ricos

Bruno Boghossian: Bolsonaro perde âncora entre os mais ricos e fica pendurado no pós-auxílio

Deterioração do apoio na pandemia deve expor o presidente a riscos significativos a partir de agora

No primeiro ano de mandato, Jair Bolsonaro já não ostentava uma popularidade notável. Ainda assim, apesar dos índices vacilantes, o presidente se escorava em sua famosa base ideológica e, especialmente, nos grupos mais ricos e escolarizados do país. Em 2020, algumas dessas âncoras foram perdidas.

Há pouco mais de um ano, Bolsonaro respirava tranquilo no topo da pirâmide de renda. Sua popularidade nesse grupo era o dobro da registrada entre os mais pobres, e a rejeição parecia estável em 30%. A conduta do governo na pandemia e decisões que frustraram esse eleitorado levaram a reprovação para 47%.

A conquista de apoio nos segmentos mais pobres, com o pagamento do auxílio emergencial, foi a grande salvação de Bolsonaro no primeiro ano do coronavírus. A deterioração dos índices positivos do governo entre os mais ricos, por outro lado, deve expor o presidente a riscos significativos a partir de agora.

Desde que o benefício começou a ser pago, em abril, Bolsonaro passou pelo que os analistas chamam de "troca de pele". Apoiadores de alta renda rejeitaram a demissão de Sergio Moro (um personagem popular nesse segmento) e se distanciaram ainda mais do governo com a omissão do presidente na pandemia.

Bolsonaro compensou essa perda com um avanço entre os mais pobres —em especial aqueles atendidos pelo auxílio. Na faixa de renda mais baixa, sua reprovação caiu de 43% em dezembro de 2019 para 27% em dezembro do ano seguinte. Agora, o índice voltou para 41%.

Graças ao rescaldo do benefício, Bolsonaro ainda é mais popular hoje entre os mais pobres do que era no primeiro ano de governo. A última pesquisa Datafolha, porém, mostra que esse apoio se esvai rapidamente.

Sem aquela estabilidade nos grupos de maior renda, a trajetória desses números deve ampliar a pressão pela retomada do auxílio, pendurando o futuro do governo principalmente na economia. Se os índices negativos se espalharem, a sustentação de Bolsonaro ficará mais frágil.


Míriam Leitão: Os ricos e os pobres na visão de Guedes

O ministro Paulo Guedes vê a ação de ricos se escondendo atrás dos pobres nas críticas a um imposto sobre movimentação financeira. Na ida dele à Comissão Mista do Congresso sobre reforma tributária, o ponto mais tenso foi sempre a CPMF. Não aceitou o nome, mas diante de qualquer referência a ele Guedes ou se defendia ou atacava. Disse que só “maldade ou ignorância” levam as pessoas a comparar o imposto que ele quer criar com a velha CPMF. Ele falou isso num disparo contra o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que no caso dela era “ignorância” porque ignora qual é a proposta do governo, dado que ela ainda não foi apresentada.

Somando-se todas as falas, fica claro que, sim, o ministro pensa em tributar as transações financeiras. Mas ele diz que é apenas um imposto sobre as grandes empresas de tecnologia. Paulo Guedes defendeu a tese de que os ricos no Brasil falam em regressividade da CPMF para se esconder atrás dos pobres.

— Se eu falar que há alinhamento com um imposto de movimentação financeira, Deus me livre. Já caiu o Secretário da Receita, cai todo mundo que fala disso. Parece que é um imposto interditado. Muita gente não quer deixar as digitais em suas transações. Escondido atrás do pobre. Se o pobre que ganha R$ 200 de Bolsa Família, e falar que é um imposto de 0,2%, são R$ 0,40. Qualquer aumento de R$ 10 ou R$ 30 já tirou. Não dá para rico se esconder atrás de pobre. O rico é o que mais faz transações, o que mais consome serviços digitais. E está isento. Esconde atrás do pobre — disse o ministro.

Tudo é mais complexo. O imposto distorce preços, camufla a carga tributária, é indireto. E quem demitiu o secretário da Receita que falou no assunto foi o presidente Jair Bolsonaro.

Logo no começo da sessão, o ministro criticou o relator. Disse que Aguinaldo Ribeiro havia cometido um excesso quando disse que o imposto (a CPMF) era medieval:

— Ele sugeriu que a Google e o Netflix existiam na Idade Média quando falou que o imposto digital é medieval. Os padres, os bispos nas catedrais góticas usavam Netflix, Google, Waze.

O deputado João Roma (Republicanos-BA) disse que o relator se referia ao “absolutismo” de um governo que impõe um tributo sem explicar qual é. A senadora Simone Tebet propôs que o governo mostrasse todo o seu projeto:

— Vossa excelência diz que quem está falando de CPMF é por maldade ou ignorância. Eu me incluo entre os ignorantes. Eu quero entender se essa contribuição vai atingir as plataformas ou qualquer um que com um cartão de crédito compre um remédio na esquina.

O ministro não tirou a dúvida da senadora. E reclamou da imprensa, que o faz, segundo ele, ficar o tempo todo se defendendo. Perguntado pelo senador Reguffe (Podemos-DF) se atualizaria a tabela do Imposto de Renda, ele disse que fez as contas:

— Custa R$ 22 bilhões elevar a faixa de isenção para R$ 3 mil. É um Fundeb. Se for estendido às demais faixas a conta vai para R$ 36 bi. A classe política tem de decidir isso. O congressista foi eleito para tomar decisão.

