pária mundial

Cristina Serra: Brasil, pária ambiental

O projeto de lei que desmonta o licenciamento ambiental no Brasil, aprovado na Câmara, é um crime contra o meio ambiente, a sociedade e a Constituição. Nosso atual sistema de licenciamento resulta de décadas de construção legal e do aprendizado com enormes erros no passado.

Exemplos na mineração ajudam a entender essa evolução. Antes da Constituição e das normas atuais, algumas empresas lançavam rejeitos em rios e lagos, como se estes fossem latas de lixo. Já com o licenciamento em vigor, tivemos duas grandes tragédias na mineração: o colapso das barragens da Samarco, em Mariana, e da Vale, em Brumadinho, com quase 300 mortos.

Estudei a fundo o licenciamento da barragem da Samarco. O que aconteceu ali foi leniência do órgão licenciador, com indícios de corrupção. No caso da Vale, houve um licenciamento atipicamente célere, em favor da conveniência da empresa, não da segurança da estrutura. O problema não foi a lei, mas a má aplicação dela pela autoridade licenciadora.

É claro que uma legislação sempre pode ser melhorada e atualizada. Mas o projeto em questão não tem esse objetivo. Muito ao contrário. Ele faz parte de um ataque sistemático ao meio ambiente, com asfixia dos órgãos de fiscalização e desidratação orçamentária. Uma das malandragens do projeto é o tal licenciamento autodeclaratório. Ou seja, o poder público deixaria de exercer seu papel regulador do impacto ambiental das atividades econômicas. É raposa no galinheiro que chama?

Na prática, o projeto todo implanta um “liberou geral” para vários setores da economia, notadamente para a agropecuária, base de apoio ao bolsonarismo. Se aprovado em definitivo, ao contrário do que dizem seus defensores, ele não vai destravar a economia. Vai prejudicar a atração de investimentos e piorar ainda mais a imagem do Brasil no exterior, onde já é visto como pária ambiental pelo descontrole no desmatamento. Ainda é tempo de barrar a boiada no Senado.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/05/brasil-paria-ambiental.shtml


Merval Pereira: As razões do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem razões que até a razão desconhece, como disse o filósofo Blaise Pascal no século XVII sobre o coração. Só assim podemos compreender a série de decisões tomadas nos últimos dias, reflexos distorcidos de outras, que percorreram todas as instâncias jurídicas nos últimos cinco anos em que a Operação Lava-Jato esteve em pleno vigor no combate à corrupção.

O STF é o exemplo mais evidente de que, no Brasil, até o passado é incerto, frase que o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan colocou em evidência. Cinco anos depois de vários processos, vários julgamentos até na terceira instância do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem o Supremo decidir, por maioria, que o foro para a Operação Lava-Jato não era Curitiba. Pior: ninguém sabe que comarca é o foro correto.

Dos onze ministros, oito votos a favor de transferir o foro se dividiram entre dois que achavam que era mesmo Curitiba, mas seguiram a maioria: o próprio relator Edson Fachin, e Luis Roberto Barroso. Outro, o ministro Alexandre de Moraes, votou por São Paulo, que deve prevalecer, e os demais pediram tempo para pensar. Três outros ministros votaram por manter o foro em Curitiba.

Como se vê, não é uma questão simples, e nem tampouco política. Denota um ponto de vista jurídico que é apoiado por cinco ministro do STF, e foi apoiado pelo STJ. Transformou-se a definição do foro em um ato político contra o ex-juiz Sérgio Moro, como se ele tivesse usurpado o juízo natural quando a questão foi discutida em diversos fóruns e, até o momento, a centralização em Curitiba dos processos da Lava-Jato por conexão era perfeitamente compatível com as normas jurídicas.

Aconteceu a mesma coisa no julgamento do mensalão. O então advogado Marcio Thomas Bastos, que já fora ministro da Justiça do governo Lula, tentou de diversas maneiras fatiar os processos, para mandar para tribunais regionais eleitorais ou varas comuns todos os que não envolvessem pessoas com prerrogativa de foro.

