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Sergio Fausto: Por um patriotismo democrático

Patriotas são aqueles dispostos a colocar seus tijolos na construção de uma casa comum a todos

Sérgio Fausto / O Estado de S. Paulo

Bolsonaro se crê um patriota. O engano é evidente. O atual presidente não revela traço algum de quem ama o seu país. O desprezo pela vida dos brasileiros, demonstrado na pandemia, e o descaso com o meio ambiente, em geral, e a Amazônia, em particular, falam por si. Bolsonaro não conhece nem tem apreço pela cultura brasileira, na sua imensa riqueza e diversidade. Se dependesse dele, a natureza e a cultura, que dão corpo e alma a este país, não resistiriam. E nossa história ficaria aprisionada nos chavões de um autoritarismo primitivo.

E, apesar de tudo isso, o bolsonarismo tenta se apoderar de símbolos nacionais, como o hino, a bandeira e a camisa da seleção brasileira. Patriotismo excludente, movido a ódio, exterminador do futuro.

Nações são comunidades imaginadas, na definição de Benedict Anderson, autor de um livro clássico sobre as origens dos Estados nacionais e a difusão do nacionalismo. Existem não como um dado da geografia física, mas como construções políticas e culturais, pelo fazer, o falar, o atuar e o escrever constantes de muitos que compartem uma língua e vínculos concretos e simbólicos com um território delimitado e um passado em comum, vivendo sob as mesmas leis. Para subsistirem, as nações precisam ser periodicamente reimaginadas para projetar um destino em comum, melhor para todos.

Os mitos da nacionalidade brasileira – a democracia racial, o gigante pela própria natureza, o país do futuro, etc. – estão em mau estado. Não resistiram ao embate com a realidade de um país que, em 200 anos, resolveu bem suas questões de fronteira, ocupou seu território, se urbanizou e industrializou, tornou-se uma grande economia, mas não conseguiu entregar à grande massa de sua população condições aceitáveis de vida e um terreno firme e plano para o exercício da cidadania.

Quando terminou o regime autoritário (1964-1985), o Brasil figurava entre os países que mais haviam crescido ao longo do século prestes a terminar. Altas taxas de crescimento, porém, não produziram indicadores sociais compatíveis. Ao contrário, no fim da ditadura, 25% dos brasileiros ainda eram analfabetos, muitas crianças continuavam fora da escola (cerca de 30% nas regiões menos desenvolvidas), o ensino médio era ainda uma quimera para a grande maioria dos jovens e a mortalidade infantil se situava na casa dos 40 por mil nascimentos.

A democracia não resolveu todos esses problemas. Mas os colocou no centro do debate público e da agenda nacional e desobstruiu os canais para que a sociedade, nas suas múltiplas e contraditórias vontades e interesses, passasse a demandar soluções, sem bater às portas dos quartéis. A Constituição de 1988 assegurou liberdades e garantias individuais, estendeu o rol dos direitos fundamentais, incorporando a saúde pública e o ensino básico para todos, deu proteção constitucional ao meio ambiente e visibilidade e proteção a minorias antes marginalizadas do espaço público e criou mecanismos para a expressão e defesa de direitos difusos. Embora insuficientes, os avanços saltam aos olhos de quem tem olhos para ver.

Devemos valorizar e compreender essa experiência em toda a sua importância. Para isso, é preciso conhecer e discutir criticamente o nosso passado. Não para nos imobilizar na purgação dos nossos muitos pecados, mas porque saber de onde viemos é essencial para definir aonde queremos chegar.

Constituição não é Bíblia. Ela já sofreu mais de 100 emendas e deverá sofrer outras para reduzir o seu detalhismo e a sua incidência excessiva em questões que devem ser resolvidas na e pela política, no âmbito da legislação complementar. A nossa Constituição, porém, nos oferece o que outras, louvadas por serem mais enxutas, não entregam. Ela projeta a utopia viável de um país mais igualitário e inclusivo, democrático no funcionamento das suas instituições políticas e na oferta de bens públicos, conhecedor e zeloso da sua biodiversidade, orgulhoso da sua diversidade cultural e racial. E nos dá a gramática para processar os conflitos inerentes à busca, na democracia, pela concretização progressiva dessas aspirações.

Podemos divergir sobre a velocidade e os meios para avançar, ainda mais, no caminho que a Constituição aponta, desde as questões mais abrangentes sobre o papel do Estado, do mercado e da sociedade até suas expressões mais concretas em torno da tributação e do gasto público, passando por todas as áreas das políticas públicas, inclusive a política externa.

O importante é convergirmos em relação aos valores fundamentais da Constituição e as regras democráticas que ela estabelece para resolvermos as nossas diferenças.

A Nação não tem dono. Patriotas são aqueles e aquelas que estão dispostos(as) a colocar seus tijolos – de cores e formatos diferentes – na construção nunca terminada de uma casa comum que seja de todos(as) que aqui vivem e viverão um dia, gente que não conheceremos, mas que terão o mesmo amor por esta “comunidade imaginada”, mas bem real, chamada Brasil.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,por-um-patriotismo-democratico,70003890677


Sergio Fausto: A aposta de Bolsonaro

Para reeleição, presidente conecta-se aos pobres pela via do conservadorismo de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia

Seis meses e 100 mil mortos depois do início da pandemia, Bolsonaro segue vivo e competitivo para a disputa presidencial de 2022. Continua a manter entre 30% e 35% de apoio nas pesquisas de opinião. Mas sua base social está se deslocando: ao longo dos últimos meses, o presidente perdeu terreno nas faixas de renda e educação mais altas e ganhou espaço em setores mais pobres da população, graças ao aumento da transferência direta de renda para esses setores.

Também sua base política se alterou, com redução do peso relativo dos fiéis de primeira hora e ampliação da presença de parlamentares ligados à política tradicional. São movimentos incipientes, que mal comparando lembram os que Lula levou a cabo com maestria para sair do córner político na crise do mensalão e reeleger-se com folga dois anos depois. Eles coincidem com um recuo na escalada de confrontação contra o STF, governadores e prefeitos em que se engajou Bolsonaro a partir do início da pandemia.

Estaria em curso um processo de ajustamento do atual governo a padrões mais normais, no sentido de frequentes, na história brasileira? Não creio.

Longe de ser uma decisão estratégica, o recuo na escalada de confrontação é tático e circunstancial, provocado pelo medo decorrente de investigações que apontam para o núcleo de articulação da rede bolsonarista, no qual figuram com destaque os seus filhos. A interação entre os processos investigatórios e a dinâmica política é um jogo de vários lances, apenas iniciado. Um jogo no qual Bolsonaro jogará pesado, pois sabe o que está em jogo.

Tampouco o deslocamento da base social de apoio ao presidente é fruto de uma decisão estratégica. Foi do Congresso a proposta de triplicar o valor do programa de auxílio emergencial proposto pelo Executivo, contra a vontade do Ministério da Economia. Bolsonaro intuiu a oportunidade e agarrou-se a ela. Sem o bote salva-vidas do auxílio emergencial, sua popularidade se situaria hoje abaixo da linha d’água dos “mágicos” 30%.

Em que pese ter sido ampliada, a base parlamentar de Bolsonaro é volátil. Quando o bote salva-vidas do auxílio emergência for desinflado, pela impossibilidade fiscal de manter a transferência de renda nos níveis atuais, os cálculos políticos podem ser refeitos. Será conflituoso, dentro e fora do governo, o embate em torno do nível e da composição do gasto “sustentável” ao fim do estado de calamidade pública.

Sabe-se que mediar conflitos não é uma especialidade do presidente. Nem dentro do sistema político, nem na sociedade, muito menos quando se somarem essas duas fontes de pressão, como é previsível quando passarmos da emergência econômica e sanitária à fase crônica da crise e da pandemia, com mais pobreza e mais desemprego do que até aqui se viu e sem estado de calamidade pública para poder gastar sem limite.

Antecipando dificuldades políticas, Bolsonaro se prepara. O recado dado pelo presidente a seus ministros na famigerada reunião de 22 de abril - “o meu sistema pessoal de informação funciona, mas o oficial desinforma” - foi entendido. Decreto do fim de julho oficializou a reestruturação da Agência Brasileira de Inteligência para dotá-la das competências destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”.

Há razões para ver nas mudanças na Abin a preparação do governo para possíveis cenários de aguçamento do conflito social e político. O dossiê preparado pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 pessoas, a maioria servidores públicos, conhecidos por suas posições contrárias ao atual governo, é um preocupante sinal antecedente.

Em paralelo, assiste-se à crescente militarização do governo. Com a nomeação do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde, a presença de militares no ministério alcançou a marca dos dois dígitos. Segundo levantamento do Tribunal de Contas, o número de integrantes das Forças Armadas com cargos no governo mais do que dobrou desde 2018.

Em que pese o comportamento exemplar dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, tornou-se difícil separar com clareza o governo das Forças Armadas. O presidente tudo faz para identificar a sua administração com os militares. De um lado, para se aproveitar do prestígio das Forças Armadas. De outro, para manipular o medo de uma intervenção militar na vida política.

