Rogério L. Furquim Werneck

Rogério L. Furquim Werneck: Bolsonaro pediu 'blindagem' e agora está sob a proteção do Centrão

Porém, vulnerável como está, presidente terá pouca margem de manobra para endurecer o jogo com o Centrão, caso seja necessário

O que terá levado Jair Bolsonaro a dobrar a aposta que já fizera no Centrão? Levará algum tempo até que os múltiplos determinantes desse jogo tão pesado sejam entendidos em toda sua complexidade. Mas a razão primordial já salta aos olhos: o pânico do presidente com a possibilidade de ser levado a impeachment por seus desmandos no enfrentamento da pandemia.

É bem verdade que a disponibilidade de vacinas vem permitindo, afinal, vislumbrar o fim da pandemia. Mas, por aqui, o quadro se afigura bem mais complicado que em países mais afortunados. Na esteira da “segunda onda”, do surgimento de novas cepas do vírus e da gritante ineficácia das ações do governo na Saúde, o Brasil parece fadado a continuar enredado no combate à covid-19 por muitos meses mais.

Em artigo recente, intitulado O tsnunami que se aproxima, o renomado biólogo Fernando Reinach não poderia ter sido mais contundente: “Desculpem o pessimismo, mas é melhor apertar os cintos e nos prepararmos para o pior” (Estado, 30/1). A conta de quase 230 mil mortes parece estar longe do fim.

Tudo indica que as cenas macabras de Manaus fizeram soar o alarme definitivo no Planalto. Bolsonaro, afinal, se deu conta de como um novo e sério agravamento da pandemia poderá lhe ser desastroso. Percebeu, enfim, a real extensão de sua vulnerabilidade ao crescendo de indignação da opinião pública que tal cenário traria, tendo em vista a acintosa inconsequência com que se permitiu lidar com a pandemia desde seu início.

Por não dispor de mecanismos de correção de erros e pela própria personalidade peculiar do presidente, o governo se recusa a reconhecer seus equívocos no combate à covid-19. O que se teme, no Planalto, é que o reconhecimento de tais equívocos, com imediata demissão do ministro da Saúde, dê força redobrada às alegações de que os desacertos de Bolsonaro nessa área já seriam razão mais que suficiente para justificar seu impeachment.

Estalado nessa situação, o Planalto decidiu partir para nova fuga para a frente. Dobrou a aposta que já fizera, em maio do ano passado, quando negociou, às pressas, com o que havia de pior no Centrão, a montagem de uma coalizão governista na Câmara que ao menos lhe assegurasse os votos necessários para bloquear o avanço de um impeachment na Casa. A ideia, agora, foi comprar do Centrão um novo seguro contra impeachment, bem mais caro que o anterior, que efetivamente garanta a “blindagem” do presidente, mesmo nos cenários mais adversos de evolução da pandemia.

Não se trata propriamente de uma adesão tardia de Bolsonaro ao presidencialismo de coalizão, mas da contratação de uma guarda pretoriana supostamente mais confiável do que a que já fora contratada em maio. O Centrão pode dificultar o impeachment, mas não dará maioria ao governo para aprovar o que queira no Congresso.

A proteção, claro, não saiu barata. E deverá ficar mais cara a cada dia. Bolsonaro terá, agora, de arcar com os custos de cumprir o contratado e, de fato, trazer o Centrão para dentro do governo. Um caminho sem volta. E o que se espera é que ministérios inteiros sejam entregues de “porteira fechada”. Arranjos desse tipo envolvem riscos que poderão se mostrar proibitivos, tendo em conta as vulnerabilidades com que o presidente e seu entorno já vêm tendo de lidar.

São, sabidamente, políticos com arraigada propensão a extrair benesses do Estado, à custa do Tesouro, para atendimento dos interesses que representam. Em que medida a voraz “agenda extrativa” do Centrão conflitará com a agenda de Paulo Guedes? Vulnerável como está, o presidente se verá com pouca margem de manobra para endurecer o jogo com o Centrão, caso isso se faça necessário. Já não tem como se expor ao risco de retaliação. Tornou-se refém de seus supostos aliados.

O pior é que, se a epidemia de fato se agravar tanto como se teme, a recuperação da economia for comprometida e a proteção a Bolsonaro ficar pouco promissora, o Centrão não hesitará em abandoná-lo à própria sorte. Até as pedras sabem.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: Precariedade e popularidade

Atrasos inexplicáveis na vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência do governo

O terceiro ano do governo Bolsonaro continuará marcado pela persistência de um quadro de alarmante precariedade em áreas absolutamente cruciais para o país. Do combate à segunda onda da pandemia à vacinação tardia e desorganizada da população. Da condução improvisada da política fiscal a novas e reiteradas evidências de falta de compromisso efetivo do governo com a preservação do teto de gastos.

Tudo isso contribuirá para manter a economia em interminável clima de suspense, que dificultará a redução de risco que se faz necessária para uma recuperação vigorosa do nível de atividade, bem fundada na retomada dos investimentos. O país continuará restrito por um horizonte bem mais limitado do que seria possível e desejável.

Que planos tem Bolsonaro para a segunda metade do seu mandato? O que lhe sobra é 2021, ainda com pandemia e tudo, e o ano eleitoral de 2022. Sejam quais forem seus planos, sobram evidências de que já não há no Planalto qualquer disposição de levar adiante reformas fiscais necessárias. Todas as medidas de ajuste fiscal de mais fôlego vagamente aventadas pela equipe econômica no ano passado foram sistematicamente solapadas pelo Planalto no nascedouro (gatilhos, reforma administrativa, privatização).

O esforço de ajuste fiscal de 2020 redundou em nada. O Ministério da Economia alega que não ter havido prorrogação do auxílio emergencial ou criação de programa substituto (Renda Cidadã/Brasil) foi um sinal importante de compromisso com a consolidação fiscal. Mas a verdade é que é muito cedo para cantar vitória.

É preciso aguardar o que fará o Congresso. “Tudo isso será motivo de reflexão a partir de fevereiro”, advertiu, em dezembro, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo no Senado. E ainda falta ver qual será a reação de Bolsonaro, se a suspensão do auxílio emergencial, em meio à segunda onda da pandemia e com desemprego em alta, acabar se refletindo em queda expressiva de sua popularidade.

