pazuello
Merval Pereira: Doria venceu
Foi uma vitória política do governador de São Paulo João Doria a admissão do ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, de que o início da vacinação nacional pode se dar ainda em dezembro, mais certamente em janeiro.
Embora o governador Doria garanta que não haveria falta de doses para todos que procurassem, mesmo não morando no Estado, São Paulo se livrou de problemas como a superpopulação das cidades com pessoas de outros estados procurando por vacinas, e poderá promover a vacinação de maneira tranquila e rápida.
Pode ser até que sobrem vacinas para doação a outros estados, sem prejuízo da população local, que se sentiria prejudicada pelo afluxo de pessoas de outros estados. A antecipação da vacinação nacional é um anúncio que só confirma que o governo brasileiro, se tivesse se organizado com antecedência, poderia estar começando a vacinação nacional, sem polêmicas, ao mesmo tempo que vários países.
A compra da vacina da Pfizer, que já está sendo utilizada na Inglaterra e em outros países, foi atrasada por uma decisão equivocada do ministério da Saúde, que a descartou pela dificuldade de armazenamento a temperaturas muito baixas. A solução foi dada pela própria farmacêutica, que criou embalagens com gelo seco que conservam a vacina por pelo menos um mês.
Agindo sempre com rancor, e sem nunca objetivar a proteção da vida humana, o presidente Bolsonaro foi obrigado a antecipar o calendário de vacinação para não deixar o governador paulista ser o pioneiro no país, enquanto a Saúde permaneceria em estado de paralisia burocrática.
A vacinação pode começar em janeiro, e com a vacina da Pfizer, descartada por Pazuello dias antes. Poderia ser com a vacina chinesa da Sinovac, que está sendo produzida no Instituto Butantan em São Paulo, mas a idiossincrasia de Bolsonaro em relação à China e a Doria, seu provável adversário em 2022 na disputa pela presidência da República, fez com que o governo brasileiro não levasse em consideração os avanços da vacina chinesa, que até hoje não está incluída na lista oficial das vacinas negociadas.
O que sempre foi óbvio, que a vacinação dos brasileiros atrasada em relação a muitos outros países pelo mundo provocaria uma forte reação da opinião pública, somente agora parece ter ficado claro para nossos governantes, que correm atrás do prejuízo improvisadamente.
A antecipação do calendário de vacinação nacional, que aliás ainda não foi divulgado de maneira oficial, vai ser feita não para salvar vidas, mas para salvar a pele do próprio presidente, que nega os benefícios da vacina, mas quer impedir que o governador de São Paulo tenha a dianteira nesse processo, o mais importante procedimento diante da pandemia da COVID-19.
Com a notícia de que a vacina da Pfizer pode causar efeitos colaterais nas pessoas alérgicas em alto grau, o presidente Bolsonaro é capaz de alegar que tem razão quando não recomenda a vacinação. A vacina em que o governo joga suas fichas é a da AztraZeneca, da Universidade de Oxford, que está sendo feita no Rio na Fiocruz.
Mas há problemas a serem superados, como a possibilidade de essa vacina não ser eficaz para idosos. Essa possibilidade surgiu nos estudos publicados na revista Lancet, que confirmou que a eficácia da imunização, que é de 60%, aumenta para 90% quando se dá uma meia dose na primeira vez, e depois completa-se com uma dose inteira.
Porém, não há explicação científica ainda para essa disparidade, e também o número de voluntários idosos foi insuficiente, segundo pesquisadores independentes, para se afirmar que a vacina de Oxford é eficaz para esse grupo de risco. Esses atropelos são naturais, pois foi um esforço internacional de emergência que permitiu que vários tipos de vacinas fossem produzidas em cerca de 1 ano de pandemia, o que é excepcional.
Elio Gaspari: A nova Revolta da Vacina
Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde
Depois de ter dito que a Covid era uma “gripezinha” que o brasileiro tiraria de letra e que a cloroquina era remédio eficaz, Jair Bolsonaro não deve esperar da plateia que ela lhe dê ouvidos. Já morreram mais de 178 mil pessoas, número superior ao dos mortos de Hiroshima em 1945. Contra bomba atômica não há vacina, mas contra a Covid haverá. Enquanto o processo de imunização segue um curso de racionalidade pelo mundo afora, em Pindorama o jogo político contaminou a discussão.
O governador João Doria anunciou que começará a oferecer vacinas a partir do dia 25 de janeiro. Pintada para a guerra, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária apressou-se para informar que “não foram encaminhados dados relativos à fase três, que é a fase que confirma a segurança e eficácia da vacina, esse dado é essencial para a avaliação tanto de pedidos de autorização de uso emergencial quanto pedidos de registro”.
Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde. A vacina só será oferecida em janeiro aos índios, quilombolas e profissionais de saúde. Quem anda pelas ruas de São Paulo não costuma cruzar com índios nem quilombolas. Restam os profissionais de saúde. Admitindo que esse burocrata existe, seria ridículo vê-lo dizendo ao doutor David Uip que não pode tomar a CoronaVac. Até as pedras sabem que os tribunais derrubarão quaisquer tentativas para impedir a aplicação das vacinas. Países andam para trás: em 1904, houve no Rio uma revolta contra a vacina obrigatória, o desconforto da Anvisa estimularia em 2020 uma revolta contra a vacina voluntária.
Bolsonaro falava em “menos Brasília, mais Brasil”. Pois é disso que se precisa. Se o almirante da Anvisa ou o general do Ministério da Saúde tiverem argumentos para bloquear a aplicação da CoronaVac, que coloquem a cara na vitrine dando suas razões. Há poucas semanas, a Anvisa meteu-se num vexame suspendendo testes a partir da morte de um voluntário que se havia suicidado.
