pazuello

Murillo de Aragão: Mudando de ideia para sobreviver

O governo deve deixar claro que a vacinação é, de fato, prioridade

Em política, mudar de ideia é quase inevitável. As circunstâncias e o acaso são os curingas da realidade. Mas, de modo geral, a mudança de ideia não é bem aceita pela opinião publica, sendo vista como um sinal de falta de coerência. Em política, porém, coerência e conveniência andam muito próximas da necessidade. São como os três mosqueteiros de Dumas. E, como na história, existe o quarto mosqueteiro, que é a oportunidade.

Na análise política, identificar os mosqueteiros é essencial para entender o que está acontecendo. A coerência é mantida pela conveniência e pela necessidade diante da conjuntura. Quando as circunstâncias mudam, a coerência é sacrificada e abre-se a oportunidade para mudanças.

Nenhum regime totalitário e dogmático do século passado deixou de mudar de ideia ao longo dos acontecimentos. Ao contrário, mudam com mais facilidade que os democráticos, pois controlam a expressão política da sociedade. Já na democracia, as quebras de paradigma são mais penosas porque o processo decisório é mais abrangente e envolve mais atores.

O governo Jair Bolsonaro viveu em 2020 um processo de mudança de ideias com sinais contraditórios. O ex-­presidente dos EUA Harry S. Truman teria dito “if you can’t convince them, confuse them” (“se não pode convencê-­los, confunda-os”) ao se referir à forma como a oposição tratava o seu mandato perante a opinião pública. Bolsonaro exerceu, de forma muitas vezes rude, o que o americano dizia. Mas não só ele. Lula foi mestre em tecer narrativas contraditórias às suas atitudes.

Há dois processos em curso confundindo o eleitorado. Um é a mudança de ideia materializada nos entendimentos com setores do centro político, prática que Bolsonaro já rejeitou com veemência. A necessidade prevaleceu sobre a coerência. Nada de novo, apesar do estranhamento. O outro processo está indefinido: a questão da imunização contra a Covid-19. Ao mesmo tempo que Bolsonaro diz que não se vacinará, ele já pôs verbas à disposição para os fármacos. Mas o programa de imunização não está posto, ao passo que países menos organizados avançam na questão. A ambiguidade no tratamento do tema pode penalizar a aprovação do governo.

Confundir os adversários com narrativas e atitudes contraditórias depende de mestria, timing e certa simpatia da sociedade. Lula foi popular mesmo negociando com o FMI, praticando um grande arrocho fiscal e operando no submundo da política com o mensalão. Beneficiou-se da tolerância da opinião pública e “daszelite”. Mas não resistiu aos próprios erros. O maior deles foi Dilma Rousseff.

Bolsonaro avançou na reestruturação do presidencialismo de coalizão e demonstrou que sua prioridade era a blindagem política. Mas, no tocante à vacinação, suas atitudes estão obliteradas pela falta de convicção. Ele corre o risco de cometer erros fatais ante os desafios econômicos e sanitários atuais. A questão da imunização deve ser abordada de forma a deixar claro para a opinião pública e, sobretudo, para o mundo econômico que ela é, de fato, prioridade. Sem a vacinação, a economia vai patinar e a aprovação do governo vai encolher. O caminho para o seu sucesso será o de mudar de ideia com mais intensidade. Como disse Churchill, “quem não muda de ideia não muda nada”.


Bruno Boghossian: Com 200 mil mortos, governo quer desinformar sem ser incomodado

Na condução delinquente do país durante a pandemia, Bolsonaro mentiu e deu dados falsos à população

No dia em que o Brasil bateu a marca calamitosa de 200 mil mortes pela Covid-19, o ministro da Saúde apontou o que realmente atormenta o governo. Não é a tragédia nacional, mas a divulgação de informações negativas sobre a negligência federal no combate à pandemia.

"Não queremos a interpretação dos fatos dos senhores", reclamou Eduardo Pazuello, inconformado com a imprensa. "Deixem a interpretação para o povo brasileiro."

A indignação do general mostra que o governo Jair Bolsonaro prefere desinformar e mentir sem ser incomodado. Na condução delinquente do país na pandemia, esses são alguns dos "fatos" que o presidente apresenta para o "povo brasileiro":

Bolsonaro faz uma propaganda contínua contra a vacinação. O presidente alega que essa é uma escolha individual e lança alertas vazios sobre seus riscos, sem apresentar evidências. Com isso, ele trabalha contra a imunização coletiva que é necessária para proteger a população.

Em novembro, Bolsonaro afirmou nas redes sociais que o imunizante desenvolvido em São Paulo produz "morte, invalidez, anomalia". Ele festejou o óbito de um voluntário e atribuiu o caso à vacina. Era mentira.

O presidente também se tornou líder de um movimento charlatão ao recomendar o uso de medicamentos ineficazes. Além de se tornar mercador de cloroquina, ele afirmou que a África controlou a pandemia com a aplicação de ivermectina. Nenhuma autoridade sanitária confirma essa relação, mas a informação circula entre youtubers bolsonaristas.

No pacote, também estão dados falsos sobre o uso de máscaras ("a proteção é um percentual pequeno") e a irresponsável tentativa de minimizar os riscos da doença, inaugurada em março de 2020 com a infame previsão de que a pandemia provocaria menos de 800 mortes no país.

No pronunciamento desta quinta (7), o ministro da Saúde disse que "a desinformação e a interpretação equivocada ou tendenciosa leva a consequências trágicas". O governo cumpriu essa missão.


Rogério L. Furquim Werneck: Precariedade e popularidade

Atrasos inexplicáveis na vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência do governo

O terceiro ano do governo Bolsonaro continuará marcado pela persistência de um quadro de alarmante precariedade em áreas absolutamente cruciais para o país. Do combate à segunda onda da pandemia à vacinação tardia e desorganizada da população. Da condução improvisada da política fiscal a novas e reiteradas evidências de falta de compromisso efetivo do governo com a preservação do teto de gastos.

Tudo isso contribuirá para manter a economia em interminável clima de suspense, que dificultará a redução de risco que se faz necessária para uma recuperação vigorosa do nível de atividade, bem fundada na retomada dos investimentos. O país continuará restrito por um horizonte bem mais limitado do que seria possível e desejável.

Que planos tem Bolsonaro para a segunda metade do seu mandato? O que lhe sobra é 2021, ainda com pandemia e tudo, e o ano eleitoral de 2022. Sejam quais forem seus planos, sobram evidências de que já não há no Planalto qualquer disposição de levar adiante reformas fiscais necessárias. Todas as medidas de ajuste fiscal de mais fôlego vagamente aventadas pela equipe econômica no ano passado foram sistematicamente solapadas pelo Planalto no nascedouro (gatilhos, reforma administrativa, privatização).

O esforço de ajuste fiscal de 2020 redundou em nada. O Ministério da Economia alega que não ter havido prorrogação do auxílio emergencial ou criação de programa substituto (Renda Cidadã/Brasil) foi um sinal importante de compromisso com a consolidação fiscal. Mas a verdade é que é muito cedo para cantar vitória.

É preciso aguardar o que fará o Congresso. “Tudo isso será motivo de reflexão a partir de fevereiro”, advertiu, em dezembro, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo no Senado. E ainda falta ver qual será a reação de Bolsonaro, se a suspensão do auxílio emergencial, em meio à segunda onda da pandemia e com desemprego em alta, acabar se refletindo em queda expressiva de sua popularidade.

Como evoluirá a popularidade de Bolsonaro nos próximos meses, na esteira do agravamento da pandemia e da impaciência com a demora da vacinação? É bem possível que se observe fenômeno similar ao que, ao analisar determinantes da intolerância política com a desigualdade, há quase meio século, Albert Hirschman rotulou de efeito túnel. A analogia era com o comportamento de motoristas dentro de um túnel em que o trânsito foi subitamente interrompido.

De início, todos se mostram compreensivos com a situação. E, quando, afinal, uma das faixas começa a andar, isso é visto de forma positiva pelos que continuam parados. Um prenúncio de que veículos de todas as faixas estão prestes a também voltar a andar. Se, no entanto, a desobstrução das demais faixas não ocorrer, a postura compreensiva dos que continuam parados logo dará lugar a um clima generalizado de revolta com a situação.

É fácil perceber quão elucidativa pode ser a aplicação da ideia de efeito túnel à análise da reação popular à pandemia no Brasil. A postura surpreendentemente compreensiva da população em face da Covid-19 pode estar fadada a dar lugar a um sentimento inequívoco de revolta, à medida que se disseminar a percepção de que, enquanto dezenas de países avançam céleres na vacinação de suas populações, o Brasil continua incapaz de articular um programa minimamente eficaz e abrangente de vacinação.

É fácil ver que, no que tange a vacinas, o governo já não terá espaço para explorar narrativas ilusionistas como tanto fez durante a epidemia. Atrasos e deficiências inexplicáveis do programa de vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência e à irresponsabilidade do governo, no cumprimento de uma de suas obrigações mais fundamentais.

É difícil que a suposta resiliência da popularidade do presidente atravesse incólume esse teste de fogo. A reação de Bolsonaro, caso depare com súbita queda de popularidade, promete ser mais um fator crucial de incerteza a deixar a economia sobressaltada nos próximos meses.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.


El País: Brasil chega a 200.000 mortes na pandemia com SUS sob pressão

País enfrenta um cenário difícil com doença mais uniforme entre as regiões enquanto a estratégia de vacinação segue imersa em dúvidas. Atrasos em testes e na atualização de prontuários turvam análise

Beatriz Jucá e Jorge Galindo, El País

O Brasil supera a dura marca de 200.000 mortes pela covid-19 em sua contagem oficial com um cenário nebuloso pela frente. O país está prestes a entrar na sazonalidade que favorece a circulação de vírus respiratórios e espera um repique pelas aglomerações das festas de fim de ano enquanto se vê imerso em uma série de obstáculos para iniciar a vacinação e ainda não tem uma política efetiva para frear os contágios mesmo com a iminência de uma variante do coronavírus mais transmissível. É neste cenário que o país conta, nesta quinta-feira, 200.498 mortes por coronavírus durante a pandemia e 7,96 milhões de casos ―mais de 87.000 deles registrados nas últimas 24 horas, um pico. Se no início da crise sanitária algumas regiões emanavam maior preocupação no país continental, a situação agora é grave nas mais diversas regiões. Nos últimos meses, o Brasil viu o vírus se espalhar pelo seu território de forma mais uniforme e agravar, por exemplo, a situação em regiões ao sul, que inicialmente tinham mais fôlego pela baixa concentração de casos e agora sofrem com seus sistemas de saúde abarrotados.

Depois de atingir os primeiros 100.000 mortos oficiais pela covid-19, em agosto, o Brasil não registrou picos agudos de mortes por covid-19 como nos primeiros meses da crise. A estratégia brasileira focou basicamente em uma gestão de leitos por prefeitos e governadores, que decidiam ampliar ou reduzir as medidas restritivas frequentemente conforme os dados locais. Em geral, só iniciativas pontuais de restrição circulação foram novamente impostas de agosto para cá, algumas delas só com a intervenção da Justiça, como em Manaus. Medidas para rastrear casos e de fato tentar frear os contágios não foram implementadas como uma política pública robusta. As mortes por covid-19 foram distribuídas em um espaço maior de tempo, mas o Brasil nunca chegou a conseguir controlar de fato a pandemia. Foram mais de 200.000 mortes registradas oficialmente desde março, data do primeiro óbito. Cerca de metade delas a cada cinco meses de pandemia no país.

Mas a perda humana de uma das maiores crises sanitárias pode ser ainda maior. O excesso de mortes já havia ultrapassado 200.000 em relação à média de anos anteriores em meados de novembro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Além disso, o sistema do Governo Federal que registra hospitalizações e mortes por covid-19, o Sivep-Gripe, indicava nesta quarta-feira, dia 6, as cifras de 187.800 óbitos confirmados e outras 80.000 mortes por síndrome respiratória aguda grave (uma complicação da covid-19 e de outras síndromes gripais) não especificadas, nas quais podem estar incluídos casos de coronavírus não registrados por exame por motivos que vão de problemas da coleta à dificuldades de detecção pelo teste laboratorial. A Vital Strategies —uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a Governos— já alertou sobre a possibilidade de casos omissos sob a justificativa de que a OMS determina que casos em que os pacientes apresentaram três ou mais sintomas clínicos de covid-19 deveriam ser diagnosticados como suspeitos. O Ministério da Saúde tem dito que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.

Soma-se a isso a demora nas notificações e o represamento de dados que pesquisadores brasileiros têm ressaltado neste momento, quando a demanda por internação hospitalar de infectados pelo coronavírus voltou a crescer em diversos Estados. Isso porque, com a base de atendimento lotada, as fichas demoram a ser preenchidas e notificadas no sistema federal, atrasando a cadeia de dados. O cenário ainda é influenciado pelo represamento durante os feriados de fim de ano, quando tanto laboratórios quanto hospitais atuaram com equipes reduzidas, em regime de plantão.

Pandemia interiorizada

Se antes havia uma ampla concentração nas populosas capitais e cidades metropolitanas, o interior do país já está marcado pelo avanço do vírus e enfrenta a pandemia com sistemas de saúde mais frágeis. O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, com dados até o dia 26 de dezembro, mostra que 56% das novas mortes por covid-19 na referida semana já se concentravam em cidades do interior. Esta interiorização da mortalidade é observada desde setembro, quando a concentração de mortes começou a se equiparar entre estes dois perfis.

Em vários Estados, gestores trabalham para tentar ampliar leitos de UTI, mas agora enfrentam maiores desafios para contratar profissionais da saúde, exaustos pelo trabalho na linha de frente ao longo de meses. O Amazonas ―Estado onde já se ventilou a teoria de ter chegado a uma imunidade de rebanho sem vacina e a um preço alto de mortes― vive uma nova onda preocupante. O próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmou que o Amazonas está caminhando para as proporções do ano passado. E o governador Wilson Lima tem dito que trabalha contra o tempo para abrir mais leitos hospitalares, transformando espaços administrativos em hospitais em salas com leitos clínicos e as de leitos clínicos em terapia intensiva. Lá, a Justiça determinou maiores restrições após o Governo relaxar medida sob pressão de comerciantes e empresários.