Em meio a uma pandemia que no Brasil não parece ter fim e sem recuperação econômica importante à vista, temos um governo sem projeto, chefiado por um presidente que se divide entre dois objetivos: proteger a si e aos seus e viabilizar sua reeleição. A chamada “agenda Guedes” feneceu antes de ter florido. A sétima cavalaria dos investimentos estrangeiros não dá sinais de que virá salvar o país da recessão ou do baixo crescimento.

Para navegar contra vento e maré, agarrado ao mastro oscilante do “centrão” e ao que sobrar do bote salva-vidas do auxílio emergencial, o capitão lança ao mar as bandeiras da luta anticorrupção e da antipolítica (já bem esfarrapadas), além da “agenda Guedes”. A identificação com os militares terá custos crescentes para a instituição das Forças Armadas e rendimentos decrescentes para o presidente, pois aquelas não escaparão do desgaste de se misturar ao governo.

Contudo, Bolsonaro conta ainda com trunfos, além da vantagem de ser o incumbente. Das três bandeiras que o elegeram, a “proteção dos valores da família” por ora continua firme em suas mãos. Se o liberalismo econômico com verniz acadêmico perde valor, um livre-mercadismo mais primitivo e rudimentar se apresenta como alternativa. Bolsonaro o tem cultivado nas críticas às restrições sanitárias, o que encontra apoio em uma sociedade na qual trabalhar em casa é privilégio de uma minoria e o respeito às regras coletivas em nome do bem comum está longe de ser generalizado.

O terceiro trunfo é a pobreza, que vem aumentando e aumentará ainda mais, ampliando a potência eleitoral do que um jornalista sagaz, Bernardo Mello Franco, apelidou de “Bolsa Capitão”. Seu maior trunfo, no entanto, é ter até aqui jogado sozinho, sem adversário político à altura.

Se ainda é cedo para fazer prognósticos certeiros para 2022, já se pode ver a aposta que Bolsonaro fará em busca da reeleição: conexão direta com as massas pobres e microempreendedores invisíveis pela via do conservadorismo moral de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia.

Em meio a muita incerteza, uma coisa me parece certa: Bolsonaro terá dificuldades para unificar o campo conservador, pelo enfraquecimento do PT, de um lado, e pelo surgimento de alternativas no campo da centro-direita, de outro. Ao degolar Luiz Henrique Mandetta e peitar Sergio Moro, o capitão pode ter cometido seu maior erro político.

*Sergio Fausto é cientista político


Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, semelhanças inquietantes

Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, claro, mas…

No início de maio um grupo de manifestantes ostensiva e fortemente armados irrompeu na Assembleia Legislativa de Michigan para protestar contra a quarentena decretada pela governadora democrata para deter o crescimento da pandemia. Donald Trump não demorou a disparar um tuíte em apoio aos manifestantes. O fato de o grupo de brutamontes (todos homens, todos brancos) estar portando rifles não pareceu digno de nota ao presidente americano. Jair Bolsonaro teria vibrado, a julgar pelo que disse na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que defendeu armar o povo para enfrentar prefeitos e governadores.

Em julho, a retórica incendiária do presidente americano inflamou-se ainda mais. Prefeitos democratas de cidades onde eram realizadas manifestações, em geral pacíficas, do movimento Black Lives Matter foram acusados de nada fazerem para evitar a “anarquia social”. Da retórica Trump passou à ação, enviando agentes policiais da União para reprimir os protestos, em decisão que pode configurar abuso do poder presidencial. Os agentes federais, camuflados como militares em guerra, têm agido com violência injustificável, enquanto Trump chama os manifestantes de “marginais”. Bolsonaro os teria chamado de “terroristas e maconheiros”. Ao menos foi o que disse a respeito de quem saiu às ruas no começo de junho para protestar contra o seu governo.

Atrás em todas as pesquisas de opinião, sem controle sobre a pandemia, Trump está na busca desesperada por uma narrativa que o mantenha no páreo para as eleições de novembro. Quer ser o candidato da lei e da ordem.

Parece uma reedição da estratégia de Richard Nixon, que se elegeu em 1968 prometendo pulso firme contra protestos de jovens universitários e negros. A semelhança, porém, é apenas aparente. Trump não busca mobilizar o conservadorismo tradicional. Sua aposta é a de um extremista, disposto a conflagrar o país e testar, ao máximo, os limites da institucionalidade. Mais do que o candidato da “lei e da ordem”, ele flerta com a ideia de ser o líder de um povo pronto a empunhar armas para defender a América contra “terríveis ameaças”.

A incitação de Trump à violência e a desfaçatez de suas teorias conspiratórias vêm se agravando. Ainda nas primárias republicanas para a eleição de 2016, ele disse que pagaria do próprio bolso a fiança de seus apoiadores que “descessem o cacete” em quem perturbasse os seus comícios. Na campanha para as eleições daquele ano, afirmou que se perdesse seria sinal de fraude, e se recusou a dizer se aceitaria o resultado. Em 2017 disse haver “gente boa” entre supremacistas brancos que brutalizaram manifestantes contrários. Em 2019 perguntou à multidão que o ouvia na Flórida como deveriam ser recebidos os imigrantes que tentassem cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos. Sorriso no rosto, escutou a resposta em coro: “Com tiros, com tiros”. No mesmo ano, acusado na Câmara por crimes de responsabilidade, brandiu a ameaça de uma guerra civil se o Congresso o impedisse de seguir na Presidência.

Com a aproximação das eleições de novembro, a retórica incendiária de Trump está chegando ao paroxismo: além de defender, semanas atrás, que a polícia atirasse em quem promovesse saques, desatou a repetir que há uma grande fraude em preparação, até mesmo com interferência de governos estrangeiros, nos votos que serão enviados pelo correio, uma prática antiga e segura em vários Estados americanos. Bolsonaro há muito propaga a lenda de ser a urna eletrônica um convite à manipulação dos resultados eleitorais.

Refletindo sobre o cenário político americano, Fareed Zakaria, em recente artigo no jornal The Washington Post, advertiu para o perigo que Trump hoje representa para a alternância pacífica de poder nos Estados Unidos. Zakaria tem razão em se preocupar: se o resultado for apertado, é provável que o presidente americano de tudo faça para “melar o jogo”. Felizmente, no Brasil existe segundo turno, inexiste o colégio eleitoral e não há contagem manual de votos.

Talvez mais preocupante seja o fato de que, mesmo com o eventual despejo de seu líder da Casa Branca, o trumpismo siga vivo ou mesmo se torne mais virulento. Não deve passar despercebida a desenvoltura crescente de grupos paramilitares imbuídos da missão de proteger a “verdadeira América”, onde os brancos mandam, os pretos obedecem e os imigrantes não entram. Mutatis mutandis, o mesmo “patriotismo” sectário, excludente e truculento se encontra nos bolsões mais radicais do bolsonarismo.

Estimulada pela retórica anti-imigrante de Trump, cresce a atuação de grupos de vigilantes que assumem funções de polícia de fronteira na divisa com o México. Atiçados pelo presidente, outros grupos de cidadãos armados se somam à intimidação e repressão contra os protestos antirracistas. Em nível local, não são raras as alianças implícitas entre esses grupos e forças policiais.

Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, é claro, mas também semelhanças inquietantes.

*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, não há mal que sempre dure

A maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática parece retroceder

Após 155 anos da aprovação da emenda constitucional que pôs fim à escravidão e 56 anos depois da entrada em vigor do Civil Rights Act, que tornou inconstitucional a segregação racial e quaisquer outras formas de discriminação nos Estados Unidos, milhões de norte-americanos foram às ruas para protestar contra a sistemática prática policial de violência contra os cidadãos negros daquele país.

“The arch of History is long, but it bends towards justice”, dizia Martin Luther King. O longo arco da História americana curvou-se em direção à justiça sempre que negros e brancos se juntaram para fazer valer a mais importante passagem do documento que em 1776 fundou a nação. “Todos os homens são criados iguais e com direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, se lê na Declaração de Independência. Em dois séculos e meio, a História americana alternou períodos de conformismo com momentos em que uma maioria social e política se formou para encurtar a distância entre o ideal proclamado e a realidade vivida. Vivemos uma dessas conjunturas críticas.

O assassinato de George Floyd por um policial da cidade de Minneapolis pode vir a ser o gatilho de um realinhamento de forças sociais e políticas de longa duração nos Estados Unidos, com efeitos para além das fronteiras do país. As manifestações que se seguiram não apenas reduzem ainda mais as chances de reeleição de Donald Trump, já abaladas pela avaliação negativa do seu desempenho diante da pandemia, como também dão impulso a tendências que podem levar a uma derrota histórica do Partido Republicano em novembro deste ano.

O partido de Abraham Lincoln foi colonizado ao longo das últimas décadas pelo fundamentalismo religioso, pela xenofobia e pelo racismo (não dito, mas praticado, como transparece nas diversas medidas aprovadas em Estados dominados pelo partido para dificultar o exercício do voto por negros e latinos). O Grand Old Party, quem diria, terminou sequestrado por um político sem ideais ou escrúpulos, como Donald Trump.

Pesquisas de opinião mostram que os democratas consolidam progressivamente uma ampla coalizão majoritária. A indignação contra o atual presidente fornece a energia que provavelmente levará jovens, negros e latinos às urnas em maior número do que quatro anos atrás. A vantagem do candidato democrata entre as mulheres não tem precedente histórico. Além disso, o partido está recuperando parte dos votos dos brancos de menor escolaridade e seu candidato presidencial está à frente entre os maiores de 65 anos.

