se um grande adversário da Lava-Jato. Na sua fúria, ele se identifica com a esquerda na medida em que quer soltar os que estão presos e, se possível, prender juízes e procuradores.

Juntam-se a eles Marco Aurélio e Celso de Mello, que parecem comprometidos com uma generosa tese jurídica e pouco se importam com suas consequências catastróficas na vida real brasileira.

Não vou repetir o mantra de que a sociedade está dividida: este mito é um bálsamo para as minorias. A sociedade apoia maciçamente a Lava-Jato e quer punição para os culpados.

Mas o que pode a sociedade contra eles? No seu delírio de mil e uma noites na Al Jazeera, Gleisi Hoffmann disse que a imprensa manda no Supremo. Sabemos que não é assim. A imprensa reflete um clamor social contra a impunidade. O próprio comandante do Exército se viu obrigado a manifestar sua opinião sobre o tema, possivelmente por sentir que o clamor também chega às suas tropas.

Mas falta a dimensão política. O sistema partidário adotou uma posição defensiva. Todas as suas energias se voltam para neutralizar a Lava-Jato. Objetivamente, joga suas esperanças nas tramas do núcleo resistente do Supremo.

Essas duas forças, o sistema político partidário (nos bastidores) e o núcleo do STF (na frente da cena) são os artífices da tentativa de bloquear as mudanças no Brasil.

Nem sempre os políticos atuam apenas nos bastidores. De vez em quando, como aconteceu agora, surge um projeto destinado a limitar investigações e a tornar mais fácil a vida dos gestores corruptos.

Essa aliança de políticos que não dependem do voto de opinião com ministros do STF engajados na defesa da impunidade, ou embriagados nas suas teses generosas, é uma constelação difícil de ser batida.

Ela significa que ainda teremos dias difíceis pela frente. O único grande problema para todos nós será o de manter a raiva popular dentro dos limites pacíficos.

Tanto juízes como políticos envolvidos na sua teia de interesses, míopes diante da realidade que os cerca, não hesitam em colocar em risco a democracia.

Alguns são muito corajosos, outros apenas irresponsáveis. Será difícil buscar o horizonte, se não resolvermos essa questão. Ela está atravessada no futuro imediato do Brasil.


Merval Pereira: Bombas desarmadas

Duas bombas foram desarmadas ontem no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), uma pela argúcia do ministro Edson Fachin, auxiliado pela presidente Cármen Lúcia, outra pela maioria mais uma vez apertada de 6 a 5. A questão dos embargos infringentes, que permitem reabrir um julgamento quando o réu não for condenado por unanimidade, era talvez a mais grave, pois a sua admissão nos julgamentos das Turmas, não prevista no regimento interno do Supremo, vai atrasar os processos, levando os recursos para decisão do plenário. No entanto, era uma decisão inevitável já que, no julgamento do mensalão em 2013, a existência dos embargos infringentes acabou sendo admitida, embora muitos juristas e cinco dos 11 ministros consideraram que eles não mais existiam, pois as normas que regem os procedimentos do STF e do STJ não se referiam a eles.

Mas eles subsistiram no regimento interno do Supremo, provavelmente por um descuido do Tribunal, que não atualizou seu regimento interno após a Constituição. Sua simples permanência num regimento ultrapassado fez com que seis dos ministros à época os aceitassem, proporcionando a alguns dos réus, entre eles José Dirceu, se livrarem de condenações por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Cometido o erro lá atrás, nada mais natural que também as Turmas, que só recentemente passaram a tratar de casos penais, os admitissem, para dar aos condenados uma possibilidade de usar os embargos infringentes da mesma maneira que os julgados no plenário.

O que demonstra certa manobra jurídica por parte do ministro Dias Toffoli é que ele considerou que Paulo Maluf tinha direito aos embargos infringentes quando o ministro Fachin havia decretado o trânsito em julgado, encerrando o processo. Alegando motivos humanitários, ele conseguiu levar o assunto ao plenário, e conseguiu a maioria para sua aplicação. O que ele queria, na verdade, era reabrir o processo de Maluf. Sua proposta de que apenas um voto divergente bastasse para dar direito aos embargos infringentes, seguida por outros quatro ministros, faria com que grande parte dos casos julgados nas Turmas acabasse no plenário, postergando uma decisão final e talvez mesmo possibilitando a revisão de penas.

Acabou vencendo a maioria que vem se impondo, de 6 a 5, com uma troca de ministros: Alexandre de Moraes votou a favor de um voto divergente, e o ministro Celso de Mello deu a maioria para os dois votos, o que minimiza os estragos que possam ser causados pela criação de mais um embargo nos julgamentos das Turmas.