Como evoluirá a popularidade de Bolsonaro nos próximos meses, na esteira do agravamento da pandemia e da impaciência com a demora da vacinação? É bem possível que se observe fenômeno similar ao que, ao analisar determinantes da intolerância política com a desigualdade, há quase meio século, Albert Hirschman rotulou de efeito túnel. A analogia era com o comportamento de motoristas dentro de um túnel em que o trânsito foi subitamente interrompido.

De início, todos se mostram compreensivos com a situação. E, quando, afinal, uma das faixas começa a andar, isso é visto de forma positiva pelos que continuam parados. Um prenúncio de que veículos de todas as faixas estão prestes a também voltar a andar. Se, no entanto, a desobstrução das demais faixas não ocorrer, a postura compreensiva dos que continuam parados logo dará lugar a um clima generalizado de revolta com a situação.

É fácil perceber quão elucidativa pode ser a aplicação da ideia de efeito túnel à análise da reação popular à pandemia no Brasil. A postura surpreendentemente compreensiva da população em face da Covid-19 pode estar fadada a dar lugar a um sentimento inequívoco de revolta, à medida que se disseminar a percepção de que, enquanto dezenas de países avançam céleres na vacinação de suas populações, o Brasil continua incapaz de articular um programa minimamente eficaz e abrangente de vacinação.

É fácil ver que, no que tange a vacinas, o governo já não terá espaço para explorar narrativas ilusionistas como tanto fez durante a epidemia. Atrasos e deficiências inexplicáveis do programa de vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência e à irresponsabilidade do governo, no cumprimento de uma de suas obrigações mais fundamentais.

É difícil que a suposta resiliência da popularidade do presidente atravesse incólume esse teste de fogo. A reação de Bolsonaro, caso depare com súbita queda de popularidade, promete ser mais um fator crucial de incerteza a deixar a economia sobressaltada nos próximos meses.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.


Foto: Beto Barata\PR

Rogério L. Furquim Werneck: Um pé em cada canoa

Diante de tamanha incerteza sobre a gestão das contas públicas, não é surpreendente que o risco fiscal esteja em ascensão

O Planalto pode até não ter percebido ainda, mas está, ou deveria estar, em desenfreada corrida contra o tempo. O ano legislativo está chegando ao fim. E, com os parlamentares mobilizados com as eleições municipais até pelo menos 15/11, sobrarão pouco mais de 30 dias para o governo extrair do Congresso uma saída razoável para o entalo fiscal em que se meteu.

Há um Orçamento a ser aprovado, mas nem mesmo foi instalada a comissão mista que deverá apreciá-lo. E, na proposta orçamentária submetida ao Congresso, faltam programas vultosos que o Planalto considera prioritários, como o que deverá substituir o Auxílio Emergencial, a ser extinto em 31/12, quando chegar ao fim o período de vigência do estado de calamidade decretado em decorrência da pandemia.

O governo não sabe ainda de onde virão os recursos que, sem violar o teto de gastos, financiarão o novo programa. A solução mais óbvia, proposta por um grupo de especialistas ligados ao Centro de Debates de Política Pública (CDPP), seria racionalizar programas sociais mal focados, como o abono salarial e o seguro-defeso, para liberar os recursos que se fazem necessários. Foi lamentável que tal solução tenha sido torpedeada de chofre pelo próprio Bolsonaro, que, mal assessorado, se apressou a declarar que não faria sentido tirar de pobres para dar a paupérrimos.

Tampouco será possível contar com recursos que poderiam ter vindo da prometida redução da rigidez orçamentária, que decorreria dos esforços de desindexação, desvinculação e desobrigação alardeados por Paulo Guedes. Pouco ou nada foi feito nessa linha. E é improvável que as medidas requeridas possam ser aprovadas a toque de caixa, ainda em 2020.

Diante de tamanha incerteza sobre a problemática gestão das contas públicas, não é surpreendente que o risco fiscal esteja em franca e preocupante ascensão, como bem sabe o secretário do Tesouro Nacional. O que, sim, surpreende é que Bolsonaro permaneça tão alheio ao entalo com que se defronta o governo.

Não há sinais de que o presidente vá abandonar a postura ambígua que vem mantendo. Ao mesmo tempo que resiste a contrariar todo e qualquer interesse que poderia ser afetado por cortes de gastos e, pior, em que estimula queixas da ala “desenvolvimentista” do governo contra o “fiscalismo” de Paulo Guedes, o presidente dispensa afagos periódicos ao ministro da Economia, para se assegurar de que ele continuará a bordo.

Tudo indica que Bolsonaro pretende atravessar este atribulado final de ano descendo a corredeira com um pé em cada canoa, certo de que não há melhor maneira de deixar que as águas o conduzam à reeleição.

É bem possível que a tranquilidade do Planalto advenha da percepção de que, em último caso, o governo pode simplesmente prorrogar o estado de calamidade e, com isso, abrir espaço para que o Auxílio Emergencial continue a ser pago, com recursos extrateto, em 2021.

Parece fácil, mas não é. A prorrogação seria até defensável, houvesse sério e inequívoco recrudescimento da pandemia no País. Como, por ora, não há como arguir nada parecido, o mais provável é que uma prorrogação nessas circunstâncias venha a ser percebida como deveria ser: mero estratagema de um governo que, não tendo conseguido viabilizar a reversão do aumento de gastos ensejado pela pandemia, não pôde dar por findo o regime de exceção que permitia gastos de emergência extrateto. Só com muito autoengano poderia alguém achar que tal prorrogação não seria percebida como canhestro rompimento do teto.

Fazendo uso do direito de autoplágio, repito a seguir, por oportuno, o parágrafo final do artigo que aqui publiquei em 21/8: “Foi sob a sombra do teto de gastos que se pôde montar o espetáculo fenomenal de uma economia com inflação ineditamente baixa, taxa real de juros próxima de zero e contas fiscais escancaradamente insustentáveis. O que ainda não se sabe é com que rapidez tal espetáculo será inviabilizado, quando se disseminar a percepção de que a prometida preservação do teto se mostrou fantasiosa”.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: Já não há plano de jogo

A falta de um plano de jogo claro e que faça sentido, num quadro de grave deterioração fiscal, exacerba o clima de alta incerteza do País

Em meio à colossal crise que o País enfrenta, só se pode ver com muita apreensão a forma cada vez mais confusa com que a política econômica vem sendo formulada e conduzida, em Brasília. A verdade é que está difícil de discernir algo que se assemelhe a um plano de jogo.

O que se vislumbra, com muito esforço, são pelo menos três planos distintos. Embora sejam todos eles pouco nítidos, parece mais do que claro que o que o ministro da Economia contempla já não é o que o Planalto tem em mente. Nem tampouco o que acalenta a recém-empoderada base parlamentar que o governo recrutou às pressas no Centrão.

Agastado com parlamentares, Paulo Guedes decidiu deixar a negociação da pauta econômica do governo com o Congresso por conta do ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, e das lideranças das bancadas governistas na Câmara e no Senado. “Acabou meu voluntarismo”, anunciou o ministro da Economia. O que se teme é que, junto com o voluntarismo de Paulo Guedes, tenha também acabado a garantia de que o que for negociado com o Congresso estará alinhado com o que o ministro entender que deva ser acertado.

No Planalto, o capitão e seus generais já não se pautam pelo que lhes recomenda o Posto Ipiranga. Sem ir mais longe, para assegurar “desempate”, o general Luiz Eduardo Ramos passará a integrar a Junta de Execução Orçamentária (JEO), colegiado responsável pelas principais decisões do Orçamento, do qual, antes, só faziam parte os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Casa Civil, general Walter Braga Netto.

A proposta orçamentária enviada ao Congresso é sabidamente uma peça de ficção. Não inclui itens importantes da lista de gastos prioritários do Planalto para 2021, como projetos de investimento do Plano Pró-Brasil, preconizado pela ala desenvolvimentista do governo, e o programa Renda Brasil, que turbinaria o Bolsa Família e substituiria o Auxílio Emergencial com algum sucesso político. Ou alguém acredita, mesmo, que Bolsonaro de fato desistiu do Renda Brasil? O presidente bem sabe que, se, a esta altura, desistir, não terá como evitar que o Congresso tome a iniciativa de criar programa similar, como bem entender.

Há, ainda, outras contas vultosas em aberto. Não se sabe em que medida o enorme aumento de dispêndio ensejado pela pandemia será, de fato, revertido em 2021. Ou qual será o custo fiscal da saraivada de derrubadas de vetos presidenciais engatilhadas no Congresso. Como poderá tudo isso ser acomodado sob o Teto de Gastos? Em que déficit primário o governo terá de incorrer em 2021?

Setembro está ficando para trás e o início da campanha eleitoral nos municípios, dia 27, tornará ainda mais difícil a tramitação no Congresso das medidas que supostamente abririam algum espaço fiscal. Às voltas com mais reformas do que terá condições de aprovar, o governo precisa se concentrar no que lhe é de fato essencial.

Na semana passada, parecia que o governo decidira centrar esforços na PEC do Pacto Federativo, fiando-se nas promessas um tanto róseas do seu relator, no Senado, de aprovação de avanços significativos na agenda de desvinculação de receitas e desindexação de gastos. Só que não. Correndo contra o tempo e acossado como está, o ministro da Economia não teve melhor ideia do que anunciar que o fundamental, agora, é viabilizar a aprovação de seu desajuizado projeto de recriação da CPMF.

A falta de um plano de jogo claro e que faça sentido, num quadro de grave deterioração fiscal, exacerba o clima de alta incerteza em que o País está imerso. Sem redução substancial do risco fiscal será difícil de destravar investimentos que ainda permanecem viáveis, em setores que não padecem de excesso de capacidade, como os de infraestrutura, óleo e gás e agronegócios. E, sem retomada do investimento, a reativação da economia e a recuperação da receita fiscal estarão fadadas a ser muito mais lentas do que o governo espera.

A verdade é que, por enquanto, está difícil vislumbrar redução palpável dos efeitos paralisantes do risco fiscal.

*Economista, doutor pela universidade harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: Plano de jogo arriscado

Espetáculo da reforma tributária não promete ter bom desfecho

Para avaliar a nova mobilização de Brasília com a agenda de reforma tributária, é bom ter em conta as dificuldades que terão de ser enfrentadas.

Já há anos, tramitam na Câmara e no Senado dois projetos abrangentes de reforma da tributação sobre bens e serviços. Para que pudessem ter avançado, sem descarrilar, era preciso que o Planalto os tivesse endossado e feito sentir seu peso no Congresso. Mas o governo jamais escondeu sua falta de entusiasmo pelos dois projetos. E Bolsonaro nunca entendeu a importância de manter uma coalizão governista expressiva, que lhe permitisse ter ascendência sobre o Congresso.

A improvisada coalizão que, agora, Bolsonaro vem tentando formar, às pressas, tem propósito meramente pretoriano. O que o presidente espera do mambembe contingente parlamentar recrutado no centrão é proteção contra tentativas de impeachment. Só Deus sabe se os recém-alistados pretorianos servirão para isso. O certo é que, para mais que isso não tem servido, como bem atesta o triste placar de derrotas e derrubadas de vetos presidenciais que o Congresso vem infligindo ao Planalto.

Quase 19 meses se passaram até que o governo, afinal, apresentasse sua proposta de fusão do PIS e da Cofins numa só Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), cobrada sobre valor adicionado. Um projeto simples que, há muito tempo, poderia perfeitamente ter sido integrado às propostas de reforma mais abrangentes que já tramitam no Congresso. E não foi.

É bem sabido que a aprovação da CBS, como foi proposta, imporia aumento substancial de carga tributária a prestadores de serviços. E já se ouve a estridência dos protestos. O que preocupa é que tais protestos fazem parte do mirabolante plano de jogo do governo para novas etapas da reforma tributária. É com base no lobby dos grandes setores prestadores de serviços que o governo pretende, agora, solapar as resistências do Congresso à restauração de um tributo similar à CPMF, ideia em que o ministro da Economia continua tendo obsessiva fixação.

O aumento de carga tributária advindo da CBS seria compensado por redução da contribuição patronal sobre a folha, bancada pela receita de uma nova CPMF que, quem sabe, daria até para custear parte do programa Renda Brasil. Como as contas não fecham, vêm sendo mencionadas alíquotas de CPMF que variam de 0,2% a 1,1%. Numa economia onde a taxa real de juros está cada vez mais próxima de zero.

Nesse palco, o espetáculo da reforma tributária não promete ter bom desfecho. O que se vê é um governo fragilizado, sem poder de bloqueio no Congresso, disposto a desencadear uma reforma complexa, com cardápio aberto, que contempla farta distribuição de desonerações com base na “arrecadação fácil” de tributos exóticos. Acredita mesmo o ministro da Economia que, nesse jogo, conseguirá manipular a voracidade dos lobbies, aguçada pela severidade da crise, e manter sua reforma nos trilhos?

O que se teme é algo parecido com a deprimente pajelança da desoneração da folha, perpetrada pela inesquecível equipe de Dilma Rousseff. A estapafúrdia ideia inicial era permitir que alguns poucos setores, exportadores ou expostos à concorrência externa, deixassem de pagar contribuição patronal sobre a folha e passassem a recolhê-la sobre faturamento, com base em alíquotas fixadas setor a setor, conforme a grita de cada um.

A coisa desandou, quando o Congresso, fascinado pela alquimia, apossou-se do caldeirão e, para espanto dos impotentes aprendizes de feiticeiro, passou a distribuir a poção mágica de benesses a dezenas de outros setores. Entre eles, grandes prestadores de serviços, que nada tinham a ver com comércio exterior.

O primeiro governo Dilma terminou há mais de seis anos. E até hoje não se conseguiu pôr fim à farra fiscal que tal pajelança propiciou. Como bem sabe o ministro da Economia, ainda há 17 setores, muitos deles enormes, prestes a conseguir, no Congresso, que a moleza seja prorrogada por um “aninho” mais. É a esse Congresso que estará entregue a condução da reforma tributária.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: A incerteza como ela é

Resistir à tentação de atribuir probabilidades arbitrárias a cenários imprevisíveis

Esmagados, como estamos agora, por opressiva incerteza sobre o que nos reserva o futuro, é hora de ler o instigante livro de Mervyn King e John Kay, Radical uncertainty (Incerteza radical), recém-lançado nos EUA e no Reino Unido.

Mervyn King presidiu o Banco da Inglaterra por dez anos, entre 2003 e 2013, período em que lhe coube administrar a difícil travessia da grande crise de 2007-2008. É professor da New York University e da London School of Economics. John Kay é um microeconomista, professor de Oxford e renomado colunista do Financial Times.

O argumento central do livro não chega a ser novo. Seu mérito está em destacar e dar novo alento à crucial distinção entre os conceitos de risco e de incerteza, ressaltada por dois grandes economistas da primeira metade do século passado, Frank Knight e John Maynard Keynes.

Nessa distinção, o conceito de risco estaria restrito a situações em que possíveis desfechos futuros e suas respectivas probabilidades fossem previamente conhecidos. Já o termo incerteza ficaria referido a situações em que não se conhecem as probabilidades nem mesmo os possíveis desfechos futuros relevantes.

O que os autores arguem no livro é que, já há várias décadas, economistas vêm ignorando essa distinção e se permitindo tratar incerteza como risco. E, nessa transgressão, vêm sendo alegremente seguidos por estrategistas, analistas políticos e toda sorte de especialistas e consultores.

Trata-se de livro excepcionalmente bem escrito, de leitura agradável, em larga medida acessível a leitores sem formação técnica específica, em que os autores fazem uso intenso e engenhoso de uma profusão de casos concretos e situações amplamente conhecidas para reforçar intuições e dar respaldo a seus argumentos.

Embora a versão final dos manuscritos tenha sido entregue aos editores em meados de 2019, o livro acabou se revelando muito mais oportuno do que seus autores poderiam imaginar, na esteira da enorme incerteza levantada, em 2020, pela pandemia e seus desdobramentos socioeconômicos. Especialmente no Brasil, onde a colossal onda de incerteza vem sendo exacerbada pela complexa interação das crises sanitária e econômica com a difícil crise política em que o País está mergulhado. O que hoje nos aflige não é o desafio de lidar com uma elevação de risco. E, sim, a brutal incerteza, cerrada e inescrutável, que passamos a ter de enfrentar. Um caso claro do que os autores rotulam de incerteza radical.

King e Kay acompanharam de perto, na crise de 2007-2008, os desdobramentos desastrosos da disseminação da prática de tratar incerteza como risco na precificação de ativos financeiros complexos. E essa experiência certamente contribuiu para lhes deixar ainda mais convictos do argumento central que deu lugar ao livro. Mas a verdade é que os autores vão bem além disso, ao dar a tal argumento um tratamento muito mais amplo e geral, em contraste com a pletora de livros – vários deles, muito bons – já publicados sobre a crise de 2007-2008.

King e Kay usam uma expressão elucidativa: unknowable future, futuro incognoscível, que não é previamente conhecível. Em circunstâncias marcadas por incerteza radical, de nada adianta o escapismo de atribuir, a torto e direito, probabilidades arbitrárias a cenários que decorrerão de processos completamente imprevisíveis. Não há alternativa a não ser encarar a real natureza da incerteza envolvida, como de fato é, em toda a sua complexidade.

Os autores ponderam que, diante de incerteza radical, o que se espera dos supostos especialistas – sejam eles economistas, analistas políticos ou epidemiologistas – não é atribuir probabilidades a esmo, mas prover uma narrativa coerente e crível que possa prover um contexto adequado para as decisões a tomar. É com base nessa narrativa que os responsáveis por organizações complexas bem geridas poderão entender com mais clareza a real natureza do problema envolvido. E adotar soluções que se mostrem robustas e resilientes a eventos inerentemente imprevisíveis.

  • Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

Rogério L. Furquim Werneck: Cenas de desgoverno

Teria sido menos deprimente se os participantes da reunião tivessem se limitado a não contestar os acessos de primitivismo de Bolsonaro

É impossível ver o vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril sem ser tomado por avassaladora apreensão com a forma como o País vem sendo governado. Calam fundo não só os gritos, como os silêncios. Entre muitas outras barbaridades, o presidente da República confessou aos brados, com todas as letras, para quem quisesse ouvir, que está ostensivamente empenhado em levar adiante um projeto com o objetivo deliberado de “armar o povo” para que possa confrontar autoridades constituídas dos governos subnacionais.

Já houve tempo – e não me refiro às duas décadas de regime militar – em que tal confissão faria soar todos os alarmes nas Forças Armadas. Não foi o que se viu. Nenhum dos muitos oficiais-generais presentes na reunião sequer piscou. Mas o que de fato importa, no caso, é o que o Supremo e a Procuradoria-Geral da República terão a dizer sobre tão desafortunada confissão. Acuado como está, o presidente não perde oportunidade de se encalacrar cada vez mais.

Teria sido menos deprimente se os participantes da reunião tivessem se limitado a não contestar os acessos de primitivismo de Bolsonaro. Mas o que se viu foi um torneio de capachismo, em que ministros e outras autoridades presentes se revezavam em louvores aos despropósitos vociferados pelo presidente, sem descuidar do estilo primitivo que parecia ser de uso protocolar na reunião.

Afora uma intervenção curta e anódina do ministro 02 da Saúde, pouco se ouviu sobre a pandemia, a não ser diatribes impublicáveis contra governadores e prefeitos, trovejadas por um presidente inconformado com as limitações que lhe são impostas pelos preceitos constitucionais de uma República federativa.

Nesse ambiente carregado, o ministro da Economia fez o que pôde para tentar dar seu recado, com amplo uso da cota de excessos verbais que lhe cabia na reunião. Arguiu que, por abalado que tenha sido pela crise, o governo não tinha perdido a bússola. E que, se souber retomar o trilho da política econômica, tão logo a pandemia esteja sob controle, o País surpreenderá o mundo. E a reeleição do presidente estará assegurada.

O problema é que, na bússola de Bolsonaro, o único rumo a seguir passou a ser o da resistência ao impeachment. E, como bem mostrou a reunião, boa parte do governo e de seus novos aliados no Congresso anda fascinada com a possibilidade de acelerar a recuperação da economia com a adoção de políticas nacional-desenvolvimentistas.

Não há autoengano que resolva. É impossível não perceber quão gritante é a desproporção entre a enormidade dos desafios com que o País se defronta e as acanhadas possibilidades de atuação eficaz da cúpula do governo, cruamente desnudadas pelo vídeo da reunião de 22 de abril, em Brasília.

Questão de múltipla escolha
Imagine que você esteja entre os 210 passageiros de um voo intercontinental e, em plena travessia do Atlântico, o avião seja colhido por uma tempestade perfeita – a maior em 100 anos, surgida do nada, para grande surpresa dos meteorologistas. Atribulada com o enfrentamento da tempestade e a tranquilização dos passageiros, a tripulação começa a se dar conta de que o comandante parece estar fora de si, gritando frases desconexas, alheio à gravidade da situação e, o que é pior, insistindo em manobrar o avião com alarmante imprudência, ao arrepio do que, em circunstâncias tão adversas, sugerem regras elementares de condução da aeronave.

Responda para você mesmo: o que deveria fazer a tripulação?

1) Nada, porque é ao comandante, e só a ele, que cabe a escolha da melhor forma de enfrentar a tempestade;

2) Esperar que o avião atravesse a tempestade e reavaliar a situação;

3) Esperar que o avião chegue a seu destino e avaliar se seria o caso de relatar o ocorrido à ouvidoria da empresa, com a discrição cabível;

4) Afastar o comandante da cabine de comando, tão logo quanto possível, para que o copiloto possa assumir pleno controle da aeronave em situação tão crítica;

5) Prefiro não responder, nem para mim mesmo;

6) Não tenho tempo a perder com questão tão idiota.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: O jogo do impeachment

Em que medida ele estreita as possibilidades de atuação eficaz no combate à pandemia e a seus desdobramentos?

Salta aos olhos que, se continuar isolado, fragilizado e acuado como está, o presidente estará fadado a enfrentar dificuldades redobradas para lidar com a pandemia e seus complexos desdobramentos socioeconômicos. Não surpreende que Bolsonaro insista em reservar posição para poder alegar inocência quando a conta desses desdobramentos chegar. Mas, se as notícias sobre a letalidade da pandemia continuarem tão alarmantes como se teme, é bem possível que o seguro que Bolsonaro vem tentando fazer, na esperança de que o custo político da recessão possa recair sobre governadores e prefeitos, acabe se revelando proibitivamente caro.

É natural que a popularidade do presidente esteja caindo, na esteira das suas dificuldades com a pandemia e a crise econômica. O problema é que, tendo aberto uma terceira frente, ao desencadear crise política tão grave, Bolsonaro se viu agora exposto a risco crescente de impeachment. O que torna o quadro ainda mais intrincado é a forma peculiar com que Bolsonaro vem reagindo à elevação desse risco. Em contraste com o ex-presidente Temer, que, a partir do episódio do porão do Jaburu, passou a pautar cada movimento seu pelo objetivo de minimizar o risco de impeachment, Bolsonaro tem se permitido reações que, muito ao contrário, parecem exacerbar tal risco e chegam até a dar margem a novas razões para impeachment.

O sequenciamento usual do impeachment envolve, primeiro, identificação de crime de responsabilidade e, a seguir, formação da coalizão requerida para aprovar o pedido de impeachment na Câmara. Mas o sequenciamento que Bolsonaro deveria temer é outro: paulatina formação de uma coalizão em favor do impeachment na Câmara, súbito movimento de manada que pareça assegurar a maioria requerida e, só então, escolha dos crimes de responsabilidade a alegar.

Bolsonaro deveria ter em conta a famosa frase do ex-presidente Gerald Ford sobre a questão que, adaptada ao caso brasileiro, pode ser expressa em português claro como “crime de responsabilidade é o que a maioria da Câmara dos Deputados entender como tal num dado momento” (“High crimes and misdemeanors” should be defined as “whatever a majority of the House of Representatives considers them to be at a moment in history”).

Apesar de suas reações irrefletidas, Bolsonaro afinal deu mostras de ter percebido o risco a que está exposto. E vem tentando se resguardar contra isso no Congresso. Mas, de novo, há nessa iniciativa claro contraste com Temer, que contava com sólida coalizão governista previamente construída, graças a uma trajetória parlamentar de sucesso, em que ocupou por dois mandatos a presidência da Câmara. O que agora se vê é algo bem distinto: um movimento tardio e um tanto desesperado de Bolsonaro para negociar às pressas, com o que há de pior no Centrão, a montagem de uma coalizão governista na Câmara que pelo menos lhe possa assegurar os 172 votos necessários para bloquear o avanço de um processo de impeachment na Casa.

Tudo indica que o risco de impeachment continuará a assombrar o presidente por muito tempo. Em que medida isso estreitará ainda mais suas possibilidades de atuação eficaz no combate à pandemia e a seus graves desdobramentos socioeconômicos?

Saberá o Planalto abandonar o cabo de guerra com governadores e prefeitos e passar a tratar com a devida ponderação as complexas escolhas envolvidas nas decisões sobre timing, formatação e flexibilidade de uma saída concertada do confinamento, com cuidadosa contraposição dos riscos de agravamento da pandemia e dos custos crescentes de aprofundamento da recessão? Conseguirá o presidente conciliar a preservação da equipe econômica com as condições do seguro contra o impeachment contratado com a pior parte do Centrão?

Respostas desalentadoras a tais indagações sugerem que é bem provável que, ao tornar o presidente ainda mais incapaz de enfrentar de forma adequada as duas grandes crises que vêm aterrorizando o País, o risco de impeachment poderá se elevar na esteira do agravamento da situação.

*Economista, doutor pela universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: Cálculo político revelador

Os benefícios esperados superavam com folga os custos envolvidos na decisão de enfrentar Sergio Moro

Não lhe bastassem a pandemia e a recessão, o presidente decidiu abrir uma terceira frente, ao deflagrar grave crise política que poderá até lhe custar o mandato.

Tendo se permitido incorrer nos custos de destituir Mandetta em meio à pandemia, Bolsonaro não se deu por satisfeito. Três dias depois, aceitou ser protagonista central de grotesca manifestação antidemocrática, em frente ao QG do Exército, em Brasília. E, em seguida, não teve melhor ideia do que armar novo pandemônio político que culminou na renúncia do mais popular de seus ministros.

Diante de tantos despropósitos, é natural que muitos analistas estejam tentados a crer que o presidente já não se pauta por considerações racionais. E é até possível que estejam certos. Mas, por ora, parece mais realista presumir que o presidente continua tentando ser racional, ainda que com objetivos muito estreitos, péssima assessoria e manejo lamentável dos seus recursos políticos. É uma perspectiva analítica mais promissora, porque permite vislumbrar elementos cruciais do cálculo político do Planalto que escapariam a análises baseadas na presunção de irracionalidade.

Já é hora de passar a entender Bolsonaro & Filhos como um grupo político indissociável. Tendo conquistado a Presidência da República nas condições especialíssimas da eleição de 2018, o grupo atravessou 2019 cada vez mais convicto de que o feito poderia ser repetido em outubro de 2022.

Tal convicção viria a ser fatalmente abalada pela pandemia e seus complexos desdobramentos econômicos e sociais. E, para o grupo, a brusca reversão de expectativas seria traumática.
Mandetta caiu, em parte, por ter mostrado mais sucesso do que deveria. Mas, primordialmente, por ter insistido numa linha bem fundamentada de combate à epidemia que eliminava qualquer esperança de que a economia pudesse vir a ter, em 2020, desempenho compatível com o projeto de reeleição de Bolsonaro.

Ao erro crasso da destituição de Mandetta, seguiram-se novos e graves equívocos. Inseguro com a extensão do desgaste que a troca do ministro da Saúde provocara, o presidente foi convencido a ter desastrosa participação na demonstração antidemocrática de domingo, 19, em Brasília. O que lhe rendeu, já no dia seguinte, solicitação da Procuradoria-Geral da República, ao STF, de instauração de inquérito sobre os patrocinadores da demonstração.

E aqui vem a questão crucial. Por que Bolsonaro & Filhos não pararam por aí? Por que, tendo já incorrido em tanto desgaste, decidiram desencadear, em momento tão inconveniente, a disputa pelo controle da Polícia Federal (PF), que redundaria na renúncia de Moro?

Na resposta a tal indagação, faz toda diferença supor que Bolsonaro & Filhos ainda tomam decisões racionais ou que já estão entregues à inconsequência. Se a decisão de enfrentar Moro adveio de um cálculo político racional, é porque os benefícios esperados superavam com folga os custos envolvidos.

Saltam aos olhos quão enormemente custosa, para o Planalto, foi a renúncia de Sergio Moro. É difícil que Bolsonaro & Filhos tenham se surpreendido com as proporções do desgaste político que lhes foi imposto. Se, mesmo assim, foram em frente com a decisão, é porque os benefícios que esperavam auferir com o controle da PF lhes pareciam largamente compensadores.

Como é fácil perceber, a simples suposição de que a decisão de desafiar Moro decorreu de um cálculo político racional é o que basta para entrever quão alarmado estava o Planalto com sua vulnerabilidade. E quão urgente lhe parecia assumir controle imediato e absoluto sobre a PF.

Com a suspensão da nomeação do novo diretor da PF, por liminar do STF, o oneroso episódio que redundou na renúncia de Moro converteu-se no que no mundo anglo-saxão se rotula de all-cost operation. Só custos, nenhum benefício. Por ora, Bolsonaro & Filhos voltaram a se ver tão vulneráveis como antes se viam.