Bolsonaro e Doria acusam-se de fazer política no meio da pandemia. É verdade, mas um detalhe os separa. Um faz política com a “gripezinha”, o outro oferece uma vacina.
A CoronaVac só será oferecida para quem tem mais de 75 anos a partir de 8 de fevereiro. Jair Bolsonaro, se quiser, só poderá ser vacinado a partir de 21 de março, quando completará 65 anos.
O negacionismo de Bolsonaro levou-o a uma armadilha. Continuar na linha que adota desde março será apenas falta de juízo. A Anvisa e o Instituto Butantan têm profissionais qualificados para discutir as qualidades ou os defeitos da CoronaVac. Um finge que se deve respeitar o rito burocrático; e o outro finge que respeita esse mesmo rito, impondo-lhe um prazo de validade.
O ministro da Saúde, general Pazuello, fez fama como um especialista em logística. Reunido com governadores, disse a João Doria: “Não sei por que o senhor diz tanto que ela [a vacina] é de São Paulo. Ela é do Butantan”. Ganha uma viagem a Caracas quem souber a importância disso. Do jeito que o general fala, se a logística do desembarque na Normandia estivesse nas suas mãos, em agosto de 1944 os Aliados não estariam em Paris. Os alemães é que teriam chegado a Londres.
Ricardo Noblat: Saída de Pazuello do governo é só uma questão de tempo
Ou porque será sacrificado ou porque pedirá demissão
Até quando o general Eduardo Pazuello, ministro improvável da Saúde tanto quanto Jair Bolsonaro é presidente acidental, ainda suportará o desgaste que sofre em decorrência de sua abissal ignorância sobre assuntos que é obrigado a tratar? E até quando o Exército assistirá inerte à desmoralização de um dos seus oficiais?
Pazuello não é apenas mais um militar de alto coturno que serve ao governo de um ex-capitão afastado contra sua vontade da caserna por indisciplina e conduta antiética nos anos 80 do século passado. É o único general da ativa e, como tal, membro do alto comando do Exército. Isso faz muita diferença – ou melhor: deveria fazer.
Seu colega Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo, levou meses para finalmente se render à pressão superior e pedir passagem para reserva. Militar da ativa não pode ocupar os dois lados do balcão, ora sentando-se com os que governam o país, ora com os que ditam os rumos das Forças Armadas.
Uma coisa nada tem a ver com a outra. O Exército é uma instituição permanente e apartidária. Não deve confundir-se, nem deixar-se confundir com governos cuja duração máxima é de oito anos. Era de quatro até que nos anos 90 o presidente Fernando Henrique Cardoso pegou gosto e quis ficar mais quatro. Ficou.
O Brasil registrou, ontem, quase 800 mortes pela Covid-19 em 24 horas, e o total ultrapassou a marca de 178 mil. O número de infectados se aproxima dos 7 milhões desde o começo da pandemia. Na gestão de Pazuello, a quantidade de casos aumentou 30 vezes. E se não bastasse, ele continua a dizer asneiras.
Em debate com governadores, entre eles João Doria (PSDB), de São Paulo, o ministro bateu seu recorde de asneiras. Visivelmente desconfortável no papel que Bolsonaro o forçou a viver, Pazuello disse a certa altura do duro interrogatório que enfrentou:
“Eu já expus a todos os governadores: quanto à vacina do Butantã, que não é do Estado de São Paulo, é do Butantã, eu não sei por que o senhor [Doria] tanto fala como se fosse do Estado, ela é do Butantã. O Butantã é o maior fabricante de vacinas do nosso país e é respeitado por isso”.
Por descuido ou por pena do general, Doria não respondeu que o Instituto Butantã foi fundado pelo governo de São Paulo em 1901 e desde então faz parte da Secretaria de Saúde do Estado. Ele é o fabricante por aqui da Coronavac, a vacina chinesa que desperta em Bolsonaro seus instintos mais primitivos.
Em outubro último, em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro afirmou: “A vacina da China nós não compraremos. É decisão minha”. Está gravado, o que não o impedirá de desmentir como já desmentiu que tenha dito duas vezes que o coronavírus não passava de uma gripezinha. Também está gravado, mas e daí?
O ponto alto do discurso de Pazuello aos governadores foi sobre o futuro da CoronaVac: “Quando a vacina estiver registrada, avaliaremos a demanda, e se houver demanda e houver preço, nós vamos comprar. Havendo demanda, todas as vacinas serão alvo de de nossas compras”.
Havendo demanda? Já não há?
Falta um plano de vacinação em massa. O que existe é um arremedo de plano repleto de buracos. Falta senso de urgência. Falta planejamento. Falta articulação com Estados e municípios. Falta comprar vacinas que outros países já compraram. E faltam insumos básicos, como agulhas, para que a vacinação possa começar.
Pazuello não sabe o que diz. E tem medo de dizer o que possa enfurecer Bolsonaro. Há mais de um mês, autorizado por ele, o ministro anunciou a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac. No dia seguinte, foi desautorizado. Pazuello então admitiu envergonhado: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Tem um general que se humilha e que é humilhado em praça pública dia sim, o outro também, e isso não é uma coisa que dignifique o Exército de Caxias.
Bernardo Mello Franco: Pazuello quer vencer o vírus com autoajuda
Ao assumir o Ministério da Saúde, o general Eduardo Pazuello foi apresentado como um especialista em logística. Pelos resultados da sua gestão, seria arriscado nomeá-lo para administrar uma barraca de feira.
Sob as botas do militar, a pasta permitiu o encalhe de quase sete milhões de testes de Covid. O material ficou esquecido num depósito no aeroporto de Guarulhos. Depois que o caso veio à tona, o ministro ofereceu uma solução mambembe: estender o prazo de validade dos kits, que começa a expirar neste mês.
