Sergio Amaral

Sérgio Amaral: O que restará do trumpismo?

Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente

Em 3 de novembro, Donald Trump perdeu a eleição para a Presidência dos Estados Unidos e os republicanos foram vencidos na Câmara dos Representantes. Na Geórgia, mais recentemente, os democratas conquistaram a maioria no Senado. As vitórias eleitorais dos democratas propiciam a Joe Biden uma base sólida para a execução de um ambicioso programa de governo, tanto no plano interno quanto no internacional.

No dia 6 de janeiro, Trump sofreu uma segunda derrota, desta vez em seu próprio partido, pela decisão de algumas de suas principais lideranças, como o vice, Mike Pence, e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em aprovar a certificação dos delegados eleitos para o Colégio Eleitoral, como é legal e de praxe, ao contrário do que pretendia o presidente.

A ocupação do Capitólio, ostensivamente incentivada por Trump e membros de sua família, provocou o repúdio da opinião pública, por representar um atentado ao maior símbolo da democracia americana. E, como se não bastasse, mídias sociais decidiram suspender o acesso do presidente a suas plataformas, sob a alegação de incentivo à violência. Ainda que os motivos possam ser louváveis, não deixa de ser insólito que uma empresa privada possa censurar o presidente de um Estado.

Trump deixa a Casa Branca abatido e desmoralizado. As próximas pesquisas de opinião poderão estimar quantos na sociedade, e especialmente em seu próprio partido, deixaram de apoiá-lo. Diante desse cenário incerto e turbulento, resta saber o que ocorrerá com Partido Republicano e com o trumpismo no novo capítulo político que se inicia com a posse de Biden.

Lideranças republicanas já vinham manifestando seu incômodo com o casamento de conveniência entre o seu partido e o presidente. Martin Wolf, respeitado colunista do “Financial Times”, já havia condenado, de modo incisivo, o que chamou de pacto faustiano entre a plutocracia de Wall Street e Trump, pelo qual o Partido Republicano cede sua estrutura política ao presidente em troca das isenções na reforma tributária.

A temporada da luta interna no Partido Republicano está aberta. Alguns dos principais apoiadores de Trump já se transformaram em seus algozes. O que restará do trumpismo, até há pouco percebido como a principal força conservadora para a eleição de 2024? Ao longo de todo o mandato, a aprovação de Trump oscilou entre 37% e 42% do eleitorado.

Como manter esse capital político sem a caneta de presidente e sem os comícios que organizava quase todos os meses, em diferentes regiões do país? Alguns parlamentares republicanos que até há pouco se vangloriavam da proximidade com o presidente e buscavam tirar proveito eleitoral de sua transformação em “representantes da classe operária” agora se dissociam de Trump em público.

Qual o impacto das derrotas de Trump sobre os seus os seguidores pelo mundo? É bom ter presente que o trumpismo não se limita às maquinações de um líder carismático, por vezes desequilibrado, para ganhar as eleições, como fez em 2016. Na verdade, desde o início de seu ingresso na política, o presidente republicano se apresentou como o porta-voz de um movimento mundial, o populismo nacionalista, contra a globalização e o “globalismo”, em defesa da hegemonia americana (“America First”), que amealhou adeptos em várias partes do mundo, especialmente na Europa e inclusive no Brasil.

Hoje parece anedótico, mas foi real o projeto patrocinado por Steve Bannon, o guru de Trump, ao deixar a Casa Branca, para fundar uma escola de quadros, num convento medieval na pequena Trisulti, no centro da Itália, com o objetivo de formar os cruzados do século XXI. Professores chegaram a ser selecionados, entre os quais alguns brasileiros.

Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente. Se é verdade que o Brexit venceu, também é certo que as hesitações britânicas em relação à União Europeia são históricas. O Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha avançaram, mas hoje parecem estacionados ou mesmo em refluxo. Na Áustria, Holanda e Itália, diferentes modalidades de populismo também recuam, diante da percepção de que movimentos sociais podem eleger ou ajudar a eleger candidatos, mas enfrentam sérios desafios para governar diante da ausência de uma estrutura partidária. Hungria e Polônia parecem ser a exceção que confirma a regra.