O outro incêndio apagado ontem pela perspicácia do ministro Edson Fachin foi a possibilidade de um ministro desautorizar outro em decisão monocrática, como aconteceu com Toffoli dando um habeas corpus quando o relator Fachin já havia encerrado o processo. Toffoli voltou a garantir que não pretendeu desautorizar seu colega, mas agiu em situação excepcional em caráter humanitário. Embora sua explicação, e todo o seu comportamento no episódio, evidenciem que não tinha mesmo a intenção de descumprir uma súmula do próprio STF que proíbe que um ministro desautorize decisão de outro, Toffoli abriu espaço para a discussão da questão.

O ministro Gilmar Mendes defendeu enfaticamente que essa prática fosse aceita, alegando que “o estado de direito não comporta soberanos”. Mas Fachin encerrou a discussão dando de ofício um habeas corpus a Maluf, permitindo que fique em prisão domiciliar. A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, rapidamente encerrou a sessão, não dando margem a que outros ministros forçassem uma mudança de orientação, que poderia criar os maiores problemas para o Supremo, com um ministro cassando a decisão de outro.

A presidente Cármen Lúcia vai ter de usar toda sua delicada autoridade para tratar, na próxima semana, de um assunto delicado: a tentativa do ministro Marco Aurélio de levar a julgamento nova ação que propõe acabar com a prisão em segunda instância. Essa ação é objetivamente feita para soltar Lula da cadeia, sendo o PCdoB mero laranja do PT. O jurista que a encabeça, Celso Bandeira de Mello, está empenhado há muito em uma campanha contra a Operação Lava-Jato, defendendo que Lula está sendo perseguido pela Justiça brasileira. A predominância do colegiado sobre posições pessoais, defendida pela ministra Rosa Weber, está ganhando espaço no Supremo, tanto que o ministro Dias Toffoli ontem negou liminar para que José Dirceu ficasse em liberdade o fim do processo na segunda instância, alegando justamente a jurisprudência em vigor, mesmo contra sua opinião.


Merval Pereira: Uma disputa infindável

A disputa que está em processo dentro do Supremo Tribunal Federal terá mais um capítulo na próxima semana quando o plenário analisará o habeas corpus ao deputado Paulo Maluf. Esse caso tem importância crucial no desenrolar dos acontecimentos em curso porque discute dois pontos que podem interferir em outras ações.

O primeiro é a possibilidade de um ministro do Supremo desautorizar uma decisão de outro ministro, o que é proibido por uma súmula e nunca havia acontecido antes. Foi o que fez o ministro Dias Toffoli ao receber um recurso da defesa do deputado paulista e conceder o habeas corpus que havia sido negado monocraticamente pelo ministro Edson Fachin. Como se trata de matéria controvertida, o próprio Toffoli pediu que o caso fosse levado ao plenário. Ele alega que tomou essa decisão pelo estado de saúde do preso, que se deteriorava a cada dia. Uma gesto humanitário, justifica.

O plenário vai ter que decidir se esta prática passará a ser corrente no Supremo, ou se foi um caso especial que não dá margem a outros. Ou mesmo se Maluf deve voltar para a cadeia. Esta anomalia já está produzindo frutos, pois vários advogados já entraram com ações no STF pedindo para que a decisão de Fachin de negar o habeas corpus a Lula seja revista por outro ministro.

Não parece ter sentido neste caso, pois o habeas corpus de Lula foi negado pelo plenário, e já não é uma decisão monocrática do relator da Lava-Jato. Mas se ficar assentado que um ministro pode desautorizar outro, a guerra aberta estará declarada entre os componentes do STF.

A ação de Maluf tem outro ponto importantíssimo. É que o recurso da defesa de Maluf foi feito com base num embargo infringente, pois o deputado teve na Turma que o condenou um voto favorável. O ministro Fachin disse que não são cabíveis embargos infringentes nas Turmas e vetou a pretensão, ao contrário de Toffoli, que, sempre alegando razões humanitárias, aceitou o recurso. Se essa novidade for chancelada pelo plenário do Supremo, teremos nas Turmas julgamento embargos infringentes, embargos de declaração, embargos dos embargos, todos os instrumentos usados para procrastinar o resultado final de um julgamento.

Não há uma explicação formal para a não previsão dos embargos nas Turmas no regimento interno do Supremo. O caso foi discutido no julgamento do mensalão, quando o presidente do Supremo na época, Joaquim Barbosa, defendeu que os embargos infringentes deixaram de existir nas ações originárias dos tribunais superiores depois da edição da Lei 8.038/90, que regulamentou os processos naqueles tribunais de acordo com a Constituição de 1988, sem prevê-los.