Em um contexto em que os vizinhos da América Latina já reagem à alta de casos de covid-19 com novas restrições, o Brasil segue inerte. E parece repetir a mesma posição errática do começo da pandemia. A guerra política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Dória na corrida por uma vacina geraram um clima tenso no país, embora, nos últimos dias, há uma pequena sinalização de trégua, com a decisão do Ministério da Saúde de comprar a vacina paulista desenvolvida com os chineses, a Coronavac. O Governo Federal enfrenta pressão da sociedade, de governadores e até da Justiça para antecipar uma estratégia nacional de imunização depois de atrasos nas negociações tanto de vacinas quanto de insumos. O Governo de São Paulo está na iminência de pedir a autorização para uso emergencial à Anvisa da Coronavac e promete começar a vacinar grupos prioritários no dia 25 de dezembro. Enquanto isso, o Governo Bolsonaro corre contra o tempo para tentar iniciar a vacinação antes. Prometeu começar cinco dias antes de São Paulo, no dia 20 de janeiro. Os cronogramas sobre o quantitativo de vacinas que devem estar disponibilizadas nos postos nos próximos meses ainda não estão definidos.

“A gente lamenta, mas a vida continua”

Já o presidente Jair Bolsonaro segue com declarações que põem em xeque a segurança de vacinas em um momento em que a confiança na ciência é fundamental para garantir uma campanha de vacinação ampla. Especialistas têm sido categóricos ao dizer que a estratégia de imunização é coletiva e que, para chegar à almejada proteção, é preciso que a maioria da população receba os imunizantes. Mesmo que a vacinação comece nas últimas semanas de janeiro, os meses seguintes deverão ser de muito trabalho para garantir esta cobertura vacinal. Mesmo os que receberem a vacina deverão seguir os cuidados como distanciamento e uso de máscara, já que há um tempo até o corpo desenvolver uma resposta imune e a maioria das vacinas necessita de duas doses para uma proteção admissível.

Numa mudança de tom, o Ministério da Saúde emitiu nota de pesar pelas vítimas da pandemia. Assinada pela pasta, o informe expressa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos e diz fazê-lo em nome do presidente. Pazuello também falou pela primeira vez em “guerra” total contra a doença, que deve estar acima “das ideologias”. “O Ministério da Saúde está trabalhando incansavelmente, acompanhando pesquisas científicas e reforçando diálogos entre o Brasil e outros países para garantir vacinas seguras e eficazes à população”, prometeu o ministério. Já Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, voltou a questionar os dados sobre mortes, falando que pessoas morreram “com” covid-19, como se fosse possível separar as causas. “A gente lamenta hoje, estamos batendo 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com covid, outras de covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí. Mas a vida continua...”

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Ricardo Noblat: Sem seringas e agulhas, governo revoga a lei da oferta e da procura

E segue o baile

Por seis meses, dormiu sem resposta em uma gaveta do Ministério da Saúde o ofício onde o Ministério da Economia perguntava se tinha interesse ou não em comprar da China seringas e agulhas para a aplicação de vacinas contra o coronavírus.

Só no fim do ano passado, por meio de pregão eletrônico, foi que o Ministério da Saúde, às pressas, tentou comprar 331 milhões de conjuntos desses produtos. Conseguiu apenas 7,9 milhões. O presidente Jair Bolsonaro alegou que o preço subira muito.

Que fazer então o quê? Contrariar a lei da oferta e da procura que determina a formação de preços no mercado. Ela diz que quando há muita procura por um produto, o preço sobe. Quando cai a procura, o preço baixa. É assim que funciona.

A pedido do Ministério da Saúde restou ao governo Bolsonaro, por meio de portaria da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, restringir a venda para outros países de seringas e agulhas fabricadas no Brasil. Dane-se a lei do mercado, ora!

Nas redes sociais, o Ministério da Saúde havia chamado de “fake news” notícias sobre a dificuldade do governo de comprar seringas. Mas seu fracasso no processo de compra foi o argumento apresentado para pedir o veto às exportações.

Segue o baile!

Baleia Rossi será o candidato do PT a presidente da Câmara

Eleição será marcada por traições

2021 começará mal para o presidente Jair Bolsonaro caso o PT, logo mais à tarde, confirme seu apoio a Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a suceder Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara dos Deputados a partir de 1º de fevereiro próximo.

Restará a Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, apostar em traições a Rossi, o que sempre será possível. Para eleger o presidente em primeiro turno são necessários 257 votos de um total de 513. O voto é secreto.

Com a adesão do PT, o grupo comandado por Maia reúne 11 partidos – PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PC do B e Rede. Juntos, eles somam 269 votos. Ao grupo ainda poderão se juntar o NOVO e o PSOL.

Lira conta com o apoio do PP, PL, PSD, Republicanos, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota que, juntos, somam 204 votos. Ou seja: 65 votos a menos do que tem hoje o grupo de Maia. O Podemos (10 deputados) deverá aderir a Lira.

A bancada de deputados federais do PT se reunirá a partir das 15 horas em sessão virtual. Lula está em Havana para as filmagens de um documentário sobre sua trajetória política, mas se pôs de acordo com a decisão que será anunciada.

Tão logo seja, Rossi entrará em cena para agradecer o apoio e reafirmar o compromisso assumido de ceder ao PT uma vaga na direção da Câmara caso se eleja. O cargo cobiçado pelo PT é o de Secretário-Geral, o segundo mais importante.

Lira dará início nesta semana a uma maratona de viagens pelos Estados atrás de votos dissidentes. O governo tem jogado pesado para elegê-lo, mas ainda dispõem de muito para oferecer a quem se dispuser a votar em Lira.

O cargo de presidente da Câmara é vital para Bolsonaro, candidato à reeleição no ano que vem. O presidente da Câmara tem o poder de pôr em votação no plenário o que quiser e de retardar votações que não interessem ao governo.

Solitariamente, é ele que aceita a abertura de processo de impeachment contra o presidente da República. E é isso o que Bolsonaro mais teme. Cobiçar votos de traidores implica em pagar mais caro por eles, o que costuma desagradar os demais.


Janio de Freitas: Traição de Bolsonaro e Pazuello se demonstra com população desguarnecida de vacinas e seringas

Presidente e ministro da saúde deixaram o tempo correr por decisão

O contraste entre a dedicação corajosa do pessoal da saúde e a sabotagem da turma de Bolsonaro à imunização geral reflete, e denuncia, a falta de caráter coletivo das classes e categorias que dominam o Brasil.

O alheamento dessa porção poderosa, historicamente ativa na fermentação dos golpes de Estado e, com menor necessidade, contra reduções das desigualdades, oferece o alicerce para uma traição que passa de presumida a demonstrada.

caso das seringas é eloquente. Há mais de oito meses, ainda com Henrique Mandetta como ministro, a compra de seringas e agulhas estava em questão, inclusive com referência ao Ministério da Economia sobre verbas.

A imobilidade do governo só se rompeu há duas semanas, com um pregão em que o Ministério militar da Saúde fixou e exigiu preços abaixo dos vigentes. Só conseguiu comprar 24 em cada 1.000 seringas que dizia querer.

Por mais retardadas que sejam as mentes de Bolsonaro e do general Pazuello, é impossível admitir que levassem tanto tempo para perceber necessidade assim óbvia e, apesar disso, tão advertida a ambos. Nada os moveu. Além de entupidos nos canais da inteligência e da audição, estavam cegos para a ação do mundo todo.

Bolsonaro, Pazuello e os militares do Exército ao redor de ambos deixaram o tempo correr por decisão. Foi recusa deliberada de adotar as providências simples como nas vacinações em que o Brasil e o SUS se tornaram exemplo planetário.

Nada, absolutamente nada pode explicar que Bolsonaro e Pazuello deixem a população desguarnecida de vacinas e seringas, a não ser a decisão de fazê-lo.

Dupla traição: aos deveres constitucionais das respectivas funções e à população. Logo, ao próprio país, pelas consequências sociais discriminatórias, econômicas e nas relações políticas/comerciais com o exterior.

Outros sinais indicam a permanência da decisão de protelar a compra de vacinas e seringas, por sucessivas trapaças, até onde isso seja possível.

Há pouco, Bolsonaro confirmou que “não dá bola” para a falta de imunizadores nem para o vergonhoso atraso brasileiro. A responsabilidade, na sua explicação, é dos “laboratórios que tinham que estar interessados em vender pra gente. Os vendedores é que tinham que vir atrás”.

Para comprar cloroquina, Bolsonaro em pessoa é que foi atrás de Trump e do indiano Modi.

A explicação imbeciloide recebeu seguimento do coronel Elcio Franco, secretário-executivo do Ministério militar da Saúde. Segundo ele, não houve autorização da Anvisa nem compra de vacina porque não pode “pegar a Pfizer pelo braço” para negociar.

As duas explicações, como de praxe, são falsas. A verdade é que o representante da Pfizer se apresentou no ministério, em tempo hábil para o fornecimento prioritário. Tomou chás de cadeira memoráveis.

E não conseguiu ser recebido pelo general Pazuello. Com justa irritação, em poucas palavras falou a repórteres do seu insucesso. Pazuello e seus camaradas não queriam saber de compra de vacina.

Para quem se iniciou como terrorista contra quartéis do Exército e, como Pazuello, diz que outro manda e ele obedece, ordem de sabotagem e traição são naturais. Tanto que recebem a complacência, ou cumplicidade, do segmento social com poder de influência.

O Bolsonaro que acumula mortes, por exemplo, tem o aplauso de 58% do empresariado —os graúdos.