E o Brasil? Bolsonaro e Trump apresentam semelhanças notáveis. O carisma, a capacidade de comunicação, a competente utilização das mídias sociais, a aversão aos partidos e à imprensa. Certas condições em ambos os países também registram coincidências, como a persistência do racismo estrutural e da desigualdade. Nos dois casos, o compromisso com a democracia mostrou-se enraizado nas forças da sociedade, nas instituições e no estamento militar.

Um dos equívocos da recente campanha de Trump foi o de buscar repetir os temas e as táticas eleitorais de 2016, sem levar em conta uma das máximas da política: a história não se repete, o que na primeira vez é drama, um enredo sério, na segunda vez é uma farsa, como foi efetivamente a campanha republicana em 2020.

Em nossos dias, as mídias sociais estão sob suspeição, a mentira cansou e a radicalização é percebida como destruição, sem nada construir. No Brasil, as eleições do ano passado, ainda que municipais, emitiram alguns sinais para 2022, ao priorizar a reeleição de administradores experimentados, trazer de volta a centralidade dos partidos políticos, em detrimento das mídias sociais, a moderação nos debates e a objetividade das propostas.

*Sergio Amaral, ex-professor de ciência política na Universidade de Brasília, foi embaixador em Washington


Sergio Amaral: Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar

O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional

As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.

Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.

Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.

O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.

A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:

1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.

2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.

3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.

4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.

No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.

*Conselheiro de Felsberg e advogados, foi secretário executivo do ministério do Meio Ambiente e da Amazônia


Sergio Amaral: Persiste a incerteza nas eleições americanas

Não se exclui a hipótese de os democratas levarem a Casa Branca, a Câmara e o Senado

Uma das características da campanha eleitoral nos Estados Unidos foi a radicalização do jogo político; outra, a estabilidade das sondagens de opinião. Uma está associada à outra. Desde o início da campanha, a vantagem de Joe Biden sobre Donald Trump oscilou entre 7% e 12%. Fatos políticos relevantes, como a expansão descontrolada da covid-19, a queda na economia, demonstrações artirracistas e mesmo um marketing por vezes extravagante de Trump não lograram alterar esses limites. Uma das razões é que o candidato republicano, ao longo de seu governo, já havia consolidado o apoio de seu eleitorado cativo num patamar entre 37% e 42%. Na campanha, não conseguiu avançar em direção ao centro da cena política.

Não obstante a estabilidade dos números, persiste a incerteza quanto ao resultado. A provável vantagem de Biden no voto direto nacional será suficiente para assegurar a maioria no colégio eleitoral? Não necessariamente, pois esse colegiado é regido por regras que tendem a favorecer um candidato republicano. Vamos supor que Biden ganhe os votos no cômputo nacional e no colégio eleitoral. Trump aceitará o resultado? Em seus comícios, o candidato republicano tem insistido na acusação de que as eleições serão fraudadas e em momento algum assumiu o compromisso de respeitar os seus resultados. Poderá questionar a votação em alguns Estados e levar o contencioso à Suprema Corte, que em 2000, em condições semelhantes, deu ganho a George W. Bush, em detrimento de Al Gore.

De outro lado, não está excluída a hipótese de os democratas, além da vitória na Casa Branca, ganharem a Câmara dos Representantes – o que é provável – e o Senado, o que é possível. Biden teria, nessa hipótese, poderes suficientes para implementar um ambicioso programa de governo. Mas aceitaria decisões da Suprema Corte, hoje ainda mais republicana do que antes, que condenem o Obamacare ou rejeitem a legislação sobre o aborto?

A radicalização política e possíveis conflitos institucionais daí decorrentes sinalizam que as eleições de 2020 são mais do que a corriqueira escolha de um presidente ou a renovação do Parlamento. Na verdade, elas implicam uma opção entre duas visões de sociedade. Depois de quase quatro anos de governo, as políticas de Trump são claras. As ideias de Biden são menos conhecidas e suas políticas poderão ser bastante diferentes. É bom ter presente que, caso vença as eleições, entre os vitoriosos estará Bernie Sanders e sua corrente de militantes por um Green New Deal, que retoma políticas de Franklin Roosevelt por maior participação do Estado no estímulo à economia e na construção de uma rede de proteção social. E acrescenta um compromisso com o meio ambiente e as mudanças climáticas.