Por que queria fazer isso ? Porque era mais fácil para os advogados de defesa, desmembrando os casos, retirar deles a carga de uma operação organizada, conectada entre os diversos crimes. Assim como começou a ser feito pela Segunda Turma em relação à Lava-Jato, enviando processos para os tribunais eleitorais regionais e para instâncias inferiores da Justiça.

A segunda parte dessa história será julgada na próxima quinta-feira, a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. Mais uma vez, as razões que a própria razão desconhece surgirão para serem debatidas. No início da sessão, vai ser levantada uma questão de ordem para saber se o plenário pode ou não analisar se a Segunda Turma poderia ter julgado o caso mesmo depois que o ministro Edson Fachin transferiu o foro para o Distrito Federal, decretando a perda de objeto do habeas-corpus.

Portanto, o plenário, embora não seja instância revisora das decisões das Turmas, como ressaltou a ministra Carmem Lucia, pode decidir que o julgamento da suspeição de Moro não deveria ter ocorrido. O que prevalece, a incompetência ou a suspeição? O artigo 96 do Código de Processo Penal diz que a suspeição é a primeira questão que tem que ser analisada nos processos, dentre as exceções: de competência, de impedimento, de suspeição.

Porém, segundo Douglas Fischer, renomado processualista penal, esse artigo só se aplica às exceções que são apresentadas na primeira instância. Quando essas exceções são arguidas em um habeas-corpus, ou em vários, impetrados em qualquer tribunal, inclusive no Supremo, não há ordem de precedência, pelo contrário.

Entre as duas, o que prevalece é a incompetência, porque você pode ter na mesma Vara, na mesma comarca, ou na mesma sessão judiciária, dois juízes, sendo que um é suspeito e o outro, não, ambos competentes. Mas não pode ter um juiz que é competente, e outro não, na mesma sessão judiciária. A competência prejudica a suspeição.

Vai ser outra das muitas discussões jurídicas a que assistiremos perplexos, no dizer do ministro Marco Aurelio Mello


Paulo Fábio Dantas Neto: Pautas das oposições - A busca de um “novo normal” também na politica

Como me propus a fazer, ao final da coluna da semana passada, tratarei, hoje, do que chamei de um nó político que precisa ser desatado para que as diferentes oposições constituídas convertam o amplo consenso cívico atual de rejeição ao governo Bolsonaro numa convergência de natureza política, conversível em aliança eleitoral, em 2022.  

Parto do entendimento de que, por enquanto, não há roteiro positivo seguro (no sentido de um elenco de proposições concretas sobre um imediato amanhã), em nenhum dos dois campos que se apresentam, hoje, como adversários do bolsonarismo, a saber, a esquerda e a nebulosa política que se faz chamar de centro e que inclui grande parte da centro direita e parte da centro-esquerda. Aviso que essa terminologia de geografia ideológica não deve ser tomada ao pé da letra. Usada aqui sem rigor e sem poder explicativo de nada, é mais um recurso para não alongar o texto. O que importa é constatar a relativa ausência (ou incipiência) de alternativa positiva clara à barbaridade que aí está. O não cada vez mais urgente e uníssono ainda não está acompanhado de algum sim que a sociedade entenda. É na permanência dessa situação politicamente tosca que populismos diversos apostam.

Pauta da oposição liberal-democrática

déficit de discurso e ação do chamado centro (agora “polo”) liberal-democrático está no terreno da oposição plebiscitária a Bolsonaro. Ação e discurso nesse terreno até aqui são precários, porque uma parte desse centro, por mais que proclame o contrário, está presa a 2018, por um antipetismo que a impede de se jogar por inteiro na oposição, sem temor de se ver comprometida, em eventual segundo turno, a cooperar com o PT. O enraizamento extremo do tema da corrupção em parte do eleitorado que centristas querem conquistar é uma constante trava que os inibe tanto para o diálogo com a esquerda eleitoralmente mais relevante (diálogo necessário, dada a regra de pleito em dois turnos) quanto para uma relação mais fluente com o campo do pragmatismo de varejo, que atende pela alcunha de Centrão. Essa segunda relação é também crucial por outro motivo: procurar dividir o campo governista e, eventualmente, barrar o seu acesso ao segundo turno.

