Ruy Castro

Ruy Castro: Os brutos também amam o mimimi

Genocídio, feminicídio, homicídio e outros cídios, tudo bem. Suicídio não

A palavra mimimi ainda não está nos dicionários. Pelo menos não nos aurélios e houaisses, mas a culpa pode ser das minhas edições, tão antigas que ainda impressas em papel. Mimimi é um desafio à morfologia, ciência que, em linguística, significa o estudo da estrutura e da formação das palavras. De onde veio mimimi? Desconhece-se uma raiz que a justifique. Pode ter vindo de mi, a 3ª nota da escala musical, donde mi-mi-mi seria uma sequência de mis. Mas não deve ser o caso —é raro alguém sair solfejando em meio aos selvagens bate-bocas em que hoje é usada a palavra mimimi.

Foi com ela que, de maneira avassaladora nos últimos tempos, bandeiras como o combate ao racismo, ao feminicídio, à homofobia, ao genocídio, às armas que levam ao homicídio e a outros cídios passaram a ser classificadas por certos grupos. Mimimi é sinônimo de chororô, vitimismo maricas, coisa de fracos, choro de perdedor. Tornou-se não apenas uma forma de negar aos humilhados e ofendidos o direito de se defenderem como de ridicularizá-los, reduzindo seus argumentos a uma palavra cômica.

Mas, quando se pensava que o mimimi não teria lugar no universo da macheza e do triunfalismo, eis que a menção a um inesperado cídio —o suicídio— acusa uma brecha nessa carapaça de invencíveis e inexpugnáveis.

Um colunista sugeriu candidamente a Jair Bolsonaro que, para o bem do Brasil, se matasse. Mera ironia, sabendo-se que é o que Bolsonaro sugere todo dia ao povo brasileiro, ao induzi-lo a contrair o coronavírus desprezando a máscara, o álcool gel, o distanciamento, a vacina. É claro que, sendo Bolsonaro um macho full-time, ex-soldado, ex-atleta e ex-humano, a dita sugestão nem o abalou. Mas abalou seus apoiadores. "É um crime!", gritaram. "Uma covardia!". "Não se induz um homem ao suicídio!". "E se ele aceitar a sugestão??".

Surpresa! Os brutos também amam o mimimi.


Ruy Castro: Saída para Trump: matar-se

Nós, brasileiros, sabemos que é uma boa ideia

Enquanto não entregar as chaves da Casa Branca no próximo dia 20, Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos em exercício, continua na posse de seus poderes. E isso é o que muitos temem. Trump é hoje um perdedor ainda com o dedo no gatilho. Se quiser jogar uma bomba no Irã, dispõe dos códigos necessários. A esperança é que esteja tão deprimido que não reúna forças nem para se olhar ao espelho. Pois, se for o caso, Trump teria uma saída capaz de fazer dele um herói, um mártir, um ícone eterno para seus seguidores idiotizados. Matar-se.

Nós, brasileiros, sabemos que é uma boa ideia. Ao suicidar-se, em 1954, Getulio Vargas zerou sua antiga imagem de torturador e sanguinário, simpático ao fascismo, e se eternizou como o velhinho bonachão e progressista vítima do capitalismo internacional assassino. Getulio soube fazer --escreveu uma carta-testamento com a frase "Deixo a vida para entrar na história" e deu um tiro no coração. Infalível para produzir milhões de viúvas.

Mas o tiro precisa ser no coração, não na cabeça. Este só faz uma lambança, com sangue, miolos e cacos de osso para todo lado. Já o tiro no peito é clean. Mantém o rosto intacto, apto a servir de modelo para uma máscara mortuária e futuros bustos e estátuas, indispensáveis à lenda. Para Trump, teria também a vantagem de não lhe desfazer o penteado.

No Brasil, Jair Bolsonaro, seu último aliado no mundo, repete como um papagaio que Trump foi roubado nas eleições e já começou a anunciar que, em 2022, o mesmo acontecerá aqui. O falso alarme de Bolsonaro é preventivo --visa justificar sua possível derrota.

Pois sua prevenção poderia ser ainda mais radical. Se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo. Mas para que esperar pela derrota na eleição? Por que não fazer isso hoje, já, agora, neste momento? Para o bem do Brasil, nenhum minuto sem Bolsonaro será cedo demais.