Quem vai ter uma decisão difícil será o ministro Luís Roberto Barroso, que, no julgamento do mensalão, foi a favor dos embargos infringentes e acabou ajudando a rever as penas de réus importantes, como José Dirceu, que escapou do crime de quadrilha. Ele havia dito, na sabatina do Congresso, que em teoria os embargos não existiam mais, mas, ao tratar do caso concreto, os aceitou. Na decisão de agora, terá que assumir uma posição sobre o mesmo assunto com repercussão no trâmite dos processos, que ele luta para serem objetivos e não darem margem à procrastinação das penas. O STJ, que foi criado depois da Constituição de 1988, não prevê esses embargos.

Esses são os desdobramentos do choque de visões dentro do Supremo Tribunal Federal, já tratado aqui na coluna nos últimos dias. O que está havendo é uma disputa, de um lado filosófica sobre o que é o Estado de Direito, a defesa dos direitos individuais, um grupo, que hoje é minoritário, considera que a operação Lava-Jato, os procuradores de Curitiba e o juiz Moro estão se excedendo com as prisões provisórias alongadas, obrigando os presos a fazerem delação premiada; e alegam que está sendo decretado o fim do habeas corpus, um instrumento básico da democracia. E do outro lado, o grupo hoje majoritário acha que a Justiça tem que ter efetividade, que a manutenção do status quo vai fazer com que continue a impunidade a pessoas que tenham poder político, prestígio social ou dinheiro para pagar bons advogados.

A luta pela prisão em segunda instância pode também ter um desdobramento esta semana dependendo da decisão do ministro Marco Aurélio de encaminhar ou não à votação a liminar rejeitada pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) para exame de uma ação que propõe que cessem as prisões em segunda instância até que sejam votadas as ações que tentam acabar com a possibilidade dessa prática.

É exemplar dessa disputa, que em uma visão mais crua opõe os que querem a manutenção do status quo àqueles que querem dar mais efetividade às decisões da Justiça, o grupo minoritário querer acabar com ela, voltando ao trânsito em julgado, e agora incluindo os embargos infringentes no julgamento das Turmas, dando uma margem de recursos imensa e que quase sempre favorece a prescrição da pena.

 


Luiz Carlos Azedo: O racha no Supremo

A novidade do julgamento do pedido de habeas corpus de Palocci foi a adesão do decano da Corte, ministro Celso de Mello, à tese de que a sua prisão cautelar, apesar de longa, deve ser mantida

Começa a se consolidar no Supremo Tribunal Federal (STF) uma maioria favorável a que não se reexamine de imediato a jurisprudência sobre execução da pena de prisão após condenação em segunda instância, tema que deverá voltar à pauta da Corte na próxima semana, a pedido do ministro Marco Aurélio Mello. Esse é o significado da rejeição do pedido de habeas corpus do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, que foi o responsável pelo caixa dois da campanha à reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff, e está preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba.

A novidade do julgamento do pedido de habeas corpus de Palocci foi a adesão do decano da Corte, ministro Celso de Mello, à tese de que a prisão cautelar aplicada ao ex-ministro, apesar de longa, deve ser mantida porque, após a decretação da prisão preventiva e de bloqueio de bens, ele continuou adotando medidas para frustrar a total recuperação dos valores auferidos com o cometimento dos crimes. Dessa vez, a decisão não foi por diferença de um voto, mas por 7 a 4. Acompanharam o relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, seus colegas Antônio de Moraes, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia. O grupo “garantista” formado por Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio foi derrotado mais uma vez. Os quatro votaram a favor de soltar Palocci, sendo que Toffoli sugeriu a adoção de medidas cautelares.

O ministro Celso de Mello enfatizou que, no primeiro semestre de 2017, R$ 415 mil foram transferidos dos planos de previdência privada de Palocci para a conta da esposa. Outros fatos e eventos ocorridos após a decretação da prisão cautelar reforçariam ainda mais a necessidade de manutenção da prisão. O ex-ministro da Fazenda, durante seu depoimento ao juiz federal Sérgio Moro, admitiu a possibilidade de colaborar com as investigações, mas sua “delação premiada” não aconteceu até hoje. Pode ser que a rejeição do habeas corpus modifique essa situação.

A votação sinaliza para o mundo político e a sociedade que a Operação Lava-Jato será uma variável permanente do processo eleitoral deste ano. Aliás, a votação foi precedida de uma nova etapa das investigações, desta vez sobre o desvio de recursos dos fundos de pensão do Serpro, dos Correios e de 16 institutos de previdência municipais, nas quais fica mais ou menos evidente que os esquemas de desvio de recursos continuaram funcionando mesmo depois do início da operação. Várias prisões foram decretadas.

Em outro julgamento, sinais de alinhamento também foram emitidos pelo Tribunal Superior Eleitoral, em decisão por unanimidade de sete votos. Foi negado o pedido de um candidato a vereador de Cabreúva (SP) para deixar de cumprir pena de prestação de serviços à comunidade com base em condenação por decisão de segunda instância. Os ministros Luiz Fux, presidente do TSE, e Luís Roberto Barroso defenderam a chamada “execução antecipada” da pena.

É um indicativo de que a Corte não aceitará mesmo o registro da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como pleiteia o PT. Foi significativa a ênfase com que a ministra Rosa Weber reiterou seu voto da semana passada contra a concessão de habeas corpus para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está preso em Curitiba: “Para repetir meu mantra nos últimos dias, eu vou repetir mais uma vez: que, em sede de habeas corpus, onde se examina a legalidade e a abusividade do ato apontado como coator, eu não tenho como assim reputar uma decisão judicial fundada na jurisprudência prevalecente do Supremo Tribunal Federal, ainda que o meu voto não tenha integrado a corrente majoritária.”

Candidatura
Os julgamentos de ontem representaram nova derrota jurídica para a estratégia do PT de caracterizar a prisão de Lula como um atentado à democracia, proclamando suposta inocência, cujo viés é fundamentalmente eleitoral. Não há como manter essa narrativa sem afrontar as mais altas Cortes do país, entre as quais o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral, ainda que a “fulanização” dos ataques se dê contra o juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. A radicalização da militância petista tem a ver com o clima emocional estimulado por Lula no período em que permaneceu no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo antes de se entregar à Polícia Federal, o que complica a sua situação nos tribunais.

A transferência da sede da direção nacional do PT para Curitiba, o acampamento montado nas imediações da Polícia Federal e as “visitas” a Lula em Curitiba de altos dirigentes do PT, mesmo sabendo que elas estão proibidas, mostram que há muito de cálculo político para transformar Lula no cabo eleitoral dos candidatos do PT nessas eleições. Nesse quesito, porém, surgem as primeiras fissuras. Os dirigentes históricos da legenda, com mais experiência eleitoral, já começam a debater alternativas à candidatura do líder preso. Ontem, em Curitiba, o ex-governador da Bahia Jaques Wagner questionou a imposição da candidatura do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad aos aliados da frente que o PT pretende criar para disputar as eleições. Segundo ele, para tecer essa frente, é preciso aceitar a ideia de um candidato de outro partido.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-racha-no-supremo/


Alex Manente: Texto datado

Não subsistem circunstâncias que levaram o constituinte, naquele momento, a exigir o trânsito em julgado

A condenação do ex-presidente Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e a prisão do líder petista fizeram com que o debate sobre o princípio da presunção de inocência ganhasse ampla repercussão na imprensa e em todos os setores da sociedade brasileira.

A Constituição de 1988 foi redigida sob a inspiração de ideais democráticos que emergiram da superação da ditadura militar. Naquele momento histórico, premido pelas graves violações aos direitos humanos durante o regime anterior, o constituinte incluiu na Lei Maior vários princípios garantistas, entre eles o da presunção de inocência.

A Carta Cidadã, ao tratar da presunção de inocência, estabeleceu que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, antes do esgotamento dos recursos. A partir disso, no ano de 2016 o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a possibilidade de início do cumprimento da pena por condenação criminal após a condenação em segunda instância, sem a necessidade do trânsito em julgado. Desde o início, houve muita controvérsia no meio jurídico sobre tal interpretação.

De um lado, em favor da interpretação do Supremo, as correntes que defendem maior ativismo judicial sustentam que a prisão após a condenação em segundo grau é possível, visto que os tribunais superiores não podem apreciar fatos e provas do processo, apenas questões de direito. De outro lado encontram-se os garantistas, que afastam a possibilidade de início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado. Quem assistiu ao julgamento do habeas corpus de Lula no dia 4 de abril pôde perceber claramente essa divisão entre as duas correntes.

Passados 30 anos desde a promulgação da Constituição, entendo que não subsistem no Brasil as circunstâncias que levaram o constituinte, naquele momento, a exigir o trânsito em julgado para afastar a presunção de inocência. Por isso, apresentei uma emenda à Constituição (PEC 410) para que o texto constitucional estabeleça que “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”. Com isso, não haveria mais qualquer dúvida quanto à possibilidade de início do cumprimento da pena por condenação criminal após a condenação por um órgão judicial colegiado.

Há quem sustente que a emenda de minha autoria não poderia ser aprovada, por ferir a cláusula pétrea que veda emendas constitucionais tendentes a abolir os direitos e garantias fundamentais, entre os quais se encontra a presunção de inocência. Contudo, a mudança que estamos sugerindo não está abolindo a presunção de inocência, apenas modificando o momento processual a partir do qual a culpa dos acusados passaria a ser considerada. Ou seja, o núcleo essencial da proteção — presunção de inocência — permanece íntegro, só havendo modificação na fase do processo em que se considera o acusado culpado. Trata-se de uma alteração necessária.

* Alex Manente é deputado federal (PPS-SP) e autor de PEC da prisão em segunda instância

 


Merval Pereira: Choque de visões

Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal explicitou uma disputa interna entre dois grupos com visões distintas do que seja a aplicação do Direito. Uma divisão quase filosófica. O julgamento do habeas corpus do ex-ministro Antonio Palocci acabou mais uma vez em 6 a 5, com a presidente Cármen Lúcia desempatando, e o que estava em jogo era justamente uma visão chamada garantista, que coloca o instrumento do habeas corpus como símbolo da liberdade individual, e a dos consequencialistas, que, sem desmerecer a importância do habeas corpus, consideram que ele não pode ser utilizado para interromper um processo, ou favorecer um condenado a sair da prisão quando isso pode representar um perigo à ordem pública.

Houve ontem uma discussão que reflete bem essas visões de mundo em conflito. O ministro Marco Aurélio disse que o tempo excessivo da prisão provisória de Palocci, cerca de um ano e meio, já era por si só uma razão para dar-se o habeas corpus.

O relator Edson Fachin rebateu a tese, mostrando que os fatos que basearam a prisão, a complexidade do processo, com inúmeras testemunhas espalhadas pelo país, e uma condenação no meio tempo justificavam plenamente o período que o ministro Gilmar Mendes chama de “alongado” das prisões provisórias da Operação Lava-Jato.

O próprio Gilmar hoje, corroborando com o jargão que o ministro Marco Aurélio cunhou — “tempos estranhos” — disse, às vezes até mesmo emocionado, que se estava criando um novo Direito no país, o “Direito de Curitiba”, que não respeita os direitos dos acusados e favorece o desrespeito ao devido processo legal.

Além de criar condições para práticas corruptas a pretexto de combater a corrupção, citando casos de procuradores envolvidos em acusações de negócios escusos. Outros rebatem que há uma nova ordem querendo surgir no país, e uma velha ordem que resiste com valores e práticas antigas, que não funcionam.

Esta nova ordem corresponderia a uma imensa demanda da sociedade, por integridade, idealismo, patriotismo, uma energia muita explícita nas ruas. A crítica de Gilmar Mendes, mais uma vez, foi também contra o que chama de “imprensa opressiva”, e em todos os votos recentes ele defende que um juiz, especialmente do Supremo, não pode se deixar pressionar pela opinião pública, ou opinião publicada, como gosta de dizer.

Os consequencialistas já veem a questão de outro modo: um juiz não deve decidir de acordo com o clamor público, muito menos em processo criminal, o que não quer dizer que um tribunal constitucional não deva ser capaz de interpretar o sentimento da sociedade e se alinhar a ele sempre que isso seja compatível com a Constituição.

O papel contramajoritário do Supremo, que os garantistas defendem, seria importante nessa outra visão, mas é usado no mundo inteiro muito raramente. O normal é que as decisões da Suprema Corte correspondam aos anseios da sociedade, porque os juízes vêm dessa sociedade e interagem com a população em diversos níveis de contato e incorporam o sentimento do meio social em que vivem.

Nessa perspectiva, o Tribunal se capitaliza porque ele é capaz de interpretar o sentimento da sociedade, e quando tem de ser contramajoritário, tem credibilidade. Na disputa aberta entre esses dois grupos, o ministro Marco Aurélio Mello deu indiretas para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e para o colega Luís Roberto Barroso, lamentando que se vá para o exterior dizer que a Justiça brasileira é seletiva — o que os dois afirmaram em seminários internacionais.

O fato é que plenário está dividido filosoficamente em relação à aplicação do Direito, uma divisão exacerbada pela Operação Lava-Jato. É mais explícita do que em qualquer outro tempo, os consequencialistas, pragmáticos no sentido não pejorativo do termo, querem julgar com base nos fatos, e não em teses idealistas. Não se apegam ferrenhamente a textos literais que podem significar a impunidade, como no caso da disputa entre a prisão em segunda instância e o trânsito em julgado.