O que torna crível um centro político, convertendo-o em alternativa de poder, não é a propensão a se distinguir retoricamente da direita e da esquerda, mas a capacidade de se entender, simultaneamente, com ambas, criando marcos governativos na democracia. Trata-se de exigência de política prática.  Se ignorada, desaparece a razão de ser do centro.

Por outro lado, se nem o Centrão nem Lula representa políticos autodeclarados de centro liberal-democrático, centristas precisam, como é óbvio, fazer, de sua unidade prática, atitude estratégica. Essa é a primeira de três condições (outras são um programa e uma candidatura que o encarne e aglutine) para terem voz e fala próprias, como oposição, na arena da disputa presidencial. Oposição que não precisa se dizer de esquerda, centro ou direita. Precisa ser democrática no programa, nos valores e na atitude política positiva.

A disposição declarada em manifesto recentemente assinado por seis possíveis candidatos que se situam nesse campo é um inegável avanço nessa direção. Está longe, contudo, de expressar uma agregação satisfatória daquelas três condições. Sem elas, resta a pregação apostolar contra presumíveis “extremos”. Esse é um mantra incompatível com o discurso de ampla frente democrática contra um extremismo concreto, como é o que Bolsonaro e seu governo expressam. Em suma, ainda é precária a identidade oposicionista do centro.  Inútil querer que o Congresso preencha a lacuna, através de políticos republicanos e lúcidos, mas institucionalmente condicionados, como o Presidente do Senado. Seu papel é outro (conter, não enfrentar o presidente), tão relevante para a preservação da República, quanto o de todas as oposições democráticas de disputarem o eleitorado com Bolsonaro.

Pauta da oposição de esquerda

No campo da esquerda a pauta não é menos desafiante. A reabilitação de Lula para uma eventual candidatura mexeu com todo o cenário político, mas de modo especial com o campo em que ele é identificado e ao qual ele vinha se restringindo cada vez mais, desde que seus problemas com a Justiça o confinaram à prisão e depois a um relativo ostracismo. Acuado, adotara atitude defensiva e reativa, que era compreensível, do ponto de vista pessoal, mas também imobilizadora do seu partido, num contexto em que o mesmo necessitava tomar iniciativas positivas de diálogo com a sociedade e as demais forças políticas, para sair do isolamento crescente em que vivia desde o impeachment de 2016.

Embora o comando político de Lula sobre o PT jamais tenha sido desafiado de modo relevante, era visível a situação de desconforto de quadros partidários mais afeitos a uma política de frente, seja por atitude política pessoal, seja por posição institucional que ocupam, como nos casos dos governadores do Piauí, Ceará e Bahia. Desconforto que aumentava quando os aliados na esquerda com os quais o PT contou na maioria de suas empreitadas eleitorais começaram, não apenas a abrir alternativas de centro-esquerda ao viés hegemônico do petismo – processo que transcorria desde 2010, com a candidatura de Marina Silva, com as de Eduardo Campos/Marina em 2014 e Ciro Gomes em 2018 –, como a se entender, agora, para oferecerem contraponto eleitoral ao PT no campo da esquerda, atraindo para isso até o PCdoB, o mais próximo dos aliados e assíduo apoiador de Lula.

