Soberania

Raul Jungmann: Soberania versus clima, embates da COP-26 em Glasgow

Dois caminhos são possíveis. O da diplomacia e o da força – este, com consequências negativas e trágicas

Raul Jungmann / Capital Político

Na Conferência das Partes (Cop-26), a ser aberta neste domingo em Glasgow, Escócia, o pano de fundo dos embates sobre a crise climática, suas repercussões e medidas para evitá-la, será o choque entre soberania e clima.

O conceito de soberania afirma-se na Conferência de Paz de Westfália, em Münster, na Alemanha, após a Guerra dos 30 Anos que devastou a Europa no século XVII, que desenhou o atual sistema internacional das nações e que permanece o mesmo em seus fundamentos.

Desde então, além do conceito de não-intervenção de um país sobre o outro e do respeito às escolhas religiosas das partes, o Estado-Nação moderno passou a ser reconhecido com base em território, povo e soberania. Entendendo-se por esta última a capacidade autônoma de um ente jurídico-político de não reconhecer nenhum outro poder, seja interno ou externo, acima do seu.

De lá para cá o mundo diminuiu, fruto da revolução industrial, nas comunicações e nos transportes, subprodutos de outra revolução, a tecnológica, passando a atividade humana a impactar e pressionar crescentemente o meio ambiente.

Alcança-se assim uma nova compreensão do conceito secular, pois se o território é eminentemente nacional, o clima não o é. Ou seja, ele é global em suas causas e efeitos, donde se instala o inevitável conflito entre soberania e crise climática. Mas a regra ainda é a preeminência da soberania, delimitada exclusivamente pelo território e ancorada no Estado Nacional.

Diante desse impasse, dois caminhos são possíveis. O da diplomacia e o da força – este, com consequências colaterais negativas e eventualmente trágicas.

Na primeira das opções, a saída para a assimetria sócio-econômica entre países ricos – historicamente responsáveis pelo aquecimento global-, e países pobres, repousa num compromisso dos primeiros em transferir fundos e tecnologia aos segundos, dos segundos em reduzir suas emissões – e de ambos em transitar de uma economia lastreada em energia fóssil para uma outra, baseada em energias renováveis.


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À falta de um consenso as consequências podem ser devastadoras – – desde elevação dos oceanos, secas, temporais, e tufões, com reflexos em migrações, pandemias, violência social, conflitos, confrontos e guerras por recursos naturais mais e mais escassos, conforme previsto pelo VI Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU.

Por isso a expectativa é grande em relação ao encontro de Glasgow. Mas as metas expressas nas NDCs – Compromissos Nacionalmente Determinados, de redução de emissões de dióxido de carbono, já feitos por 75 países, responsáveis por 30% das emissões, deixam a desejar.

As desconfianças mútuas ainda imperam, com os menos desenvolvidos supondo uma trapaça com cores e narrativa ambiental dos países ricos, para desfazer as suas vantagens competitivas.

Estes, por sua vez, bloqueiam recursos e tecnologia para os primeiros, sem que compromissos e metas sejam antecipadamente firmados e cumpridos sob monitoramento de instituições independentes, porém com maioria dos países desenvolvidos.

Superar essas assimetrias e desconfianças será a árdua tarefa de todos em Glasgow, o que exigirá um esforço sério e democrático de compartilhamento e coordenação entre soberanias, amparado em mecanismos de governança global justos, democráticos e eficazes.

Enquanto nos resta tempo.

Fonte: Capital Político
https://capitalpolitico.com/soberania-versus-clima/


Raul Jungmann: Soberania e clima

O conceito moderno de soberania emerge dos acordos da Paz de Westfália em 1648, após a Guerra dos Trinta anos, que devastou parte da Europa. A paz, que trouxe consigo o declínio da Espanha e a ascensão da Inglaterra, estipulava e reconhecia a autonomia das nações para decidirem sobre seus sistemas de governo, religião e consagrava a “raison d´état”, tal qual a formulara o Cardeal Richelieu, para enfrentar o império Habsburgo que ameaçava a França de Luiz XIII.

