Samba

RPD || Henrique Brandão: Salve o eterno Zé Kéti!

Zé Kéti encantou o país com obras que se destacaram  pelo combate ao preconceito e a desigualdade

Há 100 anos, em 16 de setembro de 1921, nascia em Inhaúma, bairro da cidade do Rio de Janeiro, José Flores de Jesus, um dos maiores sambistas que o Brasil já teve. Seu nome artístico? Zé Kéti. Lamentavelmente, foram escassas as alusões a seu centenário: a grande imprensa deu pouca repercussão à data, e, nas redes sociais, o tema teve baixo “engajamento”. 

Zé Kéti foi um artista excepcional. Sua obra é conhecida e reverenciada por todos os grandes sambistas do país. Melodista de mão cheia, autor de belíssimos sambas – alguns de lavra própria, outros em parceira –, suas obras são regravadas periodicamente e, o que é mais importante, permanecem sendo cantadas, geração após geração, nas rodas de samba que renovam e mantêm vivas, na ponta da língua, os clássicos que são referências do que há de melhor neste gênero musical.  

Seu nome artístico é uma corruptela de um apelido de infância, “Zé Quieto". Mas se era quieto no comportamento quando criança, Zé Kéti soube aproveitar com desenvoltura as chances que, graças a seu talento, a vida artística lhe proporcionou ao longo da vida. Além de sambista inspirado, Zé Kéti participou de momentos decisivos da cultura brasileira.  

Foi, por assim dizer, artista multimídia, num tempo em que o uso da palavra não era tão corriqueiro como hoje.  

No cinema, por exemplo, teve papel importante nos primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos.  “Eu sou o Samba”, seu primeiro sucesso, é o tema de abertura de “Rio 40 graus” (1956), onde atuou também como assistente de câmera. No filme seguinte de Nelson Pereira, “Rio Zona Norte” (1957), Grande Otelo vive um personagem inspirado nas histórias que o compositor contou ao cineasta, sobre um atravessador que tira proveito de sambistas. O samba em questão é “Malvadeza Durão”. Em 1962, participou de outro filme de Nelson Pereira, Boca de Ouro”. Zé Kéti ainda atuou em “A Falecida” (1965), de Leon Hirszman e em “A Grande Cidade” (1966)de Cacá Diegues.  

No teatro musical, em 1964, Zé Kéti foi personagem de um espetáculo que marcou época, tanto pela contundência crítica ao regime militar, como pela inovação da encenação, e que reuniu na ribalta de um palco de Copacabana três vertentes da música brasileira: a Bossa Nova, representada por Nara Leão (depois substituída por uma jovem recém-chegada da Bahia, Maria Bethânia); um artista oriundo do Nordeste, João do Vale; e um sambista de origem popular, o próprio Zé Kéti.   

O nome do show, “Opinião” – escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar e Armando Costa, com direção de Augusto Boal – foi inspirado na música homônima de Zé Kéti (“Podem me prender/podem me bater/Podem até deixar-me sem comer/que eu não mudo de opinião/Daqui do morro eu não saio, não”). O sucesso foi tanto, que o nome da música acabou batizando o nome de um jornal de oposição, o teatro onde o espetáculo foi encenado e, também, o grupo teatral responsável pela encenação. 

Essa habilidade em construir pontes entre públicos diferentes ficou clara ainda em 1963, na época do restaurante Zicartola, acrônimo do casal Cartola e Dona Zica. Localizado em um sobrado da Rua da Carioca, no Centro do Rio, era ponto de encontro de sambista dos subúrbios e dos estudantes e intelectuais da Zona Sul. Zé Kéti teve grande participação no empreendimento. Atuou como diretor artístico da casa, que tinha shows às quartas e sextas, após o expediente comercial. Foi ali, apadrinhado por ele e pelo jornalista Sérgio Cabral, que o jovem compositor Paulo Cesar Batista de Faria virou Paulinho da Viola.  