Joe Biden na Casa Branca com maioria democrática nas duas Casas do Congresso tornou-se uma possibilidade real (basta o partido conquistar três cadeiras no Senado e terá a maioria, com o voto de Minerva da vice-presidente). Sim, no feminino, pois é dado como certo que Biden terá uma companheira de chapa, ao que tudo indica, uma mulher negra.

Não é certo, mas é possível, mesmo provável. Se acontecer, a vitória será do partido que espelha no seu eleitorado e nos seus representantes eleitos as transformações culturais, comportamentais e demográficas da sociedade americana, contra um partido agarrado à nostalgia de uma América em que negros, latinos e mulheres eram cidadãos de segunda classe, a homofobia era a regra e as energias fósseis, sinônimo de progresso. Tão ou mais importante, será a vitória de um partido que, além do apoio de grupos específicos, conquistou corações e mentes do cidadão comum para a necessidade urgente de civilizar o capitalismo americano com a adoção de políticas sociais abrangentes, em especial na área da saúde.

A admiração basbaque de Bolsonaro por Trump é conhecida. Eles têm afinidades, a começar pela falta de empatia com o sofrimento humano e a insensibilidade em relação às injustiças sociais. Para o presidente americano, George Floyd foi apenas mais um negro morto pela polícia. E daí? Perante os protestos, brandiu a ameaça de chamar os militares. Obteve uma resposta à altura de Forças Armadas que bem compreendem o seu papel numa democracia: repúdio. O mais eloquente vindo de ninguém menos que o general James Mattis, ministro da Defesa até dezembro de 2018, que acusou Trump de dividir a nação e infringir os direitos constitucionais dos cidadãos americanos ao ameaçar os manifestantes com o uso das Forças Armadas. O atual chefe do Estado-Maior Conjunto fez um mea culpa público depois de acompanhar Trump numa encenação política diante de uma igreja perto da Casa Branca.

A provável virada política nos Estados Unidos é um alento para as democracias. Indica que a maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática pode estar retrocedendo. E não por motivos fortuitos, mas porque, uma vez no governo, os mesmos atributos antiestablishment que os tornaram eleitoralmente vitoriosos os fazem incapazes de liderar seus países em tempos que pedem políticos de qualidade superior, e não mediocridades orgulhosas de sua ignorância.

  • Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP

Sergio Fausto: Qualidades de liderança que o momento exige

Felizmente, o Brasil é bem maior e melhor do que o presidente. Não há mal que sempre dure

Tempos de crise servem de campo de teste para as lideranças.

Em todo o mundo, os governantes estão diante de um enorme e complexo desafio. Comandam uma batalha em duas frentes, sanitária e socioeconômica, em terreno pouco conhecido. Jamais a humanidade viveu uma pandemia num mundo tão interconectado e exposto a rumores e teorias da conspiração, tampouco uma crise econômica deflagrada por uma emergência sanitária que imponha tamanha restrição à produção e ao consumo. Como se fosse pouco, o inimigo é invisível e, por ora, apenas pode ser contido, não derrotado. A guerra será longa, com muitas fases e batalhas.

O desafio consiste em tomar decisões que atendam da melhor maneira possível ao duplo objetivo, nesta ordem, de reduzir as mortes e a contração econômica produzidas pela disseminação do novo coronavírus. Trata-se não apenas de tomar decisões e reavaliá-las, à luz dos dados sobre o desenrolar nas duas frentes da batalha, mas também de obter a adesão de empresas, famílias e pessoas para que as decisões tomadas possam surtir o efeito pretendido. Para isso é fundamental que a sociedade esteja convencida da correção das ações governamentais, ainda que, em última instância, o Estado possa valer-se de medidas coercitivas para implantá-las.

Como há vários e conflituosos interesses convivendo em sociedade, a liderança política, em especial nos países democráticos, precisa produzir convergência (ela não surgirá espontaneamente, ao contrário) em torno de uma estratégia de combate que mobilize recursos para proteger os setores sociais mais vulneráveis e os elos mais débeis das cadeias de produção e distribuição de bens e serviços básicos. Deve apelar a valores que unifiquem momentaneamente a sociedade e reforcem mecanismos de cooperação e solidariedade social. Sendo o inimigo um patógeno, cabe à liderança política basear suas decisões no melhor conhecimento das ciências médicas sobre a doença e suas formas de contágio. Mas como a pandemia tem efeitos e implicações socioeconômicas amplos, é preciso mobilizar várias áreas do conhecimento. À liderança política incumbe tanto promover o esforço interdisciplinar para dar base sólida ao processo decisório quanto traduzir em linguagem acessível ao cidadão comum as razões das decisões tomadas. Para não falar no dever mínimo de não propagar fake news.

A emergência sanitária e socioeconômica exige uma combinação de qualidades que não se encontra com frequência. Requer que políticos se elevem à condição de estadistas, quase da noite para o dia. Tem melhores condições de se erguer à altura do momento quem reúne um conjunto de qualidades: capacidade de acompanhar raciocínios científicos e compreensão de problemas complexos (para os quais há sempre uma resposta simples que está errada); inteligência estratégica para determinar ações congruentes no tempo e no espaço; ampla habilidade de articulação política e interlocução social, para aumentar a eficácia das políticas públicas e corrigi-las ou ajustá-las sem alvoroço e intranquilidade quando necessário; e, por último, mas não menos importante, empatia pelas diversas formas de sofrimento físico e psíquico por que estão passando as pessoas, em especial as mais vulneráveis.

Agora e no futuro previsível, a estatura das lideranças políticas será medida pela demonstração concreta que tenham dado (ou não) dessas qualidades em decisões tomadas no calor da hora diante de dilemas críticos e inter-relacionados. Por exemplo: quando e sob que condições transitar de uma a outra abordagem da emergência sanitária (seja para radicalizar, seja para amenizar as medidas restritivas a atividades econômicas e à circulação de pessoas)? Até onde expandir o gasto e a dívida pública para suprir a renda perdida por famílias e empresas?

Além da eficácia das decisões tomadas, as lideranças políticas serão avaliadas pelos valores que despertarem na sociedade. Seria ingênuo descartar a possibilidade de o nacionalismo xenófobo ou o individualismo exacerbado saírem fortalecidos da crise atual. Mas existe uma boa chance de que ao final prevaleça a revalorização da cooperação internacional e da solidariedade social para enfrentar os grandes desafios coletivos da nossa época (a pobreza, a desigualdade social, as mudanças climáticas e as pandemias).

Não escrevi este artigo para apontar o que antes já era óbvio ululante e agora se tornou dramaticamente claro: o Brasil está muito mal servido na Presidência da República. Seria patético, não fosse trágico, que um homem tão desprovido das qualidades para liderar o Brasil, em particular neste momento, esteja hoje ocupando o máximo cargo político do País.

Felizmente o Brasil, com suas outras lideranças, suas instituições, suas organizações da sociedade, sua gente, é bem maior e melhor do que Bolsonaro. Não há mal que sempre dure. Agora se trata de conter o imenso dano que ele pode causar. Em 2022, de evitar que a história se repita como tragédia.

*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Sergio Fausto: Mito e política – precisamos de uma alternativa

País começa a se cansar de um clima que azeda relações pessoais e tira a alegria de (con)viver

A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).

Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.

Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.

Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.

O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.

Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.

Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.

Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.

Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.

* Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP


Valor: Risco à democracia marca bolsonarismo

Presidente atacou instituições e aproximou país de uma ‘democradura’, apontam especialistas

Por Cristian Klein e Malu Delgado — Do Rio e de São Paulo

Para ele, cientista político e diretor-geral da Fundação FHC, o primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado pelo constante “teste de estresse”, com ataques às instituições. Para ela, antropóloga e historiadora, o bolsonarismo no poder está levando o Brasil para o grupo de países que podem ser chamados de “democraduras”: têm governos “com forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário”.

O diagnóstico de Sergio Fausto e Lilia Schwarz sobre os 12 primeiros meses de Jair Bolsonaro no Planalto revela uma preocupação com o que pode vir pelos próximos 36 meses de mandato.

Fausto vê instituições que responderam bem às ameaças, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, à medida que Bolsonaro se mexe, forma um partido com viés religioso e pode fazer indicações ao STF, alerta: “Aguentará por mais tempo?”. Bolsonaro faz de seu governo um campo de batalha ideológico que pode atrapalhar a economia, afirma Fausto. Mesmo que não prejudique, o risco continua: o crescimento pode favorecer o “projeto autoritário” do presidente - a primeira liderança nacional de direita que o país já teve, aponta.

Lilia afirma que já imaginava um governo radical, mas que Bolsonaro desceria do palanque para construir consensos. Não foi o que ocorreu. “Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero”.

A índole bolsonarista contra minorias, direitos constitucionais e instituições se dá por um “sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros”. “São ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades”, afirma.