Sua âncora, como define Jean Bodin, é o Estado-Nação, sendo soberano o ente que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna, um poder absoluto e perpétuo.

Já o conceito de clima remete às mudanças do tempo atmosférico, numa determinada região ou no planeta. Os fatores que o determinam, suas características e dinâmica são naturais e antropogênicos, isto é, humanos, e compreendem desde a pressão atmosférica até a emissão de dióxido de carbono que adensa o efeito estufa e agrava o aquecimento global.

Segundo o IPCC – Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU, é preciso “segurar” a elevação da temperatura da terra em, no máximo, 1.5 graus acima da registrada quando da revolução industrial do século XVIII, ou seus efeitos serão catastróficos e irreversíveis sobre o nível dos oceanos, as espécies animais, cidades e países e a vida humana.

Ocorre que o clima, diferentemente da soberania, não está ancorado em nenhum território definido, ordem legal impositiva ou ente controlador, a exemplo do Estado-Nação. Como a ordem internacional é anárquica, inexiste um poder soberano e regulatório sobre o clima em nível global. 

O clima e agravamento das mudanças climáticas, coloca em risco todas e cada uma das soberanias e estados-nação. Tome-se por exemplo a Amazônia, cuja tutela inegociável é nossa. Ela é, ao mesmo tempo, um asset, um ativo decisivo nos rumos do clima do planeta. Como harmonizar as exigências do que é nacional, a soberania sobre a Amazônia, com o que é global, o clima, evitando a securitização que nos pesa como uma ameaça?

Inexiste outro caminho que não o desenvolvimento sustentável dessa vasta região, que ocupa mais de 60% do nosso território e abriga uma população de 25 milhões de almas, ostentando o menor IDH dentre todas as regiões do país. A Amazônia e o seu desenvolvimento sustentável, tenhamos clareza, são a chave para tornarmo-nos uma potência bioeconômica e termos assento à mesa dos rumos do futuro global.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Bolívar Lamounier: O povo semissoberano 

Nas democracias atuais, jazem moribundos em covas rasas os antigos argumentos antiliberais

Durante quase dois séculos diferentes escolas de pensamento tentaram explicar as imperfeições e rupturas dos regimes democrático-representativos. O esforço clássico – e mais antigo – foi o de Jean-Jacques Rousseau, que contestou a própria ideia de representação. Em sua linha de raciocínio, o indivíduo iludia-se com o efêmero status que o processo eleitoral lhe proporcionava: cidadão por um dia, mas no dia seguinte retornava ao estado de imemorial submissão em que se encontrava desde priscas eras. Não chegaria jamais ao status de membro pleno da coletividade enquanto se concebesse como um simples indivíduo, e não como uma parte indissociável daquela entidade mística e homogênea, o todo permanente reunido em assembleia.

A segunda linha de crítica, muito mais potente, remonta a meados do século 19 e parte de um ponto de vista exatamente oposto. O problema não era o individualismo excessivo, mas o fato de a maioria da sociedade não ter acesso a uma condição de verdadeira autonomia individual. Por toda parte, o que vemos são maiorias supostamente aptas a legitimar (por meio do voto individual e igual de cada um) minúsculas oligarquias, mas na prática o que ocorre é o oposto: tais maiorias são clientelas facilmente controláveis e manipuláveis pelas minorias governantes. O clientelismo rural, por exemplo, afetando a maior parte da população, era um poderoso impedimento à igualdade substantiva e, consequentemente, da verdadeira democracia. Incapazes de se “atomizarem”, ou seja, de se tornarem indivíduos realmente autônomos, as maiorias não correspondem nem ao modelo da cidadania mobilizada concebido por Rousseau nem à sociedade individualizada do liberalismo; são como uma grande ameba, uma massa amorfa incapaz de qualquer protagonismo.