Até hoje Pazuello não foi capaz de apresentar um cronograma de imunização para o Brasil. Nem a compra de seringas e agulhas está definida. O apagão logístico vai além do combate ao coronavírus. Pacientes com HIV e hepatite C estão sem exames de genotipagem porque o ministério deixou o contrato vencer.
Ontem o general deu novas provas de que é o homem errado no lugar errado. De manhã, ele se envolveu num bate-boca com o governador de São Paulo, João Doria, que reclamou de boicote federal à vacina do Butantan.
O ministro já havia anunciado a compra de 46 milhões de doses. No dia seguinte, foi desautorizado pelo chefe e sumiu de cena. Agora ele diz que a Anvisa levará 60 dias para liberar a vacina. Isso melaria a promessa do tucano de iniciar a imunização em janeiro.
À tarde, Pazuello fez um pronunciamento no Planalto. Ele repetiu generalidades e se recusou a responder perguntas. Limitou-se a recitar frases motivacionais como “não podemos desanimar” e “erguer a cabeça e dar a volta por cima é o padrão brasileiro”.
Sem ações concretas, o general indica que pretende vencer o vírus com chavões patrióticos e discurso de autoajuda. “Temos que acreditar que nós podemos vencer. Vamos ter fé. Tudo isso vai passar”, enrolou.
A conversa lembrou uma entrevista de Luiz Felipe Scolari na Copa de 2014. Antes da semifinal, o professor disse que a seleção estava “dando o seu melhor” e jogaria “pelo país”. Ele acrescentou que já havia estudado as táticas da Alemanha. “As observações me deram confiança de que estamos fazendo a coisa certa”, garantiu. A embromação de Pazuello parece anteceder um novo 7 a 1.
Janio de Freitas: Mais do que notícias da traição
Bolsonaro e seus generais seguiram o ídolo Trump na pandemia do coronavírus
Os mortos por Covid-19 nos Estados Unidos de Trump já equivalem aos americanos mortos em cinco guerras do Vietnã.
Os 58 mil do número oficial de americanos mortos na guerra iniciada pelo democrata John Kennedy multiplicam-se por cinco com a recusa de Donald Trump a combater a contaminação. A “America great again”, que o impulsionou à Casa Branca, a cada dia fica menor também em vidas.
Mas nada acontecerá a esse genocida, como nada aconteceu aos genocidas das bombas de napalm, com gelatinas em chamas pegajosas nos corpos, lançadas sobre as populações civis: um milhão de mortos, na estimativa autocomplacente dos americanos, e perto de três milhões para centros de estudo da guerra.
Jair Bolsonaro e seus generais seguiram o ídolo, com primarismo ainda maior. Até hoje inexiste um plano de orientação nacional, ficando os estados entregues às ações e inações, precariedades e perplexidades de cada um.
Repete-se o descaso deliberado quando o novo ataque do vírus alcança proporções alarmantes, seja ou não uma segunda onda, discussão ociosa.
Os jornais se deram um prêmio, pelo empenho noticioso apesar dos riscos e grandes dificuldades operacionais dos jornalistas sob a pandemia. Ali atrás, a expressão “empenho noticioso” não pôde acompanhar-se de alusão a outra responsabilidade que os leitores e espectadores tinham o direito de esperar. Aquela que consiste na função social de que os próprios órgãos de comunicação se declaram portadores.
O governo foi noticiado na traição às suas obrigações constitucionais, morais e humanitárias, mas não cobrado à altura, nem mesmo incomodado, para cumpri-las por necessidade vital da população.
Os brasileiros têm o direito e a premência de não estarem sujeitos à incompetência e ao servilismo de alguém que passa por ministro da Saúde ou por presidente. Mas que, na verdade, é uma ameaça idêntica ao vírus.
Sem transbordar do jornalismo, antes pelos meios legais de que dispõem, aos órgãos de comunicação cabia agir para compelir o governo a sanar sua traição aos deveres que, como princípio, o justificam.
A ferocidade do vírus e a traição do governo confraternizam-se outra vez. Noticiadas, só.
NAS SOMBRAS
A perda crescente de representatividade de quase todos os partidos leva muito eleitor a decidir o voto sem se importar com a sigla. Isso reduz o poder sinalizador das eleições municipais com vista à presidencial. A abstenção muito alta, não só por efeito da pandemia, impôs redução ainda maior da capacidade sugestiva das eleições recentes.
Afora o óbvio, o que sobrou nos resultados para as análises não provocou extravagâncias nem captações com maior ossatura. Toda a situação é muito instável. A pandemia e sua vacina, as consequências possíveis da vitória de Biden, o esperado agravamento da situação econômica brasileira em 2021, a suspensão ou redução da ajuda em massa —qualquer desses fatores pode influir muito mais, e já em futuro próximo, do que as perspectivas atribuídas ao resultado eleitoral recente.
DE IGUAL VALOR
A empresa de que Sergio Moro se torna sócio e diretor, não por acaso, é americana. O que é um dado interessante. Essas chamadas consultorias internacionais são grandes repositórios de informação captada em empresas nacionais importantes, as quais têm a vida ligada às circunstâncias e propensões políticas, como de relações externas.
Associar-se a uma empresa internacional de porte exige, em condições normais de ambas as partes, investimento relevante. É um aspecto obscuro, mas atraente, na condição desse ex-juiz se ligar à defesa dos interesses das empreiteiras e empresário de que foi, a um só tempo, algoz negociador de benefícios.
Sergio Moro fez bem em deixar a magistratura. Como disse sua mulher, Rosangela Moro, quando soltava rojões para festejar “o mito”, “Sergio Moro e Jair Bolsonaro são uma coisa só”.