Ruy Castro: Focinheira, camisa de força e jaula

É a receita para Bolsonaro, oferecida por um psiquiatra com quem conversei

Em sua guerra contra o povo brasileiro, Jair Bolsonaro ganha cada vez mais posições. O Poder Executivo lhe pertence pelo voto, e seu cartel de apoiadores continua firme, composto de uma multidão de mulheres de malandro —Bolsonaro os trai diariamente, renegando suas promessas de campanha, e eles gostam.

Em dois anos de administração, não se conhece uma medida positiva de sua parte. Ao contrário, dedica-se a destruir tudo que o Brasil levou séculos para construir na educação, na cultura, no meio ambiente, na diplomacia, nos direitos humanos e na relação entre as pessoas. Sua meta é que se matem pelas ruas, a tiros entre si ou pela polícia, esta, a depender dele, com carta branca para disparar.

No Legislativo, Bolsonaro usa o dinheiro público para ir às compras e embolsar políticos. Precisa deles para se proteger contra possíveis ameaças de impeachment e, num lance decisivo, está a ponto de emplacar um presidente da Câmara sensível à voz do dono. Com isso serão dois Poderes sob seu controle. E, no Judiciário, já tem elementos infiltrados na Procuradoria-Geral, na Polícia Federal, na Agência Brasileira de Inteligência e até no STF, para garantir que as acusações contra ele e seus filhos morram na praia. Some-se a isso seu controle do Exército, das polícias militares e de um batalhão de milicianos digitais para nos perguntarmos por quanto tempo ainda teremos democracia.

Mas nada se compara à sua campanha para induzir o Brasil a não se vacinar contra a Covid. É seu preço final contra as derrotas que os fatos lhe impõem e que o obrigam a desdizer-se. OK, o vírus não é uma gripezinha, não está no finalzinho e a vacina vem aí. Mas, diz ele, quem quiser tomá-la será por sua conta e risco —com o que já levou milhões a temê-la.

Bolsonaro é letal no que diz e faz. Consultei um psiquiatra e ele me afirmou que é caso para focinheira, camisa de força e jaula. 


Ruy Castro: Pazuello já merece uma biografia

Da gerência das cuecas do quartel à morte de, em breve, 200 mil brasileiros

Aos 57 anos, o general Eduardo Pazuello, militar de carreira e ministro da Saúde do governo Bolsonaro por carreirismo, nunca imaginou que, um dia, fosse merecer uma biografia. Oficiais da Intendência do Exército, como ele, não têm muitas ocasiões para usar a espada exceto no dia 7 de setembro. Sua função é prover o suprimento do quartel —aviar a merenda da tropa, supervisionar a lavagem das fardas, manter os mictórios em condições e cuidar da manutenção dos pára-quedas. E também vigiar os transportes de munição, cuidando para que não haja desvio de cartuchos pelo caminho.

Até há pouco, o único episódio na trajetória de Pazuello que poderia justificar uma referência foi quando, em 2005, ao dirigir o Depósito Central de Munição, em Brasília, puniu um soldado sob seu comando, obrigando-o a puxar uma carroça, atrelado a ela por arreios, como uma mula, e transportando um colega na presença dos companheiros. Pazuello era tenente-coronel, mas isso não turvou sua escalada ao generalato.

Ao ser convocado por Jair Bolsonaro para substituir um médico na direção do Ministério da Saúde no meio de uma pandemia, Pazuello tinha duas opções: recusar o convite, alegando incompetência para o cargo e certeza de comprometer a saúde nacional, ou aceitá-lo e ter de mentir, omitir-se e errar perversamente no combate ao vírus. Escolheu a segunda. Ou delirou, achando que daria conta da tarefa, ou dispôs-se a babar e se humilhar para servir ao capitão. Pelo que se vê, vale também a segunda hipótese.

Pazuello na saúde é mais absurdo do que um médico comandando a lavagem das cuecas do quartel. É mais letal. Recebeu o cargo com 15 mil mortos pela Covid e logo nos entregará 200 mil. É injusto chamá-lo de palerma, como fazem. Mais exato será cobrar sua cumplicidade no extermínio promovido por seu chefe.

Pazuello já merece uma biografia. A ser lida sob revolta e náuseas.


Ruy Castro: Bolsonaro oficializou o faroeste

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar armado. Com tanta bala à solta ninguém está a salvo

Há anos fui abraçar um amigo, amado por muitos, e senti sob o casaco algo sólido na sua cintura. Uma arma, claro, e recolhi a mão. Ele não percebeu minha repulsa, mas fiquei triste. Por que alguém iria armado a um encontro de pessoas que se estimavam? Temia ser atacado, precisaria se defender e, talvez, reagir atirando? O que teria feito para isso? E só então o travo se dissipou. O objeto era um celular.

Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, deixou-se fotografar há dias com pai e irmãos no gabinete presidencial com um trabuco no cinto. O Planalto tem segurança própria, donde ninguém deveria sentir-se em perigo. Mas, conhecendo bem o governo de que faz parte, Eduardo Bolsonaro está atento. Com a quantidade de armas de fogo em mãos de particulares no Distrito Federal, nem o palácio é seguro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o registro de armas no DF cresceu 539% em 2019, e um em cada 11 de seus cidadãos anda armado —sem contar o mercado ilegal.

Para sorte dos Bolsonaros, muitos dos brasileiros armados são seus amigos. Como a polícia acaba de descobrir, Ronnie Lessa, acusado de assassinar Marielle Franco e ex-vizinho do presidente num condomínio na Barra, comprava ferramentas pela internet para a montagem de fuzis de guerra. Imagino que, em seus churrascos, eles trocassem dicas sobre balas dum dum e silenciadores.

Bolsonaro oficializou o faroeste. Um decreto seu dificultou o rastreamento das armas em circulação. Com isso, o armamento apreendido diminuiu e o que volta para o crime aumentou. Qualquer um compra agora 300 munições por mês —eram 50 por ano até há pouco. Pessoas apontam armas no nariz uns dos outros e bandos praticam assaltos de cinema. Aumentou o feminicídio. Bandidos e policiais continuam matando e morrendo e, cada vez mais, sobram balas para as crianças.

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar prevenido.


Ruy Castro: O poder gera folgados

Donald Trump, depois de presidente, nunca mais abriu uma porta; Bolsonaro, a Constituição

Num dos melhores episódios da última temporada de “The Crown”, série da Netflix, há uma reveladora sequência envolvendo a personagem de Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, interpretada por Gillian Anderson. Ela é mostrada em casa, ao fogão, de panela na mão e avental, aviando o jantar, enquanto seus nervosos ministros, também na cozinha, tentam convencê-la a aprovar uma sanção à África do Sul, exigida pelos membros da Commonwealth. É uma decisão de que depende a unidade do Império Britânico. Mas Thatcher nem cogita interromper o preparo de sua omelete ou fritada para discutir o assunto. Eles saem de mãos abanando.

Margaret Thatcher foi uma das mulheres mais poderosas do século 20. Tomou amargas medidas econômicas, peitou a monarquia, declarou guerra à Argentina e ganhou todas. Era a Dama de Ferro. Se quisesse, teria oito chefs à sua disposição para cozinhar, mas preferia ela própria pilotar suas trempes. Em diversas ocasiões, a série a mostra como uma governante modesta, atenta a custos. Numa produção de luxo quase indescritível, seu guarda-roupa pouco varia, como se ela só tivesse mesmo dois ou três tailleurs.

Duvido que sir Winston Churchill, seu mais ilustre antecessor na vida real, tenha algum dia fervido uma água. Ou Evita Perón, “mãe dos descamisados”, dito “Por favor” a um serviçal. Ou Fidel Castro, fumante de charutos, esvaziado um cinzeiro. Ou Jacqueline Kennedy, a deusa, lavado uma calcinha.

O poder faz do mais consciencioso um folgado. Donald Trump, depois de presidente dos EUA, nunca mais abriu uma porta. Jair Bolsonaro, a Constituição.

Acabo de saber que, na dita sequência de “The Crown”, o objeto na mão da Dama de Ferro era uma travessa, contendo um prato a que, com esmero e ternura, ela estava aplicando rodelas de ovo cozido —uma paella, talvez. A dama podia ser de ferro, mas só do gabinete para dentro.


Ruy Castro: Os médicos sobre Bolsonaro

Ninguém mais autorizado a julgar o papel dele na pandemia

Dos 57,8 milhões de votos despejados em Jair Bolsonaro em 2018 pelos brasileiros que queriam se livrar do PT, milhares terão sido de médicos, dos estudantes de medicina e de toda espécie de profissionais da saúde, de cientistas recordistas em Ph.D ao mais humilde servente de um hospital. Ninguém, claro, poderia adivinhar que, em um ano e meio, o mundo seria varrido por uma pandemia. Mas, sendo médicos, nenhum terá suspeitado de que estavam elegendo um demente?

Eu me pergunto se, hoje, heróis da linha de frente contra a Covid-19, algum deles tem dúvida. Mais do que todos, eles sabem que, no governo, está alguém que, entre o vírus e o povo, escolheu ficar a favor da morte.

Bolsonaro negou a gravidade do problema, insultou os coveiros, promoveu aglomerações e espalhou desinformação sobre o distanciamento, a higienização e o uso da máscara. Jogou com a vida dos que acreditaram num remédio inócuo, a cloroquina, e nisso comprometeu o Exército e o SUS. Desmoralizou os médicos ministros da Saúde e trocou-os por um general da ativa incapaz de distinguir entre um vírus e um piolho, mas disposto a cuspir na própria farda para servi-lo.

O dito general da passiva mentiu sobre o número de casos, ignorou medidas que permitiriam seguir a evolução da doença e deixou mofar milhões de testes que ajudariam a salvar vidas. Quanto a Bolsonaro, depois de chamar nossos mortos de maricas e atribuir poderes políticos às vacinas, dedica-se agora, negando uma cultura de 100 anos, a minar a confiança nelas. Por ele, a pandemia nunca será superada.

Seria urgente saber o que a comunidade médica, por seus conselhos, institutos e organizações, tem a dizer sobre Bolsonaro nessa tragédia. Ninguém mais autorizado do que ela a calcular quantos, entre os até agora mais de 175 mil brasileiros mortos pela Covid, caíram pela ação ou inação do homem que vários de seus membros ajudaram a eleger.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Procura-se Pazuello, o zero bala

O ministro da Saúde teve Covid. Mas não sabemos a quantas anda e nem sequer se já sarou

Devo estar mal informado, mas, então, o Google também estará. Ao ver ontem o general Eduardo Pazuello sendo chamado a se explicar sobre os 6,8 milhões de testes de Covid mofando num galpão federal em Guarulhos (SP), ocorreu-me que ele é o ministro de Saúde. Ocorreu-me também que, desde que contraiu o vírus —sim, Pazuello pegou a doença, lembra-se?—, mal ouvimos falar dele. E que, sendo o responsável pela saúde de 212 milhões de brasileiros, sua própria saúde é ou deveria ser do interesse nacional.

Pazuello foi diagnosticado com Covid no dia 21 de outubro. Internou-se num hospital de Brasília, onde seu chefe Jair Bolsonaro o visitou expressamente para desmoralizá-lo, desautorizando a sua compra da vacina Coronovac. Pazuello engoliu a ofensa, disse-se "zero bala" e se mudou para um hospital militar. Teve alta no dia 3 seguinte e foi para casa, mas só retomou as "atividades presenciais" no dia 11. Em entrevista, admitiu "ainda não estar completamente recuperado" e atreveu-se a chamar a Covid de "doença complicada". E, a partir dali, sumiu do noticiário —até ontem. Digitei "Pazuello e Covid" no Google para saber se ele estava mesmo "zero bala". Nada sobre esse assunto.

Gostaria de saber de Pazuello como foram seus sintomas, doença, tratamento, recuperação e sequelas. Terá sido entubado? É tudo mesmo um horror? Teve medo de morrer? Foi salvo pela cloroquina ou, como diz a ciência, tomá-la ou passá-la nas costas dá na mesma? Como foi, afinal, que pegou o vírus? Era sempre testado? Não acredita em testes?

Claro que, não sendo médico, Pazuello não tem ideia do que lhe aconteceu. E muito menos do que a Covid já fez, faz e ainda fará com o Brasil.

Pazuello nos deve um minucioso relatório pessoal. Afinal, somos nós que pagamos —em solidão, desemprego, falência e vidas humanas— a conta que ele e Bolsonaro estão apresentando ao país.


Ruy Castro: O crime com vídeo e áudio

Os gritos de dor de Beto Freitas são a trilha sonora de um filme que muitos fingem não ver

O assassinato de Beto Freitas no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre, na quinta-feira (19), foi gravado pela câmera afixada de frente para a porta, com visão total da cena. É uma sequência de 17’09’’, com começo, meio e fim. Mostra o cenário vazio, a chegada dos personagens —o homem negro, os dois seguranças e a fiscal do supermercado— e o que aconteceu em seguida.

Vê-se quando, ao entrar detido, Beto reage por algum motivo a um deles, desprende-se e tenta agredi-lo. Os dois, em total vantagem, o seguram, e, com ele já contido, o espancam. Durante dois minutos aplicam-lhe chutes, socos e joelhadas no rosto, cabeça e costelas, até abatê-lo no chão.

A fiscal parece filmar tudo com um celular. Pessoas se aproximam. Ela os afasta e ameaça alguém que também tentava filmar. Uma senhora pede clemência, em vão. Um careca, de terno, pisa no homem caído e vai embora. Outras 15 pessoas entram e saem do quadro, com maior ou menor interesse, mas a tempo de ver o homem ser brutalmente imobilizado, com um dos seguranças pressionando um joelho sobre suas costas. Beto só tem agora pequenos lampejos de movimento com os pés. Aos 4’30’’ do vídeo, deixa de se mover por completo. Já não reage, mas, pelos dez minutos seguintes, o segurança continua com todo seu peso sobre ele, como para certificar-se de que não sairá vivo dali. Conseguiu. Beto morreu por asfixia.

Homens e mulheres negros são vítimas diárias de toda espécie de violência, mas esse crime é um divisor de águas. Foi filmado, tem dezenas de testemunhas e não há atenuante possível. Mais vídeos surgirão, de novos ângulos, com os gritos de dor de Beto Freitas. Mais do que o choro, o samba ou o funk, esses gritos são a verdadeira trilha sonora dos negros brasileiros.

Para Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, presidente e vice, não há racismo aqui. Escutamos isso e sentimos nojo deles e de nós mesmos.


Ruy Castro: Demência de Bolsonaro

Como nos submetemos por 21 anos a militares que se sujeitam a ser desmoralizados por um louco?

Para nós que passamos 21 anos de vida adulta (1964-1985) sob a ditadura, os generais eram sujeitos sinistros, de óculos escuros, que nos ditavam quando, se e em quem podíamos votar, o que podíamos ler, ver, escutar, dizer e escrever e, se falássemos em instituições, direitos e liberdade, eles mandavam prender e arrebentar. Eles tinham as armas, as verbas e as canetas com as quais impor sua autoridade. E os porões, instrumentos de tortura e beleguins para aplicá-la. A mera visão de uma farda era intimidadora. Ela nos reduzia moralmente à menoridade, às calças curtas, à fralda.

Aí está algo incompreensível para um brasileirinho de hoje. Ele não entenderá como os militares podiam ter essa força. Para ele, militares são sujeitos que Jair Bolsonaro põe no governo, exibe nas redes sociais e logo começa a depreciar, diminuir, desmoralizar e, por fim, fulmina com a demissão. Em menos de dois anos, já fez isso com 16 generais, quatro brigadeiros e um almirante, e só entre os oficiais de alta patente.

Segundo levantamento da Folha, Bolsonaro demite um desses caciques por mês, até os que, por causa dele, abriram mão de suas promoções. Nada se compara, claro, ao esbofeteamento simbólico a que vive submetendo o general Eduardo Pazuello, pseudoministro da Saúde e seu mais dedicado ajudante de ordens. Se Bolsonaro trata assim os graúdos, imagine seu apreço pelos 6.000 fardados do segundo time com que entupiu os ministérios, estatais, autarquias e bancos públicos. Só lhe servem para alimentar sua ilusão de que comprou o Exército.

Pode ser psicologia de galinheiro, mas estou certo de que Bolsonaro faz tudo isso para se compensar de humilhações em sua medíocre carreira militar. É uma forma de demência, que parece fascinar os generais —ou não se submeteriam a ela.

