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Luiz Inácio Lula da Silva

É possível dizer que Lula foi inocentado na Lava Jato?

Mariana Schreiber*, BBC News Brasil

O petista havia sido considerado culpado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas o STF anulou essas condenações por entender que Lula não teve seus direitos respeitados ao longo dos processos conduzidos pelo então juiz Sergio Moro.

Hoje candidato à presidência, Lula cita o fim das condenações como prova da sua inocência e afirma que foi perseguido pela Lava Jato.

"Eu tinha certeza que esse dia chegaria. Esse dia chegou com o voto do (ministro do STF Edson) Fachin, de reconhecer que nunca teve crime cometido por mim, de reconhecer que nunca teve envolvimento meu com a Petrobras. E todas as amarguras que eu passei, todo o sofrimento que eu passei, acabou", disse o ex-presidente no ano passado.

A declaração se referia à determinação do ministro Edson Fachin para que os processos julgados por Moro em Curitiba fossem anulados e julgados por outro juiz, em Brasília. Na decisão, Fachin entendeu que o Ministério Público (MP) não demonstrou que havia envolvimento da Petrobras nos supostos crimes de Lula, requisito necessário para o caso ser julgado na vara de Moro.

Essa decisão foi confirmada pela Segunda Turma do STF, que depois também julgou Moro como tendo sido um juiz parcial nos processos contra o petista, o que reforçou a anulação das condenações.

Para críticos do ex-presidente, como os processos foram anulados por razões técnicas, não ficou provada a inocência de Lula frente às acusações. Na visão desse grupo, ele não foi "inocentado" pela Justiça. Seu principal adversário na eleição, o presidente Jair Bolsonaro, inclusive, costuma se referir ao petista como "descondenado".

"Quando o Supremo Tribunal Federal anulou o caso Lula, muitas pessoas passaram a falar que ele foi inocentado, quando ele não foi inocentado. Três tribunais, primeira, segunda e terceira instâncias, juízes independentes, mais os ministérios públicos que atuavam perante essas instâncias de modo independente, entenderam que existiam fortes provas, não só de corrupção, mas de lavagem de dinheiro também", disse o ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol, em um vídeo compartilhado em julho nas suas redes sociais.

"E aí o Supremo vem e ele não inocenta o Lula. O Supremo não disse que não existiam provas. Ele não entrou no mérito. O Supremo anulou por uma questão formal, do mesmo modo como anulou, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o Supremo, os grandes casos contra corrupção no país. O sistema de Justiça nosso foi feito para garantir impunidade dos poderosos que roubam nosso país. Essa é a verdade", disse ainda o ex-procurador e agora candidato a deputado federal.

Nesta reportagem, a BBC News Brasil relembras as principais acusações contra Lula, explica porque as condenações foram anuladas e traz a opinião de diferentes juristas para a questão: afinal, Lula foi inocentado na Justiça?

Mas antes de abordar esses três pontos, é importante entender o princípio da presunção da inocência, previsto na Constituição brasileira. Segundo esse princípio, toda pessoa é considerada inocente até que se prove o contrário em um julgamento realizado dentro da lei. Dessa forma, com a anulação dos processos contra Lula, ele recuperou seu status de inocente perante a Justiça.

Já a opinião pública segue bem dividida. Uma pesquisa da consultoria Quaest de junho mostrou que 48% dos eleitores acreditam que Lula foi condenado corretamente, contra 43% que têm opinião contrária.

1. Relembre os processos contra Lula

O petista enfrentou uma série de acusações na Operação Lava Jato. Hoje, todos os desdobramentos na Justiça estão encerrados ou suspensos.

Grosso modo, houve dois caminhos para a conclusão desses processos: em alguns deles, Lula foi absolvido, ou seja, a Justiça considerou que não havia provas de que havia cometido crimes; em outros, as condenações foram anuladas porque os direitos do petista foram desrespeitados.

Um dos casos em que ele foi absolvido, por exemplo, foi o processo conhecido como "Quadrilhão do PT", em que Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff e outros petistas eram acusados de formar uma organização criminosa.

"A denúncia apresentada, em verdade, traduz tentativa de criminalizar a atividade política. Adota determinada suposição — a da instalação de 'organização criminosa' que perdurou até o final do mandato da ex-presidente Dilma Vana Rousseff — apresentando-a como sendo a 'verdade dos fatos', sequer se dando ao trabalho de apontar os elementos essenciais à caracterização do crime de organização criminosa", escreveu o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal em Brasília, na sentença que absolveu os acusados.