Morto em 1999, aos 78 anos, Zé Kéti, acima de tudo, será sempre reverenciado como compositor de sambas antológicos. Está, sem sombra de dúvida, entre os maiores de todos os tempos.  “Eu sou o samba” (1955), “Opinião” (1964), “Diz que fui por aí “ (1964), “Nega Dina” (1964), “Acender as Velas” (1964), “Mascarada” (1965), “Leviana” e a marcha-rancho que virou clássico nos carnavais Brasil afora, “Máscara Negra” (1967), fazem parte de qualquer antologia.  

Seu centenário devia ter sido comemorado com toda festa que um compositor do tamanho de Zé Kéti merece. Inclusive com homenagens oficiais. Mas o governo do Brasil atual é tacanho, pequeno, mesquinho. A cultura, área em que o sambista brilhou, é deliberadamente maltratada. 

“Deixa andar”, diria ele, repetindo um dos versos do samba “Opinião”. Se Zé Kéti não recebeu as devidas homenagens, com certeza as rodas de samba continuarão a cantar suas obras-primas, que alegram o coração da moçada. 

 



*Henrique Brandão é jornalista e escritor


Jornalista Henrique Brandão homenageia o sambista Nelson Sargento

Em artigo na Política Democrática online de julho, autor analisa a carreira de quem ele chama de “patrimônio do samba”

O jornalista Henrique Brandão diz que o cantor, compositor e pesquisador da música popular brasileira Nelson Sargento, que morreu de Covid-19 no dia 27 de maio, deixou, em sua partida, órfãos aqueles que admiravam seu samba e se divertiam com as inúmeras histórias que contava sempre carregadas de frases originais e imagens que ele mesmo criava.

Clique aqui e confira a revista Política Democrática Online de julho (33ª edição)

O texto de Brandão foi publicado na revista mensal Política Democrática online de julho (33ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, na versão flip da revista, no portal da entidade.


Em seu artigo, Brandão lembra, por exemplo, que Sargento alegava ainda não estar dando comida para bicicleta nas situações em que queria dizer que estava lúcido. Com o nome de batismo de Nelson Matos, o artista ganhou o apelido sargento na década de 1940, quando serviu no Exército.

O sambista iniciou a carreira de compositor na Estação Primeira. Ele tinha como parceiro o padrasto, que também o introduziu no ofício de pintor, conforme lembra Brandão. Juntos, fizeram sambas com os quais a escola conquistou o bicampeonato de 1949/50.

Sua canção mais famosa é “Agoniza mais não morre, na voz de Beth Carvalho”, como observa o jornalista no artigo, que também chama Sargento de "patrimônio do samba".

“O artista tornou-se unanimidade no mundo do samba. Não à toa, representou o Zumbi dos Palmares no enredo História para ninar gente grande, que deu o último título do carnaval à Verde e Rosa, em 2019”, afirma.

Confira todos os autores da 33ª edição da revista Política Democrática online

Na revista Política Democrática online de julho, os internautas também podem conferir entrevista exclusiva com a jurista Eliana Calmon e reportagem especial sobre a fome, que no país e no restante do mundo, pode matar 11 pessoas a cada minuto, até o final deste ano, no planeta, caso nada seja feito, segundo relatório da organização internacional Oxfam. A revista mensal Política Democrática online de julho também traz artigos sobre políticas nacional e externaeconomiameio ambiente e cinema.

Além do diretor-geral da FAP, Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista.

Em artigo, Isaac Roitman aponta retrocesso de direitos humanos no país

Fome mata mais que Covid, aponta reportagem da Política Democrática online

Bolsonaro tem queda contínua de popularidade, diz Política Democrática Online

Governo Bolsonaro é desastroso no combate à pandemia, diz Eliana Calmon

Clique aqui e veja todas as edições da revista Política Democrática online!