Beatriz Jucá: Brasil fica para trás na estratégia de vacinação contra a covid-19 e acende alerta
Ausência de informações sobre estratégia nacional levanta receio de que o país desperdice sua expertise na imunização contra o coronavírus. Governo admite que vacina não será oferecida a toda a população em 2021
Enquanto laboratórios anunciam resultados preliminares promissores de suas vacinas contra o coronavírus e o mundo já desenha seus planos de vacinação, ainda não se sabe quase nada sobre quais serão as estratégias que o Brasil deverá adotar. O país ―onde a pandemia voltou a ganhar velocidade nas últimas semanas― dispõe de um Programa Nacional de Imunizações (PNI) reconhecido mundialmente, mas tem visto a disputa ideológica contaminar as decisões sobre as ações de combate ao vírus deste o início da crise. Diante da ausência de informações sobre o plano vacinal, pesquisadores e parlamentares receiam que o país desperdice sua expertise e não consiga apresentar uma estratégia consistente à sociedade logo que as vacinas sejam registradas. Na última semana, o Ministério da Saúde admitiu que a vacina contra a covid-19 não deverá ser disponibilizada para toda a população em 2021 e que a lógica de imunização deve ser semelhante à da vacinação contra a gripe, que prevê a aplicação do medicamento em grupos específicos.
Por enquanto, nenhum laboratório solicitou ainda o registro de sua vacina à Anvisa e o órgão diz que precisará de pelo menos 60 dias pra analisar eventuais pedidos. No mundo, ainda não há um medicamento imunológico licenciado, mas os países já começam a informar parte de suas estratégias. A Espanha, por exemplo, já anunciou que dividiu a população em 15 grupos e definiu quais teriam prioridade para receber a vacina: idosos em casas de repouso, cuidadores e pessoas com deficiência. No Brasil, um comitê técnico (do qual participam representantes do Governo, secretarias estaduais e municipais da Saúde, entidades de classe e organismos internacionais) foi criado em setembro para pensar nas estratégias. Uma reunião está prevista para a esta terça-feira para discutir uma primeira versão de um plano de vacinação para a covid-19. O país optou por esperar os registros dos imunizantes para avaliar quais serão incorporados no SUS e, a partir daí, desenvolver seu plano nacional.
O Brasil já tem um acordo para a transferência de tecnologia da vacina da AstraZeneca e participa de um consórcio global para ter prioridade na aquisição de outras nove vacinas, o Covax Facility. Também tem dialogado com laboratórios, ainda que não haja novos contratos de aquisição avançados neste momento. Alguns Estados já fizeram acordos para adquirir vacinas promissoras, como por exemplo São Paulo com a Coronavac e a Bahia com a Sputinik V. Mas desde que a corrida por uma vacina entrou na retórica ideológica de Bolsonaro, paira uma desconfiança sobre as futuras ações de imunização. O Ministério da Saúde afirma que trabalha com a possibilidade de incorporar diferentes vacinas no plano nacional, mas a possibilidade de rejeição de determinados imunizantes ganhou força desde que o presidente desautorizou seu ministro a firmar um contrato de intenção de compra da Coronavac, adquirida pelo seu adversário político e governador de São Paulo, João Dória.
O ministro Eduardo Pazuello garante que o plano nacional está, sim, sendo construído e chegou a afirmar que parte dele já estaria pronto. “Podem ficar tranquilos. Estamos acima do momento, estamos adiantados. Quando estivermos com dados logísticos das vacinas, a gente fecha o plano”, afirmou na última semana, sem apresentar maiores detalhes. Pazuello disse apenas que a lógica segue a mesma de outras campanhas: estudar os grupos prioritários e as áreas mais afetadas. No dia seguinte, porém, a equipe técnica do Ministério da Saúde afirmou que o que está definido são os objetivos do plano: reduzir a mortalidade e proteger pessoas mais expostas, já que neste momento não há capacidade de produção de vacina para toda a população brasileira.
“Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira”, disse a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. Gestantes e crianças, por exemplo, não entraram nos testes dos imunizantes. Segundo Fantinato, os detalhes logísticos de um plano nacional de vacinação só devem ser definidos após o registro pela Anvisa. Por enquanto, a pasta trabalha em uma fase preparatória para desenvolver sua estratégia.
Mas a demora para algumas definições preocupa especialistas e parlamentares. A cobrança para que o Governo apresente um plano de vacinação para a covid-19 está na Justiça. O Supremo Tribunal Federal recebeu pelo menos quatro ações sobre o tema, motivadas pelo discurso de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacinação e por sua rejeição à Coronavac. A Corte deverá tomar uma decisão no dia 4 de dezembro, mas nesta semana o ministro Ricardo Lewandowski, que é relator das ações, antecipou o voto favorável à iniciativa. Lewandowski declarou que, na iminência de aprovação de várias vacinas, “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da covid-19”.
A microbiologista Natalia Pasternak alerta que um atraso no planejamento da vacinação é prejudicial, mesmo com a expertise do SUS, especialmente no caso do coronavírus. O cenário que se desenha no momento é que os países precisarão adotar diferentes vacinas para atingir a imunização coletiva e, num país continental como o Brasil, exige-se um plano complexo. Os medicamentos imunológicos mais promissoras atualmente envolvem diferentes necessidades de logística e armazenamento (alguns precisam de ultracongeladores), então é importante que o Governo planeje quais deverão ser incorporadas e quais seriam as mais adequadas para cada região, além de desenvolver um sistema de controle da vacinação e das doses de cada usuário.
“O Ministério da Saúde está devendo esse planejamento. Espero que estejam planejando e só não tenham comunicado ainda à população. Pensar que não há um plano é desastroso”, afirma Pasternak. A pesquisadora argumenta que é preciso pensar na aquisição de equipamentos (como câmaras frias para determinados medicamentos), nas possibilidades de distribuição, nas necessidades de ampliação de estruturas de postos de saúde e mesmo um plano de capacitação rápida para profissionais. “Quais vacinas vão pra quais regiões? A Coronavac e a da AstraZeneca são mais fáceis de armazenar. Quem vai ser atendido com qual vacina? E fazer um acompanhamento adequado, porque cada uma delas tem seus regimes de doses. Tudo isso precisa de planejamento e treinamento de pessoal”, explica. Para ela, a falta de transparência do Governo sobre isso deixa a população desamparada e confusa, além de estimular teorias da conspiração contra as vacinas.