Outro relevante fator de alteração no status quo da esquerda brasileira foi a inserção de novo tipo na cena política, obtida por Guilherme Boulos, em sua recente candidatura à prefeitura de São Paulo. Chamou a atenção o contraste entre a postura relativamente moderada que adotou dessa vez e a atitude disruptiva que, para além de seu ativismo de movimento social (mas de modo sintonizado com ele), marcara suas primeiras aparições na cena política, inclusive no contexto da resistência ao processo de impeachment e à prisão de Lula. Essa atitude inicial, típica de “esquerda negativa” orientada ao confronto, rendeu-lhe, naquelas circunstâncias, palavras de estímulo e recomendação pública, da parte do líder petista. Talvez a hábil e experimentada raposa política enxergasse no jovem leão que rugia forte um aliado útil para elevar a temperatura do ambiente político e o moral da militância, num momento adverso.  Mas se Lula contava manobrar com Boulos e, depois de o ter atiçado, retirar-lhe a escada com algum movimento moderado posterior (como toda a vida fez com militantes mais radicais do PT), certamente teve uma surpresa. O suposto manobrado revelou-se, na campanha paulistana, um perito manobrista, capaz de numa só campanha emular três Lulas pretéritos – o semeador de sonhos de 89, o adversário implacável do PSDB de 94 e 98 e o conciliador de 2002 – com o cuidado de se afastar do Lula ex-governante petista, que virou alvo de acusações de corrupção. Mas ainda assim avançou com apetite sobre a parte sobrevivente do espólio eleitoral também daquele que parecia ser o último Lula e que – sabemos agora – era o penúltimo.

O fator Boulos tem pouco ou quase nada a ver com um hipotético deslocamento do PT da posição de partido mais relevante da esquerda. O PSOL não tem a menor condição de ser o ator beneficiário desse suposto deslocamento que as urnas de 2020 se encarregaram de desmentir. Delas o PT saiu figurando entre os relativamente vencidos, mas exibindo a resiliência própria de uma instituição partidária genuinamente enraizada na experiência democrática que a sociedade brasileira vive nas últimas quatro décadas. Experiência rica em paradoxos, dos quais o mais notável é ter se aprofundado um processo de inclusão de novos grupos sociais na vida política (e aí o PT foi ator proeminente de democratização) ao mesmo tempo em que se dá, a partir da segunda metade da penúltima dessas décadas, uma séria avaria de um longevo hardware republicano.  Democratizado sob os auspícios da Carta de 1988, o hardware serviu de incubadora daquela democratização contínua. Na inflexão institucionalmente regressiva, o PT foi ator proeminente também, inserindo, num hardware virtuoso, um software espaçoso, que se fez pesado, pelo baixo teor de república.

Boulos demonstra estar atento a isso e aí está a potencialidade de sua liderança pessoal para uma eventual reanimação da esquerda, projetada para além do curto prazo. De um lado, a visita ao centro, por uma aliança entre o PDT, o PSB e o PCdoB; de outro, um difícil processo de aproximação e entendimento entre um Boulos que emerge e áreas do PT dispostas a não deixar o partido se afogar no abraço de uma personalidade política que a   cada instante parecia submergir mais fundo nas águas turvas de um populismo ressentido. Quando Lula reassumiu, como uma fênix - feliz, apaziguado e investido de uma relativa moderação e malícia que lembram seus melhores momentos - o lugar de protagonista, era essa a pauta interna de uma esquerda que, desde 2019, se mantinha como coadjuvante quase ausente de embates públicos decisivos de Bolsonaro com instituições republicanas, Se antes já se mostrava improvável e não muito racional (se falarmos de uma razão que dialoga com a realidade) convencer o maior partido da esquerda a abrir mão de apresentar um candidato, depois da fênix e de reflexos do retorno de Lula à cena, em sondagens da recepção que ele teve no eleitorado, isso se torna virtualmente impossível. 

O retorno de Lula coloca a oposição de esquerda em clara vantagem sobre a oposição de centro no que se refere ao quesito candidatura que encarne o campo na arena plebiscitária de enfrentamento a Bolsonaro. E também sinaliza um processo mais simples que o do centro em relação ao quesito construção de uma disposição à unidade. Isso porque, enquanto o centro precisa cumprir um diálogo horizontal entre suas partes, na esquerda os movimentos tendem agora a ser animados pela força gravitacional da sensação difusa de que Lula pode não só salvá-la, eleitoralmente, como salvar o país de Bolsonaro.  

A pauta da esquerda anterior à fênix não desapareceu. Ela foi suspensa pela contingência. Adiadas as decisões de médio e longo prazos, os problemas que as requeriam tendem a se avolumar, ainda que a força de gravidade mantenha o campo razoavelmente unido em 2022. É curioso, chega mesmo a parecer armadilha astuciosa da nossa história política, o partido que sempre virou as costas às urgências das frentes políticas em prol da sua construção particular adiar decisões cruciais para seu destino, pela necessidade de Lula cumprir um papel nacional. Só nesse papel Lula pode ser pensado hoje como protagonista. Num cenário sem Bolsonaro, ele passa a ser mais uma entre diversas opções e lhe será cobrada reflexão pública sobre o desfecho da experiência governamental petista. Mesmo seu virtual retorno à presidência da República não eliminaria anticorpos produzidos, nos últimos anos, na sociedade e na política, contra o modo petista de governar.     

E se Bolsonaro derreter?

Falei muito mais sobre a esquerda porque o problema do centro já tem sido mais discutido, não só por mim. Mas tudo o que até aqui argumentei, sobre o centro e sobre a esquerda, parte da premissa de que o arranjo bolsonarista que está no governo, embora perca força de maneira gradual e sustentada, representa um perigo real para a república, pelas chances que ainda persistem de que o presidente possa se reeleger. Chances que não podem ainda ser bem mensuradas, diante não apenas da volatilidade de variáveis propriamente políticas, como da insegurança da situação social e econômica.

A experiência internacional das últimas décadas mostra que quando autocratas têm mandatos renovados, a autocracia que buscam deixa de ser um perigo e se torna realidade fatal. Por isso não se pode relaxar ao constatar que as instituições brasileiras resistem a ataques com sucesso efetivo e que uma opinião pública sólida se formou contra a aventura autocrática, já começando a reposicionar parte do eleitorado que a chancelou em 2018.

Partindo da premissa do perigo, o eixo que orienta a conduta de democratas de todos os matizes é uma frente pela defesa da Constituição, bem como das instituições e práticas democráticas que vivem à sua sombra, pelo combate à pandemia e pelo socorro aos vulneráveis. Essa frente pode ter tradução eleitoral no segundo turno de 2022, precisando, para tanto, assegurar a realização das eleições e uma disputa em primeiro turno dentro de limites civilizados que permitam a unidade posterior. O adversário comum identificado é Bolsonaro, incluído, nessa identificação, como elemento inseparável, o seu governo.

Uma análise realista precisa, contudo, considerar outra possibilidade. A de que o presidente se torne incapaz de obter a reeleição. Sem fazer previsões ou especulações sobre desdobramentos políticos e institucionais de uma constatação dessa ocorrer antes mesmo da campanha eleitoral começar, é preciso admitir que um derretimento irreversível da popularidade do presidente que o retirasse antecipadamente do jogo teria impacto imenso sobre a situação política e provocaria reposicionamento de forças em relação a 2022 mais abrangente que o atualmente em curso com o retorno de Lula ao jogo.

As áreas de oposição que se ativerem exclusivamente a uma contestação da pessoa do presidente tendem a perder seu discurso se ele sair de cena, de algum modo, ou mesmo se ele se mantiver na cena, mas sem força eleitoral para chegar ao segundo turno. Podem se tornar política e eleitoralmente irrelevantes, como oposição ou, então, aderir a uma solução governista pós-Bolsonaro, a qual, no limite, pode ser bolsonarismo sem Bolsonaro.

Por esse motivo cabe examinar com atenção o estágio das oposições diante daquelas três exigências do momento, de que aqui se falou. A esquerda, por ora, tem um virtual candidato, que se revela o mais competitivo, enquanto o centro liberal-democrático, de tantos nomes, ainda não tem nenhum. A agregação na esquerda também se revela hoje menos complexa, pela já comentada força de gravidade do fator Lula. Mas há uma das condições que ambos os campos de oposição ainda estão longe de cumprir: resolver o que dirão à sociedade sobre o dia seguinte a Bolsonaro, caso amanheça com algum desses dois campos de oposição no comando do país. Que promessas suas mensagens podem fazer?