É assombrado por essa vulnerabilidade que o governo, agora, terá de lidar com o avanço da pandemia e a brutal crise econômica e social que o país tem pela frente.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: O que mais falta é lucidez

É preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível

É hora de reler os parágrafos iniciais do famoso ensaio “How to Pay for the War”, sobre o financiamento do esforço de guerra britânico, escrito por John Maynard Keynes, em fevereiro de 1940, para aprimorar propostas preliminares que já tinha feito em dois artigos no “Times”, em novembro de 1939, logo no início da guerra.

“Não é fácil, para uma democracia, se preparar para a guerra. Não é da nossa índole dar ouvidos a analistas e cassandras. Nosso forte é saber improvisar. Mas é hora de dar mais atenção ao que andam dizendo. Ninguém sabe quanto tempo isso vai durar. Na área militar, há convicção de que o mais seguro, por ora, é nos prepararmos para um longo enfrentamento. É inadmissível que, na área econômica do governo, continuem a se pautar por perspectiva distinta. O que nos falta, no front econômico, é lucidez e coragem. Não recursos materiais.”

“Coragem acabará surgindo se, da fadiga e do tumulto da guerra, as lideranças políticas conseguirem extrair a lucidez requerida para perceber o que está ocorrendo e conseguir explicar ao público o que se faz necessário. E aí propor um plano socialmente justo, que saiba fazer desse momento de tamanho sacrifício, não uma desculpa para adiar reformas que terão de ser feitas, mas uma oportunidade para ir além do que até agora conseguimos, na redução das desigualdades.”

“Mais lucidez, portanto, é o que mais precisamos. E isso não é fácil. Porque, como os muitos aspectos do problema econômico a enfrentar estão inter-relacionados, nada pode ser resolvido isoladamente. Cada uso dos recursos disponíveis se faz à custa de um uso alternativo. E, uma vez decidido quanto poderá ficar disponível para consumo civil, ainda restará a mais intrincada de todas as questões, que é determinar a forma mais sábia de distribuir o consumo.”

O que é notável, passados 80 anos, em meio aos enormes desafios econômicos e sociais impostos pela pandemia, é quão atual continua sendo a preocupação central externada por Keynes nesses três parágrafos. O que ele mais temia, em 1940, é que faltasse a seu país a lucidez necessária para equacionar a penosa mobilização de recursos que uma guerra prolongada passara a exigir.

O que, no Brasil de hoje, mais se teme, no front econômico, é que, na tumultuada mobilização de recursos públicos que o combate à pandemia e a atenuação de seus desdobramentos socioeconômicos vêm exigindo, o país se perca nos excessos do imediatismo. E bote a perder suas possibilidades de enfrentar com sucesso os desafios com que terá de voltar a lidar, quando a Covid-19 tiver ficado para trás.

Não é o momento de medir esforços no combate à epidemia e a seus complexos efeitos colaterais. Mas é preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível. E que tal expansão não seja perdulariamente amplificada, na esteira de pressões indefensáveis dos aproveitadores de sempre, que agora tentam fazer bom uso da consternação do país com a pandemia, para orquestrar nova e devastadora pilhagem do Tesouro.

É preciso, sobretudo, que as lideranças mais lúcidas do Congresso saibam separar o joio do trigo e conter a voracidade de governadores e prefeitos, que vêm tentando se aproveitar do tumulto para repassar aos contribuintes federais parte substancial da conta acumulada do descontrole fiscal dos governos subnacionais.

É preciso ter em mente que, passada a epidemia, o país estará no fundo de uma recessão de profundidade ainda não sabida, com um exército de desempregados muito maior que os 12 milhões de desocupados do início deste ano. E que, quando tivermos de voltar a encarar a difícil agenda da retomada do crescimento, o desafio da consolidação fiscal terá assumido proporções que, há três meses, pareceriam inimagináveis.

Na penosa construção de uma sociedade mais próspera e mais equânime, precisamos estar preparados para um longo embate, em muitas frentes, que mal terá começado quando a pandemia for superada. Não é hora de complacência com assaltos ao Tesouro.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Rogério L. Furquim Werneck: Festival de desatinos

Sucesso em áreas-chave para sairmos da crise depende de que o Brasil continue a ser percebido como um país sério

Que efeito uma nomeação desastrosa para a Funarte poderá vir a ter sobre o investimento estrangeiro em projetos de infraestrutura? Tivesse sido feita há um ano, tal indagação teria causado espanto e levantado sérias dúvidas sobre a sanidade de quem teria sido capaz de formular semelhante pergunta. Passados 12 meses, contudo, é triste constatar que a indagação já não parece tão estapafúrdia assim. Mas quem, em sã consciência, poderia imaginar no final do ano passado as proporções dos infindáveis desatinos que agora vêm pautando não só a gestão da Funarte, como a de muitos outros segmentos importantes do governo federal?

A Fundação Nacional de Artes é um órgão que tem como objetivo fomentar produção, prática, desenvolvimento e difusão das artes no País. Como amplamente divulgado, seu recém-nomeado presidente tem externado ideias ensandecidas sobre amplo leque de questões, nem sempre relacionadas ao campo de atuação da Funarte. Faz apaixonada profissão de fé na ideia de que a Terra é plana. E está convicto de que o rock é um gênero musical que induz ao satanismo.

O caso da Funarte merece atenção porque é emblemático. Não é um fato isolado. É apenas uma manifestação mais contundente de um problema bem mais geral, que tem dado lugar a ondas recorrentes de declarações despropositadas, feitas por pessoas completamente despreparadas para exercer os cargos nos quais foram investidas, em amplos segmentos da administração pública federal.

Entregue ao autoengano, boa parte do País tem feito o possível para fechar os olhos para tal problema, agarrando-se a uma racionalização já um tanto surrada: não obstante o quadro inegavelmente desalentador que se vê em grande parte da Esplanada dos Ministérios, o governo conta com ministros competentes nas áreas que de fato importam para a saída da crise, como economia, infraestrutura e agricultura.