 


 

“Crescimento pode favorecer projeto autoritário”, diz Sérgio Fausto

Cientista político alerta que eventual retomada do crescimento embute o risco de favorecer um projeto autoritário

Por Cristian Klein,  Valor Econômico

Mesmo dando certo, com a recuperação econômica, o governo Bolsonaro pode dar errado, pelo que mostrou no primeiro ano, quando a gestão em áreas como política externa, educação e meio ambiente foi “absolutamente ruinosa”. O alerta é do cientista político e diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, 57 anos, para quem a eventual retomada do crescimento embute um risco: o de favorecer um projeto autoritário do bolsonarismo. Fausto afirma que as instituições reagiram bem aos ataques feitos pelo presidente e seus aliados contra, entre outros, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. Mas teme pela capacidade de resistência institucional, sobretudo se a economia fortalecer o presidente. “Esse teste de estresse você aguenta por quatro anos. Aguentará por mais tempo?”, questiona.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Sergio Fausto: A descoberta retumbante é que quem manda no governo é o Bolsonaro, ao contrário de algumas fantasias que se fizeram no inicio do mandato, de que, a rigor, haveria um dispositivo militar e outros setores mais pragmáticos que dariam o tom da banda governamental. Não. Quem dá o tom é o presidente e o seu núcleo ideológico. Aparentemente, os militares recuaram para uma posição de trincheira para proteger a corporação dos ímpetos politizantes do bolsonarismo. Sergio Moro também frustra expectativas de quem imaginava que ele pudesse ser uma espécie de contrapeso legalista que se espera de um ministro da Justiça que vem do Poder Judiciário. Não é isso. Ele reconhece o mando político de Bolsonaro e dança conforme a música cujo tom é dado pelo presidente.

Valor: Há exceção?
Fausto: É o ‘posto Ipiranga’. O ministro Paulo Guedes [Economia] conseguiu uma esfera de autonomia maior e isso se estende a alguns outros setores ligados à área econômica, como Infraestrutura e Minas e Energia. São espécies de reservas de racionalidade dentro do governo. Paulo Guedes encontrou no Congresso uma liderança disposta a fazer avançar uma agenda reformista, personificada no [presidente da Câmara] Rodrigo Maia. A dobradinha Rodrigo Maia e Rogério Marinho - o secretário de Previdência, que é o principal negociador, não é o ministro da Economia - produziu resultados. Isso fez com que a recuperação cíclica da economia fosse favorecida neste último trimestre do ano por uma percepção de que existe uma agenda sobretudo na área fiscal que vai ganhando musculatura. Tem o caso da Previdência, já aprovada, e iniciativas de reformas semelhantes também nos Estados. Tem política de governo nessa área.

Valor: E nas outras áreas?
Fausto: Não tem política pública. Em áreas como política externa, educação e meio ambiente, a gestão do governo tem sido absolutamente ruinosa. Há duas perguntas que se colocam: a economia ganhará impulso sustentável ou a gestão ruinosa em outras áreas acabará por interferir no processo de retomada? E mais importante do que isso, do ponto de vista de valores caros a uma sociedade aberta e democrática, é se, com o respaldo da retomada da economia, não acabará por se impor, no médio prazo, um projeto de poder que tem características claramente autoritárias e regressivas.

Valor: Como poderia acontecer?
Fausto: O governo e o seu núcleo ideológico submetem, de maneira sistemática, as instituições a testes de estresse. E elas têm respondido de maneira muito positiva. O Congresso é um destaque extraordinário, seja pelo que fez de construtivo, seja pelo que impediu que fosse feito. Serviu como freio, obstáculo, à implementação de medidas claramente danosas aos direitos humanos e à democracia no Brasil: excludente de ilicitude, sufocamento do financiamento dos jornais e por aí vai. E o STF, sobretudo na figura do decano Celso de Mello, respondeu à altura toda vez que foi provocado acintosamente. Agora, esse teste de estresse você aguenta por quatro anos.

Aguentará por mais tempo? Porque o governo começa a mexer suas peças, nomeia ministros [ao STF], pode vir a se organizar como partido político, pode passar a ter bancada mais orgânica no Congresso. É um processo que inspira temor. As instituições têm resistido, mas aos olhos da população, segundo pesquisas, continuam com prestígio muito baixo.

Valor: Mas Bolsonaro não se mostrou muito desagregador?
Fausto: Sim, Bolsonaro não é um líder com grande capacidade estratégica. Tem muita capacidade de comunicação, é destemido, dobra a aposta, e esta ousadia é percebida como um atributo positivo pela sua base. É capaz portanto de manter a sua base permanentemente mobilizada. Isso é uma novidade na história brasileira. É um presidente de extrema-direita que tem enraizamento popular. Isso permite que ele tenha 30% do eleitorado. A despeito de tudo e de todos, ele manteve essa base solidamente e isso o credencia como candidato forte à reeleição. No caso do Bolsonaro, é tudo mais imprevisível, pelas características e pela trajetória, de onde ele vem.

Valor: Como assim?
Fausto: O Bolsonaro tem uma questão sociológica. Vem de um meio político em que as fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade não estão claramente demarcadas e isso o torna vulnerável a curtos-circuitos, a chuvas e tempestades.

Valor: Está se referindo à relação dele com milicianos?
Fausto: Isso, não estou fazendo nenhuma acusação, mas me baseando em fatos conhecidos. Meu ponto de vista não é criminal, é sociológico, é o meio do qual ele vem. Ele carrega esse meio consigo. Nunca houve um presidente com as origens do Bolsonaro, e há investigações de uma pessoa muito próxima não só em relação ao filho mais velho, mas a toda família Bolsonaro. É um segredo de polichinelo que é um ponto de vulnerabilidade do presidente.

Valor: Refere-se ao ex-capitão da PM Antônio Nóbrega, foragido da Justiça e acusado de liderar um grupo de assassinos de aluguel?
Fausto: Tem vários elos, vários laços. Não estou tirando nenhuma conclusão precipitada. São fatos sequer negados por Bolsonaro.

Valor: Qual é a novidade que Bolsonaro traz?
Fausto: Nunca houve no Brasil uma liderança nacional de direita como ele. Você tem fenômenos locais de políticos de direita, com enraizamento popular. Maluf é um caso em São Paulo. Lacerda foi no Rio de Janeiro. Nunca chegaram a ser lideranças nacionais. O Bolsonaro não só está mais à direita do que estavam Lacerda e mesmo Maluf - e portanto é correto caracterizá-lo como um político de extrema-direita - mas também se diferencia por ser uma liderança nacional. Hoje em dia há apenas duas lideranças nacionais: Lula e Bolsonaro. De onde vem esse enraizamento popular do Bolsonaro? Com a conexão que ele estabeleceu com o mundo evangélico, com a chamada “família militar”, e ao penetrar numa classe média conservadora do interior do país, sobretudo das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ligada política e sociologicamente ao agronegócio. Esses setores, em geral, emprestavam apoio na eleição presidencial ao PSDB pela contraposição com o PT, embora não o fizessem de coração. O PSDB durante um tempo funcionou como uma espécie de dique, de represa, que recolhia o impulso à direita.

Valor: Qual é o ponto fraco de Bolsonaro?
Fausto: Essa insensibilidade para o tema da desigualdade, mesmo para o tema da pobreza, é um dos principais calcanhares de Aquiles dele. Se o Brasil não atacar, por meio de políticas públicas, da solidariedade social, a desigualdade e a pobreza, ele se transformará num país cada vez mais suscetível à violência, às explosões e à instabilidade. As enormes desigualdades no Brasil não são mais desigualdades, são fossos que dividem a sociedade em vários arquipélagos e estão em estado de guerra latente, uns com os outros.

 

 


 

Risco à democracia marca bolsonarismo: “Estamos em uma batalha de narrativas”, diz Lilia

Para antropóloga e historiadores, intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público

Por Malu Delgado / Valor Econômico — De São Paulo

Um governo que produz as próprias verdades sem compromisso com a história e com a ciência. A avaliação da antropóloga e historiadora, Lilia Schwarcz, sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro não é suave. Disposta a deixar o hermetismo da academia e se lançar nas redes sociais, a professora da USP acha que num momento de disputa de narrativas históricas como o atual, os intelectuais devem sair a campo e encarar o debate público. Governos deste tipo, afirma, atuam “no sequestro social”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que balanço faz deste primeiro ano de gestão de Bolsonaro?
Lilia Schwarz: Democracia é um regime, por definição, inconcluso. É preciso conquistar a cada dia nossos direitos. Nos últimos 30 anos, os brasileiros conviveram com uma democracia, senão absoluta, pelo menos plena: as instituições funcionaram de maneira autônoma e você não tinha uma imposição do Executivo sobre o Legislativo e Judiciário, e vice-versa. Os brasileiros viveram um momento forte de consolidação de pautas minoritárias e de uma agenda mais ampla, plural e inclusiva. São pautas que hoje, neste governo, estão sob ameaça.

Valor: Ameaças a direitos constitucionais, são a postura mais preocupante deste governo?
Lilia: Nos 28 anos em que nosso presidente foi deputado não primou por defender essas pautas. Hostilizou-as. Eu não tenho problema nenhum com o pensamento conservador. Ao contrário. Acho que a democracia funciona muito melhor quando lida com a diferença. Mas neste caso é regresso democrático. Não é a única pauta em regresso.

