sputnik V

Pablo Ortellado: Anvisa mostra independência

A não aprovação da importação da vacina russa Sputnik V mostrou que a agência brasileira mantém sua integridade e autonomia institucional, a despeito das pressões políticas que vêm de todos os lados: da opinião pública, que exige mais vacinas; dos governadores —muitos deles de esquerda —, que compraram milhões de doses; de setores do bolsonarismo que querem fazer da Sputnik “a vacina do Bolsonaro”, para se contrapor à “vacina do Doria”; além da própria Rússia.

Em seu parecer, a Anvisa apontou deficiências técnicas nos estudos clínicos, entraves para inspecionar a fabricação da vacina e, o mais grave, a presença de vírus replicante nas vacinas, o que poderia colocar em risco a saúde de quem as toma.

A decisão da Anvisa foi amplamente respaldada pela comunidade científica brasileira. O perfil da Sputnik no Twitter alegou, porém, que a vacina já foi aprovada em 61 países. O diretor da Anvisa Alex Campos respondeu que se trata de “países sem tradição de maturidade e robustez regulatória”. A Anvisa repassou seu parecer com observações sobre os vírus replicantes à OMS, que também está analisando a aprovação da vacina.

O atropelo no desenvolvimento da Sputnik tem sido alvo de críticas da comunidade científica desde o ano passado. A vacina foi registrada na Rússia antes da conclusão dos estudos clínicos da fase 1 e 2, e sua aprovação em outros países —como a Argentina — foi feita antes da conclusão da fase 3. Um estudo publicado na prestigiosa revista “The Lancet”, posterior ao registro, mostrou, no entanto, a eficácia da vacina.

A adoção da vacina na América Latina foi objeto de uma reportagem do jornal espanhol “El País”, que mostrou como a Argentina, depois de uma aprovação atropelada, promoveu a vacina junto a países ideologicamente alinhados, como México e Bolívia. O jornal “The New York Times” também fez uma reportagem sobre como a Rússia tem usado a vacina como instrumento de diplomacia, priorizando parceiros estratégicos à custa de sua própria população. Documentário recente de Álvaro Pereira Jr. mostrou a maneira agressiva como o governo russo restringe o acesso a informações sobre a Sputnik V.

Críticos da decisão da Anvisa têm alegado que a não aprovação da importação da Sputnik é resultado de pressão dos Estados Unidos. Em documento oficial da era Trump, o Departamento de Saúde americano relata que mandou um enviado ao Brasil para persuadir as autoridades brasileiras a rejeitar a vacina russa. A decisão recente da Anvisa, segundo esses críticos, seria fruto dessa pressão.

A suspeita, no entanto, não é apoiada por outros fatos. Em primeiro lugar, os argumentos da Anvisa para rejeitar a importação foram fortemente respaldados por especialistas. Além disso, se houvesse viés político nas decisões da Anvisa, ela jamais teria aprovado a CoronaVac, desenvolvida na China em parceria com o Instituto Butantan, ligado ao Estado de São Paulo, governado por João Doria. Ambos, China e Doria, são adversários declarados do presidente Bolsonaro.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/anvisa-mostra-independencia.html


Alon Feuerwerker: Com firma reconhecida

Documento oficial do governo americano informa que os Estados Unidos atuaram (ainda atuam?) junto ao Brasil para evitar que usássemos (usemos?) vacinas russas contra a Covid-19 (leia). Aparentemente, essa pressão tem sido feita sem a oferta de contrapartidas. Por exemplo, os americanos poderiam oferecer-nos vacinas deles em lugar das do concorrente geopolítico.

Pressões desse tipo são esperadas num ambiente global de acirramento das disputas. A principal hoje é entre os Estados Unidos e a China, mas a polarização entre americanos e russos também vai adquirindo desenhos assemelhados aos da Guerra Fria, que durou do pós-2a. Guerra até o colapso e a consequente  extinção da União Soviética.

Mas não é normal que o poder de barganha de um país esteja tão diminuído para uma pressão desse tipo não vir acompanhada de ofertas compensatórias. Afinal, vacinar os brasileiros deveria em teoria interessar ao mundo todo. Ou, pelo menos, ficar bem com o Brasil deveria ser do interesse do ocupante da Casa Branca, qualquer que fosse ele.