A presunção implícita nessa racionalização é de que a probabilidade de que o governo tenha sucesso nessas áreas independe completamente do que vier a aprontar nas demais. Ou seja, que, sem incorrer em maiores custos, o governo pode se permitir manter, por quatro anos, um arranjo completamente esquizofrênico, com três ministérios bem tripulados e grande parte do resto da administração federal entregue à insensatez.

Sobram razões para perceber quão infundada é tal presunção. Sem ir mais longe, basta ter em conta que parcela importante do sucesso das políticas conduzidas pelos ministros da Economia, da Infraestrutura e da Agricultura deverá depender de um fator crucial: a manutenção de uma imagem positiva do País no exterior. Em bom português, será fundamental assegurar que o Brasil continue a ser percebido como um país sério.

Disso dependerão o sucesso do programa de privatização contemplado pelo ministro Paulo Guedes, a maciça participação de investidores estrangeiros em projetos de infraestrutura vislumbrada pelo ministro Tarcísio de Freitas e a expansão desimpedida das exportações brasileiras de produtos agropecuários, num mundo cada vez mais protecionista e atento à preservação do meio ambiente, pela qual se empenha a ministra Teresa Cristina.

Ao entregar a Funarte a um terraplanista confesso, convicto de que o rock induz ao satanismo, e se permitir infindáveis barbaridades análogas em grande parte da administração pública federal, inclusive no próprio Planalto, o governo vem expondo-se ao escárnio internacional. Aos poucos, a imagem do País no exterior vem sendo dominada por um frenético mosaico de despropósitos vexaminosos perpetrados pelo governo, que empana o que há de positivo a mostrar e torna cada vez mais difícil que o mundo continue a perceber o Brasil como um país que deva ser levado a sério.

A questão é se os segmentos mais lúcidos do governo já perceberam quão graves poderão ser os desdobramentos dessa marcha da insensatez. E se terão condições de conter o avanço das forças do atraso, do obscurantismo e do autoritarismo no Planalto. Fácil não será.


Rogério L. Furquim Werneck: Duas ideias fixas

Menos de oito anos após a desoneração da folha perpetrada pelo governo Dilma Rousseff, faria sentido promover novo desmantelamento da cobrança de encargos trabalhistas sobre a folha?

Não é de hoje que Paulo Guedes tem uma ideia fixa. Está convicto de que a eliminação da contribuição previdenciária patronal incidente sobre a folha de pagamentos teria um impacto extraordinário sobre o emprego. De início, não lhe parecia uma ideia de implementação fácil. Em meio à atual crise fiscal, a eliminação da contribuição teria de ser compensada. E, com a economia sobretaxada como está, não estava fácil descobrir o que poderia ser onerado para que a folha pudesse ser desonerada.

Há alguns meses, no entanto, Guedes se deparou com o que parecia ser uma solução mágica: a velha ideia fixa de Marcos Cintra de taxar movimentações financeiras. Fascinado com a perspectiva de compensar a perda de receita que decorreria da eliminação da contribuição patronal com um imposto sobre movimentações financeiras, Guedes não relutou em alçar Cintra a secretário especial da Receita Federal.

Dizia o ex-ministro Guido Mantega que a beleza da tributação de movimentações financeiras é que “as pessoas nem sabem quanto pagam...; não pesa no bolso”. Pois bem. Em 2007, último ano em que foi cobrada com alíquota de 0,38%, a extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) permitiu que o governo arrecadasse, sem que isso “pesasse no bolso” dos contribuintes, nada menos do que R$ 36,5 bilhões. A divisão do valor da arrecadação pela alíquota de 0,0038 revela o assombroso valor da base fiscal sobre a qual incidia a CPMF: R$ 9,6 trilhões. Cifra mais de três vezes e meia maior que o PIB de 2007!

A mágica decorria da incidência em cascata da CPMF, que dava lugar a uma base fiscal fictícia, sem contrapartida econômica real, em contraste com o que ocorre com formas mais civilizadas de tributação, que incidem sobre renda, consumo, valor adicionado, folha de pagamento e riqueza. Uma alíquota “diminuta” sobre uma base gigantesca e artificial. O sonho da tributação populista.

Constatado o despropósito da ideia fixa de Cintra, resta discutir a ideia fixa de Paulo Guedes. Que fundamento tem sua convicção de que a eliminação da contribuição patronal teria um impacto extraordinário sobre o emprego?

O ponto crucial a ter em conta é que as evidências disponíveis para um amplo leque de países sugerem que a oferta de trabalho tende a ser muito insensível a variações nos salários. Altamente inelástica, como se diz em economia. E a razão é simples. A maioria esmagadora das pessoas que trabalham não pode deixar de trabalhar. Trabalha aos salários vigentes, sejam eles quais forem.

É por isso que, na literatura internacional de finanças públicas e economia do trabalho, há amplo consenso sobre o padrão de incidência de encargos sobre a folha. Não importa se rotulados de contribuição patronal ou do empregado, tais encargos acabam recaindo primordialmente sobre o assalariado.

Encargos sobre a folha não são propriamente uma “arma de destruição em massa de empregos”, como vem alardeando Paulo Guedes. Melhor seria rotulá-los de um mecanismo inexorável de compressão dos salários líquidos dos trabalhadores.

É fácil entender que, pela mesma razão que uma elevação dos encargos comprime salários sem grande impacto sobre o emprego, a eliminação de encargos sobre a folha, em condições normais, traria primordialmente uma elevação de salários, sem grande impacto sobre o emprego.

O que, sim, pode fazer diferença é um quadro de desemprego em massa, como hoje se tem no País. Há um vasto contingente de desempregados dispostos a trabalhar aos salários vigentes. Até que a maior parte desse contingente seja empregado, a oferta de trabalho poderá mostrar-se extremamente elástica. E uma redução de encargos trabalhistas poderia ter um impacto maior sobre o emprego.

A questão é se – menos de oito anos após a irresponsável pajelança de desoneração da folha perpetrada pelo governo Dilma Rousseff – faria sentido promover novo e impensado desmantelamento da cobrança de encargos trabalhistas sobre a folha para, num arroubo imediatista, tentar acelerar a recuperação cíclica do emprego.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de economia da PUC-Rio