Na maioria dos casos contra Lula na Lava Jato, porém, os processos foram anulados ou interrompidos porque a Justiça entendeu que houve ilegalidades contra o ex-presidente.

Ou seja, nessa segunda situação, não houve uma análise final de mérito das acusações, para decidir se elas eram verdadeiras ou falsas, por que não é possível fazer essa análise em um processo em que os direitos do acusado foram desrespeitados.

Isso ocorreu, por exemplo, nos dois processos mais conhecidos, em que Lula chegou a ser condenado: o do tríplex do Guarujá e o do sítio de Atibaia.

No primeiro, o petista foi acusado de receber uma cobertura no Guarujá, cidade no litoral paulista, do grupo OAS como um suposto acerto por desvios de recursos da Petrobras durante o governo petista.

No segundo, Lula foi acusado de ser beneficiado por obras realizadas por OAS e Odebrecht em um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, que pertencia a um amigo seu e que o ex-presidente frequentava com sua família. Também nesse caso, a força-tarefa da Lava Jato dizia que essas benfeitorias foram bancadas com dinheiro desviado da estatal.

O que dizia a defesa do petista?

Em ambos os casos, a defesa de Lula argumenta que os dois imóveis jamais pertenceram a Lula. Os advogados também afirmaram que não havia qualquer prova concreta de que as obras foram pagas com dinheiro desviado da Petrobras, já que essas acusações se baseavam na palavra de delatores ou de outros réus do processo, que estariam tentando se beneficiar na Justiça ao acusar Lula.

No caso do tríplex do Guarujá, o petista havia comprado com sua então mulher, Marisa Letícia, um apartamento de dois quartos no mesmo prédio do triplex. Mas a cooperativa que iria construir o empreendimento faliu e a obra foi assumida pela OAS.

Foi após essa mudança que a cobertura teria sido reservada para Lula ao invés do apartamento de dois quartos. Ele e Marisa Leticia chegaram a visitar o imóvel para ver as obras realizadas pela OAS no triplex.

Na visão da acusação, o apartamento estava sendo personalizado para o casal e não havia sido passado formalmente para nome de Lula como forma de ocultar o crime.

Já a defesa diz que a OAS estava tentando vender o tríplex ao ex-presidente, que o casal visitou o apartamento para avaliar sua compra, mas que acabou desistindo do negócio.

Lula no local do velório do neto, quando deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba durante seu período na prisão

Lula e seus advogados sustentavam ainda que as acusações seriam fruto de uma perseguição da Lava Jato contra Lula, com apoio de parte da imprensa brasileira, para tirá-lo da vida política.

Nos dois processos, Lula foi julgado culpado pelo então juiz Sergio Moro. Nas sentenças, Moro considerou que os imóveis não estavam no nome de Lula como forma de ocultar os benefícios que estaria recebendo ilegalmente e, por isso, o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

As duas condenações foram confirmadas depois pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região. No caso do triplex, isso ocorreu ainda em 2018, o que tornou Lula inelegível naquela eleição. Ele também foi preso naquele ano porque o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância.

2. Por que os processos julgados por Moro foram anulados?

Primeiramente, o STF entendeu, em março de 2021, que esses processos não deveriam ter tramitado na Justiça de Curitiba. Pouco depois, em junho, a corte decidiu também que Moro não julgou Lula com imparcialidade.

Com essas duas decisões, as condenações foram consideradas nulas, mas Lula ainda poderia responder às acusações em novos processos, a serem realizados na Justiça de Brasília.

No entanto, esse retorno à estaca zero acabou provocando a prescrição da pretensão punitiva. Ou seja, terminou o prazo estabelecido na legislação penal para possível punição dos crimes, caso Lula fosse considerado culpado.

E quando não há mais possibilidade de punição, as acusações são arquivadas definitivamente. Ou seja, Lula não pode mais ser julgado nos casos do triplex e do sítio de Atibaia.

Que diferença faz Lula ser processado em Curitiba ou Brasília?

