Paulo Sotero

Paulo Sotero: Biden não hostilizará o Brasil

Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles – um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.

“Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos – sua especialidade –, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam – sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, já há tempo nas cordas.

Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.

*JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON


Paulo Sotero: Por um diálogo além da capacidade de Trump e Bolsonaro

A covid-19 indica a ciência como caminho para aproximação com os Estados Unidos

A cooperação internacional não é a praia de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro. Mas é campo fértil e promissor para cientistas do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países com história de combate a epidemias trabalharem juntos para decifrar a covid-19, conter o contágio e desenvolver uma vacina para o vírus que já matou dezenas de milhares de pessoas e poderá matar milhões.

“A Índia e o Brasil têm grandes indústrias de vacina”, escreveu Donald G. McNeil Jr., do New York Times, em ampla reportagem publicada no domingo sobre o longo caminho à frente para conter o vírus. Epidemiologistas dos EUA, da Índia, da China, da França e do Reino Unido sabem que o desenvolvimento científico no Brasil nasceu do combate a epidemias e endemias, como escreveu Simon Schwartzman em Um Espaço para a Ciência, uma história da formação da comunidade científica no Brasil, fundada por médicos pioneiros, como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Carlos Chagas e Adolfo Lutz, na virada do século passado. Vem do legado desses gigantes a boa tradição de nossa medicina sanitária, reconhecida mundo afora e que permitiu ao País, em tempos recentes, enfrentar com sucesso as epidemias de HIV-aids, Sars e zika.

Não é somente na ciência que o Brasil pode e deve agir em interesse próprio e da humanidade e contribuir para conter o flagelo da covid-19. Arthur Silverstein, um historiador da medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, sugeriu, na mesma reportagem do New York Times, que o governo americano assuma o controle e esterilize grandes cubas de fermentação de cervejarias e alambiques de produção de bebidas destiladas e os ponha a serviço da produção em grande escala de uma vacina segura, quando esta for descoberta. Eis aí um convite à Ambev e aos grandes fabricantes de cachaça para redirecionar parte de sua capacidade de produção para o bom combate à pandemia.

A cooperação brasileira pode ir além, se governantes como Trump e Bolsonaro deixarem de usar o flagelo para fazer demagogia com coisa séria e ouvirem o conselho de cientistas como a médica Luciana Borio. Nascida no Rio de Janeiro, Luciana Borio trabalhou na unidade de prevenção de pandemias criada no Conselho de Segurança da Casa Branca na administração do republicano George W. Bush, fortalecida pelo democrata Barack Obama e esvaziada em 2018, sabe-se lá por quê, por Trump. Formada pela Escola de Medicina da Universidade George Washington, na capital americana, a médica atuou como cientista chefe da Food and Drug Administration e não tem paciência para conversas sobre as virtudes cantadas por Trump e seu seguidor brasileiro do remédio antimalária cloroquina e do antibiótico azitromicina no tratamento dos males causados pela covid-19. “É um completo absurdo”, afirmou ela ao Times. “Disse à minha família que, se eu pegar a covid, não me deem esse coquetel.”

O potencial de colaboração na luta contra a pandemia entre cientistas, empresários e formuladores de políticas públicas nos dois países indica o caminho de relações produtivas que o Brasil e os Estados Unidos podem construir para além da retórica diplomática vazia. Foi o que aconselhou Thomas A. Shannon em palestra no Wilson Center, no final de 2013, depois de servir como embaixador dos EUA em Brasília. O diplomata afirmou que a conectividade crescente entre os dois países em vários campos tornaria suas sociedades os vetores principais do relacionamento entre os dois países e mais importante do que as ações dos governos.

Hoje, os governos Trump e Bolsonaro, populistas ultraconservadores adeptos da estratégia do caos, não apenas não ajudam, como atrapalham. Isso foi ilustrado há poucas semanas pelo injustificável desvio, por ordem da Casa Branca, de respiradores e materiais de proteção hospitalar comprados na China pelo governo da Bahia, durante uma escala em Miami. De nada adiantou a suposta proximidade entre Trump e Bolsonaro ante a necessidade premente do líder americano de lidar com as consequências da resposta tardia e errática que deu à pandemia, interceptando em aeroportos dos EUA voos carregados de mercadoria médica destinados não apenas ao Brasil, mas também ao Canadá, à Alemanha e à Espanha.

A perda de popularidade de Trump e suas chances minguantes de reeleição em novembro, que o levam a atribuir a adversários internos e externos a culpa pela calamidade econômica e social que o flagelo do vírus provoca nos EUA, promete novas frustrações entre Washington e Brasília. O presidente brasileiro é visto com repugnância por assessores para a América Latina da campanha do ex-vice-presidente e ex-senador Joseph Biden, democrata que terá a incumbência de tirar Trump da Casa Branca. Essa é mais uma razão para que os interessados no Brasil no aprofundamento de um diálogo consequente com os Estados Unidos torçam por Biden e apostem em ações que envolvam uma maior cooperação entre cientistas, educadores, empresários e líderes de organizações sociais e culturais dos dois países.

* JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WOODROW WILSON CENTER, EM WASHINGTON