Rodrigo Maia

Rosângela Bittar: O futuro do atraso

A eleição dos presidentes da Câmara e do Senado não ficam definidas por antecipação, nunca. As negociações que levam a reviravoltas na boca da urna não permitem dizer que o favoritismo de hoje, do candidato governista Arthur Lira, permanecerá até 2 de fevereiro.

Dois exemplos da memória.

O mais recente: na primeira eleição de Rodrigo Maia, 2017, depois do mandato tampão após renúncia de Eduardo Cunha, o DEM só o apoiou na véspera, e o aliado principal, o PSDB, definiu-se na manhã da votação.

O mais perturbador: Apesar da proibição regimental, o PT se dividiu em 2005 e lançou dois candidatos. Um oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh, outro avulso, Virgílio Guimarães. Venceu Severino Cavalcanti, que não estava na história. E saiu dela como uma anedota.

São fatos que reduzem a mera hipótese a apregoada certeza da vitória dos candidatos do presidente Jair Bolsonaro às presidências da Câmara e do Senado. No Senado ainda há três nomes disputando a unção presidencial mas, na Câmara, o candidato Arthur Lira já negocia abertamente em nome do presidente, há meses. 

Embora favorito, com uma campanha agressiva em concessões e troca de favores, Lira ainda não pode receber cumprimentos. Qualquer celebração antecipada é mera ironia.

Tudo pode acontecer nesses longos 40 dias que separam este Natal da inauguração do ano Legislativo, data da eleição das Mesas. Será um janeiro de frenesi político, longe de qualquer realidade dos brasileiros.

Única alternativa que resta ao governo para dar seriedade à sua empreitada é formular uma agenda que dê substância ao varejo das negociações. O Congresso não faz milagres, não tem planos de governo e precisa de uma proposta sobre a qual trabalhar e votar.

O que Bolsonaro já apresentou até agora é um rosário de demandas pessoais, familiares, corporativas e eleitorais. Algumas de exceção à lei. Barrar o impeachment, na Câmara, e salvar o enlameado filho Flávio Bolsonaro, no Senado, são metas explícitas.

O que inquieta nas manifestações recentes do presidente sobre o que quer para o ano que vem é a inexistência das áreas de emergência, começando pelo controle da pandemia.

Bolsonaro quer mandar na Câmara e no Senado para aprovar o excludente de ilicitude (licença para matar), a educação domiciliar, os benefícios para igrejas, o imposto sindical, a redução da Lei da Ficha Limpa e da Lava Jato. Sem esquecer o atraso dos atrasos: a volta do voto impresso.

Não contente em dedicar todo o seu mandato, exclusivamente, à campanha da reeleição, o presidente quer usar a Câmara para discutir o voto impresso e montar desde já o processo de acusação de fraude eleitoral, diante da possibilidade crescente da derrota em 2022.

Os sinais são preocupantes, o Brasil está sendo arrastado ao abismo social, econômico e político. Bolsonaro transforma suas convicções pessoais e retrógradas em políticas públicas.

Sindicato

A propósito das negociações para a volta do imposto sindical, João Carlos Gonçalves, Juruna, secretário-geral da Força Sindical, enviou-me um esclarecimento:

“Li seu artigo cujo título é Depois da meia-noite. Queria lhe informar que o movimento sindical não está pedindo a volta do imposto sindical, aquele que cada trabalhador pagava um dia de salário anual. Pagava porque o não associado também é beneficiado pelos acordos e convenções coletivas. O que o movimento sindical quer, e isso está parado na Câmara dos Deputados, é a regulamentação de legislação que deixe claro se o sindicato vai também trabalhar para não sócios sem receber nada. A cada convenção coletiva que o sindicato faz, precisa fazer um Termo de Ajuste de Conduta, com o Ministério Público do Trabalho, para poder cobrar de quem não é sócio, pelos benefícios das convenções coletivas estendidas a ele”.

*COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS


O Estado de S. Paulo: Articulação de Maia leva MDB a impasse

Sigla prefere eleição no Senado e avalia que Baleia Rossi não deve concorrer na Câmara

Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), só está à espera do PT para anunciar o candidato que vai apoiar à sua sucessão, em fevereiro de 2021. O nome favorito para concorrer ao comando da Câmara com aval do bloco parlamentar liderado por Maia é o do deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. 

Maia disse que divulgará até amanhã o escolhido para enfrentar Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão que conta com o respaldo do Palácio do Planalto na disputa. A demora ocorre por causa da bancada do PT, que está dividida e se reúne hoje para tentar chegar a um acordo, mas também em razão de um impasse nas fileiras do MDB.