Existe uma regra no direito penal brasileiro que determina que um processo criminal deve ocorrer na vara do local onde o suposto crime ocorreu. Por exemplo, se um assassinato acontece no bairro carioca de Copacabana, o julgamento ocorre na Justiça do Rio de Janeiro.

Essa regra serve para evitar que um processo seja direcionado para um juiz específico, contribuindo para a neutralidade do julgamento.

Inicialmente, os casos da Lava Jato estavam concentrados na vara do então juiz Sergio Moro. Isso ocorreu porque a operação, que teve sua primeira fase em março de 2014, começou a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros e o ex-deputado federal do PP José Janene.

No entanto, com o avançar das investigações e as informações obtidas em acordos de delação dos primeiros investigados, a operação passou a apurar crimes em outras regiões do país, nem sempre relacionados a Petrobras.

A força-tarefa da Lava Jato, porém, argumentou que havia uma conexão entre esses crimes e que todos deveriam ser investigados pela operação e julgados por Moro.

Desde o início da Lava Jato, a defesa de vários investigados contestaram essa decisão e pediram que os casos fossem redistribuídos para outras varas de outros Estados.

A partir de 2015, diversos processos foram redirecionados principalmente para Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. No entanto, o STF determinou que todos os casos que envolvessem a Petrobras deveriam ser mantidos com Moro. Como o Ministério Público acusava as empreiteiras de terem usado recursos desviados da estatal para beneficiar Lula, os processos do ex-presidente continuaram na vara de Curitiba.

No entanto, em março de 2021, ministro Edson Fachin acolheu o argumento da defesa de que, na verdade, não havia elementos concretos na acusação comprovando que o petista teria interferido diretamente em contratos da Petrobras para favorecer OAS e Odebrecht em troca do tríplex ou das obras no sítio. Sua decisão depois foi confirmada pela Segunda Turma da Corte.

Para a professora de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procuradora da República Silvana Batini, que atuou em casos da Lava Jato do Rio de Janeiro, foi um erro não ter se adotado critérios mais objetivos para delimitar a competência dos casos da Lava Jato no início da operação.

"Quando (a Lava Jato) começou, era a primeira vez que você lidava com uma mecânica tão vasta de fatos ligados entre si. Então, você podia ter uma interpretação sobre competência técnica muito extensa, que tornava o juiz de Curitiba quase um juiz universal. Isso aconteceu e o Supremo deixou", afirmou à BBC News Brasil.

"Depois, quando o Supremo veio colocar um freio, colocou, criando um critério que não existia na lei. Disse: 'Olha, (permanece na Vara de) Curitiba só o que for Petrobras'. Não existe competência em razão da vítima. Inventaram aquilo. Então isso tudo, realmente, dá um visão de como (houve) uma insegurança jurídica que o próprio Supremo acabou plantando", disse ainda.

O impacto da Lava Jato

Por trás da decisão de Fachin de tirar os processos contra Lula de Curitiba havia o contexto de enfraquecimento da Lava Jato.

Em 2019, a série de reportagens Vaza Jato, do portal Intercept Brasil, revelou supostos diálogos privados da força-tarefa da operação, inclusive conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e Sergio Moro, que indicavam uma espécie de conluio por parte do Ministério Público e do então juiz nos processos contra Lula e outros acusados.

Esses diálogos mostravam, por exemplo, que Moro teria sugerido aos procuradores ouvir uma testemunha que poderia incriminar o petista.

Foi nesse contexto que ganhou força o pleito antigo da defesa de Lula para que Moro fosse declarado suspeito nos processos que havia julgado o petista antes de deixar a magistratura para virar ministro no governo de Jair Bolsonaro.

Um dos argumentos dos advogados era, por exemplo, a condução coercitiva que o petista sofreu em 2016, mesmo sem ter sido previamente intimado a depor, como prevê a lei.

Conversas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol foram reveladas pelo Intercept Brasil

Com o aumento do desgaste da Lava Jato, foi aumentando a expectativa de que Moro seria declarado parcial nos processos contra Lula. O que se diz nos bastidores de Brasília é que Fachin queria evitar que Moro fosse declarado suspeito e, por isso, decidiu aceitar o pedido da defesa para retirar os processos da vara de Curitiba. O ministro de fato argumentou na sua decisão que, após a mudança dos casos para outra vara, não fazia mais sentido julgar se Moro era ou não parcial.