Embora Biden, um político conservador, não tenha endossado posturas mais radicais de Sanders, já se comprometeu com uma expansão do Obamacare, com a redução das desigualdades, com o combate ao racismo – que reconhece ser sistêmico – e com a transição de uma energia fóssil para outra, baseada em fontes renováveis. No plano externo, o programa de Biden também se diferencia do de Trump.

A prioridade será ambiental e sua primeira medida, afirmou em artigo para a revista Foreign Affairs, será o retorno ao Acordo de Paris. Sua política externa espelhará as prioridades internas, como a convergência, em vez da divergência. No lugar de sanções, reforçará o multilateralismo, e promoverá a restauração de alianças tradicionais, a começar pela Europa, com qual pretende construir uma frente para combater os desvios comerciais da China.

Vale ressaltar a coincidência entre um possível governo Biden com a Europa na questão ambiental. A Comissão Europeia acaba de lançar o projeto de uma Retomada Verde, que prevê a utilização de 750 bilhões de euros do Fundo de Recuperação em projetos que estimulem a economia verde e se disseminem, como uma mancha verde, na ciência e tecnologia, na educação e cultura, na arquitetura e mesmo na estética de um novo Bauhaus.

O compromisso de Biden com a causa ambiental não significa que adote deliberadamente iniciativas contra o Brasil. As relações entre nossos países são tradicionais e sólidas. Estive com Biden algumas vezes. Ele conhece bem a América Latina e gosta do Brasil. Mas isso não impedirá que uma militância ambientalista e aguerrida venha a exercer pressão sobre a opinião pública e o Congresso por medidas concretas para diminuir o desflorestamento na Amazônia.

Vale lembrar que Europa e Estados Unidos são mercados prioritários para o exportador brasileiro. Se a esse grupo adicionarmos a China, com quem temos estimulado ruídos recorrentes e desnecessários, esses três mercados representam cerca de 65% das exportações do Brasil.

Além disso, a eventual saída de Trump da Casa Branca representará um abalo para o eixo político-ideológico que lhe dá sustentação, assim como para seus seguidores mais próximos, na Polônia, na Hungria e em alguns outros países, entre os quais o Brasil.

*Conselheiro de Felsberg e Associados, foi embaixador do Brasil em Washington


Sergio Amaral: A agenda global pós-covid-19

Tópicos prioritários: Estado, neopopulismo, desigualdade, bem comum e solidariedade

Alguns países já estão saindo da covid-19. Outros, como nós, estão apenas entrando. O número de óbitos e a destruição de riqueza são assustadores. Enquanto não houver uma vacina para impedir o contágio ou um remédio para curar a enfermidade, permaneceremos na incerteza. Não existe ainda uma luz no fim do túnel.

A crise do coronavírus não traz necessariamente fatos novos, mas acelera processos de mudança em curso, que apontam para um novo cenário global e uma nova agenda, que deverá incluir cinco tópicos prioritários: o Estado, o neopopulismo, a desigualdade, o bem comum e a solidariedade.

O pêndulo da História está-se movendo de um ponto de mais globalização e menos Estado para outro de menos globalização e mais Estado. Isso não quer dizer que globalização volte para trás, mas que o Estado será chamado a disciplinar os seus excessos e a assumir novas responsabilidades. Há vários sinais nesse sentido.

A própria pandemia mostrou que os governos terão um papel mais ativo nos serviços de saúde. Na economia, a crescente rejeição ao estrangeiro, sob a forma de bens ou imigrantes, levou à intervenção do Estado, quer sob a forma do protecionismo comercial, quer pelo bloqueio da imigração. Em vários países, como no Chile, expressivas demonstrações de rua clamaram por mais participação do governo na previdência social, na saúde, na educação e, por vezes, na própria indução ao desenvolvimento. Por fim, o Brexit mostrou a resistência do Estado nacional diante da transferência de poderes para um ente supranacional.

O neopopulismo tornou-se um ingrediente corrosivo da democracia. Governantes e partidos políticos não souberam entender, assim como dar uma resposta apropriada e tempestiva aos profundos deslocamentos provocados pela globalização. Sem ter a quem recorrer, a população buscou em líderes populistas as respostas simples, por vezes falsas, para problemas complexos, mediante uma comunicação com as mídias sociais. Mas, se é possível eleger-se por meios digitais, é impossível governar sem os partidos políticos, sem a conciliação de interesses e articulação política que lhes são próprias.