RPD 33 || Henrique Brandão: Nelson Sargento, a mais alta patente do samba

O grande Nelson Sargento, patrimônio inquestionável do samba e figura emblemática de um modo de ser carioca. Admirado, tanto por moradores dos morros quanto do asfalto, faleceu aos 96 anos, no dia 27 de maio.  

Sua partida deixou órfãos aqueles que admiravam seu samba e se divertiam com as inúmeras histórias que contava, sempre carregadas de frases originais e imagens que ele mesmo criava. “Ainda não estou dando comida para bicicleta”, costumava dizer para afirmar que estava lúcido, com a cabeça boa, apesar da idade avançada. 

Embora associado à Estação Primeira de Mangueira, Escola de Samba da qual foi baluarte e presidente de honra, Nelson, com seu carisma, extrapolava o universo da Verde e Rosa: era reverenciado em qualquer agremiação, seja qual fosse a cor do estandarte. Sempre elegante, ele circulava com desenvoltura em qualquer ambiente que gravitasse em torno do samba: das quadras das escolas às rodas espalhadas pelos diversos bairros do Rio de Janeiro. A geração formada no movimento de renascimento da Lapa, que teve o samba como força motriz, o tinha em alta conta. Reconhecia nele uma figura importante, como não só um dos últimos representantes de uma época heroica, mas também uma pessoa que dialogava e convivia de igual para igual com as novas gerações de sambistas, sem qualquer traço de empáfia. 

Nascido Nelson Matos – o apelido Sargento vem da década de 1940, quando serviu no Exército –, passou a infância no Morro do Salgueiro, na Tijuca. Mudou-se para a Mangueira aos 12 anos, quando sua mãe foi viver com o pintor de paredes, Alfredo Lourenço, conhecido como “Português”. Foi morar no Chalé, uma localidade que ficava bem no alto do Morro da Mangueira.  Com seu peculiar humor, dizia para quem o queria visitar: “se virar o morro de cabeça para baixo, minha casa é a segunda, à esquerda de quem sobe.”  

Já com o apelido incorporado ao nome artístico, Nelson Sargento iniciou a carreira de compositor na Estação Primeira. Tinha como parceiro o padrasto, que também o introduziu no ofício de pintor. Juntos, fizeram os sambas-enredo com os quais a escola conquistou o bicampeonato de 1949/50. Em 1955, compuseram Cântico à natureza, considerado um dos mais bonitos sambas-enredo de todos os tempos (“Oh, primavera adorada! /Inspiradora de amores/Oh, primavera idolatrada! / Sublime estação das flores”). 

O início da carreira de sambista, para além da quadra mangueirense, começou nos anos de 1963/65, no Zicartola (acrônimo de Zica e Cartola), restaurante na Rua da Carioca que foi ponto de encontro de bambas, jovens universitários e intelectuais.  

Por conta dessa experiência, em 1965, foi convidado por Hermínio Bello de Carvalho e Elton Medeiros para participar do show Rosa de Ouro, ao lado de Paulinho da Viola, do próprio Elton Medeiros, de Anescarzinho e de Jair do Cavaquinho. Em entrevista ao O Globo em 2019, Nelson lembra daquele momento: “O Elton foi em Mangueira e deixou um recado para eu ir ao Teatro Jovem (local do show), para um trabalho. Como eu era pintor de paredes, na época, achei que seria para pintar o teatro. Só quando cheguei lá soube que precisavam de mais um compositor de samba para o grupo do espetáculo (…). Continuei pintando minhas paredes, mas dali em diante fui conhecendo mais gente e comecei a me profissionalizar”. 

A convivência com a Velha Guarda da Mangueira foi fundamental para torná-lo um compositor respeitado. De todos, Cartola desempenhou papel decisivo. “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”, costumava repetir em seus shows.  