O brasileirinho de hoje tem razão. Se eles são assim, como conseguimos passar 21 anos sob suas botas?

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: O mundo que espere por Bolsonaro

E espere sentado porque, enquanto não for a hora certa, ele não cumprimentará Biden

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, declarou que Jair Bolsonaro irá cumprimentar o presidente eleito americano, Joe Biden, “na hora certa”. Significa que, para Mourão, os líderes mundiais que ignoraram o esperneio de mau perdedor de Donald Trump e reconheceram a vitória de Biden, como os representantes de Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Índia, Israel, Emirados Árabes, Irã, Iraque, Egito, Jordânia, Líbano, União Europeia, ONU, OMS, Otan e até nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, fizeram isso na hora errada.

Para Mourão, especialista em dizer platitudes ao ser abordado em trânsito entre um gabinete vazio e outro desocupado, Bolsonaro faz bem em “esperar que termine esse imbróglio aí, de discussão, se tem voto falso, se não tem, para dar o posicionamento dele”. Deve imaginar que Biden e os países mais adultos e responsáveis estão esperando sentados, sem respirar, por Bolsonaro. E que, quando ele falar, as relações entre Brasil e EUA tomarão seu caráter institucional normal, como entre dois países com o mesmo peso.

Mas não é assim, claro, ou Bolsonaro e seus zeros não teriam dedicado os últimos dois anos a abjetos shows de subserviência diante de Trump —que, ao contrário do que eles pensam, não foram recebidos com apreço pelo clown americano, mas com o desprezo devido aos que rastejam diante do nhonhô. Se, como se diz, Trump chama seus próprios seguidores de “otários”, imagine sua opinião sobre Bolsonaro —se é que alguma vez este lhe veio à cabeça fora da agenda oficial.

Além disso, Trump tem mais com o que se preocupar neste momento do que com o apoio de remotos políticos bananeiros. Está consciente de que, assim que for evaporado da Casa Branca, uma chuva de processos o espera na dona Justa.

Recomenda-se a quem achar no lixo o boné de Eduardo Bolsonaro com os dizeres “Trump 2020” que o deixe lá. Pode ter sido ele que deu azar.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Manual de trampolinagem

Carbono de Trump, Bolsonaro está atento às lições do mestre da trapaça política

Em 1983, o colunista Zózimo Barrozo do Amaral noticiou que o empresário americano Donald Trump e o libanês-brasileiro Naji Nahas estavam se associando numa empreitada. A firma ainda não tinha nome. Zózimo, conhecedor das vísceras da dupla e pela eufonia de seus nomes, sugeriu: "Trampolinagem". Você sabe: golpe, mentira, trapaça.

Era 1983, lembre-se. Seis anos depois, em 1989, os negócios de Naji Nahas quebraram a Bolsa de Valores do Rio. Ela nunca mais voltou a existir. E, agora, ao tentar ganhar uma eleição no grito, Donald Trump pode estar quebrando a espinha dos EUA.

Em Brasília, do banquinho onde se senta sobre as traseiras e saliva ao ouvir a voz do dono, Jair Bolsonaro acompanha, temeroso e extasiado, a eleição americana. Por um lado, o resultado das urnas o assusta --é uma amostra do que também pode esperá-lo por aqui, embora ele, precavido, esteja dedicando todo o seu primeiro mandato a fazer campanha com dinheiro público para assegurar um segundo mandato. Por outro, está recebendo uma aula de trampolinagem eleitoral, à base de coices na democracia.

Não é que Trump e Bolsonaro sejam contra a alternância do poder. Eles gostaram muito quando chegaram a ele pela via eleitoral e tiveram suas posses asseguradas pelos antecessores, com votos de boa sorte dos adversários que derrotaram. Só que, por seus atos no exercício do poder, não podem mais se dar ao luxo de largá-lo —para não serem processados por crimes contra as instituições, a inteligência e a vida.

Alguém ainda se lembra do papel carbono? Servia para se copiar um texto escrito à mão ou à máquina e, como só existia em função de um original, era usado uma vez e logo descartado, embolado e atirado à cesta. Bolsonaro é um reles carbono de Trump e, com o original em grave perigo, precisará copiar também as apostilas do pós-doc em trampolinagem que Trump está oferecendo.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.