As transformações proporcionadas pela globalização trouxeram, é verdade, progresso e prosperidade. Mas acentuaram a distância entre segmentos sociais, assim como entre nações ricas e pobres. A crise do coronavírus explicitou a correlação entre pobreza e contágio. Nos Estados Unidos, o salário real das classes médias manteve-se estagnado desde a década de 1970. As pesquisas de Thomas Piketty, nos arquivos fiscais na França, revelaram que a desigualdade ao início do século atual é comparável à que existia em princípio do século 19. Ou seja, em mais de dois séculos não se havia alterado a distribuição da riqueza entre os mais pobres e os mais ricos.

O presidente Emmanuel Macron, em entrevista recente ao Financial Times, distinguiu, na nova ordem em gestação, duas esferas distintas. Uma é a da articulação entre os Estados em temas interdependentes, como saúde, educação, mudanças climáticas, segurança, que chamou de bens comuns da humanidade. Esses temas serão objeto da cooperação entre os Estados, no âmbito de um sistema multilateral revitalizado. A outra esfera se refere ao exercício da soberania e reflete a volta do Estado nacional e da geopolítica, assim como à disputa hegemônica, em vários campos, entre Estados Unidos e China. Por isso defende o fortalecimento da soberania europeia, especialmente em agricultura, em indústria de ponta e tecnologia.

Por fim, como uma nota positiva, a nova agenda poderá trazer de volta a solidariedade para com o sofrimento e o desemprego, agravados pela pandemia. É crucial que a generosidade seja canalizada para efetivos programas sociais, e não se esgote em compaixão e filantropia apenas.

Resta uma pergunta central: como tais demandas ou aspirações, algumas ainda embrionárias, poderão plasmar a reorganização do mundo pós-covid-19?

Os olhos voltam-se naturalmente para as Nações Unidas. As circunstâncias, entretanto, não são propícias para replicar a experiência de êxito da ONU. Não existe uma coalização de países, como a que se formou após a 2.ª Guerra Mundial, sob a liderança de Washington. Tampouco existe uma visão de mundo compartilhada, nem mesmo para a reforma do sistema atual.

Ao contrário, as duas grandes potências parecem movidas por um disputa hegemônica em torno de dois propósitos, por enquanto irreconciliáveis : a China busca o reconhecimento de sua emergência econômica e tecnológica; os Estados Unidos, pelo menos sob Donald Trump, mostram-se determinados a conter essa emergência.

O novo momento sinaliza, assim, uma tensão entre uma cooperação multilateral voltada para temas de interesse comum e interdependente e o eixo bilateral da disputa de poder entre as duas grandes potencias. A questão está em saber em que medida o eixo hegemônico bilateral abrirá espaço para a consolidação da cooperação multilateral.

*Embaixador, Conselheiro de Felsberg e advogados


Sergio Amaral: O Irã e os conflitos da diplomacia de Trump

Dificilmente haverá uma escalada milita EUA-Irã, mas tampouco um roteiro para a paz

Nos três anos iniciais de seu mandato, Donald Trump abriu várias frentes de negociação ou de conflito, com adversários e aliados, no afã de promover a revisão de uma ordem internacional que, embora concebida pelos Estados Unidos, começava a ser percebida por assessores como contrária aos interesses americanos. Fiel a seu estilo, Trump ameaça primeiro, adota sanções em seguida, para então denunciar acordos ou chamar os interlocutores à mesa de negociação, sempre bilateral.

As sanções econômicas tornaram-se um componente habitual da diplomacia, tanto que a unidade do Departamento do Tesouro que as desenhava e implementava foi transferida para o Departamento de Estado. Seu escopo foi ampliado, pois o alvo não é mais apenas um país, mas também seus parceiros comerciais ou financeiros (sanções secundárias).

Na Rússia, um dos oligarcas bilionários e próximos de Putin foi obrigado a abandonar a gestão de sua empresa para evitar a falência. Na Europa, membros da Otan foram induzidos a aumentar sua contribuição ao orçamento comum de defesa. Alguns países, como a Alemanha, foram ameaçados de aumento das tarifas de importação no setor automobilístico se não abandonassem o projeto do gasoduto Nord Stream, que levará gás russo aos consumidores alemães. Em alguns casos, as sanções nada tiveram que ver com disputas econômicas, como a penalidade imposta à Turquia para que libertasse um missionário americano. Ou as ameaças ao México por não restringir com mais rigor a passagem dos migrantes centro-americanos por seu território, a caminho dos Estados Unidos. E assim por diante.