Assim como seus pares de geração, Nelson Sargento demorou para construir uma discografia própria. Seu primeiro álbum solo, Sonho de um Sambista, é de 1979, gravado no embalo do sucesso que fez no ano anterior: Agoniza mais não morre, na voz de Beth Carvalho (1946-2019).  Virou seu samba mais famoso, hoje um clássico (“Samba, agoniza, mas não morre/alguém sempre te socorre/Antes do suspiro derradeiro”). Nesse mesmo disco lançou Falso Amor Sincero, uma música com o bom humor característico do sambista (“O nosso amor é tão bonito / Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”). 

Pelo que simboliza na tradição mangueirense, por sua trajetória e liderança entre os sambistas, Nelson Sargento, não à toa, representou o Zumbi dos Palmares no enredo História para ninar gente grande, que deu o último título do carnaval à Verde e Rosa, em 2019. E tornou-se unanimidade no mundo do samba, como bem traduziram Aldir Blanc e Moacyr Luz no samba Flores em Vida (Pra Nelson Sargento), feito em sua homenagem: “Sargento apenas no apelido/ Guerreiro negro dos Palmares/ Nelson é o Mestre Sala dos Mares/Singrando as águas da Baía”. 


Henrique Brandão é jornalista 


RPD || Lilia Lustosa: É tudo pra ontem, tá ligado?

Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma aula de história da cultura brasileira que é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos, avalia Lilia Lustosa

O palco é o Theatro Municipal de São Paulo. O ano, 2019. Na programação, nada de óperas, orquestras sinfônicas ou coros líricos … A estrela hoje é o rapper Emicida em seu show de lançamento do disco AmarElo, premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Show que virou filme pelas mãos do estreante Fred Ouro Preto e foi lançado recentemente em outro palco de elite: a Netflix.
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma verdadeira aula de história da cultura brasileira que, como bem deveríamos saber (e não sabemos), é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos. História de um povo (nosso povo!) que foi apagada de nossos livros didáticos. História de personagens invisibilizados por tantos líderes brancos que ocuparam nossos tronos.

Impossível não nos sentirmos envergonhados de nossas ignorância, impotência e aquiescência diante do que vemos. Sentimentos que se misturam também ao da indignação: como não nos ensinaram tudo isso na escola? Por que não fomos incentivados a ler Lélia Gonzalez? Por que não aprendemos sobre Tebas – escravo que virou arquiteto e que tanto fez pela cidade de São Paulo? Por que não tivemos capítulos em nossos livros dedicados ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à sua marcha de 1978? Por que não aprendemos sobre a força dessa gente de pele escura que, em plena ditadura, ousou subir as escadarias desse mesmo Theatro Municipal e fazer dali a tribuna de seu protesto?

AmarElo joga tudo na nossa cara! Mais que isso, esse filme-show-aula-de-história abre as portas do teatro mais importante de São Paulo para o brasileiro comum, para a gente pobre, de classe média baixa, vestida de jeans e camiseta. Gente de cabelo enrolado, liso ou afro, de pele escura, parda, branca, amarela. Uma amostra verdadeira de nosso povo que pode se ver ali enfim representado. Gente que nunca ousou pisar naquele palco, nem ocupar aquele espaço!

O filme ensina, toca, embala, enche nossa alma. Apresenta-nos músicas novas e antigas repaginadas, como a que dá nome ao disco (e ao filme), que tem como sample-base a Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, e seu refrão mais que apropriado: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro!” AmarElo mostra-nos ainda variações do rap, gênero de protesto já consolidado no Brasil, mas que segue em eterna (r)evolução. Um rap menos masculizado, híbrido, fluido, que amplia sua área de atuação, fugindo dos padrões de uma arte feita por “machos”, ao incluir as artistas Majur e Pabllo Vittar em seu número principal. O resultado é de arrepiar! A música cola na cabeça, liberta a alma e instiga a criar coragem para fazer a diferença. Emicida impressiona por sua lucidez, seu pensamento filosófico e grandeza de sua arte.