Se prestarmos atenção nos ataques à academia e à ciência, veremos que é um governo que claramente produz suas próprias verdades e não tem muito apego a fatos e informações. Há o ataque forte à ciência e ao jornalismo. Mais que uma mentira isolada, conforma um sistema de mentiras que alimenta certo grupo de brasileiros.

Valor: Para onde o Brasil caminha e qual seria o papel da academia? Ela tem sido omissa?
Lilia: No meu livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, chamei esses governos, usando fatos citados por outros autores, de “democraduras”. São governos que têm uma forma democrática, mas um conteúdo altamente autoritário. Têm em comum esse tipo de pautas. São presidentes que preferem não fazer o debate público, porque eles se movem nas bolhas das redes sociais. Há momentos em que a intelectualidade brasileira é chamada a opinar publicamente.

Escrevi um livro sobre autoritarismo, que penso que foi uma das primeiras respostas a esse governo, na minha área. Aos que reagiram com espanto à vitória de Jair Bolsonaro, digo no livro que nós sempre fomos autoritários. Ou seja, não é uma resposta atual. Nosso presente está lotado de passado. Na academia nós vivemos um mundo muito protegido da política. Nas redes, foi a primeira vez em que fui chamada de esquerdopata, com maiúsculas e símbolos que eu nem sabia o que eram. Essa exposição é importante, faz você refinar os argumentos e refletir até onde pode ir. Existem certos momentos em que, como se diz nos EUA, “go public”. Ir a público e testar se você pode ajudar no debate. Estou neste momento.

Valor: Sua premissa sobre as “democraduras” suscita que o Brasil está num beco sem saída?
Lilia: Historiador é ruim de previsão. Somos mais a máxima do conselheiro Aires, de Machado de Assis, que dizia que as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Eu imaginava um governo radical, mas também imaginava que nosso presidente pararia de fazer uma política de palanque e construiria consensos. Não é esse o interesse do governo. O interesse é trabalhar nos binarismos. Me preocupa muito a intolerância religiosa, a racial, de gênero. Um presidente que transforma identidade de gênero em ideologia de gênero e altera dados da realidade é um presidente que não tem vocação para governar em nome de todos. Um presidente que recusa dados de “global warming” e demite o diretor do Inpe [Ricardo Galvão], reconhecido com um dos dez maiores cientistas do mundo, que chama de pirralha uma garota que virou o símbolo de uma luta necessária da ecologia é um presidente que não tem vocação para representar um país tão grande como o Brasil. Se existe uma saída, é de longo prazo e é a aposta na educação. Temos um ministro que aposta no escândalo e não se comporta. Que tipo de mensagem esse ministro passa?

Valor: Como o presidente se apropria do discurso Deus, Pátria, Família?
Lilia: Bolsonaro se elegeu em parte com esse discurso. As igrejas evangélicas são muito plurais. Esse é um país laico. Quando o presidente se define a partir de uma religião só, ele rasga a Constituição. Ele tem se valido desse grupo. Bolsonaro não é só um autoritário. Ele é um populista. Muitos desses representantes máximos das “democraduras” têm esse discurso populista. A característica do populismo é retratar a realidade de forma muito simplista, com frases curtas, de grande efeito, e prometer o que você sabe que não pode cumprir. Não raro esses líderes populistas se associam a imagem de pequenos deuses na terra. A imagem de Bolsonaro como mito e de Eduardo Bolsonaro como mitinho é preocupante. O que é o mito? Mito é com quem você não discute, com quem você não dialoga. O mito está numa esfera muito diferenciada dos demais cidadãos. O mito não tem que responder. Não tem que fazer pactos republicanos. O mito é tudo, menos um presidente republicano. Bolsonaro usa e abusa de seus símbolos. O problema não é se apropriar da bandeira, mas é garantir as cores da bandeira só a uma parte dos brasileiros. Esses tipos de governo atua no sequestro social. O tema do nós, os justos, eles ruins. É o uso da simbologia pátria, como se a Pátria fosse propriedade privada do presidente. Ele governa como se estivesse em casa própria, a partir de argumentações de fundo familiar e íntimas.

Valor: Se o autoritarismo nos acompanhou há tantos séculos, onde foi que essa tampa da panela de pressão se abriu? E por quê?
Lilia: Temos que pensar internacionalmente. A eleição de [Donald] Trump teve efeito mundial. Foi uma onda reacionária que nos invadiu. Minha geração errou ao achar que a democracia era o final da linha. Há manuais de governo. Basta ver o encontro conservador que tivemos aqui em São Paulo. O governo Bolsonaro permitiu que as pessoas saíssem de suas cavernas.

Valor: Uma das características desse governo é a sucessão de recuos. O presidente adota um comportamento inidôneo?
Lilia: Ele tem um comportamento político que não se preocupa com a idoneidade. Até então nós julgávamos um político a partir da sua idoneidade e da sua ética. Nós nunca tínhamos visto como qualidade o fato de um político dizer, desdizer e não se arrepender disso. E são ministros sem nenhum receio de lançar falsas verdades. É impressionante a capacidade que eles têm de dizer e se desdizer.

Valor: Nossas instituições são sólidas o suficiente para conter essa onda autoritária?
Lilia: Eu penso que não, tanto que nosso chefe do Executivo tenta, a todo momento, passar por cima delas. Bolsonaro destituiu o fiscal que o multou por pescar em área proibida. Bolsonaro entrou no governo para ser um vingador. Estamos num momento de batalhas de narrativas históricas. Há duas narrativas muito castigadas: a escravidão e a ditadura militar. O Brasil é um país que não pensa em reparações. É como se fosse o fantasma que volta para puxar seu pé. A Constituição de 1988 abriu mão de legislar sobre a questão militar. Fomos o último país do ocidente a abolir a escravidão mercantil e nunca se pensou em ressarcimento. E esse governo, de forte influência militar, tem essa campanha aloprada de negar as consequências do golpe.


Sergio Fausto: Por que o Chile interessa

Bom ou ruim, o que lá acontecer terá efeitos na América Latina, em especial no Cone Sul

Nas últimas semanas o Chile virou de pernas para o ar. O que ao início parecia se limitar a um punhado de jovens a pular catracas no metro de Santiago, em desafio pelo aumento da tarifa, transformou-se numa gigantesca onda de protesto social. Os protestos são tanto um produto do sucesso do “modelo chileno” quanto um reflexo de suas crescentes limitações.

Na herança deixada pela ditadura militar do general Pinochet, a coalizão de centro-esquerda que assumiu o poder no Chile em 1990 encontrou uma economia aberta que recém se havia estabilizado e começado a crescer; uma sociedade empobrecida por ajustes estruturais feitos a ferro e fogo e traumatizada pela violação sistemática de direitos humanos; e uma Constituição outorgada que estabelecia severos limites políticos à vontade dos governos democráticos eleitos.

Vistos contra esse pano de fundo, saltam aos olhos os avanços do Chile nas três últimas décadas de governança democrática: o crescimento econômico acelerado tornou o país o mais rico da América Latina; a pobreza despencou de 40% para 9% e a indigência, de 20% para 3%; a quase totalidade dos jovens passou a completar o ensino médio e mais da metade a concluir o ensino superior; os milhares de violações de direitos humanas foram apuradas e os culpados julgados e condenados; as amarras políticas impostas pela ditadura foram removidas. Falar em fracasso do “modelo chileno” é um equívoco, o que não significa ignorar seus problemas.

À medida que emergia uma nova classe média, criaram-se expectativas mais altas de consumo e reconhecimento social, apenas parcialmente cumpridas. As novas gerações que ingressaram no mercado de trabalho, mais escolarizadas que seus pais, fazem malabarismos para pagar educação, saúde, transporte e moradia com salários relativamente baixos. Apesar do esforço, os jovens não conseguem saltar as barreiras visíveis e invisíveis que os separam do topo da pirâmide, cada vez mais distante e inatingível. Sentem que o Estado não os ajuda a romper esses limites nem os protege do risco de voltar à pobreza da geração anterior. Já os mais velhos recentemente descobriram que o sistema de capitalização criado na ditadura lhes entrega benefícios mínimos de aposentadoria. A classe média batalhadora se percebe sem retaguarda estatal e familiar. E teme pelo futuro.

Os protestos expressam medo e raiva, dirigida contra o establishment político e econômico. Não se trata de uma elite socialmente irresponsável. Desde o primeiro governo democrático adotaram-se políticas sociais para redução da pobreza. Financiadas pelo crescimento acelerado e por um ligeiro aumento da carga tributária, surtiram efeito poderoso. Está claro que agora é preciso maior ousadia para enfrentar resistências do competente empresariado chileno a uma melhor distribuição da renda. A redução das desigualdades requer aumentar a carga tributária total e chamar os mais ricos à responsabilidade de arcar com maior fatia no financiamento público de políticas sociais. Sem matar a competitividade das empresas.

Sebastián Piñera, o atual presidente, é um homem moderado de centro-direita, que não apoiou Pinochet. Por outro lado, simbolicamente, encarna a simbiose entre o poder político e o poder econômico (por ser bilionário). Reagiu inicialmente mal aos protestos, dizendo que o país estava em guerra contra um inimigo oculto. Pediu desculpa, voltou atrás e convocou os partidos de oposição ao diálogo. Está em busca de um novo enredo para o seu governo.