Na semana passada, senadores do MDB procuraram Baleia Rossi para dizer que a sigla terá um candidato à cadeira do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Argumentaram que, diante dessa decisão, ele não deveria concorrer à Câmara para não atrapalhar as articulações no Salão Azul. A avaliação foi a de que seria muito difícil o Congresso eleger integrantes do mesmo partido, como ocorre hoje com o DEM, para dirigir as duas Casas.

Em almoço com líderes do bloco, nesta segunda-feira, Maia afirmou que a eleição no Senado não pode interferir na disputa da Câmara. Na prática, porém, em casos assim as negociações políticas costumam demandar mais atenção. O outro nome que conta com a simpatia do presidente da Câmara é o do deputado Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB), líder da Maioria. O partido de Aguinaldo, no entanto, dá sustentação a Lira.

“Estamos dialogando para sair com um nome e com o bloco de fato unido”, afirmou Maia. O grupo reúne 11 partidos, que somam 281 parlamentares. O PSOL pode aderir ao bloco. Para ser eleito presidente da Câmara o candidato precisa ter o apoio de 257 dos 513 deputados. O voto, porém, é secreto e muitas bancadas estão rachadas. “É preciso agora ver o que nos une, e não o que nos divide. Nosso objetivo é derrotar o candidato do governo”, disse o deputado Carlos Zarattini (PT-SP).

A bancada do PT é a maior do bloco, com 54 integrantes. Embora a sigla esteja no grupo de Maia, o apoio de petistas ainda é disputado individualmente por Lira.


Ricardo Noblat: Baleia Rossi será o candidato de Maia a presidente da Câmara

Falta o PT decidir se o apoiará desde já ou só mais adiante

Luiz Felipe Baleia Tenuto Rossi, ou apenas Baleia Rossi como prefere que o chamem, 48 anos de idade, deputado federal no seu segundo mandato, ex-deputado estadual e ex-vereador de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, atual presidente nacional do MDB, será anunciado amanhã como o candidato do grupo montado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) para disputar a presidência da Câmara.

O grupo é formado por 11 partidos – PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PC do B e Rede. Juntos, eles somam 269 votos de um total de 513. Para eleger o presidente em primeiro turno são necessários 257 votos. Ao grupo ainda poderão se juntar o NOVO (8 deputados) e o PSOL (10 deputados). A disputa será contra o candidato de Bolsonaro, o deputado Arthur Lira (PP-AL)

Lira conta com o apoio do PP, PL, PSD, Republicanos, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota que, juntos, somam 204 votos. Ou seja: 65 votos a menos do que tem hoje o grupo de Maia, o atual presidente da Câmara. O Podemos (10 deputados) deverá aderir a Lira. A eleição será realizada em 1º de fevereiro e, como o voto é secreto, haverá traições nos dois lados.

O PT decidirá hoje se apresentará um pré-candidato à presidência da Câmara só para marcar posição ou se declarará desde já apoio a Rossi. Já foi maior a resistência ao nome de Rossi dentro do PT. Em carta enviada, ontem, aos seus colegas de bancada, o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) defendeu o apoio do partido ao candidato de oposição ao governo Bolsonaro.

No último sábado, por mais de duas horas, Maia e Rossi conversaram em São Paulo sobre a sucessão na Câmara com o ex-presidente Michel Temer (MDB). Até aquele momento, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) ainda era uma opção ao nome de Rossi. Deixou de ser porque seu partido, por larga maioria de votos, apoiará Lira. A conversa de Maia com Temer sacramentou a escolha de Rossi.

Levou-se em conta também a pretensão do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) de ser candidato à presidência da Câmara. Ramalho já foi vice-presidente, é famoso pelos magníficos almoços e jantares que oferece no seu apartamento em Brasília, e calcula-se que possa atrair de 50 a 60 votos caso concorra. Mas dificilmente concorrerá contra o presidente do seu próprio partido.

A candidatura de Rossi reduzirá as chances de que seja lançado um nome do MDB para presidente do Senado. Dois nomes despontavam até então: Fernando Bezerra Coelho (PE), líder do governo no Senado, o que agradaria Bolsonaro, e Eduardo Braga (AM). Rara é a vez, como acontece agora no caso do DEM, de um partido presidir ao mesmo tempo a Câmara e o Senado.


Celso Rocha de Barros: Apoio da esquerda ao grupo de Maia foi uma decisão acertada

Aliança multipartidária é reação correta à escalada autoritária bolsonarista

Os partidos de esquerda estão de parabéns por terem decidido apoiar o grupo de Rodrigo Maia na eleição para presidente da Câmara dos Deputados. A aliança recebeu o nome de União da Democracia e da Liberdade.

A esquerda brasileira tem diferenças legítimas com o centro e a direita. Os últimos cinco anos, em especial, causaram feridas profundas, que vão exigir tempo e diálogo para cicatrizar.