Sem jamais cair no piegas, o filme, conduzido pela voz firme do rapper paulistano, navega por várias cores e texturas, formando uma espécie de colagem com imagens granuladas em preto e branco justapostas a imagens coloridas em alta definição, entremeadas por belas lustrações que se animam e dão cor e leveza à história ali apresentada. Emicida vai mostrando de forma não linear o caminho que o levou até ali, desde sua infância na periferia, passando pela confecção do disco, pelos encontros com personalidades artísticas, até a explosão do show no Municipal. Um caminho alimentado pelo resgate da verdadeira História do Brasil. Dá vontade de continuar assistindo, de descobrir um pouco mais, de puxar aquele novelo e desenrolá-lo por completo.

Só não entendi a menção ao filme Orfeu do Carnaval (1959), do francês Marcel Camus, que, apesar de ter levado a música brasileira mundo afora, mostra uma realidade caricata do Brasil e de suas favelas, pintando nossos negros como os “bons selvagens” de uma terra exótica e feliz. Melhor seria ter citado algum filme de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa em nosso país. Ou obras como Ganza Zumba (1964), de Cacá Diegues, e Barravento(1962), de Glauber Rocha, que inovaram ao dar protagonismo a personagens negros até então relegados à subalternidade.

De toda maneira, o AmarElo de Emicida é um filme urgente para estes tempos tão sombrios, já que traz à tona e põe em xeque temas da ordem do dia: gentrificação, apagamento histórico, masculinidade, racismo estrutural, genocídio negro… Seus densos 89 minutos de duração nos obrigam a olhar para trás e entender que é preciso reescrever nossa história, reparando injustiças e erros cometidos. E é pra ontem!

*Lilia Lustosa é crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).


RPD || Ivan Accioly: O Rio e os cariocas do carnaval da Espanhola ao não carnaval da Covid-19

2021 entra para a história deste século como o inédito ano sem carnaval, à semelhança do que ocorreu na pandemia da gripe espanhola (1918-1920), que infectou um quarto da população mundial na época. Na preservação da vida, foliões de todo o país apostam no futuro da festa em 2022

“Este ano não vai ser igual àquele que passou” e, espero, diferente de qualquer outro que venha no futuro. A vontade imensa de botar o bloco na rua, de fantasiar, de purpurinar e sair por aí ao som de baterias, saxofones, pandeiros, tamborins e similares está represada. A máscara no rosto é apenas uma proteção contra o indesejado vírus Covid-19.

2021 entra para a história como o inédito ano sem carnaval. O ano em que os blocos não tomaram as ruas do Rio de Janeiro, Olinda, Ouro Preto, BH, o país inteiro. As escolas de samba não estão nos sambódromos espalhados pelo Brasil à semelhança do palco original imaginado por Darcy Ribeiro na Marquês de Sapucaí. Portela, Mangueira, Salgueiro, São Clemente, Beija Flor, Vila Isabel. Enfim, todas as escolas estão à espera da hora certa para botar o enredo na avenida.

A folia neste ano de pandemia está improvisada. A aglomeração, a proximidade, a quadra cheia, todo mundo suado, o som potente da bateria que preenche e arrepia, cada poro da pele quando começa a tocar, está mediado pelas telinhas dos computadores. O pouco carnaval vem online. Frustrante, xoxo, mas é o que temos por enquanto.

A população está ainda perplexa com a situação. Os foliões de raiz, ligados às escolas de samba, já sentem a abstinência desde o meio do ano passado, quando as quadras permaneceram fechadas. O pessoal dos blocos de rua igualmente na carência, seus ensaios e escolhas de samba que mobilizam desde a primeira semana de janeiro não ocorreram.

Esses foliões de carteirinha – de forma sábia – apostaram no futuro da festa. Aceitaram o recolhimento momentâneo de olho na preservação da vida e na perspectiva de recuperarem a folia deixada de lado mais à frente. Afinal, todo mundo tem estrada e acúmulo de festa que permite essa pequena pausa.