O ex-presidente Ricardo Lagos defendeu o diálogo entre governo e oposição em torno de uma agenda de reformas mais ampla do que as primeiras medidas anunciadas pelo atual mandatário. Piñera e seus antecessores, Michelle Bachelet incluída, têm noção da responsabilidade histórica que carregam.

Mais do que qualquer outro país latino-americano, o Chile tem condições para dar resposta ao descontentamento social sem apelar para o populismo. Boas políticas macroeconômicas há várias décadas, e pequeno endividamento do setor público, asseguram condições fiscais para o país oferecer mais e melhores serviços públicos. Além disso, o Chile conta com uma boa burocracia estatal, pouco afetada pela corrupção.

Apesar de tudo isso, não é pequeno o desafio de restabelecer a confiança do povo nas elites e de todos no futuro do país. É enorme a descrença dos chilenos em suas instituições e lideranças políticas (talvez porque não conheçam as dos países vizinhos). Não são desprezíveis os riscos de o país se dividir em polarizações destrutivas, como Brasil e Argentina.

O futuro é incerto pela combinação de três ordens de fatores: as fórmulas políticas testadas com sucesso durante a transição e a consolidação da democracia (acordos políticos entre os grandes partidos) são vistas com desconfiança pela população; é necessária uma nova agenda de políticas públicas (mais complexa que a atual, por exigir maior coordenação entre agentes públicos e privados, melhor e maior investimento em ciência e tecnologia, novo equilíbrio entre competitividade e equidade); o mal-estar social chileno não tem motivações exclusivamente econômicas, mas também culturais (e a cultura não se amolda facilmente às decisões políticas).

O Chile está desafiado a inventar um novo projeto comum que vá além das aspirações individuais de cada um dos seus cidadãos sem retroceder às utopias coletivistas e sem perder o trem da integração competitiva à economia global. Desafio que exige à política e aos políticos ultrapassar os limites do curto prazo, da disputa partidária e dos estreitos corredores do poder.

Não é pouco o que está em jogo. O Chile enfrenta em melhores condições desafios que todos os países da região estão condenados a enfrentar. O que ali acontecer, de bom ou de ruim, terá efeitos na América Latina em geral e no Cone Sul em particular.

*Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do GACINT-USP


Sergio Fausto: O que nos ensina o drama argentino

Urge conter e mudar a dinâmica política que levou Bolsonaro ao poder e ele radicaliza

Os argentinos já viram este filme antes: o amargo regresso a um colapso econômico. Por que esse enredo se repete há pelo menos quatro décadas, abortando ciclos de crescimento relativamente curtos e reiterando a trajetória de declínio econômico daquela que há cem anos era, de longe, a nação mais rica e com a melhor educação pública de toda a América Latina? A resposta está num padrão de (des)governança que se estabeleceu no país vizinho ao longo da segunda metade do século 20.

Digo isso com desgosto. E com preocupação, porque vejo aqui sinais crescentes da enfermidade política que ali se desenvolveu. A doença consiste na politização das instituições do Estado e na polarização da sociedade em campos opostos e inconciliáveis. Na Argentina, com altos e baixos, ela evoluiu ininterruptamente a partir do primeiro governo de Juan Domingo Perón, deposto e exilado por um golpe militar em 1955.

É clichê tratar Getúlio Vargas e Perón como gêmeos siameses. Apesar de semelhanças, eles foram diferentes. Ambos lideraram e simbolizaram a incorporação de massas de trabalhadores urbanos na arena política e na esfera da cidadania regulada por um Estado tutelar. Mas Perón e o peronismo se estenderam muito além de Vargas e do varguismo. Não apenas no sentido óbvio de que o presidente argentino sobreviveu a seu homólogo brasileiro em mais de 20 anos, mas, principalmente, em termos da intensidade e duração dos efeitos políticos que provocaram.

O populismo peronista foi muito mais longe na mobilização política e sindical das massas a partir do Estado, na redistribuição da renda e na intervenção no campo da cultura (seja para exemplarmente franquear aos trabalhadores acesso a bens simbólicos, como o aristocrático Teatro Colón, seja para purgar as universidades públicas de professores não alinhados). Perón pôs o Estado a serviço da consolidação e tutela do movimento que o sustentaria como líder máximo. Foi deposto a balas e tiros de canhão e proscrito da vida política de seu país por quase 20 anos.

Em Vargas, o líder populista convivia com o político tradicional e o estadista republicano de inspiração positivista, preocupado com a administração “científica” e modernizadora do Estado. O varguismo não teve vida longa depois do suicídio de seu líder. O peronismo, nas suas mais diferentes versões, vive até hoje.

O primeiro período de Perón no poder e o golpe militar de 1955 produziram um racha profundo e duradouro na política, na sociedade e na cultura da Argentina. O embate entre peronistas e antiperonistas se fez à custa da independência e impessoalidade das instituições do Estado. A politização penetrou a burocracia civil, a magistratura, as Forças Armadas, a estrutura sindical corporativa, o empresariado e mesmo a Igreja Católica.

Corroeram-se assim as instâncias de mediação e os conflitos políticos ganharam características destrutivas. Os antiperonistas baniram Perón da vida política. Já os peronistas, mesmo alijados do poder, agiram para tornar inviáveis governos civis não peronistas, mesmo depois que Perón e o Partido Justicialista, criado por ele, recuperaram a legalidade, ao início dos anos 70.

Adensou-se uma cultura política do confronto, com altos níveis de violência, não apenas entre os campos opostos, mas também dentro do próprio peronismo, composto por diferentes grupos políticos e sindicais que não raro disputaram à bala a preferência do líder e a hegemonia do movimento. Tal espiral de violência culminou na mais brutal de todas as ditaduras latino-americanas, entre 1976 e 1983.

Apesar de certa sincronia nos ciclos políticos, a história brasileira da segunda metade do século 20 contrasta com a do país vizinho em pontos fundamentais: violência política incomparavelmente menor, mesmo durante o regime militar (1964-1985); maior neutralidade e independência das instituições do Estado (do Banco Central aos tribunais) em relação aos conflitos políticos e ao governo de turno; superior grau de profissionalização da burocracia civil e militar; fronteiras mais porosas entre grupos políticos facilitando o diálogo e a composição entre eles.

Um dos feitos da redemocratização brasileira foi ter ampliado a liberdade de expressão, participação e organização, numa sociedade muito desigual e violenta no seu cotidiano, sem ter produzido antagonismos políticos corrosivos da convivência democrática. Ao mesmo tempo, fortaleceu os mecanismos públicos de controle e fiscalização do poder político e econômico e das relações entre ambos. Comparativamente, na Argentina a redemocratização significou em boa medida a reiteração de um padrão destrutivo de competição política e de utilização das instituições do Estado para castigar adversários e premiar aliados. O resultado trágico dessa reiteração é a perda de confiança dos argentinos em seu próprio país. Sua expressão mais concreta é a preferência pelo dólar, agravada ao menor sinal de crise.

Temo que em algum momento a partir de 2014 a dinâmica da política brasileira tenha adquirido características típicas do país vizinho. Bolsonaro é produto desse fenômeno e o acentua deliberadamente. Ameaça levá-lo ao paroxismo ao sistematicamente insultar adversários, intimidar agentes públicos e afrontar instituições do Estado.

Estamos descendo um plano inclinado. Reformas que combinem eficiência econômica e equidade social são indispensáveis para mudar a trajetória do País. Há avanços nessa direção, mais por obra do Congresso e da sociedade que do governo.

É urgente conter e depois mudar a dinâmica política que levou Bolsonaro ao poder e que por ele é radicalizada. Que o drama histórico da Argentina nos sirva de alerta, antes que a destruição das bases da convivência democrática nos roube o futuro também. Por último, mas não menos importante, que a Argentina ainda possa recuperá-lo, vença quem vencer as eleições de outubro/novembro.

*Superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP


O Estado de S. Paulo: ‘Guerra ideológica não combina com recuperação econômica’, diz Sérgio Fausto

Para Sérgio Fausto, planos de Bolsonaro para 2022 exigem melhor conexão com o Congresso, avanço de outras reformas e atenção para o ‘pêndulo’ da política que tende a voltar a um centro-direita moderada

Sonia Racy, de O Estado de S. Paulo

A estratégia permanente de ataque aos inimigos, levada a cabo pelo governo Bolsonaro, não combina com recuperação da economia. É a partir desse raciocínio que o cientista político Sergio Fausto avalia os horizontes do atual governo, no momento em que ele emplaca seus primeiros 200 dias de vida. E sua conclusão é que chegou ao Planalto um grupo “desconjuntado administrativamente”, que deveria ir atrás de mais apoio político para avançar as reformas, “mas prefere focar no confronto ideológico, que certamente vai acabar cansando.

Esse modus operandi, adverte Fausto, pode não ter vida longa. “Primeiro, porque o que vai decidir mesmo o futuro do governo é a economia”. Segundo, no universo político “o pêndulo tende a voltar para um conservadorismo moderado, uma centro-direita sem radicalismos. É nesse cenário que as forças devem se organizar para a disputa presidencial de 2022”.