A questão também tem preocupado parlamentares da comissão externa da Câmara que acompanha as ações de enfrentamento à pandemia. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), opositor de Bolsonaro e membro do colegiado, teme que o Brasil priorize a vacina da AstraZeneca e opte por um plano de vacinação mais restrito diante da guerra política protagonizada pelo presidente. “Acredito que o desejo do atual Governo é um plano limitado de vacinação, usando apenas a vacina de Oxford (Astrazeneca). Ele torce pra que esta seja a primeira registrada, quando o Brasil deveria ter uma postura mais ousada e participar de vários projetos, mas pra isso tem que ter investimento. E o Governo está querendo retirar recursos da Saúde em 2021″, afirma.
A vacina da AstraZeneca ―a principal aposta do Governo até o momento― deve refazer testes após um problema de falta de transparência sobre os dados preliminares. Novos dados apresentados sobre seu estudo geraram dúvidas sobre sua autêntica eficácia. Isso deve acarretar atrasos no seu registro, mas o Brasil diz que não modifica seu planejamento. O Ministério da Saúde dialoga com outros laboratórios, mas mesmo assim já admitiu que não deverá oferecer a vacina da covid-19 a toda a população em 2021. A estratégia, assim como na imunização contra a gripe, será a de definir grupos prioritários com base em mortalidade, exposição e análise epidemiológica. “O fato de determinados grupos da população não serem imunizados não significa que não estarão seguros, porque outros grupos que convivem com aqueles estarão imunizados e dessa forma não vão ter a possibilidade de se contaminar”, afirma o número 2 da pasta, Élcio Franco.
O risco de desigualdade na vacinação
As vacinas só poderão ser distribuídas nacionalmente pelo SUS se tiverem aval da Anvisa e forem implementadas pelo Governo Federal. São Paulo, por exemplo, pode incluir a Coronavac em seu programa, mas não pode distribuir para outros Estados. Nesse sentido, há um risco de que haja desigualdade na distribuição das vacinas, já que Estados mais pobres podem não ter recursos para adquiri-las. Isso já aconteceu no país, mas nos últimos anos o programa nacional foi ganhando robustez e promovendo campanhas unificadas e amplas de imunização. “O Governo Federal deve garantir calendário mais amplo possível. Até porque o Estado isolado dificilmente vai ter força para garantir a transferência de tecnologia”, argumenta Padilha. Por enquanto, o Governo de São Paulo não diz se trabalha com um plano próprio ou se esperará as diretrizes do Governo Federal. Afirma apenas que trabalha nas estratégias de vacinação e que elas serão divulgadas no momento oportuno.
Enquanto isso, a pandemia volta a ganhar força no Brasil. O ministro Pazuello admitiu nesta semana novos “repiques” de infecções, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, mas não apresentou novas ações para conter os contágios. A estratégia continua voltada ao tratamento de pessoas já infectadas. O país segue falhando em uma política de controle e rastreio de casos, mesmo dispondo de um amplo exército de agentes de saúde, presentes em praticamente todos os municípios. O ex-ministro Mandetta chegou a justificar que, no início da crise, essa estrutura não foi utilizada para o rastreio porque havia escassez de equipamentos de proteção individual e testes.
Mas nove meses e duas trocas de ministros depois, o país continua sem uma política efetiva de controle de casos. E quase sete milhões de testes RT-PCR que poderiam ser usados para controlar a pandemia estão vencendo nos estoques do Governo, conforme noticiou o Estadão. O Ministério da Saúde diz a empresa responsável pelos testes já pediu a prorrogação da validade desses insumos à Anvisa e que monitora o caso. Os testes venceriam em dezembro e janeiro. A pasta também diz que não há risco de falta de testes. “Estamos repetindo os mesmos erros. No começo do ano, a gente demorou a reagir. De novo, vemos aumento de casos na Europa e também não nos preparamos para o aumento que chegaria aqui. Nunca tivemos um planejamento realmente organizado, centralizado, e direcionado pelo Ministério da Saúde. Passaram-se nove meses. Não deu tempo até agora de termos um plano de enfrentamento?”, questiona a microbiologista Natalia Pasternak.
Ruy Castro: Procura-se Pazuello, o zero bala
O ministro da Saúde teve Covid. Mas não sabemos a quantas anda e nem sequer se já sarou
Devo estar mal informado, mas, então, o Google também estará. Ao ver ontem o general Eduardo Pazuello sendo chamado a se explicar sobre os 6,8 milhões de testes de Covid mofando num galpão federal em Guarulhos (SP), ocorreu-me que ele é o ministro de Saúde. Ocorreu-me também que, desde que contraiu o vírus —sim, Pazuello pegou a doença, lembra-se?—, mal ouvimos falar dele. E que, sendo o responsável pela saúde de 212 milhões de brasileiros, sua própria saúde é ou deveria ser do interesse nacional.
Pazuello foi diagnosticado com Covid no dia 21 de outubro. Internou-se num hospital de Brasília, onde seu chefe Jair Bolsonaro o visitou expressamente para desmoralizá-lo, desautorizando a sua compra da vacina Coronovac. Pazuello engoliu a ofensa, disse-se "zero bala" e se mudou para um hospital militar. Teve alta no dia 3 seguinte e foi para casa, mas só retomou as "atividades presenciais" no dia 11. Em entrevista, admitiu "ainda não estar completamente recuperado" e atreveu-se a chamar a Covid de "doença complicada". E, a partir dali, sumiu do noticiário —até ontem. Digitei "Pazuello e Covid" no Google para saber se ele estava mesmo "zero bala". Nada sobre esse assunto.