Nos limites de um artigo é impossível destrinchar a teia de juízos de valor e de equívocos factuais subjacente a essa longa história, mas é imperativo sublinhar alguns estágios dela se quisermos compreender a contraditória percepção do mundo atual acerca da democracia. Em 1942, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia, o economista Joseph Schumpeter detonou a antiga suposição de que as grandes massas eleitorais do mundo moderno têm de ser constituídas por indivíduos igualmente autônomos, bem informados e aptos a exercer cargos no governo, se convocados a tal. Schumpeter escreveu que a função do eleitor se reduz a dar seu voto a um dentre os grupos contendores, que são eminentemente grupos técnicos, especializados na gestão do Estado. Em 1961, não se permitindo o cinismo implícito no argumento schumpeteriano, Elmo E. Schattschneider, no livro The Semisovereign People, armou uma equação mais interessante. A função do eleitor é de fato irrelevante, ou quase isso, onde não há partidos políticos dignos do nome; onde eles existem, o eleitor de fato não governa diretamente, mas pode exercer uma influência substancial, não raro determinando os rumos da política pública. Mas um “verdadeiro” partido, o que é? Simplificando ao máximo, a resposta dele foi: uma organização não só especializada na disputa política, mas que a pratica sem jamais se deixar absorver ou subjugar por grupos de interesse, sejam estes econômicos, religiosos ou de qualquer outra natureza. A função do partido é transcender e agregar tais interesses num nível mais geral; e um que se deixe incrustar e controlar por meia dúzia de empreiteiras, por certo, não merece ser chamado de partido.

Penso que a realidade atual, e não só a brasileira, está a exigir uma reflexão mais abrangente. Nas democracias atuais, com seus grandes eleitorados e técnicas apropriadas de votação, os antigos argumentos antiliberais jazem moribundos em covas rasas, aguardando o sepultamento a que fazem jus. Mas a questão permanece: vamos bem ou vamos mal? O modo democrático de viver está se robustecendo ou, ao contrário, correndo riscos onipresentes, cuja dimensão ainda não conseguimos avaliar? A visão pessimista pode invocar argumentos poderosos, muito mais sérios que os tradicionalmente associados ao controle clientelista do eleitorado e até mesmo aqueles derivados das desigualdades sociais. Outro dia o professor Benício Schmidt, da UnB, postou no Facebook uma especulação sinistra. Na Colômbia, agora que as Farc se transformam em partido, teremos o narcotráfico controlado por uma organização ou disperso entre várias organizações beligerantes e bem armadas? Hipóteses desse tipo podem ser multiplicadas ad infinitum.

Mas a hipótese otimista também merece respeito. Os avanços no combate à corrupção talvez representem não apenas um aumento na higidez dos regimes democráticos, mas um passo decisivo no sentido de tornar realidade um de seus pressupostos essenciais. Democracia, como o termo é hoje entendido pelos cientistas políticos, é um regime no qual indivíduos privados ascendem a posições de autoridade mediante eleições periódicas, limpas e livres, das quais a maioria da população adulta participa. Admitamos, porém, por um minuto, o antigo sarcasmo dos antiliberais: como pode ser soberano um corpo eleitoral que desconhece os elementos mais importantes da gestão do Estado? Suponhamos, no caso brasileiro: qual é a real importância dos votos de 145 milhões de eleitores que até pouco tempo atrás desconheciam por completo o modo de agir de um BNDES, de uma Petrobrás, de uma Eletrobrás?

Salta aos olhos que, sem um enorme avanço na transparência, no acesso a informações do tipo mencionado e numa drástica redução da impunidade, o pressuposto democrático da soberania popular permanecerá, realmente, vulnerável ao escárnio.

* Bolívar Lamounier é cientista político, é sócio diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências