Partidos
Maria Cristina Fernandes: Velório sem cachaça
Decano do PSDB diz que vitória de Aécio matará o partido. Euclides Scalco é um tucano atípico. Não faz rodeios naquilo que é incontornável. Por telefone, de Curitiba, decreta: "Se Aécio derrotar o Tasso nessa disputa o PSDB acaba". Acompanha pelos jornais e em esparsas conversas com correligionários a crise por que passa o partido, mas a quilometragem acumulada no tucanato lhe franqueia a afirmação categórica de que se trata da mais grave crise na sua história.
Às vésperas de completar 85 anos, Scalco forma, junto com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a dupla de decanos do PSDB. Gaúcho, fez política no Paraná. Foi deputado constituinte do grupo pemedebista que se rebelou contra o rumos do governo José Sarney e assinou a Carta sob nova filiação partidária.
Coordenador das duas campanhas presidenciais de Fernando Henrique, diretor-geral de Itaipu e secretário-geral da Presidência, Scalco sempre integrou, no partido, a ala, cada vez mais escassa, dos intransigentes defensores de um PSDB vacinado contra as benesses do poder.
Não faz, por exemplo, uma única ressalva ao mea culpa que o partido levou ao ar na semana passada em horário nobre. Aprovou forma e conteúdo, inclusive a ausência de tucanos na tela. Atribui a reação interna à carapuça que alguns de seus correligionários vestiram. "Tava na hora de o partido ter alguém que desse um murro na mesa e pusesse ordem na tropa", diz, em respaldo ao senador Tasso Jereissati.
É avesso a cerimônias de panos quentes. Não hesitou em se afastar politicamente do atual governador do Paraná, filho do tucano com quem cultivou suas relações mais estreitas na política, José Richa. Padrinho de crisma e de casamento de Beto Richa, além de coordenador de suas campanhas, Scalco tomou distância de suas gestões há oito anos, quando o afilhado ainda ocupava a prefeitura da capital. Ao se afastar, declarou que não compactuava com a mistura entre negócios privados e o bem público. Nas últimas eleições, apoiou o ex-prefeito de Curitiba, Gustavo Fruet, que trocou o PSDB pelo PDT depois de desentendimentos com Richa.
Não transige nem mesmo em relação à retomada da bandeira do parlamentarismo. Descrê que a mudança no sistema de governo sirva de atalho para tirar o país da crise. Esta história não precisa de repetição. Já embute uma tragédia na origem.
Scalco relembra a pactuação com os militares que condicionarm a posse de João Goulart à instituição do parlamentarismo, depois derrotado em plebiscito, para referendar sua crítica. "Se somos parlamentaristas teríamos que ter insistido na mudança desde o princípio. Agora é inoportuna."
Vê uma clara crise de liderança com a indisposição de Fernando Henrique para assumir funções executivas no partido e faz um chamado à responsabilidade dos fundadores do PSDB que hoje se mantêm indiferentes à perspectiva de piora daquilo que parece estar no limite da deterioração. Não lhe falem do prefeito de São Paulo, João Doria, ou de sua alegada herança covista. "[Geraldo] Alckmin bancou Doria e agora ele está percorrendo o país em campanha. Essas coisas não podem acontecer. Ele [o prefeito] não tem nada de Covas".
A rapidez com a qual o PSDB decidiu entrar no governo Michel Temer abre uma fenda entre o partido de hoje e aquele que ajudou a criar. Diz que os tucanos, desta vez, tinham alternativa à participação no governo. Não equipara a responsabilidade do PSDB, decorrente do impeachment, àquela dos pré-tucanos na transição que desembocou no governo José Sarney.
Advoga que hoje o PSDB poderia ter ficado de fora com apoio pontual a agendas convergentes, como a privatização da Eletrobras. Com a adesão a Temer, produziu-se o inverso. Os tucanos estão aboletados no poder e, graças ao apego da bancada aecista a Furnas, colhem divergências em temas que deveriam estar pacificados no partido como a privatização.
Vê na sucessão de 2018 o rubicão do PSDB e teme que a disputa interna impeça a travessia. Mede a distância que separa a luta fratricida de hoje pela candidatura ao Planalto à resistência de Mário Covas em 1989. O então senador paulista queria passar pelo governo estadual antes de partir para uma eleição nacional, mas foi convencido pelos pares a encabeçar a primeira disputa presidencial do partido.
Atribui os descaminhos do PSDB, em grande parte, à falta de discussão interna, a começar de suas instâncias locais. Reconhece que o partido ainda é prisioneiro da dicotomia do Real. Como se tratasse de uma guerra contra a hiperinflação, talvez não tivesse como ser diferente, mas o fato é que o plano responsável pela projeção política do partido foi fruto da tecnocracia e não de suas bases.
A situação fiscal do país o pressiona a outra virada de mesa. O que está em jogo é a liderança, no campo liberal, desse movimento. É este o jogo em que o presidente da República se movimenta para tentar manter o PSDB como satélite de seu poder. Por que Temer, em 1988, não seguiu com os pemedebistas paulistas para o novo partido? Seus aliados costumam dizer que Franco Montoro, seu patrono, o aconselhou a ficar no PMDB para servir de ponte entre os novos tucanos e o quercismo. Scalco tem outra explicação, mais curta: "Porque não foi convidado".
Em meados dos anos 1980, quando fervilhava a vida partidária da abertura, a Fundação Pedroso Horta editava uma publicação chamada 'Revista do PMDB'. Fernando Henrique e Serra compunham o conselho editorial. No número de julho de 1987, às vésperas dos trabalhos da Constituinte, quando os pemedebistas já não escondiam o desconforto com a gestão Sarney, o partido lamentava não ter podido se preservar, a exemplo dos socialistas espanhóis, para o governo pós-transição. A instabilidade e o precário equilíbrio de forças, reconheciam os futuros tucanos, impunham desgaste ao partido.
Passaram-se 30 anos desde que a revista do PMDB fez aquelas reflexões. Tempo suficiente para os tucanos delas tirarem lições, mas quem parece tê-lo feito com mais competência foi o pemedebista outrora rejeitado. O presidente Michel Temer atraiu o PSDB, dá corda ora a um, ora a outro e se vale privatizações e TLPs para testar o credo liberal dos seus aliados e mantê-los permanentemente divididos. Vale-se ainda da lambança tucana na Lava-Jato para lhes vender proteção. Se for bem sucedido, cravará no partido de seus antigos correligionários o carimbo de satélite do PMDB. Um movimento de volta às origens que, no Paraná de Scalco, dá-se o nome de velório sem cachaça.
* Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor Econômico
Luiz Carlos Azedo: Um partido pra chamar de meu
O PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão
A dialética do processo político brasileiro, digamos assim, será ditada por duas tendências que se fortalecem na medida em nos aproximarmos da eleição: o enfraquecimento do governo Temer, de um lado, e o surgimento de candidaturas mais ou menos competitivas de outro. Duas já estão postas: a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a de Jair Bolsonaro (PSC). A única alternativa possível para o presidente Temer reverter essa tendência e não ficar isolado e moribundo no fim de seu mandato é apoiar uma candidatura forte o suficiente para reagrupar sua base e gerar uma nova expectativa de poder.
Essa é a operação em curso no Palácio do Planalto, mas passa por uma definição do PSDB em relação ao candidato da legenda, que hoje se digladia em torno de dois nomes: o governador Geraldo Alckmin, que seria o candidato natural, e o prefeito de São Paulo, João Doria, que entrou em campanha aberta, atropelando o seu criador político. Como o PSDB é uma variável sobre a qual Temer não tem controle, o presidente e os aliados começaram a meter a colher na luta interna dos tucanos, o que pode não ser uma boa ideia, mas nada impede que dê certo. Essa é a magia da política.
Em razão do poderio político e econômico do governo de São Paulo, o governador paulista ocupa o vértice de um sistema de poder controlado pelos tucanos, que passa pela estrutura partidária, mas é ancorado nos governadores, senadores, deputados federais e prefeitos da legenda. Por essa razão, como nas eleições de 2006, quando o senador José Serra (PSDB-SP) foi preterido, será muito difícil deslocar a candidatura de Geraldo Alckmin, ainda mais porque as alternativas que lhe restariam seria disputar uma vaga ao Senado ou ficar no cargo até o fim do mandato. Ocorre que a candidatura que empolga os aliados do PSDB no governo Temer é a de Doria.
Essa é a questão por trás da polêmica sobre o recente programa do partido, que ensaiou uma autocrítica em relação à Operação Lava-Jato e certa posição de apoio crítico ao governo Temer, cuja frase síntese é “O PSDB errou”. O eixo político do programa foi a crítica ao “Presidencialismo de cooptação”. O resto é detalhe.
No período imediatamente anterior à elaboração do programa, houve a votação do pedido de afastamento de Temer para a investigação da denúncia contra o presidente da República, que rachou a bancada do PSDB. Logo após, um caloroso encontro do presidente Temer com Doria, em São Paulo, sem a presença de Alckmin. Depois, uma afetuosa conversa de Doria com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e a acalorada visita a Salvador, a convite do prefeito ACM Neto (DEM), na qual o prefeito paulista transformou a ovada que levou de um manifestante numa fortificante gemada política.
Novo bloco
A movimentação do prefeito Doria sinalizou para Temer e seus aliados do DEM a possibilidade de se antecipar à convenção do PSDB e iniciar as articulações para fazer de Doria o grande candidato de centro democrático, num movimento no qual a ala tucana que apoia o governo ameaça deixar o partido, da mesma forma como estão trocando o PSB pelo DEM os políticos dessa legenda que apoiam o governo.
Há duas alternativas: a primeira é a incorporação de Doria e todos os dissidentes pelo DEM; a segunda, o surgimento de um novo partido, que teria Doria como candidato, aproveitando a estrutura de um dos partidos aliados. Há vários, de médios a pequenos, à esquerda e à direita do PSDB, à disposição das manobras de Temer. Para Doria, poderia ser a melhor alternativa para não desconstruir a imagem de representante do novo na política, com o puro e simples ingresso no PMDB. Além disso, pode funcionar como um xeque-mate no alto tucanato.
Tudo isso ocorre em meio a uma reforma política feita sobre medida para mudar deixando tudo como está. Trata-se de mais uma faceta do nosso “transformismo” político, no qual recentemente o PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa parece que pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão.
O fenômeno é característico de processos políticos nos quais os partidos se descolam das bases eleitorais e buscam se reposicionar com objetivo de manter ou voltar ao poder. Com o colapso de certas utopias e a formação de uma classe dirigente que detém o domínio político do Estado, não importam suas mazelas, as lideranças moderadas e conservadoras buscam absorver os quadros mais ativos de grupos aliados e, eventualmente, até antigos adversários.
FHC: Escolha do candidato do PSDB à Presidência recairá sobre favorito
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, nesta quinta-feira (17/8), que vai apoiar o pré-candidato do PSDB à Presidência que for “capaz de falar com o Brasil”. FH destacou que ainda é cedo para o partido definir quem será o escolhido para disputar o cargo — o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito da capital, João Doria, se movimentam nesta direção.
Durante evento com empresários na Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), o ex-presidente ressaltou a importância de o candidato tucano “ser nacional” e não restringir o discurso ao eleitorado paulista.
— É muito difícil para um paulista ser nacional, porque São Paulo tem especificidades. O Brasil é complicado. Tem que ter uma abrangência mais ampla. O candidato tem que falar com o Brasil. Não adianta falar só com a sua turma. Deles (possíveis candidatos do PSDB), o que for capaz de falar com o Brasil, vai ter meu apoio — defendeu FH.
Para Fernando Henrique, a escolha do candidato tucano será pragmática:
— Os partidos vão procurar quem tem mais possibilidade de ganhar. É cedo para dizer isso com relação ao PSDB. Não quero nominar, mas tem dois que tem aí mais chance. Qual dos dois? Queira eu, não queira eu, vou ver o que vai acontecer com a sociedade e o que vai refletir sobre o partido, senão vai perder a eleição.
Fernando Henrique lembrou que, durante o processo de escolha do candidato do PSDB a prefeito de São Paulo, no ano passado, apoiou Andrea Matarazzo. FH reconheceu que o desempenho de Doria o surpreendeu.
— Eu errei, disse isso ao João (Doria). Eu não acreditava que ele fosse capaz. Foi, deu show — afirmou o ex-presidente, que brincou com jornalistas quando perguntado sobre quem estava se comunicando melhor, Doria ou Alckmin:
— Acho que sou eu.
Quando respondeu uma pergunta da plateia, questionando se o PSDB havia morrido, FH concordou.
— Na medida em que os outros partidos também acabaram. A crise é geral, o que não significa que os partidos vão desaparecer. Na próxima eleição eles estarão aí. O PSDB tem possibilidades. É preciso ver que ideias o PSDB vai ter e que pessoas vão incorporar isso. Se eu puder ajudar, ajudo. Vou pensar primeiro no Brasil.
Fernando Henrique manifestou apoio ao presidente interino do PSDB, senador Tasso Jereissati (CE), que encomendou um programa de TV em que o partido admite erros. O tom da propaganda causou desconforto em parte do PSDB.
— Nessa nova sociedade, mentiu, morreu. Tem que dizer as coisas. Tem que dizer com sinceridade: “Acredito, não acredito, penso, não penso, estou errado, errei”. Se o PSDB fizer isso... Vi muita crítica ao Tasso (Jereissati) por causa do programa, mas ele (programa) falou isso: “Erramos? Erramos, fazer o quê?” Vai dizer que não erramos? Não foi um erramos, alguns erraram, mas está bem, você está falando pelo partido, tem que dizer que erramos, não tem outro jeito. Isso quer dizer mea-culpa, máxima culpa? Não é isso, o erro em política se resolve com nova proposta. Se (os partidos) forem capazes de avançar, sobrevivem — disse FH.
Reforma Política
O ex-presidente criticou ainda a possibilidade de a reforma política em discussão na Câmara implementar o distritão como sistema eleitoral para a escolha de deputados. Pelo modelo que está sendo debatido, os deputados mais votados seriam eleitos, em um processo majoritário. Hoje, os deputados são escolhidos de acordo com um sistema proporcional.
— Nosso sistema está muito deformado, mas o distritão é uma deformação maior ainda. Não resolve — disse Fernando Henrique. — Acho que essa reforma (política) ainda está mal parada. Na verdade, não tem clareza, muita confusão. O meu partido, o PSDB, é favorável ao voto distrital misto. Acho que devíamos começar pelos vereadores, para aprender, ir pouco a pouco. No Brasil, a gente sempre pensa que vai salvar tudo. Não é assim. Introduz o voto distrital na eleição de vereadores e vamos ver se dá certo. Se der certo, damos outro passo — afirmou.
Fernando Henrique também defendeu um novo modelo de financiamento, com a volta das doações privadas. Para ele, seriam necessárias duas restrições: a proibição da doação para mais de um partido; e a vedação das contribuições diretamente às legendas — elas seriam feitas aos tribunais eleitorais.
— Tínhamos que voltar ao bom senso. Tem que baixar o custo das campanhas. Esse é o ponto inicial. Não vejo por que proibir a doação privada, desde que seja só para um grupo ou um partido, não para todos. Segundo, doa ao tribunal eleitoral, e o partido vai lá e leva a conta (com as despesas), para evitar corrupção. Senão, o povo vai pagar (pelo financiamento público), e o povo está cansado de pagar — afirmou.
Luiz Carlos Azedo: Descida da ladeira
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado, a sucessão de 2018 vai para a rua.
É bom o Palácio do Planalto verificar os freios, porque começou a descida de uma sinuosa ladeira, que pode ser suave se o trem não descarrilar numa das curvas que nos levam às eleições de 2018. Ontem, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que o governo não tem os votos mínimos para aprovar a reforma da Previdência no plenário. Defende a reforma, mas a prioridade dos integrantes da base do governo, depois de salvarem o presidente Michel Temer do afastamento, é cuidar da própria eleição. “Hoje, nós não temos voto para aprová-la, e eu estou deixando bem claro isso entre os líderes”, disse.
A reforma precisa de 308 votos dos 513 deputados para ser aprovada no plenário da Câmara. O relatório do deputado Arthur Maia (PPS-BA), apesar de amplamente negociado e com consistência técnica, nunca teve apoio suficiente para ser aprovado. Estava chegando perto disso quando foi anunciada a delação premiada do empresário Joesley Batista, que gravou Temer numa conversa no Palácio do Jaburu e descarrilou, para usar a linguagem ferroviária. A prioridade do governo mudou, passou a ser salvar o presidente da República à custa da negociação de cargos no governo e distribuição de verbas para a banda mais fisiológica do Congresso.
Passado o sufoco, o Palácio do Planalto deparou-se com uma nova realidade. A eleição de 2018 está logo ali para os deputados. Eles voltaram do recesso assustados com o desgaste político causado pela votação que rejeitou a denúncia do Ministério Público contra Michel Temer e mudaram de prioridade: em vez de reformas necessárias, que consideram impopulares, mudanças nas regras do jogo das eleições para garantir seus mandatos. Como? Com o “distritão”, que dispensa o voto de legenda e maiores composições partidárias, e o “fundão” de R$ 3,6 bilhões, com o qual poderão formar seus exércitos eleitorais, já que os partidos estão cada vez mais desgastados e com lideranças queimadas. Não é à toa que muitos senadores acompanham com lupa a reforma, pois concorrerão à Câmara e não ao Senado, por falta de apoio para disputar eleições majoritárias.
Maia registrou a insatisfação da base do governo após uma reunião com os ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo Oliveira, além de deputados líderes de bancada na Câmara. A pauta foi o desajuste fiscal do governo, que havia hasteado a bandeira da austeridade e aprovado a Lei de Teto de Gastos, sobre a qual ainda repousa a credibilidade da equipe econômica. Politicamente correto, o presidente da Câmara destacou a importância da reforma: “A mais estruturante, a mais definitiva, aliás, a única definitiva”.
Não será fácil garantir os votos porque a maioria dos deputados está de olho mesmo na reforma política, com seu “fundão” de R$ 3,6 bilhões para gastar nas eleições. A comissão especial da Câmara que analisou a reforma política concluiu ontem a votação do relatório, que agora seguirá para análise do plenário. Emenda à Constituição, a proposta também deve passar por dois turnos e obter em cada um o apoio mínimo de 308 dos 513 deputados. Se for aprovada, seguirá para o Senado. Essa é a prioridade, que promete ainda algum barulho, porque a repulsa da sociedade aos políticos só aumentou. É que as mudanças para valerem nas eleições de 2018 precisam ser aprovadas na Câmara e no Senado até 7 de outubro. E esse trem tem preferência de tráfego.
Sucessão
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado (Meirelles anunciou ontem a necessidade de o Congresso aumentar a meta de deficit para R$ 159 bilhões neste ano e no próximo), a sucessão de 2018 vai para a rua. Tucanos se bicam no ninho com dois candidatos paulistas, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito João Doria. Ambos estão em campanha aberta para atrair o PMDB e o DEM como aliados. As chances de alguém voar do ninho para outra legenda não é pequena.
Lula já pôs a caravana na rua faz tempo, mas sua campanha é híbrida: trata-se de uma blindagem contra a Operação Lava-Jato e, ao mesmo tempo, uma alternativa de poder. À sombra de Lula, o ex-prefeito Fernando Haddad se movimenta para ser o “regra três” ou virar vice de Ciro Gomes (PDT), o que parece ser o plano B do ex-presidente da República se for impedido de disputar as eleições pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. Hoje, quem polariza com Lula é Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que ocupa o espaço do chamado “partido da ordem” com um discurso de extrema-direita. À esquerda, Marina Silva tenta domar a Rede e recuperar o espaço que ocupava há duas eleições. Álvaro Dias, do Podemos, já está em campanha, e outra estrela do Senado, o senador Cristovam Buarque (DF), colocou o seu nome à disposição do PPS para disputar a Presidência.
Raymundo Costa: Caravana para blindar Lula 2018
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva liderava uma caravana pelos sertões, quando foi ultrapassado por Fernando Henrique Cardoso nas pesquisas eleitorais para a Presidência da República, em 1994. Lula esteve à frente até o fim de junho. Em abril, tinha cerca de 30% das intenções de voto, contra 12% de FHC. Nesta quinta-feira 17, o ex-presidente volta à estrada. Novamente lidera as pesquisas. Em 1994, Lula foi atropelado pelo Plano Real, ao qual se opôs. Desta vez, o trem que vem da direção oposta são os seis processos a que responde na Justiça Federal, sendo que já foi condenado em um deles, em primeira instância.
Nessa primeira fase, o "Projeto Lula pelo Brasil" deve ter a duração de 20 dias, começa pela Bahia e termina no Maranhão. Em 1994, Lula e o PT subestimaram o Plano Real e não se deram conta a tempo do enorme apoio popular a um projeto que acabou com o flagelo da superinflação e levou Fernando Henrique para o Palácio do Planalto, logo no primeiro turno. Desta vez o PT e Lula sabem muito bem com o que estão lidando. Tanto que a nova caravana de Lula tem por objetivos "reforçar a popularidade" do ex-presidente no Nordeste - região que assegurou as sucessivas reeleições do PT -, mas também, nas palavras de um dirigente, "criar uma base social para blindar a candidatura Lula".
O que ameaça a candidatura Lula são os seis processos. O ex-presidente foi condenado na ação que diz respeito ao tríplex do Guarujá. Em princípio, basta que a segunda instância da Justiça Federal confirme a decisão do juiz Sergio Moro para Lula ficar inelegível, nos termos da Lei da Ficha Limpa. Mas sempre haverá algum expediente - como o efeito suspensivo da sentença - capaz de devolver Lula à disputa. É para isso que serve a tal "base social para blindar a candidatura". No mínimo o PT terá criado um grande constrangimento: Lula não seria candidato por ser culpado da prática de crimes, mas por uma manobra dos adversários que temem a sua eleição.
Se colar, Lula entra na eleição com a rejeição recorde de 46% segundo o Datafolha. Mas rejeição é algo que uma boa campanha pode reduzir a um patamar eleitoralmente viável. O PT nega que tenha feito corpo mole para tirar o presidente Michel Temer do Palácio do Planalto por entender que um presidente e um governo impopulares o ajudarão na campanha de 2018. Não tirou porque não tinha os votos para isso. Mas Lula efetivamente avalia um ataque ao coração do governo Temer: o fracasso da equipe econômica. O discurso é que o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, simplesmente não entregou nada do que o PMDB prometeu para tirar Dilma Rousseff do governo. Prova disso é o rombo fiscal de 2017 e aquele previsto para 2018, algo em torno de R$ 20 bilhões acima do prometido.
Mas não é um Lula fiscalista que deve emergir da caravana. A ideia é dizer que o povo voltará a ter crédito para consumir. Ele tem sido aconselhado e avalia dizer que uma de suas primeiras providências no governo será derrubar a PEC do teto dos gastos, pois ela impediria qualquer programa de recuperação social, do ponto de vista petista. Somente assim seria possível investir mais em saúde e educação. O ex-presidente também pode modular o discurso sobre a regulamentação da mídia, falar a mesma coisa de maneira mais facilmente perceptível pela população. Aliás, até Rui Falcão, ex-presidente do PT e um dos principais defensores da medida, acha que Lula pode ser mais suave ao falar da regulação.
Como acontecia em 1994, agora Lula está novamente preocupado em não assustar a classe média. Tanto que condenou, em conversas reservadas, o apoio incondicional que a nova presidente do PT, a senadora Gleisi Hoffmann, prestou ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e a ocupação da mesa do Senado por senadoras petistas, num protesto contra a votação da reforma trabalhista. Não só Lula, mas boa parte do PT não endossou a nota que Gleisi publicou sobre as agressões sofridas pela jornalista Miriam Leitão por militantes do partido. Em todos os casos, mesmo sem consultas mais amplas, assinou as notas como sendo da Executiva Nacional.
Do ponto de vista do PT, olhando de hoje o adversário de Lula em 2018 será o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Não será Jair Bolsonaro contra Lula como indicam as pesquisas. Alckmin seria o candidato mais confiável para o espectro da política que vai do centro à direita. A candidatura de Ciro Gomes é bem vista, porque atrai o militante "nem, nem", aquele eleitor de centro que não quer Lula, mas também não quer Alckmin por considerá-lo muito conservador. Há dúvidas sobre se João Doria será candidato por outro partido que não o PSDB - há especulação sobre o DEM mas também o PMDB.
Em 2002, Lula se deslocou da esquerda para o centro, a fim de ganhar a classe média e a eleição, em sua quarta tentativa de chegar à Presidência da República. Segundo seus amigos, o desafio do ex-presidente agora é levar a classe média do centro para a esquerda. Uma empreitada e tanto para um candidato que perdeu o discurso da ética e também contribuiu para o desastre econômico que foi o governo de sua escolhida para a Presidência. O PT, no entanto, registra que Lula não caiu nas pesquisas de opinião, depois da sentença de Moro condenando-o a nove anos e meio de prisão.
Rebaixamento
Até o 17 de maio havia um presidente com uma ampla base de apoio e maioria no Congresso, conforme ficou demonstrado em votações como a da PEC do teto de gastos. Depois que Temer sobreviveu à delação da JBS, a impressão é que em Brasília há uma maioria parlamentar que tem um presidente. O Congresso responde cada vez menos às demandas do Planalto. A semana passada foi um exemplo, com a desistência de se votar a MP 774, que trata da reoneração. A expectativa é que até a eleição não haverá mais reformas estruturantes e muito menos aumento de impostos.
* Raymundo Costa é jornalista, escreve no Valor Econômico
Alon Feuerwerker: As dificuldades de cada um na disputa por 2018
A consciência coletiva já entregou os pontos: o presente vai deixando de ter maior importância em outras esferas para além da judicial-policial, as atenções/esperanças orientam-se para 2018. Concluiu-se: o resto do governo Temer será dedicado e com razoável probabilidade de sucesso à sobrevivência. Assuntos menos importantes ficam para depois.
Se vai ser assim mesmo só os fatos dirão, e eles costumam ser além de teimosos surpreendentes, mas leva jeito. Haverá alguma mudança nas normas da previdência social, alguma mexida nas regras eleitorais, e só. O desafio de como crescer e gerar os empregos para absorver o trabalho, especialmente o jovem, ficará para depois de janeiro de 2019.
Se é que ficará. A acomodação na mediocridade parece tática, mas há o risco/sintoma de ser estratégica. Vide a convivência pacífica com resultados econômicos medianos, infraestrutura mediana, educação mediana, política mediana, cultura mediana. Faltam ambição e energia. Há alarido, mas prevalece a indiferença, prima do cansaço e do ceticismo.
Nesse teatro modorrento, as forças políticas estão orientadas para o próprio umbigo. O governo que sobreviveu anda às voltas com o desafio de estender-se além de 31 de dezembro de 2018. A utopia é a reeleição do presidente hoje impopular. Mas qualquer solução que garanta ao grupo um bom alojamento na esplanada será vista com simpatia. Por exemplo Doria.
Já o PSDB tem um problema novo. Como deslocar Bolsonaro? O senso comum diz que ele se desidratará sozinho, mas vai que não? De todo modo, o PSDB e/ou o temerismo poderão contar, como habitual, com a opinião pública para atingir o objetivo. Enquanto isso, o tucanismo quebra a cabeça para conter dissidências. Tarefa mais complexa hoje do que foi ontem.
O PT navega como um governo Temer de sinal trocado, concentrado na luta pela sobrevivência jurídica do líder. É um jeito de manter reunido o capital político, de Lula evitar a dispersão interna e externa, e de prevenir a contestação da sua liderança. E sempre há a hipótese, muito provável, de não aparecer nenhum concorrente de peso para o PT em seu campo.
São os três grandes vetores. Os demais orbitam em torno, na esperança de, finalmente, abrir-se o espaço definitivo para a novidade. Em comum com o velho, exibem a mesma fraqueza de visão sobre o futuro, sobre o que fazer com a economia, com a política, com os serviços públicos. Buscam beneficiar-se do cansaço. Mas também são vítimas dele e da indiferença.
Indiferença alimentada pelo fato de que o doente, a economia, mesmo à deriva, flutua. Parece pouco, mas para quem se via na UTI pode não ser.
Só barulho
A eventual implantação do “distritão" não alterará substancialmente a composição das bancadas eleitas para a Câmara dos Deputados. Parece mais uma moeda de troca para evitar o bloqueio dos pequenos partidos à proibição das coligações nas eleições proporcionais. Se for mesmo (ah, o eterno otimismo) um caminho para o distrital misto, pode valer a pena.
Judicialização
Onde está o problema? O financiamento empresarial foi proibido. Se todo o dinheiro para eleição passar pelo partido, como será distribuído aos candidatos da sigla aos legislativos? Com a lista aberta ou com o distritão, o igualitarismo não faz sentido. Vai depender portanto da vontade do dono de cada legenda. Tem tudo para dar errado. Certamente acabará na Justiça.
Blindagem
Os resultados na economia são medíocres, o produto mais vistoso da política econômica é a queda na arrecadação de impostos, o investimento público bate recordes negativos, enquanto as despesas de custeio não param de crescer, apesar da contenção do gasto decorrente dos juros dos títulos do Tesouro. Mas não se veem maiores críticas. Haja blindagem.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Luiz Carlos Azedo: A revoada dos perus
O “distritão” seria um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”
A aprovação do chamado “distritão” (depois explico) e do fundo de financiamento eleitoral de R$ 3,6 bilhões pela comissão especial que discute a reforma política na Câmara pode despertar forças que estavam adormecidas desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a começar pelo movimento Vem Pra Rua, que convocou manifestação de protesto para 27 de agosto intitulada “Marcha Contra a Impunidade”, em todo o país. A reação às duas propostas é tão forte que alguns políticos já estão se descolando da reforma, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que criticou os dois projetos.
Na Câmara, a reação de grande número de deputados parece uma revoada de perus às vésperas da ceia de Natal, para voltar à analogia avícola. Todos os deputados que se sentiram ameaçados pelo “distritão” (sistema no qual são eleitos os deputados mais votados, independentemente da votação de sua legenda) estão contra a mudança. São em número suficiente para barrar a emenda constitucional que viabilizaria a medida. O “distritão” é um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”, digamos assim.
O novo sistema está sendo criado para viabilizar a reeleição dos atuais deputados e blindar os políticos enrolados na Operação Lava-Jato. Não é o caso aqui, mas seria um bom exercício checar a lista de votação das eleições passadas e verificar quem hoje manteria o mandato e quem o perderia. No caso de São Paulo, por exemplo, seriam beneficiados os 70 mais votados; de Minas, os primeiros 53; do Distrito Federal, oito. Os votos nos demais candidatos da legenda seriam desprezados, o que mudaria completamente as características da Câmara, que bem ou mal representa hoje 100% do nosso eleitorado.
Deve-se ao diplomata e jurista Assis Brasil a criação do atual sistema proporcional, idealizado em 1932, mas somente sacramentado na Constituinte de 1945. Fundador do Partido Libertador, com Raul Pilla, só apoiou a Revolução de 1930 porque Getúlio Vargas havia se comprometido a aceitar o voto secreto. “Menino, todo homem tem seu preço. O venal se deixa comprar por dinheiro. O meu preço é o Código Eleitoral. E como vale mais a pena ladrar dentro de casa do que fora dela, aceito o ministério”, disse, ao justificar sua breve passagem pelo Ministério da Agricultura no Governo Provisório, ao qual renunciou em protesto pelo empastelamento do Diário Carioca.
Na sua obra Democracia representativa: do voto e do modo de votar, Assis Brasil antevia uma “máquina de votar”, o que seria hoje a nossa urna eletrônica. No sistema proporcional, cada estado (ou distrito eleitoral) elege um determinado número de representantes de acordo com sua população. O objetivo do sistema proporcional é garantir um grau de correspondência entre votos e cadeiras recebidas pelos partidos em uma eleição. Por exemplo, um partido que tenha recebido 15% dos votos teria direito a cerca de 15% das cadeiras. Nesse sistema, o partido apresenta uma lista de candidatos para as eleições; a distribuição das cadeiras é feita de acordo com os votos dados em cada lista.
Mas há outros métodos, como o voto distrital clássico, no qual o estado seria dividido em vários distritos, e cada distrito elegeria um deputado por maioria simples, isto é, 50% dos votos mais um. Assim, o candidato mais votado é eleito. E o distrital misto, uma combinação do voto proporcional e do voto majoritário. Neste caso, os eleitores têm dois votos: um para candidatos no distrito e outro para as legendas (partidos). Os votos em legenda (sistema proporcional) são computados em todo estado ou município, conforme o quociente eleitoral (total de cadeiras divididas pelo total de votos válidos). Já os votos majoritários são destinados a candidatos do distrito, escolhidos pelos partidos políticos, vencendo o mais votado.
“Fulanização”
O sistema proporcional teve como objetivo viabilizar a existência dos partidos, num país que emergia do Estado Novo e cuja tradição de “fulanizar” a política é tão velha como o costume de comer castanhas e perus na ceia de Natal. Essa cultura vem das primeiras câmaras municipais, que surgiram a partir de 1532. Eram compostas por 3 ou 4 vereadores, denominados “homens-bons”, geralmente grandes proprietários de terras. Escravos, judeus, estrangeiros, mulheres e degredados não podiam se tornar vereadores.
Essa “fulanização” era mais do que presente na época da Constituinte de 1945, na qual um mito político deixava o poder, Vargas, e outro era libertado da prisão, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, de mãos dadas pelo “queremismo” (Constituinte com Getúlio), que fracassou. No século passado, ambos foram “reencarnações” do nosso velho sebastianismo, movimento místico secular que surgiu após a morte do rei português D. Sebastião, durante a batalha de Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Como não possuía herdeiros, o trono de Portugal ficou sob o controle do rei Filipe II, da Espanha.
Como o corpo de D. Sebastião nunca foi encontrado, o sebastianismo se traduziu na esperança da vinda de um salvador, em meio à inconformidade e ao sentimento de insatisfação com a situação política da época, mesmo que para isso acontecer fosse necessário um verdadeiro milagre, como a ressurreição do rei morto. No Brasil, o sebastianismo influenciou movimentos populares desde o Rio Grande do Sul até o Norte do país, sendo representado como alegoria nas folias de reis, principalmente no Nordeste. Não é exagero dizer que o “distritão” leva água para esse moinho.
Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos
Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira
A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.
Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.
No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.
De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.
A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.
Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.
Depois do golpe
Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.
Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.
O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.
Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.
Murillo de Aragão: PSDB diminui de importância após a denúncia de Janot
O PSDB definiu, na semana passada, que o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) continuará como presidente interino da sigla até dezembro, quando ocorrerá o encontro que escolherá o novo presidente nacional. Como consequência dessa decisão, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) seguirá afastado da presidência tucana.
A manutenção de Tasso como presidente interino agrada ao comando paulista da legenda, que enxerga no senador cearense um aliado interno importante para que os paulistas não apenas retomem o comando nacional do PSDB, mas também indiquem o candidato tucano ao Palácio do Planalto em 2018. Ou seja, o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) ou o prefeito João Doria (PSDB-SP).
Além do apoio do tucanato paulista, Tasso Jereissati tem o respaldo de parcela expressiva da bancada de deputados federais do PSDB, além dos economistas tucanos (Elena Landau, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Luiz Roberto Cunha), que na semana passada divulgaram uma carta em favor de sua continuidade como presidente interino.
Ainda que a manutenção de Tasso à frente do PSDB tenha agradado às mais diferentes alas do partido, o clima interno não é bom. Na votação da denúncia da Procuradoria Geral da República contra o presidente Michel Temer (PMDB) na Câmara, a bancada tucana rachou. Dos 47 deputados federais do PSDB, 22 votaram a favor de Temer, 21 contrários. Houve quatro ausências.
Da bancada do PSDB de São Paulo, composta por 12 deputados, 11 votaram contra Temer. O único voto favorável ao presidente veio de Bruna Furlan. Já na bancada mineira do PSDB, controlada por Aécio, dos seis deputados do PSDB, cinco votaram a favor de Temer. Eduardo Barbosa esteve ausente.
Ou seja, enquanto a bancada federal do PSDB de São Paulo, bastante influenciada por Alckmin, distancia-se de Temer, a bancada mineira, sob a influência de Aécio, segue ao lado do presidente.
Além do posicionamento em relação ao governo Michel Temer, outro tema que divide o PSDB é a sucessão presidencial de 2018. Alckmin intensifica movimentos (recentemente, reuniu-se com líderes nacionais do DEM e do PSB para discutir 2018) a fim de acelerar a escolha do candidato do PSDB ao Planalto. Já líderes como Aécio, o ex-presidente FHC, o senador José Serra e o prefeito João Doria preferem que a sigla debata 2018 mais adiante.
A tendência é que essa divisão no PSDB prevaleça até dezembro, quando o partido escolherá seu novo presidente nacional. Mesmo que a bancada da Câmara pressione pelo desembarque do governo, a tendência é que o PSDB continue na base, principalmente porque Temer fará o possível para tentar aprovar a reforma da Previdência, uma das bandeiras do PSDB. Além disso, a condução da política econômica do governo é respaldada pelos tucanos.
A unidade do PSDB foi uma das vítimas da denúncia de Rodrigo Janot. Expôs sua incapacidade de tomar uma decisão e seguir com ela. A divisão revelou indefinição e covardia institucional. E, pasmem, nem colocou o partido fora do governo, nem o manteve com o prestígio anterior na base política. Antes da denúncia, eram os tucanos que davam o software para a gestão Temer junto com o documento “A Ponte para o Futuro”, de Moreira Franco. Depois da tensão deflagrada por Rodrigo Janot, o partido encolheu.
Paradoxalmente, a crise ocorre às vésperas de ano eleitoral, quando o partido parece ter João Doria como o mais competitivo candidato do centro político nacional.
* Murillo de Aragão é cientista político
Cezar Vasquez: A Lava-Jato e o neolítico moral
A questão moral tem comandado o debate público brasileiro. A corrupção, que envolve políticos de todos os níveis e esferas de poder, paira como a causa de todos os males nacionais. Crise na saúde, falência dos Estados, desemprego, violência, quase tudo direta ou indiretamente parece estar relacionado com a decadência moral da classe política.
Desconfiança e baixa credibilidade da “classe política” não são fenômenos nacionais e muito menos novidades. Se tomarmos como referência o Índice de Confiança Social do Ibope, desde 2009 que o Congresso Nacional e os partidos políticos aparecem como as instituições com os menores índices de confiança entre as avaliadas. Há uma mudança no patamar da avaliação em 2013, anos das manifestações que, para muitos analistas políticos, são consideradas um marco de inflexão do modelo político brasileiro.
A baixa credibilidade por si só não explica a ascensão da questão moral como um dos elementos primordiais do debate público, muito embora tenha facilitado a utilização política do tema e servido como solo fértil para esse tipo de pregação. Certo mal-estar já havia se consolidado na percepção da opinião pública sobre as relações envolvendo classe política e recursos provenientes de corrupção. Poucos anos antes ocorrera a crise do mensalão, que revelou de forma clara certos meandros das relações entre financiamento de campanhas, agências de publicidade, partidos políticos e grandes empresas. Ao longo do processo de reconstrução democrática foram inúmeras as crises políticas com fortes bases de natureza moral. Impeachment do Presidente Collor, Anões do Orçamento, Crise do Painel do Senado e várias outras.
O novo e decisivo elemento no atual contexto foi a Lava-Jato. A operação começou em 2009 numa investigação sobre o crime de lavagem de recursos envolvendo o ex-deputado José Janene e doleiros. A partir de 2013, por meio de interceptações de conversas telefônicas é identificado um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo diretores da Petrobras. Em março de 2014 é deflagrada a primeira grande operação com prisões, ações de busca e apreensão e conduções coercitivas para tomada de depoimentos. É nesse momento, em função do uso de uma rede de postos de gasolina e lava jatos para movimentar recursos ilícitos por parte dos investigados que a operação é batizada com esse nome.
A discussão aqui não tem relação com os meandros técnicos da operação, com seus erros e acertos, ou com a culpa dos investigados e condenados. A ideia é discutir e avaliar discurso e estratégia política armada pelos próprios procuradores e o juiz Sérgio Moro em defesa da operação. Desta forma, estimar consequências para o futuro das instituições políticas e a vinculação de certas afirmações com determinadas visões de reformadores morais.
É impossível determinar se, no início das investigações, tinha-se noção do impacto que as mesmas teriam sobre a atividade política do país. A narrativa oficial é de que a partir de uma pista, a venda de um automóvel feita por um doleiro para um diretor da Petrobras, se puxou um fio, que trouxe um novelo. No entanto, a inspiração na Operação Mãos Limpas, da Itália, reiterada pelo próprio juiz Sérgio Moro, bem como a própria experiência pregressa do mesmo no processo do Banestado e do Mensalão, indicam que o alvo inicial das investigações não era apenas a lavagem de dinheiro por um grupo de doleiros.
Em entrevista, em 20 de dezembro de 2016, ao jornalista Wilson Tosta, do jornal O Estado de São Paulo, o cientista político Luiz Werneck Vianna atacou a cultura das corporações do ministério público e de certos setores do judiciário, classificando-os como sendo uma espécie de “Tenentismo Togado”.
Perguntado sobre a extensão da crise política após a revelação das delações premiadas da Odebrecht, ele respondeu: “Essas coisas não estão acontecendo naturalmente. Não são processos espontâneos. A essa altura, a meu ver, não há dúvida de que há uma inteligência organizando essa balbúrdia. Essa balbúrdia é provocada e manipulada com perícia”.
Mas para além da denúncia da luta dessas corporações para aumentar seus poderes e privilégios, o que realmente interessa é o sentido autoatribuído de certos personagens nesse processo. Perguntado se faltam controles, na Constituição, sobre essas instituições, Werneck Vianna oferece a seguinte resposta: “Em princípio, não. O problema é que as instituições tem que ser “vestidas” pelos personagens. E, a partir de certo momento, os personagens começaram a ter comportamentos bizarros. E que têm essa visão iluminada que os tenentes tiveram, nos anos 20. Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”.
As perguntas seguintes do jornalista levam o cientista político para o tema que nos interessa aqui: 1) “Mas o combate a corrupção não é importante?” 2) “E a atuação dessas corporações fortalece a negação da política?” E as respostas de Werneck Vianna abrem o caminho para a segunda parte desse artigo: 1) “Sem dúvida. Agora, política é política. Esse judiciário que está aí ignora a existência de Maquiavel. Ele se comporta apenas com um ímpeto virtuoso. Com um ímpeto de missão.” 2) “Sim. Elas só existem desse jeito destravado, sem freios, porque as instituições republicanas recuaram. E o presidencialismo de coalizão teve responsabilidade nisso. Porque rebaixou os partidos. Fez dos partidos balcões de negócios.”
O Neolítico moral
A referência a Maquiavel nos remete à discussão sobre a tese do Neolítico Moral, exposta no capítulo um do livro “Vícios Privados e Benefícios Públicos”. É interessante como a referência cifrada de Werneck Vianna coincide com uma passagem do texto de Eduardo Giannetti sobre a posição de Maquiavel. “Ao contrário de Lucrécio e Platão, tanto Hobbes como Maquiavel não embarcam num projeto de realçar com tintas fortes a realidade de um suposto hiato moral entre o que é e o que deve ser. Eles não se apresentam como portadores de valores puros e superiores aos do homem comum, ou como reformadores morais da sociedade”. (1)
A tese do Neolítico Moral baseia-se no conceito de que há um hiato entre o progresso material da sociedade humana, do conhecimento e da ciência e o progresso moral da humanidade. Há a ideia de que o progresso moral não acompanha o progresso material e as visões que colocam no próprio avanço da civilização a causa da degeneração moral. No texto de Giannetti o ponto de partida é a desilusão que a Primeira Guerra Mundial trouxe na crença quanto a certa infalibilidade do progresso humano. Entre a segunda metade do século XIX e o início da guerra, a civilização europeia vivia sob certa crença na inevitabilidade e infalibilidade do progresso. Em 1919, o filósofo inglês L.P.Jacks formula a ideia de que apesar de todo o avanço material conquistado “do ponto de vista moral, nós vivemos ainda na era neolítica...”
A noção de um descompasso entre o progresso da civilização e o progresso moral está presente, segundo Giannetti, desde o próprio surgimento da filosofia moral, no Iluminismo grego, no século V a.C. “O início da reflexão crítica sobre a conduta humana marcou também o início de expectativas mais elevadas sobre as capacidades e o potencial humano”. Se em Sócrates isso é um projeto de filosofia moral, em Platão ele se transforma em um projeto social, de construção de instituições capazes de reformar a conduta humana. Em Platão surge, segundo Giannetti, pela primeira vez a noção de degeneração moral em decorrência do progresso material.
Essa ideia teve em Lucrécio, expoente da filosofia epicurista, o grande defensor no mundo latino. A diferença para Platão é que ele não propunha um programa institucional, tampouco acreditava que o progresso fosse ruim em si. Mas apostava na moderação como elemento para uma mudança no modo de vida como o melhor caminho para o homem conviver com as “tentações” advindas do progresso.
Os temas da crítica moral da antiguidade são retomados pela filosofia moderna. Hobbes e Maquiavel têm uma visão pouco otimista sobre o comportamento humano. A diferença é que, como foi ressaltado acima, não se propõem a estabelecer um padrão ideal, mas passam a admitir “o comportamento irrefletido e inconstante da maioria dos cidadãos na sua relação com as leis e o poder público ” como um dado da realidade.
Mas o relativismo de Hobbes e Maquiavel não foi a atitude representativa da filosofia moderna. A postura normativa foi a tônica predominante e, a partir de meados do século XVIII, a tese do Neolítico Moral passa a ser um lugar comum. O melhor e mais influente representante desta posição seria Rousseau.
“Mais do que qualquer outro, Rousseau defendeu de maneira intransigente a ideia de que a civilização provocou o atraso moral do homem”. “Com a mesma intensidade com que denigre a situação existente Rousseau vai enaltecer o futuro sonhado e afirmar o potencial de mudança. Parte da receita é o estabelecimento de um novo (e genuínuo) “contrato social”, que, por meio de um drástico rearranjo jurídico e institucional, transforme a ordem opressiva e injusta como ela é na ordem democrática e igualitária como ela deve ser.” “Mas o principal ingrediente da mudança viria não de fora, mas de dentro do próprio homem. É a crença na “perfectibilidade humana” que vai alimentar a visão rousseauniana da possibilidade de uma completa regeneração da ordem política e social, isto é, da criação de uma sociedade justa na qual o homem – remodelado e apaziguado – deixou de ser o vaidoso e insaciável para se tornar o cidadão virtuoso e dedicado de uma democracia igualitária.”
No texto de Giannetti é apresentada uma resenha bastante completa sobre a evolução histórica das ideias. Evolui até a utilização do Neolítico Moral na discussão ambiental o seu uso por neurocientistas. A tese é contestável. Não é possível propor uma métrica de evolução histórica. E muito menos para a moral. No entanto, o descontentamento moral é positivo em si. O problema é quando a tentação à normatização descamba para o messianismo. E aqui retornamos à Lava-Jato.
Certos aspectos complexos da estratégia e do discurso
Quando analisamos as palestras e entrevistas do juiz Sérgio Moro, é possível notar que boa parte das explicações oferecidas é ancorada na posição institucional do poder judiciário. Uma profunda convicção, ou um discurso muito elaborado, retira qualquer possibilidade de atribuir intenção ou caráter político à operação Lava-Jato. É tudo dever de ofício. Ao mesmo tempo, no desenvolvimento do discurso, alguns conceitos começam a ser apresentados. Eles surgem como resultados ocasionais, descobertas das investigações. O primeiro deles é o conceito de corrupção sistêmica.
No evento “Vamos conversar sobre ética”, da Universidade Positivo, em 18 de agosto de 2016, o juiz Sérgio Moro falou por pouco mais de uma hora. Partindo do que teria sido uma impressão colhida numa confissão, em que o réu assumia com naturalidade a prática de corrupção e alegava ser isso uma praxe de mercado, parte para a conclusão de que mais do que um delito haviam se deparado com uma realidade de “corrupção sistêmica.” Na segunda parte da palestra, o juiz enaltece os aspectos positivos da operação para o país. E, além das punições, do desbaratamento das quadrilhas e da recuperação de recursos ele aponta para um benefício futuro. Historiando importantes conquistas da democracia brasileira, ele ressalta o fim da hiperinflação e a redução das desigualdades, de certa forma fazendo uma alusão indireta aos governos FHC, Plano Real e governo do PT. Em seguida, propõe que o fim da corrupção sistêmica poderia ocupar o mesmo papel na construção da democracia brasileira. Em outro momento chega a sugerir que a agenda anticorrupção era o único elemento de unidade nas grandes manifestações de massas de 2013.
Interessante também é analisar certos aspectos da estratégia de comunicação. O jovem procurador Daltan Dallagnol é considerado uma das estrelas desse processo e assim tem se comportado. Transcrevo abaixo dois trechos de artigos seus, publicados na mídia e postados no site da própria Lava-Jato do MPF.
“Além disso, a gravidade do tráfico não supera a da corrupção. Os desvios bilionários da corrupção corroem a saúde pela ausência de saneamento básico. Matam pela ausência de hospitais, aparelhos e medicamentos para atendimento. Fortalecem organizações criminosas pela educação e segurança deficientes, propiciando o aumento da violência e da marginalização. Geram um Estado paralelo, que governa para interesses privados. Para além do tráfico, a corrupção mina perigosamente a confiança da população nas instituições e no regime democrático”. (2)
“As características da corrupção, que pode ser praticada por meio de mensagens de telefone ou internet, impedem solução diversa. Não por outra razão, as custódias foram e são mantidas por três tribunais totalmente independentes em mais de trinta decisões. Solução dura e excepcional semelhante é aplicada no caso de traficantes de drogas que praticam reiteradamente o crime, ainda que o tráfico, como a corrupção, cause violência e milhões de mortes apenas indiretamente. Não há razão para distinguir, nessas circunstâncias, corrupção e tráfico”. (3)
A insistência em comparar a corrupção com o tráfico de drogas parece mais uma estratégia de comunicação política do que uma defesa jurídica. Primeiro pelo tráfico ser uma atividade ilícita fortemente controversa do ponto de vista moral. Segundo, por tentar reforçar a desigualdade entre “delinquentes pobres” e “delinquentes ricos”. Por fim, por articular a ideia de que ambas as atividades matam indiretamente, em suas consequências. Ora, o tráfico é letal na sua operação, não no consumo. Nesse caso o problema é o vício, um problema de saúde. A corrupção não é obrigatoriamente letal na operação (embora possa ocorrer ajustes de contas) e a letalidade como consequência é uma ilação tão descabida como atribuir aos privilégios dos procuradores da República a falta de remédios nas farmácias populares.
Ainda associado a esse último aspecto existe uma tentativa de responsabilizar, perante a opinião pública, a corrupção pela crise fiscal do país e dos estados. Como se a crise fiscal não tivesse relação com a própria crise econômica e fosse resultado exclusivo de um processo moral. É interessante notar que durante muitos anos houve resistência corporativa contra a reforma do Estado e da Previdência baseada num discurso semelhante. A ideia de que, se fossem fechados os ralos da corrupção, sobrariam recursos.
O problema é que o país está convivendo com duas agendas. Uma imposta pela crise econômica, de ajustes macroeconômicos e de reformas do estado e política. E outra pautada no combate à corrupção sistêmica, que está sendo imposta pelos “tenentes de toga”. Baseada no arcabouço legal, não resta dúvidas. Com ações justificadas. Especialmente pela transformação da política nacional em um grande balcão de negócios nas últimas décadas. Mas que se move sem um projeto para o país e se baseia exclusivamente numa perspectiva de reforma moral.
A suspeita de que por trás da Lava-Jato haja de fato um projeto corporativo e moral para o país pode ter consequências funestas. Talvez nem tanto pelo “empoderamento” dos paladinos da justiça da Lava-Jato, mas pelo imponderável que possa seguir. Nesse sentido, cabe uma última citação de Giannetti a título de encerramento.
“Para o bem ou para o mal, a rica experiência política e econômica do século XX, com suas guerras, ondas de fanatismo e o espantoso débâcle do comunismo soviético mostrou de forma contundente que a psicologia moral dos homens está longe de ser tão plástica ou maleável quanto os iluministas exaltados e seus seguidores fariam crer”.
“A mente humana é ainda pouco conhecida, mas seguramente ela não é uma “página em branco” da qual se pode erradicar, por qualquer método conhecido, as paixões não-racionais que os filósofos morais condenam há mais de dois mil anos. O que é certo, contudo, é que, quanto mais os moralistas e reformadores sociais bem-intencionados ignoram as realidades recalcitrantes da natureza humana, mais a natureza humana, por sua vez, os ignora.”
Não faltaram candidatos para ocupar o espaço!
* Cezar Vasquez é engenheiro.
Fernando Henrique Cardoso: Convicção e esperança
É hora de sonhar com 2018, deixar de lado o desânimo e preparar o futuro
Escrevo antes de saber o resultado da votação pela Câmara da autorização para o STF poder julgar a denúncia oferecida pelo procurador-geral contra o presidente da República. É pouco provável que a autorização seja concedida. Houve precipitação da Procuradoria, que fez a denúncia sem apurações mais consistentes. Entretanto, para o que desejo dizer, pouco importa a votação: a denúncia em si mesma e a fragmentação dos partidos no encaminhamento da matéria já indicam um clima de quase anomia, no qual algumas instituições do Estado e os partidos políticos se perderam.
Esta não é uma crise só brasileira. Em outros países onde prevalecem sistemas democrático-representativos também se observa a descrença nas instituições, por seu comportamento errático, sobretudo no caso dos partidos. Mesmo nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França – países centrais na elaboração de ideologias democráticas e na formação das instituições políticas correspondentes – se nota certa falta de prestígio de ambas. Não falta quem contraste as deficiências dos regimes democráticos com as supostas vantagens dos regimes autoritários e mesmo ditatoriais.
O contraste é falacioso, sobram exemplos de ineficiência nos regimes autoritários, sem falar na perda da liberdade, individual e pública, cujo valor não pode ser medido em termos de eficiência dos governos. Nem faltam casos para mostrar o quanto podem levar ao desastre os regimes que de autoritários passam a ditatoriais, como na Turquia atual ou, mais impressionantemente ainda, na Venezuela, onde acontece um verdadeiro horror perante os céus. Nela, a inexistência das garantias democráticas se soma ao descalabro econômico-financeiro.
Não é, contudo, o caso do Brasil. Houve, é certo, a perda de controle das finanças públicas pelo governo anterior. Mas nunca se chegou a ameaçar diretamente a democracia. Aqui o que houve foi a generalização e a sacralização da corrupção, com as ineficiências decorrentes, aprofundando a perda de confiança popular no governo e na vida política. Nesse sentido, estamos imersos num mar de pequenos e grandes problemas e tão atarantados com eles que somos incapazes de vislumbrar horizonte melhor. É isso o que mais me preocupa, a despeito da gravidade tanto dos casos de corrupção quanto dos desmandos que vêm ocorrendo.
Falta alguém dizer como De Gaulle disse quando viu o desastre da Quarta República francesa e a derrocada das guerras coloniais: que era preciso manter uma “certa ideia da França” e mudar o rumo das coisas. Aqui e agora, guardadas as proporções, é preciso que alguém – ou algum movimento – encarne uma certa ideia de Brasil e mude o rumo das coisas. Precisamos sentir dentro de cada um de nós a responsabilidade pelo destino nacional. Somos 210 milhões de pessoas, já fizemos muito como país, temos recursos, há que voltar a acreditar no nosso futuro.
Diante do desmazelo dos partidos, da descrença e dos fatos negativos (não só a corrupção, mas o desemprego, as desigualdades e a falta de crença no rumo) é preciso responder com convicções, direção segura e reconstrução dos caminhos para o futuro. Isso não significa desconhecer que existam conflitos, incluídos os de classe, nem propor que política se faça só com “os bons”. Significa que chegou a hora de buscar os mínimos denominadores comuns que nos permitam ultrapassar o impasse de mal-estar e pessimismo.
Infelizmente, os partidos, sozinhos, não darão respostas a essa busca. O quadro desastroso – quase 30 partidos atuando no Congresso, separados não por crenças, mas por interesses grupais que se chocam na divisão do bolo orçamentário e no butim do Estado – isola as pessoas e os líderes, enclausurando-os em partidos que se opõem uns aos outros sem que se veja com clareza o porquê.
Penso que o polo progressista, radicalmente democrático, popular e íntegro precisa se “fulanizar” numa candidatura que em 2018 encarne a esperança. As dicotomias em curso já não preenchem as aspirações das pessoas: elas não querem o autoritarismo estatista nem o fundamentalismo de mercado. Desejam um governo que faça a máquina burocrática funcionar, com políticas públicas que atendam às demandas das pessoas. Um governo que seja inclusivo, quer dizer, que mantenha e expanda as políticas redutoras da pobreza e da desigualdade (educação pública de maior qualidade, impostos menos regressivos, etc.); que seja fiscalmente responsável, atento às finanças públicas, e ao mesmo tempo entenda que precisamos de maior produtividade e mais investimento público e privado, pois sem crescimento da economia não haverá recuperação das finanças públicas e do bem-estar do povo.
Um governo que, sobretudo, diga em alto e bom som que decência não significa elitismo, mas condição para a aceitação dos líderes pelos que hão de sustentá-los. Brizola, referindo-se a Lula, disse que ele era a “UDN de macacão”, lembrando a pregação ética dos fundadores do PT. Infelizmente, Lula despiu o macacão e se deixou engolfar pelo que havia de mais tradicional em nossa política: o clientelismo e o corporativismo, tendo a corrupção como cimento. Não é desse tipo de liderança que precisamos para construir um grande País.
Ainda que venham a ocorrer novos episódios que ponham em causa o atual governo, e melhor seria que não houvesse, de pouco adianta substituir quem manda hoje por alguém eleito indiretamente: ao líder faltaria o sopro de legitimidade dado pelo voto popular, necessário para enfrentar os desafios contemporâneos. É tarde para chorar por impeachments perdidos ou por substituições que nada mudam. É hora de sonhar com 2018 e deixar de lado o desânimo. Preparemos o futuro juntando pessoas, lideranças e movimentos políticos num congraçamento cívico que balance a modorra dos partidos e devolva convicção e esperança à política.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi Presidente da República.
Temer passa à ofensiva
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para mobilizar o apoio dos agentes econômicos, anunciou que o governo pretende aprovar a reforma da Previdência até outubro
Livre da denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, até o fim de seu mandato, o presidente Michel Temer pretende passar à ofensiva no Congresso, com objetivo de aprovar uma extensa pauta legislativa, cujo nó górdio é a reforma da Previdência. O Palácio do Planalto conseguiu mobilizar o apoio de 263 deputados para congelar a investigação, mas precisará de pelo menos 308 votos para aprovar essa reforma, considerada crucial para restabelecer o equilíbrio das contas públicas. Para isso, acena para os dissidentes da base do governo com a promessa de perdão por terem votado a favor de seu afastamento.
Ontem, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para mobilizar o apoio dos agentes econômicos, anunciou que o governo pretende aprovar a reforma da Previdência até outubro. Meirelles minimizou a diferença de votos a ser alcançada. “São decisões diferentes. Acreditamos sim na viabilidade de aprovação”, disse. Na prática, são 45 deputados que precisam ser conquistados se não houver nenhuma defecção na base hoje existente. Mas anunciou também que o governo pretende aprovar a reforma tributária ainda este ano, o que não é fácil.
O maior aliado de Temer para aprovação das reformas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não compartilha o mesmo otimismo, embora esteja engajado plenamente nessa agenda. Maia comemorou a rejeição da denúncia, mas disse que o resultado não era bom para as reformas pelo fato de que a manifestação a favor de Temer não alcançou o quórum equivalente ao de aprovação de emendas constitucionais. De certa forma, revelou certa surpresa com o número de votos contra Temer.
O PSDB rachou na votação da denúncia contra o presidente Michel Temer: dos 47 deputados da bancada, 22 votaram a favor do presidente e 21, contrários. Quatro estavam ausentes. Esse resultado fragilizou a posição do PSDB na Esplanada, sendo que a pasta das Cidades, ocupada pelo deputado Bruno Araújo (PE), é o objeto de desejo do chamado Centrão (PP, PR, PSD e PTB), que reúne 142 deputados. Mas o grupo também não votou monoliticamente: houve 32 deputados dissidentes, sendo 14 do PSD, cuja bancada tem 38 deputados. No PMDB, somente sete dos 63 deputados votaram contra Temer, mesmo com o partido fechando questão. Temendo punição, já procuram outras legendas.
No caso dos tucanos, a tensão na legenda é grande. O presidente interino, Tasso Jereissati (CE), ontem, disse que a permanência dos ministros tucanos no governo é um problema do presidente da República e não da legenda, que não precisa de cargos para aprovar as reformas. O senador Aécio Neves (MG), licenciado da presidência da legenda por causa da Lava-Jato, foi um dos artífices da vitória de Temer. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, passou a defender publicamente o desembarque do governo. Segundo ele, a permanência do PSDB na administração federal perderá o sentido depois da reforma da Previdência.
Reforma política
Uma extensa agenda legislativa já está definida para o Congresso, mas a intenção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-EJ), é pôr em votação na próxima semana a reforma política. As principais propostas em discussão são a instituição do financiamento público de campanhas; o sistema de listas partidárias preordenadas para as eleições proporcionais; o fim das coligações; a perda de mandatos majoritários por infidelidade partidária; e cláusula de barreira. A proposta mais polêmica em discussão, porém, é a criação do chamado “distritão”, uma jabuticaba plantada pelo presidente Michel Temer quando ainda era vice da presidente Dilma Rousseff.
O “distritão” acaba com a eleição proporcional, em vigor desde as eleições de 1945, e absolutiza o voto uninominal. Serão eleitos os deputados mais votados em cada estado, independentemente da votação de seus respectivos partidos. Não é fácil a aprovação dessa proposta no plenário da Câmara, porém, porque a mudança altera profundamente as condições para a reeleição dos atuais parlamentares, acostumados com as regras atuais. Outra discussão aberta com a reforma política é a adoção do parlamentarismo. O impeachment de Dilma Rousseff e as agruras de Michel Temer, que assumiu seu lugar, para muitos parlamentares, são a demonstração de que o chamado presidencialismo de coalizão é um sistema falido, que joga o país em longas crises quando o governo perde sua base parlamentar.