Mas a esquerda não é mais o PT dos anos 1980, uma voz de protesto sem acesso ao poder. Depois de 13 anos na Presidência, a esquerda é um dos pilares da democracia brasileira, uma das forças responsáveis por sua preservação.

Tem grandes partidos, grandes lideranças, um legado —do SUS ao Bolsa Família, passando pelos direitos LGBT e pelas cotas para negros e negras nas universidades, da preservação da Amazônia aos sucessos educacionais de Ceará e Pernambuco.

A esquerda é grande o suficiente para fazer diferença na hora de recolocar a democracia de pé. É do interesse dos trabalhadores que ela seja recolocada de pé.

E o outro cara é o Jair.

O Jair é o Brasil sem vacina, com 180 mil famílias brasileiras de luto. É o risco permanente de golpe, é a guerra contra a liberdade, é o ódio às mulheres, aos negros e aos LGBT, é o elogio a Ustra no dia do impeachment, é o palhaço da Fundação Palmares ofendendo Zumbi, Marina e Benedita, é o cara que demitiu dois ministros da Saúde durante a pandemia, que desmoralizou os militares, que fez do Brasil um pária entre as nações.

As diferenças programáticas entre os membros da aliança continuam existindo, mas atenção: deixar Bolsonaro vencer no Congresso não trancará as pautas econômicas liberais, mas destrancará as autoritárias.

A aliança é a reação correta à escalada autoritária bolsonarista, ao contrário da manobra desastrada para permitir a reeleição de Maia e Alcolumbre, felizmente derrotada.

Nos dois casos, a preocupação era a mesma: a certeza generalizada de que Jair é golpista. A turma pode fingir que não, mas todo mundo viu Bolsonaro tentando o autogolpe em 2020. Mesmo assim, driblar a Constituição teria sido fazer o jogo de Bolsonaro.

Reunir os democratas, por outro lado, é injetar na democracia brasileira a marra de que ela anda precisando.

Resta saber o que os bolsonaristas vão fazer diante da nova frente. A única certeza é que, seja o que for que fizerem, vai ser sujo. Nos próximos meses, o Orçamento público será para o centrão como água benta da porta da igreja: quem for chegando, vai passando a mão.

Bolsonaro também deve ressuscitar a retórica do “eu contra o sistema” para reagir à união dos democratas. Era mais fácil quando não era “eu e o centrão contra o sistema”, mas talvez alguém acredite.

Também deve atacar a turma do Maia por se aliar à esquerda, deve chamar todos os homens de pedófilos, todas as mulheres de putas, aquele stand up que bolsonarista faz em vez de comprar vacina.

A aliança formada para a eleição da Câmara será permanente? Não. Tem chances de se converter em aliança eleitoral em primeiro turno em 2022? Não. Isso importa? Não. A luta programática continuará daí em diante, cada um do seu lado, democraticamente.

Por outro lado, a aliança aumenta a probabilidade de Bolsonaro perder a eleição no segundo turno em 2022? Sim. Repita esse “sim” em voz alta para você ver que beleza, que coisa linda.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Eliane Cantanhêde: Quem mente?

Brasil assiste à vacinação alheia, Maia avança na Câmara e Bolsonaro às voltas com Abin

Rodrigo Maia (DEM) ao centro, Gleisi Hoffmann (PT) à esquerda e Luciano Bivar (PSL) à direita, ao lado de presidentes e líderes de 11 partidos – todos eles, não à toa, de máscara – marcam não apenas a disputa pela presidência da Câmara em fevereiro de 2021, mas um movimento que significa o seguinte: para além das diferenças, a prioridade é combater um adversário comum. É preciso dizer qual?

Não se trata da união de todos na alegria e na tristeza, até que a morte os separe, e nem mesmo que estarão juntos numa mesma chapa em 2022 para enfrentar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Mas comprova o quanto Bolsonaro é competente para criar inimigos, trocar de amigos e espicaçar os eleitores mais escolarizados e bem informados – logo, com mais capacidade de influenciar votos.

A eleição para a presidência da Câmara se transformou num embate direto e virulento entre Bolsonaro, que tem o Centrão, e Maia, cujo desafio era, e é, aglutinar desde a esquerda até a direita hoje refratária ao bolsonarismo. O foco da disputa recaiu sobre o Republicanos, presidido pelo pastor Marcos Pereira, e o bloco de PT, PSB, PCdoB e PDT. O resultado é mais que natural.

Pereira só aceitaria compor com Maia como candidato a presidente e fica mais confortável com o deputado Arthur Lira (PP), apoiado por Bolsonaro, que não está nem aí para a pauta econômica, reformas e privatizações, mas quer dobrar o Congresso em 2021 e 2022 para sua pauta pessoal, de costumes, armas e excludente de ilicitude, um denso elenco de retrocessos. E, objetivamente, o Republicanos é a sigla dos filhos de Bolsonaro e de seus candidatos derrotados às prefeituras de São Paulo, Celso Russomanno, e do Rio, Marcelo Crivella. Pereira e o partido caíram na rede certa.