No comando da Fundação FHC – que é apartidária e se dedica a debates e seminários sobre democracia –, Fausto define agendas, convida estudiosos, faz a mediação dos eventos e atua como codiretor do projeto Plataforma Democrática. Nesta entrevista a Gabriel Manzano, Fausto analisa o novo cenário político – “o sistema anterior colapsou” –, o futuro da antiga bipolaridade PT-PSDB e lança um olhar para 2022. Sua conclusão é que Jair Bolsonaro, se pensa mesmo em reeleição, terá de “acompanhar o pêndulo”. A seguir, principais trechos da conversa.

Como avalia esses 200 dias do governo Bolsonaro?
É um governo que se formou a partir de grupos bastante heterogêneos, juntados no calor da campanha. Não é uma coalizão de forças produzida por uma longa maturação. Quem, afinal, está no poder? Um estamento militar, cuja figura maior é o general Augusto Heleno, outro de economistas liberais em torno de Paulo Guedes e um terceiro em torno do ministro Sergio Moro. Mas há um quarto, político, que expressa o movimento que de fato levou Bolsonaro à Presidência. Ele tem elementos de uma direita antiliberal, não convencional, juntando igrejas evangélicas, o olavobolsonarismo – que domina pelo menos metade da alma do presidente… mas tudo isso junto não tem um funcionamento orgânico, unificado.

E o resultado final disso é…
Que ele não conseguiu estabelecer, nem tentou, um relacionamento estável com o Congresso. É desconjuntado administrativamente. E sua marca política é o enfrentamento permanente em uma guerra político-ideológica.

Portanto eles precisam da esquerda nessa estratégia?
Precisam, sim, de inimigos. De um desafio diário para inflar a ideia de que eles representam uma ameaça. Não cabe mais dúvida de que isso é a forma deles de governar. Não é um projeto de País, é um projeto de poder.

Acha que a ideia poderá ser bem-sucedida?
Vou fazer aqui uma simplificação muito grande: vai depender do desempenho da economia. Temos uma longa recessão, uma recuperação muito lenta e uma multidão de desempregados. Ou o governo vira esse jogo ou sua popularidade começará a declinar. A reforma da Previdência é condição necessária, mas não suficiente. E a forma como o governo se conduz cria perturbações que dificultam a aprovação de outras reformas.

Ou seja, a estratégia pode virar-se contra eles.
Exato, ela é contraproducente. Guerra ideológica e combate permanente não combinam com recuperação da economia. Isso trará incertezas para o eventual projeto de segundo mandato do presidente.

O combate à corrupção é um elemento central no debate político mas ele está hoje às voltas com duras cobranças, pelo modo com juízes e promotores atuam e atuaram. Como isso influi no cenário?
Temos aqui um enorme dilema para quem, como eu, adota uma repulsa moral contra a corrupção mas ao mesmo tempo tem apreço pelo Estado de Direito, pelo devido processo legal. Qual o dilema? É que as revelações trazidas à luz pelo The Intercept – que, é claro, precisam ser periciadas – não foram desmentidas cabalmente. E elas apontam a ultrapassagem de certos limites por promotores e por Sergio Moro.

O Supremo pode dar uma saída satisfatória para isso?
Sim, o importante é que a decisão do Supremo no caso possa clarear os limites no combate à corrupção – mas sem desmontar os resultados da Lava Jato. Tem de ser uma intervenção exemplar mas cirúrgica, aqui e ali. A meu ver elas seriam absorvidas pela sociedade.

A turbulência desses primeiros seis meses de governo coincide com um difuso quadro partidário, com uma direita ativa mas dividida, PT e PSDB enfraquecidos. Isso aponta para o quê?
O sistema anterior colapsou. Não tem volta. Entre 1994 e 2014 houve uma polarização que definiu a política brasileira entre PT e PSDB. Acho que essa página virou. Nos Estados, o sistema partidário se fragmentou enormemente e entrou num processo gradual que, agora, levará à condensação. A regra da cláusula de barreira já está valendo, ela cresce em 2020 e 2022, acabou a possibilidade de coligações nas eleições proporcionais.

E qual é o quadro que sai dessas novidades?
Uma fusão entre partidos. Não serão só 5 ou 6, mas serão muito menos que os 32 de hoje. E eles atuarão nesse novo cenário, mais ao centro. Vejo nisso dois fenômenos. Primeiro, não acho que o governo Bolsonaro tenha capacidade política de orquestrar um avanço mais substantivo de reformas no País. E sem esse avanço a economia melhorará mas não o suficiente para que ele se consolide como a figura central dessa reacomodação, onde pode perder o apoio dos conservadores moderados.

O sr. não tem militância partidária mas tem estado próximo de lideranças históricas do PSDB. O partido vive uma transição ainda difusa. Como vê o futuro tucano?
Acho que aconteceram dois processos simultâneos. Primeiro, já mencionado, o terreno sobre o qual se assentava o PSDB deslocou-se um pouco para a direita. E, digamos, a velha guarda peessedebista teve dificuldades de acompanhar esse movimento. Por convicção e trajetória, era uma liderança do centro para a esquerda. A realidade foi para a direita mas a alma do partido não foi, não conseguia nem podia ir – pois tinha suas convicções. Não era oportunista, das que se ajustam ao que aparecer. Não fez oposição forte ao PT e perdeu o espaço à direita.

Isso já estava presente na disputa com o lulismo.
O que vou dizer aqui não é um julgamento, mas uma constatação. Não é possível imaginar que Geraldo Alckmin, José Serra, mesmo Fernando Henrique Cardoso, pudessem fazer o que João Doria fez no segundo turno de 2018. Doria é uma figura mais afeita a este momento da sociedade brasileira. E teve a habilidade de vencer uma eleição em São Paulo contra a máquina do partido.

Sim, foi uma vitória pessoal.
E isso lhe deu capital político para passar a ser a figura central, a liderança mais decisiva do PSDB. A sociedade foi para a direita e ele junto. Me parece que ele está querendo agora fazer um balanceamento para 2022 jogando as fichas mais no centro do que na direita. Basta olhar o secretariado dele, não é um agrupamento de direita. Cautelosamente, procura se diferenciar de Bolsonaro, sem a sua agressividade.

Esse casamento com ideias liberais já funcionou com FHC.
Exato. Era uma agenda ao mesmo tempo de expansão do SUS, expansão do ensino fundamental, mas de concessões e privatizações também. Um casamento tropical entre direita, uma centro-direita liberal e a social-democracia. Quando a sociedade virou à direita, o terreno intermediário se esvaiu. Aí ocorreu o envelhecimento de uma geração de políticos que não foi substituída por outra de igual envergadura.

A saída do PSDB é recuperar o eleitorado perdido ou abrir novos caminhos?
Creio que, daqui pra frente, tudo é novo, tem de ser novo. Não dá pra olhar o futuro com as lentes do passado. O jogo mudou. O PSDB que se esboça agora é um PSDB do centro para a direita. Uma hipótese no horizonte, mas que ainda é muito cedo para visualizar, seria o crescimento do nome do Luciano Huck. Ele poderia juntar forças de centro-esquerda hoje muito dispersas. Essa é talvez a grande interrogação para 2022: se aparece uma candidatura capaz de empolgar essa faixa eleitoral da centro-esquerda.


Sergio Fausto: Resquícios quentes da guerra fria

O PT propiciou à ultradireita a chance de ressuscitar a ‘ameaça comunista’

Em palestra recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, o general de exército Sérgio Etchegoyen, hoje na reserva, ressaltou a importância de superarmos em definitivo o enquadramento ideológico típico da guerra fria. Em termos simplificados, este se caracterizou pela polarização entre o Ocidente cristão, capitalista e parcialmente democrático, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, ateu e totalitário, sob a hegemonia da União Soviética. Adoto propositalmente os termos da época para ilustrar o denso caldo ideológico em que o mundo e o Brasil estavam mergulhados.

A observação do general Etchegoyen é espantosamente oportuna. Custa a crer que 30 anos após a queda do Muro de Berlim tenha não apenas sobrevivido, mas recobrado força entre nós o modelo mental que caracterizou a guerra fria.

O bolsonarismo reavivou o fantasma da comunização do País para conquistar corações e mentes pela manipulação de medos, ainda que imaginários. Culpar o bolsonarismo pode confortar o espírito, mas não explica por que a estratégia funcionou. A verdade é que o PT propiciou à ultradireita a possibilidade de ressuscitar a “ameaça comunista”. Mesmo com a Venezuela chavista e a presença cubana no país vizinho, ela teria caído no vazio não fossem a ambiguidade ideológica do PT e as simpatias de seus governos pelos de Chávez-Maduro e dos irmãos Castro. Não apenas o partido facilitou a retórica bolsonarista, como também a mimetizou, ao acusar a Operação Lava Jato de estar a serviço do imperialismo norte-americano.

Com o colapso da economia venezuelana e a perda de influência do chavismo na região, a verossimilhança da suposta ameaça comunista está em rápida decomposição.

Como não pode prescindir da produção de medos, há outra ameaça em ascensão no arsenal do bolsonarismo: a perda da soberania nacional pela suposta ação sub-reptícia de ONGs que, a pretexto de defender o meio ambiente, atuariam como instrumento de potências estrangeiras interessadas em explorar os recursos naturais do Brasil. Muda o conteúdo, mas o modelo mental é exatamente o mesmo: interesses antagônicos ao Brasil agem por intermédio de organizações de fachada para tolher ou suprimir os verdadeiros interesses nacionais.