O carnaval está no DNA da população desde quando o entrudo dava as cartas no século XVI. É uma festa que hoje mobiliza e tira grande parte da população de sua realidade durante alguns dias. É um momento de alegria despreocupada, extravasamento, cantoria brincadeira, ansiosamente esperado. As marchinhas, os sambas, os frevos, os maracatus, os afoxés embalam a folia e são parte do que há de mais original na identidade brasileira.

Mas não é a primeira vez que uma pandemia afeta diretamente nossa festa maior. Há pouco mais de cem anos, em 1918, a gripe espanhola dizimou parte da população mundial e virou destaque na folia do ano seguinte. O vírus matou entre 20 e 30 milhões de pessoas na Europa e um número não conhecido no resto do mundo. No Rio, foram 15 mil mortos e 600 mil doentes, numa população de apenas 910.710 mil pessoas.

A grande forra veio na festa de 1919, quando a população tomou as ruas e fez o que foi considerado o maior carnaval de todos os tempos. Segundo narrou em A menina sem estrela o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que tinha seis anos na época, e foi marcado pela tragédia e pela festa que se seguiu, o povo se soltou:

Desde as primeiras horas de sábado houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade… Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos, cantavam uma modinha tremenda: ‘Na minha casa não racha lenha/ Na minha racha, na minha racha / Na minha casa não há falta de água / Na minha abunda’. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias.”

Agora é a nossa vez. Como será 2022? Como faremos a festa? Como curaremos as feridas das centenas de milhares de mortos? Na espanhola, o chá da morte virou música e alegoria. Lá eles também tiveram os negacionistas e aqueles que receitaram a cloroquina da época, que foi o quinino, limão e caldo de galinha. As coitadas das penosas sumiram do mercado.

Vale lembrar que carnaval é resistência e, para desespero das parcelas dos que não sabem lidar com esse aspecto da cultura, a expressa com alegria. Uma alegria e descontração, encaradas pelos os mal-informados como um “descompromisso”. Não entendem nada, o carnaval é crítica. É dedo na ferida dos governantes. É a exposição daquilo que muitos querem esconder. É a festa da carne. São os corpos desnudos que mostram suas presenças e que, no carnaval, são os estandartes principais. Corpos como aqueles ceifados na pandemia e que viraram, para muitos, apenas números para estatísticas,

São esses corpos brincantes que agora estão se preservando e estarão nas ruas em 2022. Que vão mostrar, como disse a Mangueira, “a história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Pois, com certeza, “na luta é que a gente se encontra”. Até 22 para fazermos o inesquecível melhor carnaval do século. Até agora, claro!

*Ivan Accioly é jornalista, diretor do Bloco Imprensa Que Eu Gamo, e mestrando em Comunicação pela UFRJ. Tem mais de 50 carnavais e entende que a festa acontece na rua, onde cumpre um intenso roteiro blocos e escolas de samba anualmente.


RPD || Henrique Brandão: Exclusão e preconceito unem Samba e Rap

Forte na construção do mito, documentário do show que o rapper fez, em novembro de 2019, no Theatro Municipal de São Paulo, reivindica para si os lugares da história cultural do país

O documentário “Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem” tem recebido rasgados elogios na imprensa e nas redes sociais, desde que estreou na Netflix, em 8 de dezembro. O filme é o registro do show de lançamento do álbum homônimo do rapper paulista. Assisti-lo vale o ingresso, ou, mais apropriado para os tempos pandêmicos atuais, o clique no canal de streaming.

O local da apresentação é o palco do tradicional Theatro Municipal de São Paulo. Noite histórica. Teatro lotado, não pela costumeira plateia de melômanos de música clássica, mas por pessoas que sabiam na ponta da língua as rimas carregadas de contundência do rapper paulista. O público estava à vontade.