Guedes lembrou que não atualizar a tabela do IR é uma forma oculta de tributar, mas atualizar seria indexar. Em outros países, disse, “todo mundo entende inflação como perda”. Na época da campanha, a promessa era elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) criticou o aumento do PIS-Cofins (CBS) sobre livros. Guedes de novo falou da divisão entre ricos e pobres:

— O deputado seguramente não quer ser isentado quando compra um livro, né? Ele tem salário suficientemente alto para comprar e pagar imposto como todo mundo. Ele está preocupado com as classes baixas. Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, vamos estar atendendo. Agora, acredito que eles estão mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos.

O ministro disse que “quem tem poder em Brasília” consegue pagar menos imposto e por isso “há R$ 300 bilhões de desoneração”. E quem tem dinheiro “não paga imposto e vai pra Justiça” e assim há um contencioso de R$ 3,5 trilhões.

O que o ministro não explica é por que não cumpriu a promessa de campanha de acabar com os R$ 300 bilhões de renúncias fiscais e por que manteve as isenções da Zona Franca de Manaus, já que me disse que “não deixaria o Brasil todo ferrado” para manter a Zona Franca. Entre os conflitos verbais do ministro e os fatos há uma certa distância.


Merval Pereira: O aburguesamento do brasileiro

Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato lidera a disputa com essa definição

O Brasil que está saindo das urnas merecerá no futuro próximo análises mais aprofundadas de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, mas os desdobramentos das pesquisas de intenção de votos já permitem fazer um retrato da sociedade brasileira que Bolsonaro, por instinto próprio ou orientação de alguém ainda não identificado, compreendeu melhor do que o PT e outros partidos.

Um momento exemplar dessa falta de compreensão é aquele em que a filósofa Marilena Chaui grita que detesta " a classe média", provocando risos do então presidente Lula.

O que o diretor do Datafolha Mauro Paulino chama de “aburguesamento de valores” da classe média brasileira já estava identificado em pesquisa do Instituto Perseu Abramo, ligado ao PT, logo após as eleições municipais de 2016, quando o partido perdeu largamente.

O Instituto avisava que o “imaginário social dos moradores da periferia de São Paulo”, já àquela época, revelava uma intensa presença dos valores liberais do “faça você mesmo”, do individualismo, da competitividade e da eficiência.

Uma população que não crê em partidos; almeja crescer individualmente; busca transformações, mas é pouco afeita a rupturas; anseia por novas ideias, mas é também pragmática.

As pesquisas de hoje confirmam que a sociedade exalta o “autoritarismo” de Bolsonaro, provavelmente confundindo com “autoridade”, para trazer ordem aos serviços públicos, proteção à família, (instituição mais valorizada pelos brasileiros segundo o Datafolha), e meritocracia no trabalho. “Tudo sob a proteção divina”.

Uma novidade relevante é que Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato à Presidência da República lidera a disputa com essa definição, que era depreciativa, e hoje parece ser uma qualidade almejada pela maioria, com sonhos de ascensão social.

Outro que anteviu esse processo foi o ex-ministro Mangabeira Unger, professor de Harvard, que achava “decisivo” para qualquer orientação transformadora do Brasil o surgimento de uma nova classe média, e uma nova cultura de emergentes, “esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um negócio, ser profissional independente, que está construindo uma nova cultura de autoajuda e de iniciativa, e está no comando do imaginário nacional”.

Ele percebeu o movimento “como um elemento entre muitos dessa nova base social. São dezenas de milhões de brasileiros organizados”. Mangabeira desenvolveu a tese de que evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.

Com base nisso, participou da criação de um novo partido, em outubro de 2005, o Partido Municipalista Renovador (PMR), cognominado pelo então prefeito Cesar Maia como “o gospel do crioulo doido”, hoje Partido Republicano Brasileiro (PRB), criado pelos evangélicos da Igreja Universal para substituir a marca PL, manchada pelo escândalo do mensalão que estourara naquele ano.

O projeto era o controle político da chamada “nova classe média”. A preocupação do PT com a ascendência da Universal nesse universo eleitoral foi explicitada pelo ministro Gilberto Carvalho, então secretário-geral da Presidência, que alertou que as esquerdas deveriam disputar ideologicamente a massa dos emergentes. Gilberto Carvalho chegou a falar na criação de um sistema de comunicação de massas para transmitir a esses novos consumidores as ideias do governo.

Os evangélicos reagiram com vigor, e o projeto político se manteve afastado do PT. A sigla manteve-se nas eleições gerais de agora entre os maiores, à frente do PSDB e do DEM, por exemplo: elegeu 30 deputados federais, 42 deputados estaduais e um senador, além de um vice-governador, Carlos Brandão, no Maranhão.

Um exemplo de como os políticos tradicionais não entenderam essa transformação está num vídeo em que o então governador Sérgio Cabral visitava no Rio, com o presidente Lula, um condomínio popular do subúrbio. Um rapaz aproximou-se e reclamou que não tinha quadra de tênis na área de lazer. Cabral passou-lhe uma descompustura: " Deixa de bobagem. Tênis é jogo de burguês".

A popularidade de Lula hoje, mais do que nunca, se ancora nos grotões do interior, onde uma horda de desvalidos é cuidadosamente manipulada por seus programas assistencialistas. São os excluídos, presentes em maior parte no Nordeste, única região em que o petista ganha de Bolsonaro com 60% dos votos válidos.