Nas esquerdas, imperou a força da militância. Quando a bancada do PSB abanou asas para Lira/Bolsonaro, provocou uma rebelião nas redes, foi obrigada a recuar e deixou uma lição para os parceiros da esquerda: apoiar o candidato do Bolsonaro era uma fria. Assim, acabou liderando as esquerdas para o trilho racional. Não custa lembrar que a eleição é secreta, acordo com partidos não significa 100% dos seus votos e parte do PSB ainda balança, mas Maia vai indo bem.

Ele, que joga seu futuro e a aglutinação de forças da centro-esquerda à centro-direita para 2022, contra Bolsonaro, enfraqueceu-se com a tentativa de reeleição à presidência no tapetão do Supremo. Mas, depois da primeira carga de críticas, vem confirmando a habilidade política e superando obstáculos. Falta o nome do candidato, que afunila para Baleia Rossi (MDB-SP). Depois, é o tudo ou nada.

Após um hiato “paz e amor” num discurso lido, Bolsonaro culpou Maia pela falta do 13º para o Bolsa Família neste ano. Mirou no presidente da Câmara e acertou no ministro da Economia e no líder do governo. Maia chamou Bolsonaro de mentiroso e ameaçou por em votação, já, a MP que pode prorrogar o auxílio emergencial com R$600, estourando as contas públicas. Sem saída, Guedes foi “obrigado” a admitir que é impossível dar o 13º para o Bolsa Família e Barros eximiu Maia de culpa, dizendo que o governo é que não queria. Logo, o ministro e o líder confirmaram Maia: o presidente mentiu.

Enquanto isso... o Brasil assiste EUA, UE, Inglaterra, Canadá, Chile e até Arábia Saudita vacinando seus cidadãos e o presidente muito ocupado em outras frentes. Se usa a Abin a serviço da família presidencial, o delegado Alexandre Ramagem confirma indiretamente a suspeita de que iria para a PF com essa mesma missão. Se mentir, é falso testemunho. Se contar tudo, é explosivo. Isso fortalece, no Supremo e na opinião pública, as acusações de Sérgio Moro contra o presidente. O centro se articula para 2022 e acompanha tudo de camarote.


Ricardo Noblat: O dia em que auxiliares de Bolsonaro se ocuparam em corrigi-lo

Vexame!

Na última quinta-feira à noite, depois de amargar uma série de derrotas no Supremo Tribunal Federal e no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou sua live semanal no Facebook para responder aos seus seguidores nas redes sociais que cobravam o pagamento da 13ª parcela do Bolsa Família como ele prometeu na campanha eleitoral de 2018.

E o que ele disse logo se espalhou com cheiro de queimado entre os principais ministros do governo. Bolsonaro culpou o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, por ter deixado caducar a Medida Provisória que garantia o pagamento este ano. Para variar, mentiu. Foi a pedido dele que a Medida Provisória deixou de ser votada. Faltou dinheiro para honrar o compromisso.

Maia reagiu chamando Bolsonaro de mentiroso e anunciou que no dia seguinte poria a Medida Provisória em votação. Tocou o Deus nos acuda dentro do governo. E a fórmula encontrada para reparar o estrago foi escalar auxiliares do presidente para corrigi-lo. Em entrevista coletiva, a pretexto de fazer um balanço do ano, o ministro Paulo Guedes, da Economia, admitiu:

– Sou obrigado, contra minha vontade, a recomendar que não seja dado o 13º do Bolsa Família. É lamentável, mas precisamos escolher entre um crime de responsabilidade [que seria o pagamento da 13ª parcela] e a lei [de responsabilidade fiscal que pune a realização de gastos sem previsão no Orçamento].

Enquanto o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo, disparava telefonemas para líderes de partidos insatisfeitos com o que dissera Bolsonaro, o deputado Ricardo Barros, líder do governo, reconhecia nas redes sociais que tudo não passara de um mal entendido do presidente da República. Mais tarde renovou o pedido de desculpas em discurso na Câmara.

O dia ainda não tinha terminado. Na contramão do discurso oficial do governo, o secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, Roberto Fendt, em evento virtual da Sociedade Nacional de Agricultura, afirmou que o Brasil nada ganhou com os acordos comerciais assinados recentemente com os Estados Unidos

“Se me prometerem que não vão contar ao presidente (Jair Bolsonaro) o que vou contar agora… Mas o protocolo é bom para eles [EUA]”, observou Fendt. “Não ganhamos nada com a aproximação com o presidente Donald Trump.” E repetiu: “Celebrou-se abertura de linha crédito nos EUA. Para quem? Para os exportadores americanos. Ganhamos muito pouco”.