O que poderia vir a ser apenas o registro de um momento de ocupação de um espaço elitista por natureza, nas mãos de Emicida, do roteirista Toni C. e do diretor Fred Ouro Preto, transformou-se em um filme-manifesto muito original. Ao mesmo tempo em que carrega a visão particular de um artista oriundo da periferia de São Paulo, o documentário vai além e procura traçar um panorama da música brasileira de matriz africana e suas ligações com o rap.

Sem pretensões sociológicas, mas com críticas incisivas ao caráter excludente da formação social brasileira, Emicida é o condutor da história. No palco, divide músicas com convidados. O making off revela artistas que participaram da gravação do disco: (Zeca Pagodinho, Marcos Valle, Fabiana Cozza e Fernanda Montenegro). Em off, sua voz costura imagens atuais com cenas do passado, narrando a história do Brasil à sua maneira. Não a história triunfalista, mas o outro lado da moeda, em que a cara impressa é a dos pobres e negros que viveram – vivem – no país que foi o último das Américas a abolir a escravidão.

Emicida comenta: “de alguma forma meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada”. É a deixa para o início do passeio pela trajetória musical do país, estabelecendo conexão com o samba, outro gênero que enfrentou preconceitos e dificuldades para ser reconhecido.

Do início do século XX, quando o samba surgiu no Rio de Janeiro, até os dias atuais, muito aconteceu no panorama musical, mas pouca coisa mudou no que diz respeito à criminalização do pobre. “Os artistas de morro foram perseguidos por todos os meios. O Estado Brasileiro [criou] um instrumento jurídico conhecido como Lei da Vadiagem que, ao longo dos anos, aprisionou sambistas. O bizarro é que essa lei segue em vigor até hoje”, diz Emicida. Para comprovar a tese, imagens mostram a polícia reprimindo a gravação de um clipe do artista em uma comunidade da Zona Norte paulistana. É o presente repetindo o passado.

“O samba é o Brasil que deu certo”, exalta o rapper. “Não tem vitória possível para este país distante do samba”, enfatiza. Na tela, vão desfilando personagens que tiveram papel decisivo no gênero: Pixinguinha, Donga e os “Oito Batutas”, Ismael Silva, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Lecy Brandão, Riachão, Nelson Cavaquinho, entre outros.

Para Emicida, o rap e o samba são da mesma cepa. Jovelina, Jackson do Pandeiro, Jair Rodrigues e Wilson Batista “já eram hip-hop antes de nós existirmos”, defende. “Este fruto, ora azedo, ora adocicado que conhecemos como rap, hoje vem de uma grande árvore, e, se você for buscar as suas raízes, vai encontrar o samba.”

Não à toa, Emicida aproxima o rap ao samba. Traz para junto de si Wilson das Neves, ídolo confesso, descoberto em suas garimpagens discográficas pelos sebos, que vira seu parceiro em uma faixa do disco. O lendário baterista, com seu swing peculiar, elegante por natureza, faleceu antes da apresentação no Municipal paulista, para tristeza do rapper.

Em uma conversa com Marcos Vale, Emicida revela sua ambição: fundar um novo ritmo, uma nova linguagem artística: “com o AmarElo, eu tenho chamado de neosamba”.

Pelo sucesso que o disco vem fazendo, (conquistou o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa”) e com esse poderoso inventário audiovisual, o rapper, com sua postura ao mesmo tempo altiva e serena, é hoje uma figura relevante da música brasileira.

Como mostra com cristalina evidência no documentário, Emicida sabe que, para mudar as coisas que se perpetuam há anos, é necessário juntar forças. “A única coisa que nós temos é uns aos outros”. Este é um mantra que perpassa o filme.

O rap está assentado no sampler, no uso da contribuição de “amostras” de outros artistas. Emicida resgatou versos de Belchior e criou a trilha sonora da pandemia: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Que assim seja.

*Henrique Brandão é jornalista e escritor