Bruno Boghossian: Governo teve pressa com cloroquina, mas nega ao país empenho na vacinação

Entre a 'angústia' e a 'esperança para corações aflitos', há um governo incompetente

Em março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.

A obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país no planejamento da vacinação.

O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.

Bolsonaro foi mais ágil na campanha do curandeirismo. Ainda em abril, o presidente conversou com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e pediu matéria-prima para a fabricação de cloroquina. Um carregamento chegou ao Brasil em menos de uma semana. No mês seguinte, os Estados Unidos enviaram mais 2 milhões de doses do medicamento.

O estoque de comprimidos está garantido, mas o país corre risco de ficar sem seringas e agulhas para a vacinação contra a Covid-19. O pregão aberto pelo governo para comprar 331 milhões de kits fracassou e só deve atingir 2,4% da demanda.

Quando o TCU pediu explicações ao Exército sobre a fabricação de cloroquina a preços acima do normal, os militares disseram que o objetivo era "produzir esperança para corações aflitos". Sobre as cobranças públicas por um plano de vacinação, o ministro da Saúde fez pouco caso: "Para quê essa ansiedade, essa angústia?". Entre a angústia e a esperança, há um governo incompetente.


Ricardo Noblat: O último general da ativa no governo está com os dias contados

Adeus a Pazuello

 Cabeças rolarão rolar dentro do governo para marcar a passagem de um ano infernal para outro capaz de renovar a esperança dos brasileiros em dias melhores. É sempre assim que agem os presidentes da República ao se verem em apuros uma vez que querem manter a própria cabeça no lugar.

Especialista em logística, ministro da Saúde que sucedeu a dois médicos que insistiam em dizer a Bolsonaro o que ele não queria ouvir, Eduardo Pazuello, posto ali para obedecer sem discutir às ordens que viessem do alto, é uma das cabeças que deverão rolar. É também o último general da ativa no governo.

A cobiça por seu cargo só faz crescer entre os políticos mais fisiológicos, aqueles corriqueiramente dispostos a socorrer governos enfraquecidos em troca de sinecuras. 2021 antecede 2022, ano de eleições gerais. Um ano assim serve para que os políticos façam caixa para financiar despesas futuras.

Pazuello será degolado, mas não só por isso. Seu desempenho como ministro foi um desastre monumental. E não importa que tenha sido um desastre por culpa, em primeiro lugar, de quem o escolheu, mais interessado em quem lhe dissesse amém do que em quem desse conta de enfrentar uma pandemia.

O Brasil está cada vez mais próximo de ultrapassar a marca dos 200 mil mortos pelo vírus, e dos 8 milhões de infectados. São números que lhe garantem um lugar no pódio dos países mais flagelados pela doença. Não tem vacina, nem seringas e agulhas para aplicá-la, e o orçamento da Saúde para 2021 é deficitário.

A coleção de erros cometidos por Pazuello e a equipe de militares carregada por ele para o ministério detonou a fantasia de que só os oficiais com sólida formação alcançavam o generalato. O que dele se esperava como especialista em logística é que pelo menos disso soubesse cuidar muito bem. Como se vê, não soube.

Poderia ter poupado do vexame seus colegas de farda, curvando-se às pressões para que pedisse a passagem para a reserva, mas não pediu. Fez questão de manter-se ao mesmo tempo como ministro de Estado e membro do Estado Maior do Exército. Um pé de cada lado do balcão. Emporcalhou a farda.

Teve pelo menos uma oportunidade de sair por cima. Foi quando, depois de autorizado por Bolsonaro, anunciou que o governo compraria a vacina chinesa Coronavac. Desautorizado pelo chefe no dia seguinte, ao invés de pedir demissão, humilhou-se: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Ali, enterrou-se como ministro, e enterrou sua carreira dentro do Exército. Ninguém premia um oficial derrotado.


Marco Aurélio Nogueira: Um ano para não esquecer

2021 há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos

O ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8 milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.

A gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre lembrada como virtude dos militares.

Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?

Medo, angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo. Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.

A pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais, mas se acovarda diante de inimigos reais.

Entraremos em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira em imunizações.

Enquanto não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos da inovação tecnológica do nosso tempo.

Um ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas, das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com que gap educacional?

Os brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar. Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram bares, shoppings e restaurantes.

O tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice, pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão desorientados e confusos.

Chegamos ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos, boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um “basta” aos arroubos criminosos do presidente.

Andamos, porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está vencendo a covid.

Por certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições. Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.

Que venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.

*Professor Titular de Teoria Política da Unesp


Fernando Gabeira: Vacina, o fator que importa

Este ano que passou foi terrível. Mas o que virá será muito difícil ainda

O fato do ano foi a pandemia, a esperança de superação é a vacina. Há muitas coisas além disso, mas esse é o dilema essencial. 