A preocupação de Fachin seria evitar que a declaração da suspeição do ex-juiz tivesse efeito mais amplo de anular não só as condenações, mas todas as investigações contra Lula realizadas na vara de Curitiba.

A maioria do STF, porém, discordou de Fachin e, com isso, a Segunda Turma analisou a suspeição de Moro e declarou que ele foi parcial contra Lula, provocando a anulação de todas as investigações.

3. Afinal, Lula foi inocentado nos casos do triplex e do sítio?

Gustavo Badaró, advogado e professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP), explica que o termo inocentado não existe dentro da linguagem jurídica e é usado de forma coloquial. Dentro das normas jurídicas, lembra ele, uma pessoa acusada pode ser condenada ou absolvida.

Segundo Badaró, com a anulação da condenação de Lula, ele "é tão inocente quanto quem nunca foi processado".

Na sua avaliação, porém, não seria adequado, numa linguagem leiga, dizer que Lula foi inocentado nos casos do triplex e do sítio porque isso passa a ideia de que ele foi absolvido nesses processos.

"Tem um certo jogo de palavras que ao dizer 'o Lula foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal' parece que você está querendo dizer que o Supremo deu um atestado de idoneidade pra pessoa. A mim, parece que dá uma ideia de que o Poder Judiciário declarou absolvição", ressaltou.

Já para Davi Tangerino, advogado e professor de Direito Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), não faz sentido colocar a questão se Lula foi ou não inocentado, a partir do momento em que os processos foram considerados nulos.

"Para alguém ser inocentado ou condenado, existe um pressuposto lógico, no Estado Democrático de Direito, que ele tenha sido julgado, entre outras coisas, por um juiz imparcial. Então, nos casos da Lava Jato (julgados por) Moro, quando você tem a declaração pelo Supremo de parcialidade do Moro, o binômio condenado ou inocente não faz mais sentido porque ele pressupõe uma denúncia recebida por um juiz competente e imparcial, um julgamento, e aprovação de uma sentença", argumenta

"Quando você retira dessa equação o juiz parcial, desaparece, via de consequência, o binômio condenado ou inocentado, e aí continua a valer o quê? A presunção de inocência", reforçou.

A procuradora Silvana Batini também diz que a discussão é irrelevante do ponto de vista jurídico. Já no campo político, nota ela, cabe a cada eleitor fazer seu juízo sobre Lula.

"No aspecto jurídico, não tem a menor relevância o que aconteceu, o fato de ele ser inocentado ou não ser inocentado. Os processos do Lula desapareceram porque foram anulados", disse.

"Não se obteve nenhum juízo definitivo sobre responsabilidade criminal dele. Se reconheceu que o processo estava nulo, então não é possível fazer juízo nenhum sobre aqueles fatos hoje. Se não tem nenhum juízo definitivo sobre culpa, o que prevalece é a presunção da inocência. Isso é o que a lei diz, o que a Constituição diz. No plano político, isso aí é absolutamente incontrolável, cada eleitor que faça as suas análises", ressalta.

Procurada a conceder entrevista à reportagem, a defesa de Lula se manifestou após a publicação.

"Nosso trabalho jurídico resultou no encerramento, nas mais diversas instâncias, de 26 procedimentos que foram abertos indevidamente contra o ex-presidente Lula durante a perseguição promovida contra ele pela "operação lava jato" e seus desdobramentos. Também conseguimos a primeira decisão proferida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em favor de um cidadão brasileiro, reconhecendo que Lula sofreu violação aos seus direitos fundamentais previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU", disse o advogado Cristiano Zanin, por meio de nota.

"Foi um trabalho que necessitou de muita resiliência, muito fôlego e o uso de uma visão multidisciplinar do Direito, pois tivemos que passar quase 6 anos defendendo a inocência de Lula e os inúmeros vícios presentes nos processos e procedimentos abertos contra ele nas mais diversas frentes. Felizmente, conseguimos vencer o caso e permitir que Lula pudesse resgatar todos os seus direitos, inclusive os direitos políticos, permitindo que ele seja o candidato à Presidência da República mais bem posicionado nas eleições deste ano", acrescentou Zanin.

Divisão

Mesmo que cerca de metade da população considere o petista culpado, segundo pesquisa Quaest de junho, diversas sondagens eleitorais têm apontado Lula como favorito para vencer a eleição presidencial em outubro.

