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Alon Feuerwerker: O ovo cru e o omelete

A dúvida é como vamos sair da pasmaceira. Um caminho é sempre a eleição presidencial

Alon Feuerwerker / Análise Política

Um aspecto tem passado algo despercebido em todo esse imbróglio sobre o novo valor do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família) e de onde virão os recursos: o assunto ter provocado a necessidade de aprovar uma emenda constitucional. Isso parece ter decorrido de dois fatores: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os precatórios e o teto de gastos ter sido lá atrás introduzido na Constituição.

Tudo sempre guarda alguma explicação, mas é bastante anômalo que decisões simples de governo tenham passado a depender de mudar sistematicamente a Constituição. É um sintoma de várias coisas, antes de tudo de ter caducado a ordem constitucional construída em 1988. É sintoma também do grave enfraquecimento do Executivo. Uma tendência inaugurada pelas vicissitudes de Dilma Rousseff e acelerada no intervalo Michel Temer.

A eleição de Jair Bolsonaro representou um impulso à retomada da centralidade política do Palácio do Planalto, mas a tendência centrífuga retornou conforme o presidente se enfraqueceu devido aos próprios erros políticos, especialmente na abordagem da Covid-19. E chegamos à situação atual, quando mexer nos programas sociais depende de PEC, e a rotina diária dos ministros do STF supõe passar o tempo desfazendo o que o governo faz.

A situação agrada a quem está na oposição pois vai levando à progressiva paralisia governamental, e também neutraliza as teóricas vantagens operacionais da maioria congressual. Antigamente, governar dava trabalho. Era preciso ganhar a eleição de presidente e formar base parlamentar sólida. Hoje em dia, basta eleger meia dúzia de deputados e recorrer ao STF quando o governo faz algo que desagrada à opinião pública.

É uma situação confortável para quem, na política, não tem perspectiva de poder formal e regular, e também para quem mais influencia o ir e vir dos cordéis que movimentam a opinião pública. A dúvida é sobre a sustentabilidade. Um debate constante no Brasil é se as instituições estão funcionando. Estão funcionando sim, e funcionando tanto que o sistema de freios e contrapesos chegou ao estado da arte, com eficiência ótima: tudo travou.

A dúvida é como vamos sair da pasmaceira. Um caminho é sempre a eleição presidencial. O problema: faz muito tempo a humanidade já sabe como transformar ovo cru em omelete, mas a rota inversa é um mistério que permanece insolúvel, desde sempre, aos mais brilhantes cérebros científicos. É ilusão imaginar que bastará eleger alguém para “as instituições” recolherem-se à casinha.

Mas História não é Biologia ou Química. Na História, o omelete pode voltar a ovo cru. Geralmente, situações assim são destravadas por alguém que acaba cortando o nó górdio. Uma coisa é certa, como já foi dito: o cenário crônico de paralisia política, baixo crescimento econômico e travamento institucional não permanecerá indefinidamente. Alguma transição virá. Há apenas duas dúvidas: quem a fará e como.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/11/o-ovo-cru-e-o-omelete.html


Rogério Baptistini: A vítima é a democracia de 1988

As evidências da perseguição política movida contra o ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava-Jato ganham volume.  A instrumentalização do Direito como ferramenta de disputa política e arma de guerra contra os inimigos já não pode ser ignorada. A partir da chamada “República de Curitiba”, práticas de lawfare desestabilizaram o sistema político, confundiram a opinião pública e produziram resultados eleitorais.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em que pese o uso das leis e dos procedimentos legais como instrumentos de uma batalha política, os petistas não estão na condição de vítimas inocentes de um golpe contra a democracia (2016), nem de vítimas dos eleitores (2018). O PT contribuiu fortemente para o estado de coisas que transformou o magistrado em justiceiro e os políticos em bandidos.

O discurso de deslegitimação da política e dos políticos, no Brasil, é obra da UDN e foi repetido à exaustão contra Getúlio Vargas e os seus herdeiros, levando às duas mortes do getulismo, em 1954 e 1964. No regime de 1946, os udenistas não fizeram outra coisa senão denunciar, quando derrotados, o sistema eleitoral e o governo de turno, sempre a partir de uma posição moralista.  Na Nova República, o PT fez disso a sua profissão de fé.

Em 1985, durante a transição democrática, o PT boicotou o colégio eleitoral que encerrou o ciclo dos presidentes militares. Não bastasse, expulsou três deputados que votaram em Tancredo Neves contra o candidato da ditadura. No ano seguinte, a candidatura ao governo de São Paulo foi apresentada sob a alegação de ser “diferente de tudo o que está aí”, ou seja, dos partidos e dos políticos que costuraram a transição e estavam conduzindo o processo de redemocratização. Na mesma década, em 1988, após ter elegido Lula como o deputado constituinte mais bem votado do país, o partido votou contra a aprovação da Carta Constitucional, assinando somente depois fora do Plenário. O período se conclui com o insulto ao Congresso, que seria composto “por picaretas com anel de doutor”.

Ulysses Guimarães promulga a Constituição Federal de 1988.

Em uma sociedade com uma democracia jovem, em construção, a pedagogia petista radicalizou a mística populista, cuja lógica é o binarismo: povo contra elite perversa. A inclusão do terceiro, do herói, completou a explicação e conferiu sentido ao desprezo pela política como produtora de consensos progressivos. A aposta na narrativa da “esperança contra o medo”, do nós contra eles, fez sentido estratégico com os mandatos presidenciais consecutivos, mas produziu consequências desastrosas para a cultura pública.

Como o Brasil moderno é uma sociedade complexa e o PT opera no sistema político formal, uma vez no poder não pôde entregar o céu na terra. A própria alteração discursiva tardia e eleitoreira, voltada para acalmar o mercado – a Carta aos Brasileiros (2002) – foi um reconhecimento dessa verdade, referendada pelo mensalão do primeiro governo Lula e pela captura do Centrão. No lugar da política, que sempre demonizou, o partido optou pela compra e submissão dos adversários, ao custo do aparelhamento e do loteamento do Estado. Em sua viagem redonda, como afirmou Luiz Werneck Vianna, o diferente se encontrou com o velho patrimonialismo político.

A partir do primeiro grande escândalo, da queda de Zé Dirceu e de outras lideranças históricas, Lula e os petistas operaram de negação em negação, tornaram-se mais do mesmo. A cidadania traída entregou-se a um juiz e a um grupo de procuradores obscuros. O engodo destroçou o sistema partidário e vitimou a democracia de 1988, obra da política e do possível.