Bastou por aí? Não. Bolsonaro criticou a decisão do Supremo Tribunal Federal de tornar obrigatória a vacinação em massa contra a Covid-19 e de impor restrições a pessoas que não quisessem se vacinar. Garantiu que o governo federal não imporia nenhuma restrição. Porém, em entrevista ao STB, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disse o contrário:

– É uma decisão [a do Supremo] que vejo com muita naturalidade, porque já estava previsto por lei. Só está sendo ratificada e define o que o Ministério da Saúde vai dizer… Cabe a nós colocar quais são essas restrições. Então é uma coisa natural, isso será avaliado. Claro que não é uma obrigação forçada, ninguém vai tirar você da sua casa para vacinar. Ficou claro essa posição.

Bolsonaro disse que não haveria vacinas para todos. Pazuello disse:

– Existe um cronograma. Dentro de um cronograma será disponibilizada para todos […] Chegando ao final de um cronograma, considerando aí as entregas dos laboratórios, as produções nacionais, os registros da Anvisa, a logística como um todo, ao final nós teremos disponibilizado a todas as pessoas do nosso país, de forma gratuita, universal e igualitária.

Em tempo: embora tenha contraído o vírus e se recuperado, Pazuello antecipou que irá se vacinar, sim. Bolsonaro foi vítima do vírus, mas nega que tomará a vacina. Confia na sua saúde de atleta.


O Estado de S. Paulo: Partidos de esquerda fecham apoio ao bloco de Maia

Siglas têm juntas 281 deputados; nome de candidato da frente ainda será decidido

Camila Turtelli, Anne Warth e Ricardo Galhardo, O Estado de S. Paulo

Numa ofensiva contra o Palácio do Planalto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou nesta sexta-feira, 18,  a entrada de cinco partidos de esquerda no bloco que formou para a disputa do comando da Casa, marcada para 1.º de fevereiro. Agora, seu grupo conta com 11 legendas, que somam 281 deputados, mais do que os 257 necessários para um candidato se eleger. Não foi desta vez, porém, que Maia anunciou o nome do parlamentar que será o seu candidato.

A intenção de Maia é derrotar o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão que conta com o apoio do governo de Jair Bolsonaro. Lira tem o apoio de dez partidos, que somam 203 parlamentares.

A adesão da esquerda ao bloco de Maia foi puxada pelo PT, maior bancada da Câmara, com 54 deputados, que decidiu na noite de anteontem apoiar um nome do grupo liderado pelo atual presidente da Casa. Em 2019, a sigla decidiu não apoiar o deputado do DEM na disputa, o que lhe custou cargos no comando do legislativo.

Além do PT, PSB, PDT, PCdoB e Rede entraram no bloco que já tinha DEM, PSL, MDB, PSDB, Cidadania e PV. Como o voto para a presidência da Câmara é secreto, o apoio do partido não significa necessariamente que todos os deputados da sigla vão votar no mesmo candidato. A “traição” neste tipo de disputa, por sinal, costuma ser comum.

Maia disse que a tendência é o grupo definir um nome de centro-direita como candidato, mas não descartou a possibilidade de que ele saia, inclusive, do campo da esquerda. Os preferidos do presidente da Câmara são Baleia Rossi (MDB-SP) e Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). “Este grupo que hoje se apresenta tem muitas diferenças, sim. Porque, diferente daqueles que não suportam viver no marco das leis e das instituições e que não suportam o contraditório, nós nos fortalecemos nas divergências, no respeito, na civilidade e nas regras do jogo democrático”, disse.

Ao lado dos líderes dos 11 partidos do bloco, Maia leu uma carta em defesa da democracia. Segundo ele, a Câmara ganhou projeção nos últimos anos por ter se tornado a “fortaleza da democracia no Brasil, o território da liberdade, exemplo de respeito e empatia com milhões de cidadãos brasileiros”.

Sem citar Bolsonaro, o presidente da Câmara acusou o governo de autoritarismo e citou Ulysses Guimarães, que presidiu a Casa em duas ocasiões: antes da ditadura militar, entre 1956 e 1958, e na redemocratização, entre 1985 e 1989. “Enquanto alguns buscam corroer e lutam para fechar nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las. Enquanto uns cultivam o sonho torpe do autoritarismo, nós fazemos a vigília da liberdade. Enquanto uns se encontram nas trevas, nós celebramos a luz”, disse. “Certamente, Ulysses Guimarães estaria deste lado aqui e talvez repetiria em alto e bom som: Eu tenho ódio e nojo das ditaduras.”

