revista pd#48

Revista PD#48: Homem público

A expressão está em desuso porque, a cada ano, é menor o número de homens verdadeiramente públicos ou porque a linguagem vai se adaptando às novas realidades e qualificativos – como este – começam a ficar inconvenientes. Nunca se usou, por exemplo, designar a mulher que conquistava um mandato eleitoral e ingressava no Parlamento como uma mulher pública. Pegaria mal. E elas nem sabiam que já foram “mulheres sapiens”, descoberta de Dona Dilma, quando ainda presidente da República.

Por Antônio de Faria Lopes
Revista Política Democrática #48

Do homem público se exigiu, desde sempre, virtudes como honestidade, seriedade, respeito, transparência, honradez, sem as quais ele não poderia ser mandatário e nem agir em nome da sociedade, representando-a por escolha dela própria. Nunca se contestou o direito de todos, políticos inclusive, à privacidade, às suas escolhas, sua religião, suas preferências sexuais, o seu “direito de estar só” como defende o professor Paulo José da Costa Júnior.

Todavia, é inegável que existe um processo de privatização dos governos e do próprio Estado. O princípio de que “todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (§ único do art. 1º de nossa Constituição) não passa hoje de uma frase sem nenhum respaldo na realidade. Nem sempre foi assim. Houve tempo em que, embora já existisse corrupção, ela não era a regra.

Em julho de 2003, o jornal O Tempo publicou um artigo com o título de “Saudosismo”, no qual eu tratava deste mesmo tema. Assim: Já profetizaram o fim da História. Todo o vivido, de repente, sem qualquer serventia. Os exemplos, os bons e também os maus, sem nenhum valor. Matéria para literatura, para o saudosismo dos velhos, para o tempo da memória que nada constrói. Começamos a viver em um império pós-moderno, globalizado e sem território no qual o mercado, quase sempre nervoso, dá as cartas e a todos submete sob a vigilância armada dos Estados Unidos que a ninguém deve explicações. O que passou não tem a mínima importância.

Mesmo assim acho que vale a pena contar um episódio dos tempos de Milton Campos. Mesmo que seja só saudosismo. Foi o professor Edgar da Mata-Machado que me contou, com a graça e a sabedoria que marcaram a sua exemplar passagem por este mundo. Passado tanto tempo, para não aumentar um ponto, liguei para o jornalista José Bento Teixeira de Sales que não relata o fato no seu belíssimo livro Milton Campos – uma vocação liberal . Ele o confirmou e lembrou outros, alertando para o permanente risco da memória. Os dois, Edgar e José Bento, acompanhavam o governador nas audiências públicas mensais em que o dr. Milton falava com os cidadãos que batiam às portas do Palácio da Liberdade. Uma imensa fila de pedidos, notícias, convites, reclamações que o governador ouvia e os secretários anotavam para providências posteriores. Coisa impensável nos dias de hoje.

Nessa época, um dos filhos do dr. Milton prestava serviço militar. Obrigação de todo jovem, filho de quem fosse. Um dia, como costuma acontecer, o jovem acordou mais tarde. Não chegaria a tempo para a chamada matinal dos recrutas. A punição poderia ser, entre outras, 24 horas de xadrez. O Exército era rigoroso e o atraso um ato de indisciplina. O jovem, aflito, apelou para o pai governador pedindo-lhe que autorizasse o motorista a levá-lo ao quartel para evitar a punição.

Calmamente, como era do seu feitio, o governador explicou ao jovem cidadão que o carro oficial (na verdade, chamava-se automóvel) só poderia ser usado para atividades do Governador do Estado. Não era uma propriedade privada, era pública. O pai aconselhou o filho a levantar-se mais cedo e a assumir as responsabilidades pelos seus atos e a ser humilde para receber a punição, se houvesse.