Gostaria de saber de Pazuello como foram seus sintomas, doença, tratamento, recuperação e sequelas. Terá sido entubado? É tudo mesmo um horror? Teve medo de morrer? Foi salvo pela cloroquina ou, como diz a ciência, tomá-la ou passá-la nas costas dá na mesma? Como foi, afinal, que pegou o vírus? Era sempre testado? Não acredita em testes?
Claro que, não sendo médico, Pazuello não tem ideia do que lhe aconteceu. E muito menos do que a Covid já fez, faz e ainda fará com o Brasil.
Pazuello nos deve um minucioso relatório pessoal. Afinal, somos nós que pagamos —em solidão, desemprego, falência e vidas humanas— a conta que ele e Bolsonaro estão apresentando ao país.
Merval Pereira: Falta de gestão
O caso dos 6,86 milhões de testes para o diagnóstico da COVID-19 comprados pelo Ministério da Saúde que perderão a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021, estocados num armazém do governo federal em Guarulhos e não distribuídos para a rede pública, é exemplar da falta de planejamento e desorganização da política de saúde pública, situação que agrava ainda mais a pandemia no país.
Comprados por gestões anteriores do atual ministro Eduardo Pazzuelo, os testes armazenados representam mais do que os já aplicados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos seis meses anteriores. Uma explicação para essa desídia pode ser a opinião do próprio ministro, um General da ativa que foi indicado para o ministério da Saúde por ser um especialista em logística, que considera que a testagem massiva não é a melhor maneira de atuar contra a pandemia.
Outra, a disputa entre presidente Bolsonaro e os governadores estaduais. O próprio presidente disse ontem que a culpa é dos governos, que sua responsabilidade é comprar os testes, caberia aos governos estaduais os requisitar. Uma postura passiva que não leva em conta a necessidade da testagem, mas apenas a burocracia estatal. Os governos estaduais dizem que os testes, quando solicitados, chegam incompletos e o ministerio da Saúde não tem condições de solucionar.
Esse é um exemplo atual de uma crise de gestão permanente do governo Bolsonaro, um dos aspectos que estão sendo analisados por diversos especialistas no livro “Bolsonarismo: teoria e prática”. (Rio de Janeiro: Gramma, 2020, 346 páginas), a ser lançado em dezembro. Os especialistas identificaram “a total falta de critério de planejamento, racionalidade, eficiência na gestão pública”.
O estudo é fruto de uma ação conjunta entre o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia (Cebrad) , da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fundado pelo cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, e o Laboratório de Alternativas Institucionais (LAI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), dirigido pelo cientista Político Carlos Sávio Teixeira. O livro, composto por 24 pesquisadores, é dedicado à análise do bolsonarismo como ideologia e movimento político, uma ampla radiografia deste neopopulismo de direita e seu impacto nas práticas políticas e nas políticas públicas, como define Tadeu Monteiro.
Bolsonaro encontra na pauta conservadora dos líderes das igrejas seu nicho eleitoral, mas o livro analisa outras vertentes do movimento bolsonarista, entre elas a guerra cultural, patrocinada pelos movimentos direitistas de ativistas digitais, lançando mão de vários tipos de fake news. Esse “lado obscuro do bolsonarismo”, como define o livro, esteve recentemente em evidência com os ataques cibernéticos contra o sistema de apuração eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu presidente, ministro Luis Roberto Barroso, voltou ontem a insistir em que eles representaram “um esforço de desacreditar o processo eleitoral”.
Este movimento, define Tadeu Monteiro, é, na verdade, uma nebulosa, que se compõe de “ativistas digitais, olavistas, terraplanistas, lideranças religiosas, parcelas do alto empresariado, políticos de direita, lavajatistas e militares (forças armadas, policias militares e civis, bombeiros)”. O que os mantém unidos é a pessoa de Jair Bolsonaro. Os bolsonaristas seguem a liderança de Bolsonaro, esteja ele radicalizando ou sendo moderado em suas posições. “Trata-se de um clássico tipo de movimento político atrelado a uma liderança carismática, esta mesma liderança que convoca militantes para manifestações de rua, que faz "lives" frequentemente para mantê-los municiados de argumentos e mobilizados”.
Foram analisados ainda sua prática política no relacionamento com os demais poderes, suas políticas públicas e, em especial a política de saúde em relação à Covid. “O bolsonarismo, fundando-se num processo permanente de mobilização social e política, caminha para um plebiscitarismo permanente”, analisa Geraldo Tadeu Monteiro.
Hélio Schwartsman: E quando a ordem é absurda?
Civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar a moralidade de nossas ações
Em junho, o presidente Jair Bolsonaro proclamou que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas. Penso que ele tem razão. O direito internacional também. Pelo menos desde os Julgamentos de Nuremberg, ficou estabelecido que a obediência a ordens de superiores não isenta o agente de responsabilidade penal por suas ações.
Assim, se o tenente manda e o soldado atira na nuca do suspeito rendido, ambos cometem homicídio qualificado. Se o presidente manda e o ministro some com a papelada incriminadora, os dois infringem a lei. Estar abaixo na hierarquia pode no máximo ser considerado circunstância atenuante.
Não há escapatória, civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar o tempo todo a moralidade de nossas ações.
Diante disso, o general Eduardo "um Manda e o Outro Obedece" Pazuello, ministro da Saúde, pode ficar em maus lençóis. O militar, ainda nos quadros da ativa do Exército, acatou determinação do presidente de encerrar colaboração com o Instituto Butantan para a aquisição de uma vacina chinesa contra a Covid, a Coronavac. Foi uma ordem absurda?