A carta do bloco de Maia ressalta a diferença entre os partidos do grupo e sustenta que ele é mais forte em razão dessas divergências. “Esta não é uma eleição entre candidato A ou candidato B. Esta é a eleição entre ser livre ou subserviente, ser fiel à democracia ou ser capacho do autoritarismo, ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo, ser fiel aos fatos ou ser devoto de fake news”, diz.

Lira reagiu com ironia ao anúncio do bloco por Maia. “Meu projeto é claro e está posto. Mas eu queria saber uma coisa: quem é o candidato do Rodrigo Maia?”, postou em uma rede social.

A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), disse que a adesão do partido ao bloco não significa apoio imediato às candidaturas preferidas por Maia. “Temos muito respeito pelos companheiros Aguinaldo e Baleia, mas a oposição construirá um nome para apresentar ao bloco também como alternativa”, disse.

Ela reconheceu que o bloco reúne partidos que divergem sobre várias pautas, sobretudo a agenda econômica. “Temos muitas diferenças e já travamos muitos embates nessa Casa, mas temos uma pauta que nos une, a defesa da democracia, das instituições e da liberdade dessa Casa”, acrescentou, ressaltando que o bloco espera ainda contar com o apoio do PSOL.

Até o início desta semana, um grupo de parlamentares, líderes sindicais e ex-dirigentes do PT defendiam apoio a Arthur Lira. O movimento foi barrado pela bancada na quinta-feira com a aprovação de uma resolução que proibia o apoio do partido a candidatos ligados a Bolsonaro. Depois da derrota, este grupo, junto com dissidentes do PSB, passou a defender o lançamento de uma candidatura própria, o que pulverizaria as candidaturas e beneficiaria Lira.

A agenda mínima proposta pela oposição tem como ponto fundamental o respeito ao critério da proporcionalidade das bancadas na escolha dos cargos na Mesa Diretora e comissões. Em 2019, o PT não apoiou Maia e mesmo tendo a maior bancada da Casa ficou sem nenhum cargo na mesa e sem a presidência de comissões.

A oposição avalia que Maia jogou errado, apostou que o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizaria sua reeleição, e enfrentou dificuldade para unificar seu bloco em torno de um nome. Por isso, o presidente da Câmara teria ficado dependente da oposição, que tem 133 parlamentares e pode ser a fiel da balança na disputa contra Lira.


Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa

A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.

Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”.  Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora.  Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.

Judicialização como refração de um processo político

Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.

É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”.  Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos.  E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.

Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB.  Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira".  Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.

Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas.  Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.

Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.

Efeitos politicamente regressivos da judicialização

Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado.  O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado.  Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.

Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.

Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro. 

Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas.  Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.

Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia

Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas.  Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.

Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia. 

Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro.  A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.

Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.

Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.

Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?

Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.

* Cientista político e professor da UFBa.


Folha de S. Paulo: Bolsonaro omite que governo não quis 13º do Bolsa Família e culpa Maia, que chama presidente de mentiroso

Chefe do Executivo disse que presidente da Câmara deixou MP caducar; deputado rebate dizendo que medida caiu a pedido do governo

Daniel Carvalho, Folha de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) transferiu para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a responsabilidade por beneficiários do Bolsa Família não receberem uma 13ª parcela do programa neste ano. O deputado respondeu chamando o chefe do Executivo de mentiroso.

A 13º cota do benefício era uma promessa de campanha de Bolsonaro e foi paga apenas em 2019 por meio de uma MP (medida provisória). Durante a tramitação no Congresso, o relator da matéria, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), propôs que a parcela extra fosse estabelecida para todos os anos seguintes.

A medida perdeu a validade em 25 de março, quando estava na pauta da Câmara dos Deputados e ainda seguiria para o Senado.

"Você está reclamando do 13º do Bolsa Família, que não teve. Sabia que não teve este ano? Foi promessa minha? Foi. Foi pago no ano passado? Mas o presidente da Câmara deixou caducar a MP. Vai cobrar de mim? Cobra do presidente da Câmara, que o Supremo agora não deu o direito de ele disputar a reeleição. Cobra dele", disse Bolsonaro em sua transmissão semana pela internet na noite desta quinta-feira (17).

À época, porém, a MP não foi votada por causa de uma articulação do próprio governo, que previa um impacto de R$ 8 bilhões aos cofres públicos.

"Nunca imaginei que Bolsonaro fosse mentiroso", disse Maia à Folha, ao ser informado da acusação feita pelo presidente na live.

"Foi pedido do governo, mas tem um projeto do deputado Darci de Matos [PSD-SC] criando o 13º. Posso votar amanhã [sexta-feira (17)], se ele quiser", afirmou o presidente da Câmara.

O projeto de lei nº 4439/20 autoriza o pagamento, no mês de dezembro de cada ano, de abono de até um salário mínimo à pessoa com deficiência e ao idoso com mais de 65 anos que recebam o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

Bolsonaro e Maia sempre tiveram uma relação tensa, mas isso piorou nos últimos dias porque Bolsonaro está patrocinando a candidatura do líder do Progressistas na Câmara, Arthur Lira (AL), na disputa pelo comando da Casa.