Com a exceção do acordo comercial com a Coreia do Sul e da atualização do Nafta – dois arranjos comerciais limitados –, as negociações iniciadas pelo presidente norte-americano alcançaram êxito modesto, a despeito de sua conhecida habilidade de apregoar vitórias. Na maioria dos casos os entendimentos foram suspensos por um impasse, como na Europa; ou por uma trégua, como é o caso da China. Os resultados, até agora, não compensaram o desgaste à imagem dos Estados Unidos provocado pela adoção sistemática de medidas unilaterais.

Entre as negociações em curso, destacam-se duas, por sua relevância estratégica: a Coreia do Norte e o Irã. A primeira representa uma ameaça a Washington, pela suposta capacidade de Kim Jong-un de atingir o território norte-americano com um míssil balístico intercontinental, portador de ogiva nuclear. Apesar de Trump exaltar as conquistas de suas conversas com Kim, o fato é que não conseguiu extrair do líder norte-coreano um só compromisso para o início da desnuclearização. Os dois presidentes alcançaram unicamente a suspensão dos testes dos mísseis coreanos e dos exercícios militares norte-americanos. Esta frágil trégua, no entanto, está ameaçada por declaração recente de Kim de que poderá retomar os testes de mísseis intercontinentais se não forem reduzidas as sanções contra seu país.

O Irã não representa uma ameaça militar ao território americano, mas traz sério risco de uma conflagração, proposital ou acidental, no Oriente Médio. A história das relações entre EUA e Irã compõe um cenário de desconfianças, hostilidades, conflitos localizados ou por grupos interpostos, que já dura há várias décadas. Em 2013, o acordo de salvaguardas nucleares permitiu que, pela primeira vez, EUA e Irã se sentassem à mesa de negociação para celebrar um entendimento e assim pavimentar o caminho para a estabilização na região.

Ao assumir o governo, em 2018, contudo, Trump denunciou unilateralmente o tratado, sob o argumento de que suas cláusulas eram insuficientes, reintroduziu sanções e se ofereceu para negociar um novo instrumento, mais abrangente e rigoroso, o que Teerã se recusou a fazer. Mais recentemente, a morte de um contratante americano e as demonstrações e ameaças em frente da embaixada americana em Bagdá podem ter precipitado o atentado ao general Suleimani. Certamente, porém, haverá outras razões para essa decisão arriscada.

Ao início do governo, Trump delegou a Jared Kushner, seu genro, assessor de confiança e uma liderança na comunidade judaica americana, a missão de preparar um plano de paz para o Oriente Médio. Esse plano foi anunciado diversas vezes, mas nunca apresentado. Possivelmente uma das razões para o adiamento sucessivo do plano foi a de que, na prática, o plano já estava sendo executado, pela transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém; pelo corte da ajuda aos palestinos; pela divisão no mundo árabe/muçulmano, pela qual um grupo de países, como a Arábia Saudita e os Emirados, já vinha tecendo uma estreita cooperação econômica com Israel; pela benevolência para com a colonização dos territórios ocupados. Tais políticas jamais seriam aceitas por setores do mundo muçulmano mais próximos de Teerã. O Irã é um “trouble maker”, um adversário dos Estados Unidos e um obstáculo à paz no Oriente Médio, disse-me certa vez o coordenador da política americana para o Irã.

Passados alguns dias do atentado a Suleimani e do clamor que provocou, os dois lados, junto com a ameaça de represálias recíprocas, começam a emitir sinais apaziguadores. Na verdade, nenhum deles tem interesse na agravação do conflito e numa eventual escalada militar. O Irã está ciente da superioridade militar dos Estados Unidos e da ameaça que essa superioridade representa para a sua própria sobrevivência. Trump tem presente que o atentado a Suleimani, num primeiro momento, poderá unir boa parte da sociedade norte-americana. Uma guerra, no entanto, seria um desastre eleitoral.

Dificilmente haverá uma escalada militar entre Estados Unidos e Irã, mas tampouco haverá um roteiro para a paz. O atentado a Suleimani reacende desconfianças e hostilidades e continuará a alimentar conflitos localizados e ataques terroristas.

*Ex-embaixador do brasil em Washington