A questão é traiçoeira. Não penso que governos precisem fazer compras antecipadas de um imunizante que ninguém sabe se vai funcionar. O terreno é suficientemente incerto para não gerar obrigações. Mas é importante atentar para o fato de que a administração Bolsonaro já firmara um acordo desses para obter a vacina da Universidade de Oxford.
O presidente até pode sustentar que o acerto deve valer num caso e não no outro, mas precisaria oferecer uma justificativa racional para isso. Sem essa justificativa, que não apareceu, a ordem se torna de fato absurda, o que daria a Pazuello, seja como ministro, seja como militar, o direito de desobedecê-la.
Ordens absurdas até podem ser executadas, mas só se forem inócuas o suficiente para não causar danos. Caso contrário, o executor se torna coautor.
Hélio Schwartsman: Quando a leviandade mata
Chilique presidencial é cálculo político míope e mesquinho
Jair Bolsonaro é o presidente. Foi eleito democraticamente. Mas não tem condição moral nem intelectual de exercer o cargo, do que dá prova a leviandade com que trata a questão da vacina.
Não sei se a Coronavac, a "vacina chinesa do Doria", no linguajar presidencial, vai funcionar bem. Ninguém sabe. Mas, na atual conjuntura, é um dos fármacos mais promissores em fase final de testes. Engajar-se num programa de compra e produção antecipadas é uma opção de risco, mas, se o imunizante tiver sucesso, fazê-lo nos dará um ou dois meses de dianteira no processo de vacinação, o que pode salvar muitas vidas e reduzir o estrago econômico da pandemia.
Vale observar que o governo fez exatamente a mesma aposta no caso da vacina da Universidade de Oxford, o que desmonta por inteiro a afirmação de Bolsonaro de que não se pode avançar na compra de vacinas até que elas tenham sido licenciadas pelos órgãos competentes.
Ao que tudo indica, o chilique presidencial não tem motivação técnica, mas é fruto de um cálculo político míope e mesquinho, que procura agradar à base mais amalucada do bolsonarismo, que tem alergia a coisas feitas por "chineses comunistas", ao mesmo tempo em que se recusa a fazer qualquer gesto que possa beneficiar um rival, no caso, Doria.
Num país um pouco mais sério, um líder que tomasse decisões de vida e morte com base em comentários de simpatizantes em redes sociais e não em justificativas racionais já teria sido democraticamente defenestrado pelo impeachment. Mas estamos no Brasil.
Meu consolo é que a posição dos bolsonaristas é pior que a minha. Quem se opõe ao presidente apenas perdeu uma eleição, mas os que o apoiaram foram traídos. O candidato que falava em acabar com a corrupção, varrer o sistema político carcomido e impor uma agenda ultraliberal se tornou um protetor de corruptos, que come na mão do centrão e está prestes a furar o teto.
Ricardo Noblat: General Pazuello, pede pra sair!
Farda manchada
Como acreditar no que o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disser ou fizer doravante? Se tivesse o mínimo de preocupação com a sua e a imagem dos colegas de caserna, pediria demissão depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro no caso da compra da vacina chinesa contra a Covid-19.
Mas, não. Infectado pelo vírus, recolhido ao hotel do Exército em Brasília, onde mora, Pazuello foi acordado, ontem à tarde, para receber a visita de Bolsonaro. E foi constrangido a gravar uma parte de sua conversa com ele onde afirmou: “É simples assim, um manda e outro obedece. Mas a gente tem carinho”.
Vexame, vexame, vexame! Onde já se viu um general render-se a um capitão? Ou melhor: a um ex-capitão? Tudo bem, o ex-capitão é hoje o presidente da República, e o general ainda na ativa, seu vassalo. De toda forma, pegou muito mal para ele entre seus colegas de farda. Primeiro foi desautorizado. Depois, humilhou-se.
No último fim de semana, Pazuello havia combinado com Bolsonaro no Palácio da Alvorada o que diria quando se reunisse com os governadores para discutir a compra de vacinas. E cumpriu o combinado ao anunciar:
“A vacina do Butantan será a vacina brasileira. Já fizemos carta em resposta ao ofício do Butantan, e essa carta é o compromisso da aquisição das vacinas que serão fabricadas até o início de janeiro, em torno de 46 milhões de doses, e essas vacinas servirão para nós iniciarmos a vacinação ainda em janeiro. Essa é a nossa grande novidade e isso reequilibra o processo”.
Aí, o governador João Doria (PSDB), de São Paulo, o padrinho da vacina chinesa no Brasil, celebrou o anúncio nas redes sociais e por toda parte. Aí, no dia seguinte, os bolsonaristas de raiz foram para cima de Bolsonaro nas redes. Aí, furioso e a conselho dos três filhos zeros, Bolsonaro deixou Pazuello pendurado na brocha.
Militares próximos ao presidente, e militares da reserva ficaram indignados com o episódio. Inicialmente, com o que Bolsonaro fez. Ontem, com o que fez também Pazuello. Até porque a vacina chinesa, ainda em fase de teste como as demais, se aprovada acabará sendo comprada. Doria continua rindo à toa.
Essa parada foi ganha por ele, que mais e mais se oferece como o candidato capaz de derrotar Bolsonaro em 2022. Cerca de 70% dos brasileiros se dizem dispostos a se vacinar, segundo pesquisa Datafolha. E parte deles começa a ver Bolsonaro como inimigo de tudo o que possa salvar vidas.
Em tempo: Pazuello revelou que está sendo tratado com cloroquina. Bolsonaro ficou muito satisfeito com o que ouviu.
Delegadas em alta, candidatos a prefeito favoritos, preocupados
Russomano derrete e rejeição a Crivella aumenta
O sonho de qualquer candidato é poder escolher o seu adversário. O adversário dos sonhos do prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, por exemplo, é o deputado Celso Russomano (Republicanos), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro.