O STF (Supremo Tribunal Federal) barrou a possibilidade de Maia tentar a reeleição para o cargo. Agora, o deputado tenta viabilizar um candidato para enfrentar o nome apoiado pelo Palácio do Planalto.

Jair Bolsonaro comentou o assunto ao rebater críticas de seus seguidores na internet por estar apoiando a candidatura do líder do centrão, grupo de partidos que troca cargos e emendas por sustentação no Congresso, ao qual o presidente da República, em campanha, havia dito que não se aliaria.

"Vai mudar [sic] as Mesas da Câmara e do Senado, agora, em 1º de fevereiro. Já sofro críticas por isso, né? 'Ah, não quero este cara'. Ô, cara, quem você quer? Vai e arranja 257 votos na Câmara e 41 votos no Senado para o teu candidato, para o seu cara, que você acha que é o bom. Eu estou, logicamente, acompanhando as eleições nas duas Casas. O que eu pretendo na Mesa da Câmara e do Senado? Eu converso com parlamentar, fui 28 anos parlamentar. Que alguém que vá para lá que não trave as pautas de interesse do Brasil, que bote em votação as matérias", disse Bolsonaro.


Dora Kramer: Recuo estratégico

Realista, a esquerda prefere negociar a marcar posição na Câmara

Coisa rara, a esquerda em geral e o PT em particular imbuíram-se de realismo na atual disputa pela presidência da Câmara. Outras raridades cercam esse que é o principal movimento na política nacional no momento. Ele dará o tom de estabilidade ou de instabilidade no Congresso daqui em diante e norteará o início das articulações dos grupos postulantes à sucessão de Jair Bolsonaro, muito embora os acertos de agora no Parlamento não valham para a presidencial de 2022.

É a primeira vez desde a redemocratização que a esquerda não apresenta candidatura ao comando da Câmara. O PSOL ainda insiste, mas está sendo convencido a desistir sob o argumento de que é hora de deixar a adolescência e entrar da idade adulta, abandonando veleidades de caráter quixotesco.

Isso porque também é a primeira vez que esse campo, sendo como diz um petista, “irritantemente minoritário”, é tão decisivo para a definição de vitória ou derrota dos grupos em disputa. Ambos, um mais outro menos identificado com Bolsonaro, residentes no espectro direito (do centro ao extremo) da cena política.

Dada essa equivalência no terreno da doutrina, prevalece na esquerda o entendimento de que não se pode perder a oportunidade de conquistar espaço no andamento dos trabalhos legislativos. Vale dizer, lugar na mesa diretora, influência na pauta de votações e participação relevante nas comissões permanentes e especiais da Casa.

Nada disso se consegue com candidaturas destinadas só a marcar posição, pois o gesto se esgota no dia da eleição. Aqui pesa também a avaliação de que o resultado sairá no primeiro turno, não havendo uma segunda chance para negociar compromissos e posições. A opção preferencial pelo pragmatismo, no entanto, não significa que haja unidade entre as legendas marcadamente de oposição. Muitíssimo ao contrário. Hoje prepondera a divisão interna nos partidos, com cada ala procurando vencer a guerra da comunicação de acordo com o respectivo interesse. Há apoios significativos tanto a Arthur Lira, do PP, apoiado por Bolsonaro, quanto ao oponente respaldado pelo atual presidente, Rodrigo Maia.

Embora a imposição de uma derrota a Bolsonaro seja uma variável do jogo e muito usada para inibir publicamente os apoios a Lira, a esse argumento se contrapõe o seguinte raciocínio: seja quem for o eleito, não terá condições de atuar em consonância absoluta com os interesses do Planalto, pois não teria o respaldo do conjunto dos parlamentares hoje convencidos das vantagens da autonomia experimentada nos últimos dois anos. Tanto para os ideológicos quanto para os fisiológicos.

Portanto, o essencial para a esquerda serão os compromissos firmados pelos antagonistas do centro à direita, a avaliação sobre o grau de firmeza de cada qual na palavra empenhada e a consciência de que na Câmara dissidência em eleição não dá camisa a ninguém.

Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718


Merval Pereira: A traição decidirá

O ex-presidente Tancredo Neves afirmava que voto secreto “dá uma vontade danada de trair”. Nada mais certo quando vemos as traições sendo negociadas à luz do dia, em troca de emendas e cargos. Traições dignas do nome, e traições travestidas de ação política, como os partidos de esquerda que cogitam lançar candidaturas próprias quando sabem que, com isso, estarão selando a vitória do candidato do Palácio do Planalto.