O processo de vacinação não significa apenas poupar vidas. É um imperativo econômico. A sorte do País vai depender de duas variáveis: o aumento do número de pessoas vacinadas e a queda do número das contaminadas.

O Brasil tem, segundo os especialistas, um bom sistema de imunização nacional, melhor do que muitos outros no mundo. Além disso, o País é um dos maiores fabricantes de vacinas do planeta, com dois centros de excelência, o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz.

Esses são os pontos positivos. Mas os negativos são muito fortes.

Bolsonaro não só negou a epidemia de covid-19, mas faz uma campanha de descrédito contra a vacina. Da mesma forma, seu ministro da Saúde, general Pazuello, acha que a expectativa em torno da imunização é exagerada. Se considerarmos que os dois principais responsáveis nacionais não estão na linha de frente – ao contrário, um deles, Bolsonaro, milita na retaguarda –, o processo poderá ser mais lento e acidentado.

Há muitas frentes abertas com esse cenário contraditório. Será preciso uma pressão dos setores produtivos que entendem a importância da vacina para a recuperação. Igualmente será preciso uma ação dos governadores no sentido de buscar a eficácia e preencher as lacunas abertas pela ausência de uma boa coordenação nacional.

Outra batalha se dará no campo das mentes e dos corações. Algumas das vacinas que já estão em uso, como a da Pfizer, são produto da medicina genética, trabalham com a técnica do RNA mensageiro. Essa novidade, que representa muito para o controle futuro de doenças, dá margem a inúmeras especulações sobre mudanças no sistema imunológico. Uma das mais bizarras é do próprio Bolsonaro, insinuando que a pessoa pode virar jacaré, homem falar fino e crescer barba em mulher. É apenas uma tentativa de afastar as pessoas da vacinação apelando para mitos, mas precisa ser combatida de forma inteligente e eficaz. A simples obrigatoriedade não funciona – o voto é obrigatório e houve mais de 30% de abstenção.

Nem tudo, entretanto, se vai decidir no front sanitário. O governo Bolsonaro, além de negar a pandemia, concentra-se na sua própria defesa, jogando todas as fichas no controle da Câmara dos Deputados. No início do ano, fracassaram as manifestações que pediam intervenção militar. Bolsonaro foi contido pelas instituições.

O Ministério Público do Rio desvendou a corrupção no gabinete do filho e, consequentemente, uma técnica usada por todo o clã Bolsonaro. Com a prisão de Fabrício Queiroz, o movimento de intervenção militar desapareceu, assim como menções a um artigo na Constituição que daria às Forças Armadas poder moderador. Bolsonaro procurou o Centrão e reinaugurou uma fase mais familiar e tradicional da política brasileira: o toma lá dá cá. Até nomeou um ministro para o Supremo Tribunal que alguns políticos do Centrão chamam de “o nosso Kassio”.

A disputa pelo controle da Câmara é vista pelo governo como fator decisivo para evitar processos de impeachment. O caso mais importante em investigação no momento são as chamadas rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro. Em tese, mesmo se elas tiverem existido no gabinete de Jair Bolsonaro, não deveriam atingi-lo no cargo, pois seria crime cometido antes da posse como presidente.

Acontece que, no empenho de blindar não só o filho, mas suas próprias atividades, Bolsonaro, segundo denúncia de Sergio Moro, tentou interferir na Polícia Federal do Rio. E, finalmente, foi descoberta uma articulação da Abin para proteger o filho do presidente e atacar a Receita Federal, de onde surgiram os dados que denunciaram Flávio Bolsonaro. Sobretudo este último caso, o de interferência da Abin, configura, se demonstrado, crime de responsabilidade.

São casos mais recentes, porque Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, reteve 24 pedidos de impeachment por achar que não havia condições políticas para tal.

No quesito condições políticas, a análise da situação da Câmara dos Deputados não é a única variável. Bolsonaro perdia apoio na sociedade quando o Congresso aprovou a ajuda emergencial na pandemia. Isso foi capitalizado por ele, que conseguiu crescer nos setores mais pobres. Acontece que a ajuda emergencial, que se tornou a renda única de muita gente no Brasil, vai ser cancelada em 2021.

A principal margem de manobra é o crescimento da economia, que, por sua vez, depende diretamente do sucesso do plano de vacinação. Por questões ideológicas, não apenas pelas reservas quanto à vacina chinesa, mas também por uma posição obscurantista em relação às vacinas em geral, Bolsonaro é um grande obstáculo em 2021.

Não há volta atrás, ao momento em que alguns aliados pediam intervenção militar. Mesmo se conquistar a Câmara, contra uma grande frente democrática que se formou contra ele, dificilmente o Centrão, que o apoia, resistiria a uma intensa pressão social.

Este ano que passou foi terrível. Mas o que virá será muito difícil ainda.