Nas contas de Covas, se os dois disputarem o segundo turno, ele se reelegerá com o apoio dos eleitores de Guilherme Boulos (PSOL) e de Jilmar Tatto (PT), e de uma parte dos eleitores de Márcio França (PSB). O candidato mais difícil para Covas seria França.
O adversário dos sonhos de Eduardo Paes (DEM), candidato a prefeito do Rio, é Crivella (Republicanos). O mais perigoso, a Delegada Martha Rocha (PDT). No Recife, tanto faz para João Campos (PSB) enfrentar Marília (PT) quanto Mendonça (DEM).
Marília é prima de Campos, e o PT não está inteiramente fechado com ela. Uma fatia grande apoia Campos desde já. Mendonça, que estimula a campanha “Mendonça é Bolsonaro, Bolsonaro é Mendonça”, costuma perder as eleições majoritárias que disputa.
Quem poderia dar trabalho a Campos seria a Delegada Patrícia (Podemos), apoiada pelo Cidadania, antigo Partido Comunista Brasileiro. Pois foi justamente ela que cresceu e atropelou Marília e Mendonça na mais recente pesquisa Datafolha.
As delegadas estão em alta. Enquanto Crivella despenca e sua rejeição sobe, Martha Rocha empata com ele e deve superá-lo na pesquisa da próxima semana. Em simulação de segundo turno, Patrícia e Campos já aparecem empatados.
Russomano está ladeira abaixo, para aflição de Covas e felicidade de França. Parece escrito que ele cumprirá sua sina de ser líder na largada de campanha e em seguida começar a derreter. É como cavalo paraguaio: dispara na frente e depois perde o páreo.
Eliane Cantanhêde: O rei sou eu
Depois de Coaf, Receita e PF, Bolsonaro vai meter a mão na Anvisa por capricho?
Luiz Henrique Mandetta foi demitido por propor o isolamento social, Nelson Teich se demitiu por não engolir a cloroquina, Eduardo Pazuello é humilhado por tentar viabilizar uma vacina em massa para o País. Estão todos errados e só o presidente Jair Bolsonaro está certo? Ou, entre a vida dos brasileiros e suas conveniências políticas, ele fica com a reeleição?
Já que os dois médicos se recusaram a fazer o jogo sujo, ele convocou o general da ativa para bater continência a tudo o que lhe vier na cachola e avisa: “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade”. Pazuello concorda, pateticamente: “É simples. Um manda, o outro obedece”.
O general diz, o capitão desdiz. E o que o general faz? Abaixa a cabeça e diz que foi “mal interpretado” ao anunciar a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac assim que obtivesse o registro da Anvisa. Como alguém desmente o que escreveu em ofício e disse em vídeo para mais de 20 governadores? Vergonha alheia. Forças Armadas, Exército e oficiais, o que acham dessa vassalagem inominável?
Ao desautorizar a aquisição de vacinas anunciada pelo ministro – que passou meses interino, em plena pandemia –, Bolsonaro falou em “traição” e digitou no Twitter: “NÃO SERÁ COMPRADA”. No dia seguinte, recorreu ao morde-e-assopra que usava com Sérgio Moro, Mandetta e Paulo Guedes: incorporou o personagem simpaticão e foi visitar o general, que está com covid e fez papel e cara de bobo ao ser paparicado pelo chefe.
É nessas horas que a gente vê quem é quem. Bastam uma visitinha e um sorriso programado para apagar a humilhação? Se o presidente mandar matar, torturar, se jogar do 20.º andar, arriscar a saúde de 210 milhões de brasileiros, a quem o general deve lealdade e obediência?
Mas vamos à vacina, que une Judiciário, Legislativo, governadores, prefeitos, entidades científicas, médicas, jurídicas. Com mais de 155 mil mortos e 5 milhões de contaminados, ninguém está interessado em briguinhas políticas, o que se espera do presidente é que tome a decisão certa. E se espera em vão.
As quatro vacinas em teste no Brasil precisam de duas doses, logo, serão necessárias de 300 milhões a 400 milhões doses e será preciso somar as vacinas, porque uma só não dará conta. E dane-se se uma é “do Doria”, outra “do Bolsonaro”, uma é “da China”, outra “de Oxford”. Aliás, corre nas redes: se contarem a Bolsonaro que os chineses inventaram a pólvora, será que ele proíbe as armas no País?
O presidente indicou e o Senado aprovou nesta semana o novo presidente, contra-almirante Antonio Barra Torres, e três dos quatro diretores da Anvisa. E se eles forem como o general Pazuello, que faz qualquer coisa para agradar ao presidente? Amigo de Bolsonaro e fotografado com ele numa “manifestação golpista” no início da pandemia, Barra Torres disse para o governador João Doria e repetiu depois, em entrevista, que a agência não cederá a pressões políticas e vai ser fiel à medicina e à ciência.
Que assim seja, porque se trata de milhares de vidas, da economia e dos empregos e, se a Anvisa ficar ao sabor da ignorância, dos ciúmes e dos interesses reeleitorais de Bolsonaro, aí mesmo é que a imagem do Brasil vai para o beleléu, já atingida por desmatamento, queimadas, boiadas e desmanche do Ibama e do ICMBio, sem falar no endeusamento de Donald Trump.
Como Bolsonaro não se constrangeu em meter a mão no Coaf e na Receita e está sendo até investigado pelo Supremo por ingerência política na Polícia Federal, é preciso confiar na consciência e na responsabilidade dos indicados para a Anvisa, que têm conhecimento e nomes a zelar. Na dúvida, Bolsonaro se antecipou e avisou que não comprará a vacina “da China” mesmo que a Anvisa aprovar. Aí, gente, só internando…