Por isso, quem vai decidir a sucessão na Câmara dos Deputados é a traição, que ocorre sempre nas votações secretas, e não apenas nas eleições congressuais. Na Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, há uma taxa histórica de “traição”, o candidato vencedor tem que contar com cinco votos a mais, pelo menos, do que o mínimo necessário.

No caso da Câmara, é tradicional essa taxa de “traição”, mas desta vez ele está sendo negociada abertamente. O PT começou conversando com o candidato do Planalto, deputado Artur Lira, alegando a necessidade de ter um espaço institucional na Mesa Diretora. Lira nega, mas há quem confirme que nessas conversas, até mesmo mudanças na Lei da Ficha Limpa foram abordadas, para favorecer o ex-presidente Lula.

Como a posição ficou esquisita, o PT voltou a se reunir com o grupo do presidente da Câmara Rodrigo Maia, e reivindicou a primeira-vice presidência da Mesa, exigência justa por ser a maior bancada da Câmara. Para valorizar sua posição na negociação, voltou a insinuar que lançará uma candidatura própria. Também o PSOL pensa lançar seu candidato.

PDT, PCdoB e PSB trabalham para que a esquerda esteja unida em apoio a um candidato lançado contra o do Planalto, para garantir a independência em relação a Bolsonaro. A presidência da Câmara está denunciando que o governo está estimulando por baixo do pano uma candidatura de esquerda para enfraquecer o campo adversário.

Claro que se uma bancada de 54 deputados como a do PT lançar seu candidato próprio, sem a menor chance de vencer, estará favorecendo a candidatura do governo, que tem sua base já montada. O PSB teve que tomar uma posição oficial contra o apoio ao candidato do governo, pois havia dissidentes negociando individualmente.

Uma votação de 80 a 0 no diretório nacional decidiu não apoiar o candidato do governo. O deputado Alessandro Molon foi incisivo: “É preciso preservar a independência da Câmara e proteger o Brasil de Bolsonaro”. Se a esquerda se unir em torno do grupo de Rodrigo Maia, a disputa fica parelha. A esquerda, como sempre, é o fiel da balança.

O deputado Molon é o que defende com mais ênfase a união da esquerda, lembrando que uma candidatura isolada não tem a menor chance de ganhar, e pode dar a Artur Lira a chance de vencer no primeiro turno. No momento, há a possibilidade de essa união vingar dentro do grupo, mas o PT continua considerando apresentar um candidato único da esquerda, mas dentro do bloco de Rodrigo Maia, que tem como mais provável candidato o deputado do PMDB Baleia Rossi.

O PT acha que a esquerda, com metade do bloco, tem o direito de indicar o candidato. A decisão deve sair em duas etapas. Na primeira, talvez hoje, a esquerda unida anunciará que faz parte do bloco de Rodrigo Maia com outros seis partidos conservadores. A segunda etapa será a escolha do candidato que una todo esse grupo. Como a eleição é 1º de fevereiro, ainda há tempo de chegar a um consenso, ou melhor, ao candidato que mais agregue apoios no grupo.

Cada disputa para a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado tem sua própria importância, mas esta está revertida de um significado especial, pois o presidente Jair Bolsonaro está empenhado pessoalmente.Toda vez que um presidente da República se mete na disputa interna da Câmara, a chance de ser derrotado é grande. Já deu em Severino Cavalcanti, já deu em Aécio Neves quebrando um acordo com o então PFL, que teve consequências graves para o governo Fernando Henrique.

Desta vez, está em jogo a agenda política do governo, que tem predominância nos temas regressivos de valores da sociedade e do meio-ambiente, em detrimento das reformas estruturais necessárias.


RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'

As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022

Por Caetano Araújo e Vinicius Müller

O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:

Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?  

José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.  

A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.  

RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?  

JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT.  Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.  

"O bolsonarismo entrou em uma crise que tem a ver com o fato de que ele não tem conteúdo nenhum, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, de uma mentalidade autoritária, de uma visão exagerada em relação à questão da segurança"

À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.

RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?  

JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.  

Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.  

Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.  

Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.  

Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.  

"O grande desafio que eu vejo é se o setor democrático progressista, a esquerda democrática, de alguma maneira não perceber, nós não podemos cair no risco de jogar eventualmente o DEM para o lado do Bolsonaro"

O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.  

RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda -  como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?  

JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.  

RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?  

JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.  

Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.  

"Um dos aspectos do desafio de se constituir ou não essa frente é se a esquerda, inclusive a nova esquerda, insistir na ideia de que pode necessariamente sair sozinha"

Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.  

RPD:  Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?  

JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.  

Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.    

"Ainda não vi, na personalidade destas lideranças que estão aí, nenhum elemento capaz de criar esse consenso que nós tanto necessitamos para enfrentar o bolsonarismo"

RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?  

JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.

No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.