Privado
Pode parecer romântico, ingênuo, até piegas rememorar fatos como este. O uso do que é público como propriedade privada banalizou-se de tal forma que não escandaliza mais ninguém. Os carros são usados para levar as crianças à escola, os aviões para ministros gozarem férias em Fernando de Noronha, o nepotismo campeia e os cargos em comissão, preenchidos sem nenhuma exigência de competência, são moeda de troca puramente eleitoral. Mais grave ainda é a fraude nas licitações, a remessa ilegal de dólares para o exterior, o uso de informações secretas para negócios no mercado, a manipulação de índices que fazem a festa dos especuladores de plantão. E imensas fortunas.

Mesmo que a História não acabe, exemplos como o de Milton Campos são propositadamente esquecidos e evitados por inconvenientes. Ou será que ele é que estava errado? Se o seu exemplo valesse, cadelinhas de estimação não andariam em carros oficiais. Mesmo que tivessem nome francês e estivessem estressadas. Esta cadelinha tinha o nome de Michele e era transportada do Palácio da Alvorada, onde morava, para o gabinete do presidente da República por sugestão do veterinário-psicólogo que a assistia. A impunidade e um sistema de publicidade que dava mais importância à fantasia do que à realidade transformaram a maioria dos brasileiros em cordeirinhos que, sem nenhum senso crítico, a tudo aplaudiam. A crise da economia, o domínio da corrupção, o nascimento da Operação Lava-Jato e a presença mais firme do Judiciário vão revelando o país verdadeiro e os responsáveis pelos desmandos.

Hoje, a grande maioria dos brasileiros sabe que os nossos representantes agem sempre em proveito próprio e têm como principal objetivo permanecerem no poder. Com exceções, cada vez menores. Não são mais homens públicos, uma vez que só cuidam dos seus interesses privados. E tratam de tornar sigilosas suas ações, principalmente os responsáveis pelo Poder Executivo que, através de decretos, impedem que o povo saiba como e com quem são usadas as aeronaves públicas, por exemplo. E depois, simplesmente, alegam que não praticaram nenhuma ilegalidade. Assim também ministros, deputados e senadores que usam os aviões da FAB por todo o Brasil de forma abusiva e desonesta. Mas legais, dirão eles sempre.

Não superaremos a crise que vivemos se o exemplo não vier dos ocupantes do poder. O nosso sistema político é muito caro e pouquíssimos partidos querem modificá-lo. A grande maioria, ao contrário, quer sempre tirar mais vantagem. Não há decreto, nem medida provisória que possa ocultar os abusos.

O homem pode até deixar de ser público mas a sua privacidade não será mais respeitada. Os sistemas de comunicação instantâneos, os aparelhos que fotografam e gravam conversas e sons estão nas mãos da maioria dos brasileiros, as câmeras estão em todas as esquinas, prédios e casas.

O povo não é mais um bando de idiotas. O direito de estar só vai acabando. Diante dessa nova realidade, a privatização e aparelhamento da administração pública tornam-se comportamentos verdadeiramente públicos, do conhecimento de todos, e espalhados pelas redes sociais aos quatro cantos do país. As alegações de legalidade acabam ficando ridículas.

*Antônio de Faria Lopes é advogado, ex-líder sindical dos bancários e ex-deputado estadual por Minas Gerais


Revista PD#48: Educação e inovação no século 21

No século 21, a relação entre educação e inovação é cada vez mais profunda e recíproca. Precisaremos investir muito em educação de qualidade se quisermos alcançar o patamar das sociedades mais inovadoras do mundo, e só conseguiremos dar um verdadeiro salto de qualidade na nossa educação se inovarmos profundamente a maneira como educamos.

Por Mozart Neves Ramos
Revista Política Democrática #48

O preço por negligenciar essa relação pode ser – e já está sendo – altíssimo. Do ponto de vista econômico, a falta de qualidade da nossa educação se reflete no baixo índice de produtividade dos nossos trabalhadores e na nossa dependência econômica de commodities .

Se não fizermos nada para mudar este cenário, estaremos sempre à mercê da inovação produzida por outros países, vendendo produtos e serviços baratos e comprando tecnologias caras que não seremos capazes de desenvolver. Certamente, continuaremos ouvindo falar de brasileiros criativos que desenvolvem soluções inovadoras para problemas pontuais, mas eles continuarão sendo ilhas de excelência em um mar de obsolescência e improdutividade.

Só a educação de qualidade para todos pode garantir um futuro de prosperidade para nossa sociedade. Um estudo do economista chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper, Ricardo Paes de Barros, mostrou que, entre 1990 e 2015, cada ano a mais de estudo no país foi seguido de um aumento extra de produção de apenas US$ 98 por trabalhador ao ano, sendo que, no Chile e na Coreia, esse aumento foi de US$ 829 e US$ 842, respectivamente.

Este dado revela que, apesar de a média de anos de escolaridade dos brasileiros ter se expandido consideravelmente, nosso sistema educacional não está dando conta de preparar os jovens para um mercado de trabalho cada vez mais globalizado e complexo.

Precisamos urgentemente inovar a nossa educação. Digo “inovar” porque não se trata de “consertar” ou “remendar”. Trata-se de criar uma nova educação que responda aos desafios do mundo em que vivemos. Diferentemente do mundo do século 19 (em que foi concebido o sistema educacional vigente), o mundo atual exige das pessoas a capacidade de seguir aprendendo ao longo da vida e de colocar o conhecimento “em ação” para possibilitar a resolução de problemas que ainda não são conhecidos.

Para isso, a escola precisa fazer mais do que transmitir conteúdo; pre cisa considerar o aluno “por inteiro”, trabalhando o desenvolvimento de suas competências cognitivas (como raciocínio lógico e pensamento crítico) e socioemocionais (como resiliência e colaboração), pro movendo o seu protagonismo e o seu engajamento com a própria aprendizagem.

A flexibilização dos currículos, a personalização do ensino, o foco em multiletramentos (letramento em programação, letramento científico, letramento corporal etc.), os métodos híbridos de ensino (em que métodos on-line e presencial se mis turam), a gamificação dos con teúdos e outras inovações são alguns caminhos para a promoção dessa educação integral, mas não são os únicos.

Assim como nossas crianças e nossos jovens, teremos que ser abertos e criativos para pensar o futuro da educação. Seja qual for esse futuro, precisaremos investir em políticas e práticas baseadas em experiências e evidências, num espírito de compromisso e colaboração entre gestores, educadores, empresários e a sociedade em geral.

Um belo exemplo deste espírito vem ocorrendo em Santa Catarina, por meio do movimento Santa Catarina pela Educação, liderado pela Federação das Indústrias (Fiesc) daquele estado, pelo poder público da Educação, tanto na esfera estadual como municipal, pelas federações do Comércio, dos Transportes e da Agricultura, além dos institutos e fundações do terceiro setor, como os institutos Ayrton Senna e Natura. Um belo exemplo de como colocar em prática o que está posto no artigo 205 da Constituição Brasi leira: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentiva da com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Não é à toa que lá se costuma dizer: “A educação é o novo nome do desenvolvimento”.

Portanto, não vamos pensar que, quando falamos de inovação, estamos falando apenas de incorporar as novas tecnologias e metodologias na sala de aula. É muito mais do que isso. “Inovação é sermos capazes de empurrar a fronteira do conhe cimento, de prover ao professor o acesso a esse conhecimento, para assegurar aos nossos alunos o direito à aprendizagem, fazendo isso de forma colaborativa com a sociedade, trabalhando todos juntos em prol de uma educação de qualidade. Sem esse compromisso, não haverá educação, não ha verá inovação. E, temo dizer, não haverá futuro.

* Mozart Neves Ramos é diretor do Instituto Ayrton Senna, foi reitor da Universidade Federal de Pernambuco e secretário de Educação de Pernambuco