Com o acirramento da corrida eleitoral, a tendência é que os adversários de Lula usem cada vez mais o escândalo de corrupção na Petrobras durante o governo petista para tentar tirar votos do ex-presidente.

Mesmo que o STF tenha entendido que a operação cometeu abusos, R$ 6 bilhões desviados da estatal foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações. A expectativa é que PT rebata esses ataques reafirmando a inocência de Lula e acusando a Lava Jato de ter perseguido o partido politicamente.

Para reforçar esse argumento, os petistas costumam lembrar que Moro e Dallagnol entraram de vez para a política e são candidatos na eleição desse ano.

*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.


O Globo: Na contramão de Aras, procuradores investigam atuação do governo Bolsonaro na pandemia

Integrantes do Ministério Público que atuam na primeira instância abriram ao menos duas investigações para apurar responsabilidades do governo federal

Leandro Prazeres e André de Souza, O Globo

BRASÍLIA - Na contramão do procurador-geral da República, Augusto Aras, integrantes do Ministério Público que atuam na primeira instância abriram ao menos duas investigações para apurar responsabilidades do governo federal na condução das ações de combate à pandemia do novo coronavírus. Eles também têm tentado exercer pressão por meio de recomendações e ofícios solicitando informações ao Ministério da Saúde. Há queixas de que a falta de uma coordenação da PGR tem feito com que as ações sejam dispersas.

EditorialAras contraria função constitucional do MP durante a pandemia

Aras vem sendo criticado por colegas em razão da sua suposta omissão em relação ao governo federal nas ações de combate à Covid-19. Nesta semana, a PGR divulgou uma nota dizendo que a responsabilidade por apurar “eventuais ilícitos” de agentes da cúpula dos Poderes da República seria de competência do Congresso. A nota veio três dias depois de a PGR ter pedido abertura de inquérito para investigar a suposta omissão do governo do Amazonas no colapso do sistema de saúde no estado, quando faltou oxigênio em hospitais. Na visão de procuradores, o pedido poupou o Ministério da Saúde.

O GLOBO identificou pelo menos duas investigações sobre a atuação do governo federal na pandemia tramitando na primeira instância. Uma delas é de junho do ano passado e foi instaurada pela Procuradoria da República no Distrito Federal (PR-DF) para apurar a execução orçamentária das verbas federais destinadas ao enfrentamento à epidemia, após ter se apontado lentidão na utilização das verbas.

Eleição da Câmaracom o apoio de mais dois partidos, bloco de Lira ultrapassa o de Baleia em número de deputados

A mais recente foi instaurada na semana passada pela Procuradoria da República no Amazonas (PR-AM), dias após o colapso do sistema de saúde no estado. O inquérito, que tramita na esfera cível (e não é o mesmo pedido pela PGR), apura as responsabilidades dos governos estadual e federal pela falta de oxigênio hospitalar que, segundo investigações, teria matado pelo menos 29 pessoas.

Conhecimento prévio

Documentos enviados pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF) apontam que o governo federal havia sido avisado sobre o “iminente colapso” do sistema de saúde do Amazonas em 4 de janeiro, dez dias antes da crise. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, admitiu que a pasta teve conhecimento do problema no dia 8.

Um procurador da República que atua no monitoramento das ações do governo contra a Covid-19, e que pediu para não ter seu nome revelado, disse que a atuação do MPF está dispersa porque não teria havido coordenação da PGR. Segundo ele, o Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia Covid-19 (Giac), presidido por Aras, serviu apenas para que a PGR tentasse controlar as ações dos procuradores.

No primeiro semestre do ano passado, o Giac foi alvo de críticas depois de determinar que todas as recomendações feitas pelo MPF ao Ministério da Saúde fossem encaminhadas à PGR. A medida foi vista, inclusive pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), como uma ofensa ao princípio da independência funcional.

A expedição de recomendações e ofícios solicitando ações e informações foram meios que os procuradores usaram pra pressionar o governo a tomar medidas. Em maio, o MPF recomendou que a pasta exigisse o registro eletrônico de todas as internações em hospitais públicos ou privados durante a pandemia, com objetivo de ter informações em tempo real sobre a ocupação de leitos. O Ministério da Saúde não acatou a sugestão imediatamente. O sistema só foi implementado em agosto após a questão ser levada a um núcleo de resolução de conflito da Justiça Federal.