Teorias da conspiração tinham maior aderência à realidade geopolítica da guerra fria do que à do mundo contemporâneo, embora mesmo naquela época se prestassem a exageros e servissem à justificação de intervenções militares e derrubadas de presidentes eleitos. Se antes tinham um pé na realidade, agora as teorias da conspiração flutuam ao sabor da paranoia e da desinformação manipulada politicamente.

A suposição de que as ONGs ambientalistas de hoje sejam como os Partidos Comunistas de ontem e obedeçam ao comando de governos estrangeiros é sintoma de que ainda sobrevivem modelos mentais que deveriam ter sido ajustados à nova realidade do Brasil e do mundo há pelo menos 30 anos. Revela, além disso, incompreensão da dinâmica de sociedades abertas e democráticas num mundo cada vez mais integrado. Não é demais lembrar que foi Vladimir Putin que começou a moda de perseguir as ONGs que denunciavam a deriva autoritária de seu regime.

As ONGs não são os únicos nem necessariamente os melhores representantes das causas que advogam, como por vezes se arvoram. Mas tampouco são correias de transmissão de governos e Estados nacionais. São produto da busca da sociedade civil por um espaço de relativa autonomia diante do Estado e do mercado. ONGs globais têm conflitos com governos e empresas em seus países de origem, assim como nos países onde atuam por intermédio de suas representações locais. Conflitam, mas também cooperam, na concepção e implementação de políticas públicas. São especialmente atuantes na área do meio ambiente, por motivos nada misteriosos: nela estão em jogo questões globais, em especial a mudança do clima do planeta, uma preocupação de todos, em particular das gerações mais jovens.

Interpretar essa nova realidade nos moldes da guerra fria é de um anacronismo atroz e perigoso. Sem arranhar a sua soberania, o Brasil tem muito a ganhar num jogo de soma positiva com as ONGs ambientalistas, convergindo no essencial, ainda que eventualmente divergindo em pontos específicos, assim como bastante a perder num jogo de antagonismo sistemático que fornecerá razões ou puros pretextos para a imposição de barreiras protecionistas às exportações do nosso agronegócio.

Exemplo extremo da paranoia em relação às ONGs ambientais pode ser encontrado em livro editado pela ultradireitista Tradição Família e Propriedade (TFP), intitulado Psicose Ambientalista. Nele o autor, Bertrand de Orleans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, sustenta que o ambientalismo nada mais é do que a reencarnação, sob novas vestes, verdes e não mais vermelhas, da ameaça comunista.

Que um extravagante reacionário sustente essa tese estapafúrdia é irrelevante. Outra coisa é o presidente da República citar o título do referido livro para descrever depreciativamente a preocupação do mundo com a Amazônia em encontro com Merkel e Macron, como fez Bolsonaro em reunião recente do G-20. Ainda mais quando secundado pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, militar de prestígio e principal ministro do governo, que em conversa com jornalistas, depois de mandar lideranças europeias “procurarem sua turma”, repetiu o surrado argumento de que as ONGs ambientalistas são pontas de lança de países estrangeiros interessados em bloquear o desenvolvimento do Brasil.

Tem razão o general Etchegoyen: está mesmo mais do que na hora de superar a mentalidade da guerra fria.

*Superintendente executivo da fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP


Sergio Fausto: A viagem ideológica de Bolsonaro

Aqui como lá são estigmatizados os gays, as feministas e os demais ‘ativismos’...

O Itamaraty prepara viagem do presidente aos três países europeus de sua predileção: Hungria, Itália e Polônia. O périplo pela troika do nacionalismo xenófobo e politicamente antiliberal no velho continente atende a agenda ideológica de Bolsonaro, a mesma de seus filhos e do ministro das Relações Exteriores, expoentes do olavo-bolsonarismo no interior do governo.

Em seu discurso de posse, Ernesto Araújo destacou os três países como exemplos de sã afirmação da nacionalidade num mundo supostamente ameaçado pelo “globalismo”. Omitiu deliberadamente o fato de que na Hungria e na Polônia a “afirmação da nacionalidade” se faz à custa da democracia liberal. Contra ambos os países a União Europeia acionou em julho passado, por deliberação da maioria do seu Parlamento, o artigo 7 do Tratado de Lisboa, que prevê punições a países-membros que violem a liberdade de expressão, o direito das minorias e a independência do Judiciário.

Na Itália, onde a direita antiliberal e xenófoba não governa sozinha, ainda não há danos visíveis à democracia. Mas a Liga Norte é a força política em ascensão. Seu líder, o vice-premiê e ministro do interior Matteo Salvini, homem forte do governo de coalizão, embora não reivindique explicitamente o legado do fascismo, com frequência invoca Mussolini em atos e palavras.

No aniversário do Duce, ano passado, Salvini escreveu um tuíte repetindo frase famosa do líder fascista, com pequena variação vocabular: “tanti (molti) nemici, tanto (molto) onore”.

Os inimigos de Salvini são os mesmos de Viktor Orbán, o premiê húngaro, e de Lech Kaczynski, líder maior do partido Lei e Justiça, na Polônia. Nesse grupo estão todos os que colocam obstáculos ao projeto que compartem com a francesa Marine Le Pen. Eles querem rebobinar a fita da História para devolver seus países a um passado idealizado, jamais existente, em que Estados-nação europeus abrigavam populações homogeneamente brancas, cristãs, heterossexuais, regidas por uma clara hierarquia de gênero, com homens dominantes à testa do Estado e das famílias e mulheres submissas limitadas ao lar.

Ao apelo nostálgico a direita xenófoba agrega um elemento do repertório democrático (o princípio da soberania popular na eleição direta do chefe do governo e da maioria parlamentar), dispensando-os, porém, de respeitar o sistema de freios e contrapesos, as liberdades fundamentais e os direitos das minorias. Eis o tal oxímoro chamado “democracia iliberal”.

A besta-fera de Orbán & Cia. são os imigrantes muçulmanos do Oriente Médio e do Norte da África. No caso da Hungria, observa-se também um traço antissemita, perceptível na demonização de George Soros. A Europa é terreno fértil para o sucesso de uma política que reduz os imigrantes e a imigração islâmicos à condição de ameaça à segurança pública e à civilização europeia: a proximidade geográfica das regiões de origem, a problemática integração de comunidades de imigrantes às sociedades locais, a ocorrência de atentados terroristas perpetrados por islamitas radicais, a ausência de uma política europeia coordenada em relação à imigração, a redução do tamanho das populações de origem europeia.

No Brasil, o olavo-bolsonarismo opera com lógica política semelhante. Identifica alvos que poriam em perigo a pátria, a família e os valores tradicionais. À falta dos imigrantes, a extrema-direita brasileira encontrou no “marxismo cultural” e nos “corruptos” categorias abrangentes e elásticas para alvejar seus inimigos, incluída a centro-direita liberal. As Forças Armadas não têm escapado a esse enquadramento paranoide da realidade. Aqui como lá, são estigmatizados preferencialmente os gays, as feministas, os movimentos LGBT e os demais “ativismos” da sociedade civil, com exceção dos que têm base cristã.

Se pudesse, o olavo-bolsonarismo não hesitaria em mobilizar dois cabos e um soldado para ferir de morte o sistema de pesos e contrapesos e sufocar as garantias das liberdades democráticas e dos direitos das minorias. A questão é saber se podem fazer o que querem. Em princípio, a resposta é não, por mais de uma razão.

Polônia e Hungria são Repúblicas unitárias, em que o poder se enfeixa no governo central. O Brasil é uma federação, em que o poder se dispersa pelos diferentes níveis de governo. Aqueles são países parlamentaristas, onde o poder se concentra na Câmara. Aqui ele se divide entre o Executivo e o Legislativo, este com Câmara e Senado. O Fidezs, partido de Viktor Orbán, detém a maioria absoluta no Parlamento húngaro, assim como o partido Lei e Justiça, na Polônia. São duas agremiações bem estruturadas, com alguma história na bagagem. O PSL é um ajuntamento de última hora que conquistou pouco mais de 10% da Câmara e menos de 5% do Senado.

A Constituição brasileira incluiu a separação dos Poderes, os direitos e as garantias fundamentais entre as cláusulas pétreas e confere poderes ao Supremo Tribunal para resguardá-las. Na sua ofensiva antiliberal o Fidezs e o Lei e Justiça não encontraram barreiras constitucionais de igual porte.

Hungria e Polônia vêm crescendo a taxas médias superiores a 3% nos últimos quatro anos, com o desemprego em níveis historicamente baixos. O Brasil ainda está às voltas com a pior crise e a mais lenta recuperação econômica de sua História e o olavo-bolsonarismo é parte do problema, não da solução.

Significa que não há razões para nos preocuparmos? Longe disso. Se a crise se agravar, com colapso das finanças públicas, desorganização dos serviços prestados por Estados e municípios, greves de servidores, policiais militares incluídos, e inquietação nos escalões de baixo das Forças Armadas, aumentará o risco de um curto-circuito institucional. O olavo-bolsonarismo joga as suas fichas nesse cenário. Cabe às forças responsáveis do País, civis e militares, evitar que ele se consuma.

* Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University e membro do Gacint-USP