Qual será o “novo normal” da política num pós-bolsonaro?

Um amplo consenso institucional, em defesa da constituição e da democracia já é, hoje, algo que saiu do terreno da promessa para o da realidade. Firmou-se ampla resistência nacional aos ataques à Carta de 88 e aos poderes da república, resultado compartilhado por instituições do estado, governos subnacionais, partidos, lideranças e representações parlamentares de vários matizes do campo democrático e republicano, da direita à esquerda. E igualmente por amplos setores da sociedade civil, com especial destaque ao papel da imprensa. Do mesmo modo está em curso um pacto cívico de enfrentamento da pandemia para redução de danos sanitários e sociais. Nem um nem outro chega perto da unanimidade porque a divisão política e o esgarçamento do tecido social são fatos. Mas se alcançou um patamar de convergência que permite dizer que esses dois consensos transcendem a oposição. Alcançam até alguns inquilinos da esplanada dos ministérios.

Mas é das oposições que aqui se trata. A sociedade e a parte do eleitorado que já pensa em 2022mesmo na pandemia (não conheço mensuração do percentual que está nesse caso)precisa ouvir, de seus partidos e lideranças responsáveis, uma mensagem mais explícita e menos genérica sobre o que pensam acerca das bases de construção da sua decantada unidade e sobre o grau de civilização da política que se pode esperar dessa pactuação. 

Todos os que estão convencidos do desastre econômico, social, político e cultural causado ao país pelo governo Bolsonaro compreendem que se trata, mais do que uma obra de um indivíduo, do desastre de um governo. Sendo assim, a saída melhor e mais desejável é pelas urnas, pelo fato de delas sair um novo governo.  A vitória eleitoral sobre o presidente subversivo pode ser previamente facilitada pelos efeitos benévolos dos consensos cívicos.

Mas além de derrotar o protagonista do mal, é preciso fazer cessar automatismos malévolos que contaminaram espaços da República. Para isso a unidade implica em fazer um chamado a que se coloque entre parênteses, neste momento, os juízos de retrovisor acerca das responsabilidades políticas pelo desfecho eleitoral que ensejou o desastre. Admitir que um inventário dessas responsabilidades pode envolver tanto quem se aliou, ou de algum modo apoiou, em 2018, a chapa vencedora, quanto quem, opondo-se a ela, imaginou vencê-la promovendo um acerto de contas, em revide ao desfecho da crise de 2015/2016. A comum avaliação sobre o desgoverno em curso no país e sobre a profundidade das sequelas que isso já produz no seu tecido social e político é suficiente para que o foco se concentre no presente e aponte ao menos a um amanhã imediato que supere polarizações extremadas e o clima de confrontação política.

A tradução eleitoral dessa disposição não precisa ser candidatura única de todas as oposições. Precisa ser articulação e consolidação de candidaturas agregadoras de seus respectivos campos, que sinalizem agregações parciais, no primeiro turno das eleições; disposição comum dessas candidaturas oposicionistas de explicitarem suas diferenças e divergências, para qualificarem o debate democrático sem prejuízo de entendimento entre elas no segundo turno; concretização desse entendimento numa agregação mais ampla para enfrentar a candidatura governista no segundo turno, ou na ausência de tal adversário, para travar uma disputa republicana entre candidaturas diversas do campo democrático.  A reciprocidade é condição importante para haver chance das ações oposicionistas de ambos os campos darem vida a um “novo normal” também na política.

Essa é a premissa política para haver dia seguinte. A partir dela pode-se pensar em programas eleitorais que dirão o que ele pode ser, ou, ao menos, o que se quer que ele seja.

* Cientista político e professor da UFBa


Luiz Sérgio Henriques: Crônica de uma nação descentrada

Rompe-se o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo

No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.

Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.

Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.

“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.

Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.

Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.

Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.

De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.

O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos. Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil