pazuello

Bernardo Mello Franco: Sabujismo orgulhoso

No governo Bolsonaro, não basta ser servil. É preciso ostentar a subserviência como prova de lealdade. Ontem dois ministros se humilharam em público para agradar ao chefe. Encolheram as próprias biografias e avacalharam as pastas que deveriam comandar.

Eduardo Pazuello, dublê de paraquedista e ministro da Saúde, recebeu Bolsonaro após ser desautorizado sobre a compra de vacinas. Sem corar, ele reconheceu a falta de autonomia no cargo. “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”, explicou.

Seguiu-se um diálogo constrangedor entre o general da ativa e o capitão reformado. “A gente tem um carinho”, disse Pazuello. “Opa, tá pintando um clima”, animou-se Bolsonaro. O ministro está com Covid, mas rompeu o isolamento para gravar com o presidente. Sem máscaras, os dois voltaram a fazer propaganda da cloroquina.

Mais cedo, Bolsonaro foi ao Itamaraty. Em discurso para formandos do Instituto Rio Branco, Ernesto Araújo deu uma aula de antidiplomacia. A turma foi batizada de João Cabral de Melo Neto. “Modestamente, me considero também as duas coisas, diplomata e poeta”, arriscou o chanceler, sem modéstia alguma.

Ao microfone, o ministro se atreveu a atacar o homenageado. Disse que ele “dirigiu-se para o lado errado: para o lado do marxismo e da esquerda”. Perseguido por outros Ernestos, o autor de “Morte e vida severina” chegou a ser afastado do Itamaraty, em 1953.

“A diplomacia pode ser lírica, pode ser dramática, mas também pode ser épica”, prosseguiu o ministro, repetindo palavras do discurso nazista de Roberto Alvim. Na sequência, ele passou a elogiar Bolsonaro. “Nosso presidente conhece e ama esse povo e nos ensina a conhecer e a amar esse povo”, derramou-se.

Sem disfarçar o ressentimento, o chanceler reclamou da atenção dada a cientistas e intelectuais “prudentes e sofisticados”. Ele disse liderar uma “política externa do povo brasileiro”, inspirada nas ideias do capitão e inimiga de um imaginário “complexo marxista-isentista”.

Num breve surto de lucidez, Ernesto admitiu que o Brasil de Bolsonaro se tornou um pária na comunidade internacional. Mas não deu o braço a torcer. “Talvez seja melhor ser esse pária, deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas”, disse, orgulhoso do próprio sabujismo.


Bernardo Mello Franco: O sincericídio do paraquedista

No dia em que Jair Bolsonaro disse ter acabado com a corrupção no governo, outra declaração causou espanto em Brasília. Esta, pela sinceridade.

No lançamento da campanha Outubro Rosa, o ministro Eduardo Pazuello admitiu seu completo despreparo ao assumir a pasta da Saúde. “Eu não sabia nem o que era o SUS”, confessou.

O Brasil pagou caro pela ignorância do general paraquedista. Quando ele pousou na Esplanada como ministro interino, em maio, o país contava 13 mil mortos pela Covid. Entre hoje e amanhã, deve ultrapassar a marca de 150 mil vidas perdidas.

A tragédia seria menor se o governo tivesse agido com o mínimo de seriedade, confiando a gestão da pandemia a gente qualificada. Bolsonaro preferiu entregar a tarefa a um militar inapto, que não sabia nem o que era o Sistema Único de Saúde.

Pazuello admitiu seu desconhecimento na quarta-feira, dia em que o Brasil ultrapassou os cinco milhões de casos confirmados da Covid. Especialistas alertam que o número está subestimado. Como nunca fez testes em massa, o país não sabe ao certo quantas pessoas já pegaram o coronavírus.

Em abril, Paulo Guedes anunciou que “um amigo na Inglaterra” forneceria 40 milhões de testes por mês. As promessas do ministro da Economia já viraram folclore, mas essa foi especialmente infeliz. Segundo o IBGE, 17,9 milhões de brasileiros fizeram algum tipo de exame até o fim de agosto. Isso significa que os testes não haviam chegado a 91,5% da população.

O sincericídio não foi o único vexame de Pazuello na solenidade de quarta. Sem saber o que dizer, o general se referiu ao câncer como “uma doença muito complicada”. “Então o câncer tá aí. Ele é… ele está aí. E isso precisa ser compreendido”, enrolou-se.

O militar foi a única autoridade a entrar no auditório sem máscara. Sentou-se entre a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a ministra Damares Alves, a quem definiu como uma “parceira de todos os dias”. A pastora e o paraquedista têm mais em comum que a obediência cega ao chefe.


Vera Magalhães: O início, o fim e o meio

Retomada desordenada tornou decisão sobre volta às aulas mais complexa

Passados seis meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil, duas são as principais questões a mobilizar a sociedade, os governantes e os especialistas. A primeira é quando e de onde virá a vacina, e com que eficácia. A segunda, anterior, é: quando voltarão as aulas presenciais?

O Brasil é um dos países do mundo a ter ficado mais tempo com as escolas fechadas, mais uma consequência da quarentena meia boca, da falta de coordenação política para o enfrentamento da covid-19 e da retomada atendendo a pressões políticas, e não prioridades sociais ou recomendações da ciência.

As escolas fecharam já em março e houve uma imensa heterogeneidade na adoção do ensino à distância. Escolas particulares, sobretudo nos grandes centros, rapidamente passaram a utilizar ferramentas da tecnologia para chegar aos alunos confinados.

A velocidade, sabemos, não foi a mesma, nem os recursos tão abundantes, nas redes públicas e nos rincões. Os resultados serão sentidos nos anos vindouros, na forma de mais desigualdade na qualidade do ensino.

Meio ano depois, a constatação de que a perda em termos educacionais e o prejuízo emocional e social para crianças, adolescentes e universitários é imensurável e a necessidade econômica e familiar de que a rotina seja retomada afligem gestores públicos, pais, professores e profissionais da área médica e sanitária.

Isso porque a ordem dos fatores, no caso da retomada de uma pandemia, altera, e muito, o produto. Como na letra de Gita, de Raul Seixas, começamos pelo começo (a quarentena necessária), mas aí invertemos o meio (a imprescindível redução da curva de contágio) e o fim (a retomada das atividades).

E mais: além de atropelar o meio, ainda passamos à frente na fila as atividades em que os lobbies econômicos gritaram mais alto, e a volta às aulas foi ficando para trás.

E agora se formou um nó górdio: ausência de coordenação para estabelecer protocolos seguros, falta de estrutura das redes públicas para fornecer condições de higienização e distanciamento para o escalonamento de retorno dos alunos, resistência em grande ponto justificada de professores, insegurança dos pais e o medo dos prefeitos de a conta de uma eventual explosão do número de casos estourar no seu colo bem no período eleitoral.

Como se sai de um nó desse, uma vez que a vacina ainda é uma promessa distante e os prejuízos para todos vão cobrando uma conta mais pesada? De novo, é necessária coordenação nacional. Não basta Jair Bolsonaro agir como sempre como um irresponsável de arquibancada, como se não fosse ele o presidente, e ficar cornetando que as escolas não deveriam ter fechado, e que as quer abertas juntamente com os estádios.

O MEC, que nada fez de útil na pandemia toda, e o Ministério da Saúde, cujo titular acaba de passar no estágio probatório de seis meses, precisam chamar gestores municipais e definir requisitos para abrir as escolas: qual a curva de transmissão aceitável para isso? Com que porcentual de alunos elas serão reabertas? O que as escolas têm de providenciar em termos de insumo e instalações para o retorno? Como serão conciliadas as aulas presenciais e remotas? Qual a rotina de testagens para professores? Qual a estratégia de rastreamento rápido de casos por região para fechar as escolas caso comece a haver sinais de escalada de contágio?

Sem responder a essas perguntas básicas, para as quais a própria pandemia já forneceu expertise e dados acumulados, e que já deveriam estar no horizonte muito antes de qualquer retomada, ficar estabelecendo datas aleatórias de retorno segundo a conveniência do calendário eleitoral é cinismo travestido de gestão. Os estudantes são as grandes vítimas pelo fato de os adultos terem pulado a lição de casa.


Bernardo Mello Franco: A festa do general

Depois de quatro meses, Jair Bolsonaro se lembrou de nomear um ministro da Saúde. O escolhido foi o general Eduardo Pazuello, que já ocupava a cadeira como interino. Quando ele assumiu, em maio, o país contava 13 mil mortos pela Covid. Ontem o número ultrapassava os 133 mil. Isso significa que nove entre dez vítimas morreram na gestão do militar.

Pazuello é o terceiro titular da Saúde desde o início da pandemia. Os dois anteriores caíram por resistir à pressão de Bolsonaro para distribuir remédio sem eficácia comprovada. O general chegou com uma vantagem: como não é médico, não precisa rasgar o diploma para fazer as vontades do chefe.

Na primeira semana no cargo, ele mostrou que sabe obedecer e receitou o uso da cloroquina. Em seguida, dedicou-se à tarefa de transformar o ministério num quartel. Demitiu técnicos em saúde para abrir espaço a coronéis, majores e capitães.

O general foi apresentado como um especialista em logística. Mesmo assim, não conseguiu evitar a falta de suprimentos nos hospitais. Sua gestão só mostrou eficiência para esconder informações. Os veículos de comunicação precisaram montar um consórcio para manter o público informado sobre a evolução da doença.

A posse de Pazuello foi coerente com sua obra até aqui. Em tom festivo, o general afirmou que o Brasil tem “um dos maiores quantitativos de pessoas recuperadas no mundo”. Faltou dizer que o país aparece em segundo lugar no ranking de mortes.

O governo ignorou as recomendações sanitárias e voltou a aglomerar convidados no Planalto. Bolsonaro aproveitou para atacar a imprensa e fazer propaganda da cloroquina. Na contramão dos epidemiologistas, ele afirmou que o país não deveria ter fechado as escolas na pandemia. Depois disse que 30% das mortes teriam sido evitadas com o falso remédio milagroso.

Segundo o Capitão Corona, os governadores que decretaram medidas de distanciamento foram “tomados pelo pânico” e “impulsionados pela mídia catastrófica”. Ele, ao contrário, teria sido ousado e corajoso. “Não me acovardei, não me omiti”, elogiou-se.


Ricardo Noblat: Ministério da Saúde inunda o país com hidroxicloroquina

Bolsonaro, o garoto propaganda da droga, agradece

Jamais se viu e dificilmente se verá algo que supere o absurdo protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro e os que o ajudam a governar ou a desgovernar o país. Verdade que ele seguiu os passos de Donald Trump a quem imita por falta de referência que mais o agrade. Verdade também que Trump recuou ao ver a enrascada em que se metera. Bolsonaro segue em frente como um celerado.

Em questão, o uso da hidroxicloroquina no combate a Covid-19. O mal começou a preocupar o mundo quando fez suas primeiras vítimas na China ainda em novembro do ano passado. Oito meses depois, não surgiu um único estudo científico que tenha comprovado a eficácia da droga contra a doença que ganhou status de pandemia. Nem por isso Bolsonaro desistiu dela.

A Organização Mundial de Saúde, em junho último, interrompeu os testes com o remédio para tratamento do coronavírus após revisão de estudos não atestar efeitos positivos. Um mês depois, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou um comunicado em que propõe que as medicações com a hidroxicloquina sejam abandonadas “no tratamento de qualquer fase” da doença. E daí?

Daí que o governo não ligou a mínima. Durante a pandemia, o Ministério da Saúde quintuplicou a distribuição da droga a estados e municípios. E agora tenta desovar na rede pública doses em estoque doadas pelo governo dos Estados Unidos depois que Trump mudou de lado. Foi o que apurou o jornal Folha de S. Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação.

De março a julho deste ano, já foram enviados 6,3 milhões de comprimidos de cloroquina, na dosagem de 150mg, para abastecer as unidades do Sistema Único de Saúde. Segundo o jornal, é 455% a mais do que o repassado no mesmo período do ano passado (1,14 milhão), quando a aplicação se dava apenas em terapias contra a malária e outras doenças.

Até julho, cerca de 5 milhões de comprimidos foram remetidos pelo ministério só para uso em pacientes com o novo coronavírus. As remessas cresceram em maio e junho graças ao papel desempenhado por Bolsonaro de garoto propaganda do remédio. No período, foram afastados dois ministros de Saúde contrários ao aumento do uso do medicamento – Mandetta e Nelson Teich.

Disciplinado, o atual ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, não se opôs à vontade de Bolsonaro. Missão dada, missão cumprida. No final de junho, o Ministério da Defesa informou que havia 1,8 milhão de comprimidos de cloroquina em estoque no Laboratório do Exército. O valor representa cerca de quase 20 vezes a produção anual da droga nos anos anteriores.


Ruy Castro: Por que só Bolsonaro?

O Tribunal de Haia deveria reservar um lugar também para os executores de sua política

O Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, recebeu as acusações contra Jair Bolsonaro de crimes contra a humanidade no contexto da pandemia. Foram levadas por entidades brasileiras que representam mais de um milhão de profissionais da saúde, responsabilizando-o pela morte de milhares no país por sua ação ou omissão. Matar não se limita a um tiro à queima-roupa.

Pode-se escolher entre as práticas de Bolsonaro desde a chegada da Covid: piadas com o vírus, minimização de seu perigo, desinformação deliberada sobre ações de prevenção, desprezo por medidas nacionais que amenizassem a quebra da economia, recusa em aceitar as orientações dos órgãos internacionais, instigação à desobediência dessas orientações, desmoralização dos encarregados por ele próprio de dirigir a saúde e sua substituição por estranhos à matéria, fazer propaganda falsa de remédio, debochar das vítimas da doença, indiferença quanto ao destino da população que jurou proteger. Com tudo isso ao alcance de seu poder, quem precisa de arminha?

Mas não nos iludamos. Os trâmites do tribunal são lentos e talvez só cheguem a uma conclusão quando um dos dois já tiver acabado, o mandato de Bolsonaro ou o Brasil --o que vier primeiro. Mas seria um consolo ver no banco dos réus, nem que fosse por uma sentada, os responsáveis pela maior calamidade pública na história deste país.

O que, como aconteceu em outros tribunais internacionais, deveria reservar lugar também a executores de sua política. Isso incluiria o general Eduardo Pazuello, que pôs a farda a serviço da farsa, estimulando o uso de medicamento impróprio e arriscado, sonegando informações sobre a evolução da crise, recusando-se a prestar contas diárias à sociedade e cercando-se de colegas de quartel, talvez para dividir sua responsabilidade.

Mas, você sabe, Haia é uma cidade pacata, com seu ritmo próprio.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Merval Pereira: A realidade que se impõe

Há dois meses como interino, o general Pazuello aumentou para 1.249 o número de militares na Saúde, subindo em 94,55%

A divulgação dos dados atualizados dos militares em atuação no governo Bolsonaro, obtidos por uma ação do ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU) preocupado com o possível “desvirtuamento do papel das Forças Armadas”, uma militarização do governo que está sendo criticada, mostra uma participação muito maior do que se imaginava.

O número com que todos os analistas lidavam, cerca de 3.515 militares em diversas áreas, se refere ao ano passado. Neste 2020 da pandemia, esse número teve um acréscimo de 2.942 militares em relação a 2019, num total de 6.157. A média de 3 mil militares foi mantida desde 2016, o que quer dizer que era um número historicamente aceitável, e não alto como se presumia.

No primeiro ano, a suposta militarização se revelava pelo número de ministros oriundos da área militar no primeiro escalão do governo, além, claro, da atuação do próprio presidente, que se dedicou mais a comparecer a festas e cerimônias militares do que aos hospitais para consolar os doentes da Covid-19, hoje na casa de 2 milhões de pessoas, com mais de 75 mil mortos já contabilizados.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso já havia advertido em entrevista que uma militarização do governo poderia tirar a credibilidade das Forças Armadas, que são uma instituição do Estado e não podem ser compreendidas como parte de um governo, seja ele de que tendência for.

Ao mais que dobrar esse número a partir deste ano, o governo Bolsonaro deu partida a uma política de recrutamento militar que se revelou mais aprofundada no ministério da Saúde, justamente no período da pandemia. Há dois meses como interino, o General Pazuello aumentou para 1.249 o número de militares no campo da saúde, subindo em 94,55% a participação deles em comparação com 2016.

Essa presença está provocando muitas discussões internas, tanto no próprio governo, como entre os militares. O Exército não está satisfeito, como instituição, em ver seu nome envolvido em decisões de saúde pública que não são da sua alçada, e ao mesmo tempo sendo culpado por medidas ineficientes. A palavra de outro ministro do STF, Gilmar Mendes, sobre essa militarização do ministério da Saúde, envolvendo o Exército em um “genocídio”, referindo-se ao aumento de mortes nesses últimos dois meses de interinidade, trouxe a questão novamente ao debate.

A primeira reação dos militares, através do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi branda, com uma nota relacionando todas as ações das Forças Armadas para ajudar o combate à Covid-19. A palavra “genocídio”, no entanto, foi tomada em sua significação histórica, e não como uma hipérbole que tinha o objetivo de alertar para a necessidade de não dar ao Exército uma missão que não é dele.

A reclamação à Procuradoria-Geral da República não deve ter maiores consequências, inclusive porque os próprios militares, como disse o vice-presidente Hamilton Mourão, querem dar esse assunto por encerrado, “uma página virada”.

Bolsonaro tratou de jogar água na fervura, conversou com Gilmar Mendes e pediu que o General Eduardo Pazuello ligasse para ele. Mas, como de hábito, não deu o braço a torcer, afirmando que permanecem no governo tanto Eduardo Pazuello quanto Ricardo Salles, outro ministro na marca do pênalti devido aos desarranjos da política ambiental.

O caso de Ricardo Salles deve ser resolvido mais rápida e naturalmente, não porque o presidente Bolsonaro tenha se convertido ao movimento verde, mas pelo dinheiro que os investidores nacionais e estrangeiros se recusam a colocar no Brasil se continuarmos sem preservar a Amazônia e os indígenas.

Ninguém vai negociar com Salles à frente do ministério do Meio Ambiente, e por isso o vice-presidente Hamilton Mourão está assumindo a coordenação do Conselho da Amazônia. Já com Pazuello, a questão é mais delicada, porque envolve o Exército. Bolsonaro tem a visão equivocada de que é preciso um especialista em logística no ministério da Saúde, e não um médico, e por isso o mantém

A opinião de Pazuello de que a testagem não é tão importante quanto dizem, contrariamente ao que pensam os especialistas, é uma mostra dos equívocos que estamos cometendo durante a pandemia. Mas a realidade vai acabar se impondo.


Luiz Carlos Azedo: Cai fora, cai fora!

“Passou da hora de o general Pazuello, interino na Saúde, voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército na Amazônia”

O pior acidente aéreo de todos os tempos aconteceu em 1977, na Ilha de Tenerife, na Espanha. No dia 27 de março daquele ano, uma bomba explodiu no aeroporto de Gran Canaria, umas das Ilhas Canárias, e todos os voos foram desviados para o aeroporto de Los Rodeos, na ilha de Tenerife. Por conta da confusão no controle de pousos e decolagens, dois Boeing 747, um da KLM Royal Dutch Airlines, holandesa, e outro da Pan América Word Airways, norte-americana, se chocaram próximo ao solo do aeroporto. Morreram 583 pessoas, 248 passageiros da KLM e 335 dos 396 passageiros da Pam Am, cujo copiloto sobreviveu. Da cabine de seu avião, enquanto taxiava para decolar, o comandante americano Victor Grubbs viu outra aeronave vindo em sua direção, acelerando para levantar voo, em meio às névoas que cobriam a pista. “Esse filho da mãe está vindo para cima da gente!”, disse. “Cai fora, cai foral!”, gritou Robert Bragg, o copiloto que escapou da tragédia, com mais 60 pessoas.

O Brasil registrou 1.261 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas, isso é mais do que dois acidentes de Tenerife juntos. Se formos considerar os acidentes ocorridos no Brasil, o número de mortos é seis vezes maior do que o da queda do Airbus A-320 da TAM em Congonhas, na noite chuvosa de 17 de julho de 2007. Vinda de Porto Alegre, a aeronave ultrapassou a pista principal do aeroporto durante o pouso, passou sobre a Avenida Washington Luís, colidiu com o prédio da TAM Express e explodiu, matando todos os 187 passageiros e tripulantes a bordo e mais 12 pessoas em solo. O total de 75.523 óbitos por coronavírus registrado na pandemia equivale a 403 acidentes de Congonhas, ou um avião caindo no Brasil a cada três dias, se considerarmos que a primeira morte ocorreu em 17 de março.

Esse tipo de comparação é um recurso jornalístico para evitar que as estatísticas sejam banalizadas em razão da frequência com que os fatos ocorrem. É o que está acontecendo com a pandemia de coronavírus, cujas mortes estão sendo naturalizadas pelo governo federal desde que o presidente Bolsonaro disse que “todos nós vamos morrer um dia”. Na ocasião, 25 de março, eram 139 mortes. Quando o Brasil passou a China, com 5 mil mortos, em 28 de abril, Bolsonaro disparou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Agora, a média móvel de novas mortes no Brasil na última semana foi de 1.067 por dia, uma variação de 8% em relação aos óbitos registrados em 14 dias. Os últimos sete dias foram os mais letais no país. Com 39.705 casos registrados nas últimas 24 horas, chegamos a 1.970.909 de brasileiros infectados pelo novo coronavírus.

Desembarque
No Distrito Federal, no Paraná, em Santa Catarina, em Minas Gerais, em São Paulo, em Mato Grosso do Sul, em Mato Grosso, no Acre, em Rondônia, em Tocantins e no Piauí a pandemia continua seu avanço; o relaxamento do distanciamento social nesses estados está sendo desastroso, apesar de ter havido mais tempo para o sistema de saúde se preparar, o pessoal técnico ter mais conhecimento e experiência e os cuidados paliativos para reduzir o número de mortes também terem evoluído. O problema maior no combate à epidemia, porém, é que o Ministério da Saúde virou cabeça de camarão: não tem ministro, apesar dos elogios que o presidente Jair Bolsonaro faz ao general Eduardo Pazuello, que há 60 dias ocupa interinamente o cargo. “Predestinado” era o copiloto da Pam Am, que pulou da cabine do avião acidentado a quatro metros do solo, antes que ele explodisse, não Pazuello, como disse Bolsonaro.

Passou da hora de o general Pazuello voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, na Amazônia, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército no Pará, no Amazonas, no Acre, no Amapá, em Roraima e em Rondônia. Sua presença no ministério virou sinônimo de fracasso, porque o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa de um líder, que coordene e oriente todos o pessoal da saúde pública no Brasil, como fazia o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro no auge de seu prestígio. E também porque os dois meses de interinidade criam um problema para o próprio Exército, que mantém, interinamente, no comando da 12ª Região Militar, o coronel Luís Moisés de Oliveira Braga Otero.

Pazuello teve uma conversa amigável, por telefone, com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do contencioso provocado pelas declarações do magistrado sobre a presença do Exército no Ministério da Saúde. O imbróglio mostra que está tudo errado. O coronel Antônio Élcio Franco Filho, que anda com uma faca ensanguentada na lapela, é o secretário executivo do Ministério da Saúde. O secretário de Atenção Especializada à Saúde é Luiz Otávio Franco Duarte, outro coronel. O major Angelo Martins Denicoli ocupa o cargo diretor de monitoramento e avaliação do SUS, enquanto o tenente-coronel Reginaldo Machado Ramos comanda a Gestão Interfederativa e Participativa. Nenhum deles entende de saúde pública.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-cai-fora-cai-forax/

Ricardo Noblat: O dilema de Pazuello e dos militares da ativa que servem ao governo

Ou voltam aos quartéis ou passam para a reserva

Hoje faz dois meses que o país está sem ministro da Saúde. Escolhido para ministro interino depois da queda de dois médicos que o antecederam no cargo, o general de brigada Eduardo Pazuello, especialista em logística, enfrenta dificuldades até mesmo para distribuir 46 milhões de testes do Covid-19.

Mais de 20 militares, todos da ativa, ocupam funções chaves no ministério. Mas nem eles, nem o general produziram até agora algo capaz de fazer diferença, a não ser para pior. Por ordem superior, tentaram esconder os números reais da pandemia que matou até ontem mais de 74 mil pessoas e infectou 1,9 milhão.

À falta de meios para enviar aos Estados remédios a tempo e a hora, o secretário-geral do ministério, um coronel, orientou governadores e secretários de Saúde a comprar o que lhes falta mesmo a preços superfaturados. Para não se encrencarem com a Justiça, aconselhou-os a denunciar os que lucraram com isso.

Genocídio parece uma palavra forte usada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, para denunciar um governo relapso que assiste, inerte, o que se dá quando um vírus tem passe livre para matar parte da população. Mas quando a inércia é deliberada, é de genocídio ou morticínio que se trata.

O presidente Jair Bolsonaro não expediu ordem alguma por escrito para que deixassem o vírus agir em paz. Mas Hitler também não expediu ordem alguma por escrito para que dessem início à chamada “Solução Final” – o extermínio em massa de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias na Alemanha nazista.

O que pretendeu Bolsonaro ao vetar trechos do projeto de lei aprovado pelo Congresso que garantia aos índios e quilombolas água potável, material de higiene, leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, além de alimentação e auxílio emergencial durante a pandemia?

Pretendeu ajudá-los, negando-se a lhes garantir as mínimas condições de sobrevivência? Ou economizar a custa de sua extinção? Nem todos os judeus da Alemanha que se desejava ariana morreram nas câmaras de gás. Milhares morreram de fome e de doenças em guetos e campos de concentração.

É o risco que correm, hoje, os povos tradicionais do Brasil, ou o que resta deles. Mais de 500 índios já morreram vítimas do coronavírus e dos seus cúmplices. Em ato falho, o general Hamilton Mourão, vice-presidente, já admitiu: “Se nosso governo falhar, errar demais, essa conta irá para as Forças Armadas”.

Por que irá se as Forças Armadas são uma instituição de Estado e não de governo? Porque elas cometeram o erro irreparável de se confundirem com o governo de um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética. Um governo destinado a passar à História como perverso, belicoso e inoperante.

O general Pazuello está diante de um dilema que lhe foi proposto por seus companheiros de farda: passar à reserva e ser efetivado como ministro da Saúde, ou deixar o cargo e retornar à tropa. Com isso, os militares imaginam fortalecer a narrativa de que não são responsáveis pelos desacertos do governo Bolsonaro.

Ingênua pretensão. Entre os quase 3 mil militares empregados no governo, quantos ainda estão na ativa? Poderão permanecer na ativa? Por que os comandantes das Forças Armadas não os põem diante do mesmo dilema que atormenta Pazuello? Só assim terão condições de sustentar narrativa tão perecível e enganosa.

Uma narrativa, por favor, para tirar o governo das cordas

Sugestões para www.gov.br

Os militares são bons de narrativas, mas não somente eles, claro. Em meados dos anos 30 do século passado, um coronel de nome Olímpio Mourão Filho, integralista de carteirinha, escreveu uma peça de ficção sobre um complô comunista e judaico para tomar o poder no Brasil.

A peça tornou-se conhecida como O Plano Cohen. E serviu de pretexto para a instalação no país da ditadura militar do Estado Novo sob o comando do então presidente Getúlio Vargas que governava desde 1930. Governou até 1945, quando os militares o derrubaram.

O imaginativo Mourão Filho, já na condição de general, foi quem em 31 de março de 1964 comandou as tropas que desceram de Juiz de Fora sobre o Rio, deflagrando o golpe militar que deu ensejo a uma ditadura de 21 anos. Outra vez, para salvar a democracia ameaçada pelo comunismo.

À frente o general Hamilton Mourão(sem nenhum grau de parentesco com o Mourão que o antecedeu), os militares estão agora em busca de outra narrativa – essa, que possa salvá-los, e ao governo Bolsonaro, da culpa pelo crescimento acelerado da devastação da Amazônia, bem tão caro aos fardados.

Mourão, o vice, foi designado por Bolsonaro para descascar o abacaxi que poderá afugentar do país grandes investimentos internacionais. “O Brasil foi jogado nas cordas na questão ambiental”, admite Mourão. Só sairá das cordas, segundo ele, se apresentar resultados.

Por ora, Mourão ainda insiste em dizer que o Brasil “tem os melhores números” do planeta em matéria de preservação do meio ambiente (não cola, mas ele insiste). A culpa é governos passados pelo estágio atual da degradação da Amazônia (não cola também, mas ele insiste).

Quanto a Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, que perdeu a interlocução com os governos europeus, esse acabará sacrificado por falta de serventia. Salles não tem a mínima importância, nunca teve. Faz o que lhe mandam fazer. Deverá ser empregado em outro lugar.

Em breve, o governo terá de se preocupar com outra narrativa. O que dizer sobre seu fracasso no combate à pandemia? Atribuir o fracasso a governadores e prefeitos, não convence. À gripezinha, tampouco. Ao vírus chinês? A China é o maior parceiro comercial do Brasil. À esquerda? Ela está fora do poder.

Sugestões para o endereço acima.