O debate político aqui dentro vai muito aquecido, com cada jogador tentando tirar o máximo proveito da desorganização no combate à Covid-19. Parece faltar, entretanto, quem esteja pensando antes de tudo no interesse nacional. E o interesse nacional é um só. Ter e aplicar o maior número de doses de vacina no menor tempo possível.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Vinicius Torres Freire: A nova revolta da vacina russa - Bahia, BH, Maricá e Morro da Fumaça compram doses

Descrédito e incompetência de Bolsonaro provocam confusão e desespero na vacinação

Os estados do Consórcio Nordeste, liderados pela Bahia, contrataram a compra de 37 milhões de doses da vacina russa Sputnik. As primeiras chegariam em abril.

Belo Horizonte afirma ter contratado 4 milhões. Betim, outra cidade mineira, 1,2 milhão de doses. Maricá, no Rio de Janeiro, diz ter fechado a compra de 400 mil. A prefeitura de Morro da Fumaça assinou carta de intenções para comprar 20 mil doses para 18 mil fumacenses. A cidade faz parte do grupo de 233 cidades de Santa Catarina que pretende encomendar 4,1 milhões de doses. Até o governo federal diz agora ter contrato para 10 milhões de doses.

De certo modo, é a revolta da vacina. O descrédito e a incompetência do governo de Jair Bolsonaro fazem com que governadores, prefeitos, empresas privadas e associações civis se virem a fim de obter doses, alguns com motivos nada republicanos.

Na prática, como em tantos assuntos nacionais, de “reformas” a providências para barrar tentativas autoritárias de Bolsonaro, passando pela gerência da epidemia, o restante do país tem de improvisar a governança básica.

Isto posto, impõem-se duas questões essenciais: 1) haverá tanta Sputnik? Quando?; 2) quando sai a aprovação da Sputnik? Desde janeiro está atrasada a entrega dos documentos corretos na Anvisa 3) como seriam aplicadas essas vacinas? Alguns governantes falam em usar as doses apenas em sua região.

O governador Wellington Dias (PI-PT) repetia até antes do fechamento do contrato Sputnik do Nordeste que as vacinas do Nordeste irão para o programa nacional, respeitando o calendário de prioridades para grupos de risco. Governadores de outros estados e consórcios municipais de Sul e Centro-Oeste dizem que pode não ser assim.

O Fundo de Investimento Soberano Russo, que patrocina o desenvolvimento, produção e distribuição da Sputnik, não informa um calendário de produção de vacinas, cronograma que seria publicado “nas próximas semanas”. Jornais russos, mais ou menos independentes, dizem que em março seriam fabricadas 30 milhões de doses, indo a 40 milhões por mês até junho. Até fevereiro, haviam sido produzidos pouco mais de 7 milhões de Sputniks. Até 11 de março, a Rússia vacinara 4,98 milhões de pessoas, 5% da população: tanto quanto o Brasil.

Mastigando várias fontes de números, parece que dois terços das doses de março em diante seriam fabricados fora da Rússia, em 10 países. Metade dessas doses “estrangeiras” de Sputnik seriam produzidas justamente no Brasil e na Índia, outra boa parte na Coreia do Sul. Mas tanto aqui como alhures o início da produção está atrasado.

Segundo o Statista, site alemão de estatísticas de mercado, o mundo havia encomendado 791 milhões de doses de Sputnik até 11 de março. Dessas, 470 milhões seriam fabricadas por certos países para si mesmos: Coreia do Sul, Índia, Casaquistão e 8 milhões de doses da União Química no Brasil. Nós importaríamos outros 10 milhões (as doses federais). Os demais 40 milhões de doses a serem comprados até agora por estados e cidades não estão nessa tabela do Statista.

É fácil perceber que essas contas não fecham, pelo menos para o ano de 2021. De resto, a Sputnik nem foi aprovada no Brasil, embora agora a lei permita que imunizante aprovado na Rússia também possa ter liberação acelerada pela Anvisa.

Qualquer quantidade extra de vacina é desesperadamente necessária: 10 milhões de doses em um mês podem salvar a vida de uns 4.500 idosos ou evitar mais de 6 mil internações em UTIs.

Mas a conta da Sputnik até agora não fecha, nem de longe.