Na PGR e no Conselho Superior do MPF, que é o órgão máximo de deliberação na instituição, Aras também vem sofrendo críticas. Anteontem, seis dos dez integrantes do conselho rebateram a manifestação do procurador-geral de que cabe ao Congresso analisar os eventuais ilícitos do presidente.

Um subprocurador-geral ouvido pelo GLOBO destacou que Aras pode ser eventualmente responsabilizado perante o Congresso Nacional. A maioria da classe avalia que Aras atua em sintonia com o presidente Jair Bolsonaro, sem a independência que deveria ter.

Em nota, a PGR destacou a criação do Giac, afirmando que “o trabalho possibilitou ações e respostas rápidas em questões como distribuição de respiradores pelo país, falta de remédios do kit intubação, orientação para fiscalização do uso de recursos públicos, medidas emergenciais para a economia, entre outros”.

Diz ainda que foi criada uma “rede nacional de membros focalizadores nos estados” e abertos canais de “diálogo direto e cooperação” com o Ministério da Saúde, a Anvisa e os conselhos nacionais de secretários estaduais e municipais de Saúde. Ressaltou ainda a “autonomia e independência funcional” dos integrantes do MPF para tomarem as medidas judiciais que entenderam cabíveis na primeira instância.

Os conflitos entre Aras e o MPF

Derrotas em eleições internas

Em junho de 2020, eleições internas sacramentaram uma maioria independente em relação a Aras no Conselho Superior do MPF. O órgão tem dez integrantes, dos quais um deles o próprio Aras e outro o seu vice na PGR, Humberto Jacques de Medeiros. Dos outros oito, seis não estão alinhados com ele. Em setembro, o grupo impôs nova derrota, elegendo um adversário, o subprocurador José Bonifácio Borges de Andrada, para ser o vice-presidente do Conselho Superior.

Lava-Jato

Em julho de 2020, após críticas à Lava-Jato, Aras foi cobrado a dar esclarecimentos por alguns conselheiros. Ele reagiu irritado e houve bate-boca. Em agosto, em manifestação inédita, um grupo de oito conselheiros, entre opositores e aliados, enviou um ofício pedindo que Aras prorrogasse as estruturas das forças-tarefa da Lava-Jato de Curitiba e do Rio. Ainda em julho, a maioria também protestou contra o secretário-geral Eitel Santiago de Brito Pereira, responsável pela gestão administrativa de Aras. Em entrevista à CNN, Eitel afirmou que existiam “ilegalidades” nas prisões preventivas da Lava-Jato e disse que "foi Deus o responsável pela presença de Bolsonaro no poder”.

Forças-tarefa

O subprocurador-geral José Elaeres Marques Teixeira, opositor de Aras, sugeriu em setembro de 2020 uma proposta que diminui os poderes dele sobre as forças-tarefas do MPF. Sua criação e prorrogação não seriam mais atribuições exclusivas do procurador-geral e precisariam de análise e autorização do Conselho Superior, a quem caberia também definir a continuidade das atuais forças-tarefas. O relator é o subprocurador Nicolao Dino, também opositor de Aras, mas o procurador-geral vem resistindo em pautar o assunto.

Operação Greenfield

Em novembro de 2020, sete conselheiros pediram que Aras revisse a nomeação de Celso Três, um procurador anti-Lava-Jato, para a Operação Greenfield, que investiga desvios em fundos de pensão. Em dezembro, o novo coordenador da força-tarefa enviou um ofício à PGR com uma proposta que na prática encerraria a Greenfield, na qual chegou a dizer que não queria “trabalhar muito”. Neste mês, o próprio Celso Três pediu desligamento da operação.

Pandemia e estado de defesa

Nesta semana, seis conselheiros rebateram a manifestação de Aras de que cabe ao Congresso analisar “eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes” durante a pandemia. Para eles, a possibilidade de enquadramento de ações em crime de responsabilidade, passíveis de impeachment e analisados pelo Congresso, não afasta “a hipótese de características de crime comum, da competência dos tribunais”. Eles também criticaram o trecho da nota de Aras que citava a decretação de estado de calamidade pública para o combate à pandemia como “antessala do estado de defesa”, que pode ser decretado pelo presidente para restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social.