Vinicius Torres Freire: Como pode ser a vida depois das primeiras vacinas de Covid-19

Se vacinação e distanciamento funcionarem, vida passa a melhorar no meio do ano

Em abril, o número de mortes por Covid-19 em São Paulo deve começar a cair graças à vacina, se der certo o plano do governo paulista. Com base em premissas otimistas, a vacinação pode derrubar o morticínio em 64%. Atualmente, morrem 154 pessoas por dia no estado; em abril, morreriam então mais de 50 (no início de novembro, eram 85 mortes diárias).

Os números importam, mas dizem pouco sobre como pode ser a vida depois da primeira onda de vacinação: ainda difícil. Até 22 de março, terão sido vacinadas pessoas com mais de 60 anos, gente da saúde, indígenas e quilombolas, nove milhões de pessoas, apenas um quinto da população.

Mas, com vacina e com os cuidados de distanciamento que tomávamos em outubro, poderíamos reduzir o número de mortes diárias à casa da dezena em meados de 2021. Se a Coronavac também evitar contágios, a menos ainda.

As vacinas derrubariam o número de mortes em abril porque em grande parte seriam aplicadas no grupo que padece mais da doença. Cerca de 77% dos mortos em São Paulo tinha 60 anos ou mais. Quase 0,5% dessa população morreu de Covid-19, uma pessoa em duzentas, um horror.

A hipótese otimista depende de premissas esperançosas sobre taxa de vacinação e da eficácia da Coronavac.

Supôs-se que a eficácia dessa vacina seja de 86%, similar à da sua prima Sinopharm, número até agora não publicado com rigor técnico, porém. Supôs-se ainda que sua efetividade na vida real seja idêntica à da eficácia na fase de testes. Supôs-se também, de modo heroico, que a Coronavac seja aplicada em tantos idosos quanto aqueles que receberam a vacina de gripe no ano passado (97,6%, em São Paulo). Mas Jair Bolsonaro faz campanha criminosa de desmoralização da vacina. Pode ser que a adesão caia para 75%.

Eficácia e efetividade de 86% significa que uma de cada sete pessoas vacinadas estará sem proteção. Os hospitais ficarão menos cheios, mas o risco individual ainda será relevante.

Por eficácia entende-se por ora a capacidade da vacina de proteger as pessoas dos efeitos graves da doença. Não se sabe se as vacinas disponíveis evitam (ou limitam) a transmissão. Cientistas acreditam que, em alguma medida, as vacinas em geral possam limitar o contágio. Isto é, fazer com que o vacinado e infectado espalhe menos o vírus. Assim, mesmo sem terem sido vacinadas, menos pessoas adoeceriam, tudo mais constante. Por tabela, haveria menos padecimento econômico.

Tão cedo não haverá informação sobre isso. Será preciso acompanhar grupos de vacinados por uns quatro meses, fazendo testes de contaminação algo complicados.

Em suma, em abril a vida ainda estará prejudicada. Para diminuir o prejuízo, será preciso vacinar o grupo de 40 a 59 anos, que conta quase 20% das mortes (e equivale a 27,5% dos paulistas).

A fim de conter a tragédia educacional, social e psicológica do fechamento das escolas, talvez seja preciso vacinar os 470 mil professores do ensino básico (e quantos mais funcionários de apoio?). Não haveria vacina bastante na primeira rodada. Uma segunda rodada de mesmo tamanho e velocidade da primeira estaria completa apenas em fins de maio.

Até abril ainda estaremos sujeitos a um aumento pavoroso do número de mortes. Até agora, não temos vacina. Assim que tivermos, não podemos dar ouvidos a genocidas. Temos de nos vacinar tanto quanto nas campanhas antigripe e seguir os cuidados que em outubro ajudaram a reduzir o morticínio. Com menos casos, talvez enfim possamos testar, rastrear e isolar os doentes.

Há jeito de dar cabo da peste.


Hélio Schwartsman: Guerra, militares e boas histórias

Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico

Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.

A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.

Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".

E, se sempre foi vital garantir armas a guerreiros, a intendência ganhou ainda mais importância nos conflitos modernos. Foi a introdução de serviços de higiene, como a lavanderia, na 1ª Guerra que fez com que, pela primeira vez, doenças não causassem mais baixas que o fogo inimigo.

A intendência alterou a natureza do conflito, já que permite que ele tenha duração indeterminada. Nas batalhas antigas, a peleja não podia ir além da comida disponível nas imediações. Pior, ao fazer a ligação entre a capacidade de produção de um país e sua performance na guerra, a logística borra a distinção entre alvos legítimos e ilegítimos. O operário civil de uma fábrica de uniformes pode ser abatido?

Bolsonaro entregou o Ministério da Saúde a um oficial de intendência. Se seu desempenho à frente da pasta é representativo do de nosso Exército, então a Bolívia poderá conseguir sua tão sonhada saída para o mar, pelo Atlântico...