Pablo Ortellado

Pablo Ortellado: Poder impotente

Bolsonaro se apoia em discurso populista de que instituições não o deixam governar

Quem pare para escutar o discurso bolsonarista ouvirá que o ímpeto renovador do presidente está sendo bloqueado pelas instituições e que o voto popular não está sendo respeitado, porque o STF derruba as ações, o Congresso não aprova as medidas provisórias e a imprensa persegue o presidente.

Seria necessário fazer valer a soberania popular, que precisaria se impor sobre as viciadas instituições de representação, ainda que por meio de uma intervenção das Forças Armadas atuando como poder moderador. Para os bolsonaristas não se trataria de ditadura, mas de uma restauração da democracia. O nome técnico deste tipo de discurso é populismo.

Populismo é um termo utilizado para descrever os movimentos políticos que empregam um discurso antielites e buscam mobilizar o povo em conexão direta com um líder forte e carismático contra as instituições de representação.

O populismo no poder, portanto, seria paradoxal, porque ao assumir o Executivo o líder se tornaria o poder constituído contra o qual se opunha.

Para não se descaracterizar enquanto projeto de mobilização e de antagonismo permanente, o populismo no poder adota um discurso no qual se coloca como poder impotente, comprimido e esmagado por instituições corrompidas e envelhecidas que precisam ser derrubadas ou renovadas. O projeto populista não tem fim, porque essas elites escondidas e entranhadas funcionam como um fantasma sempre presente, que impediria o líder de governar.

Foi assim com a Venezuela. Era preciso derrubar a imprensa, então se caçaram as concessões de radiodifusão, se cortou a importação de papel e se construiu um sistema de comunicação oficial. Era preciso limitar o Congresso, então foram redesenhados os distritos eleitorais e se esvaziou o Poder Legislativo, criando uma dualidade com a Assembleia Constituinte; era preciso limitar a Suprema Corte, então se alterou a sua composição.

Quando tudo parecia estar sob controle, se apontaram o poder dos empresários e a ação de forças estrangeiras. A resposta antidemocrática da oposição, que tentou um golpe em 2002, e dos Estados Unidos, que implementaram um embargo em 2019, apenas respaldou o discurso do poder impotente, que precisa perseguir permanentemente esse outro poder oculto, entranhado.

O projeto político que temos no Brasil é desse tipo, guardadas as diferenças ideológicas. Bolsonaro quer não apenas medidas pontuais contra a imprensa, o Congresso e o STF. Estamos enredados em um processo permanente que, se não for interrompido agora, vai nos tragar em uma espiral de destruição.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Menor e mais radical

Enquanto bolsonarismo prepara ruptura, instituições respondem com notas de repúdio

Não importa para qual pesquisa olhemos, Datafolha, XP ou Atlas Político, o apoio popular ao presidente Bolsonaro está diminuindo. Desde que a crise do coronavírus despontou, em março, o apoio ao presidente decai, ainda que lentamente, enquanto a oposição a ele aumenta. No mesmo período, porém, o bolsonarismo vai ficando mais extremado, com desafios abertos à ordem constitucional —ou seja, a um só tempo está ficando mais isolado e mais radical.

No infame vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, chama a atenção o motivo que Bolsonaro dá para a usual conclamação à população se armar: não é mais para que os homens de bem se defendam dos bandidos, mas para que se defendam dos candidatos a ditadores, prefeitos e governadores que estariam trancando os cidadãos em suas residências. No dia seguinte à reunião, Sergio Moro assinou portaria efetivamente aumentando a quantidade de munição que quem tem porte ou posse de armas pode comprar.

Os protestos anti-instituições pedindo o fechamento do Congresso e do STF agora se tornaram regulares aos domingos, com a participação cativa do presidente e de seus ministros. Grupos paramilitares ou que defendem a ação das Forças Armadas começam a aparecer em todas as partes: são os paraquedistas com Bolsonaro que vieram à manifestação do dia 17 de maio, o acampamento dos 300 de Sara Winter, os tomadores de cloroquina do acampamento “Fora Doria” na Alesp ou os formados na turma de 1971 da Academia Militar das Agulhas Negras que anunciam uma guerra civil.

Nos canais bolsonaristas no YouTube e nos grupos de WhatsApp, tudo o que se vê são discursos do tipo “o povo no poder por intermédio das Forças Armadas”. Segundo esse discurso, uma ordem genuinamente democrática consagraria uma precedência da demanda direta do povo sobre as instituições de representação. Esse povo, para que não reste dúvida, são os bolsonaristas que fazem acampamentos, carreatas e descumprem o distanciamento social —embora minoritários, se veem como uma vanguarda ou como uma essência da vontade popular.

Nos desdobramentos de junho de 2013, a Lei de Segurança Nacional foi mobilizada para perseguir e prender “perigosos” adolescentes que quebravam vidros de bancos. Agora que grupos políticos e paramilitares se organizam em plena luz do dia para derrubar as instituições, com apoio do Poder Executivo, nossos democratas respondem com inócuas notas de repúdio. O braço do Estado é forte e bruto contra os fracos, mas débil e incapaz contra as verdadeiras ameaças à ordem democrática.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Chegou a hora de regular as mídias sociais

Conter desinformação exige enfrentar os paradoxos da colisão de direitos e os riscos da regulação estatal

À medida que o problema da desinformação nas mídias sociais se agrava, em meio à pandemia, propostas legislativas apressadas e mal formuladas têm ganhado impulso —inclusive sendo aprovadas em assembleias estaduais.

Por isso, é um alento ver o projeto de lei de regulação das plataformas de mídia social dos deputados Felipe Rigoni e Tabata Amaral. Apesar de imperfeições pontuais, o projeto tem uma abordagem adequada, ampliando a transparência e aperfeiçoando medidas já adotadas.

Assim que foi apresentado, o projeto despertou um apaixonado debate entre plataformas, ativistas dos direitos humanos e empresas de comunicação. Um dos pontos centrais do debate são possíveis ameaças à liberdade de expressão.

Embora as mídias sociais ofereçam um serviço privado, elas se tornaram o meio padrão de comunicação da sociedade, de maneira que é perfeitamente razoável entender que limitar a expressão nesse serviço efetivamente limita a liberdade de expressão.

Mas a liberdade de expressão não é o único direito humano em questão na regulação das plataformas. Outros direitos, como o direito à não discriminação e o direito à vida, têm sido fortemente ameaçados, caracterizando uma colisão de direitos que precisam ser ponderados.

Hoje, as plataformas têm adotado, cada uma à sua maneira, um conjunto de medidas contra a desinformação: reduzem o alcance do conteúdo desinformativo, rotulam quando uma notícia é considerada falsa e, no limite, apagam o conteúdo.

Se quisermos que todas elas sigam um padrão razoável, uniforme, que seja estabelecido pelo poder público e que possa ser supervisionado, precisamos de uma boa lei.

Se vamos regular conteúdo desinformativo, precisamos estabelecer quem verifica o conteúdo, para evitar que agentes incapazes, ou pior, que agentes maliciosos, se coloquem como agência de verificação. E precisamos criar um arsenal e uma gradação de ações, com rotulação, sistema de apelação, apresentação da correção para quem viu o conteúdo desinformativo, impedimento da promoção do conteúdo, redução do alcance e, como último e extremo recurso, a remoção do conteúdo.

Podemos nos deixar paralisar pelos desafios da colisão de direitos ou pelos riscos da regulação estatal. Mas a inação do Legislativo é o império da discricionariedade do poder privado e a certeza de que, muitas vezes, o interesse econômico vai se sobrepor ao interesse público.

Temos uma lei em discussão que é razoável e que encontrou seu momento. Melhor aperfeiçoá-la e aprová-la antes que coisa pior apareça.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Paulo Guedes é a expressão econômica do governo Bolsonaro

Política de Guedes não é contrapeso racional ao radicalismo de Bolsonaro, mas sua própria expressão econômica

Existe uma compreensão difundida de que Paulo Guedes seria uma espécie de contrapeso racional e tecnocrático ao radicalismo irresponsável de Bolsonaro. Mas, se olharmos com atenção, veremos que Guedes não é um contrapeso, nem mesmo um adendo, mas a própria expressão econômica do desatino.

Muitos acreditam que enquanto na política Bolsonaro propagava desinformação sobre o coronavírus, na economia Paulo Guedes desenhava respostas sensatas de política econômica —era o tecnocrata cauteloso e prudente que ia às reuniões de máscara e que contrastava com o governo, que promovia aglomerações e combatia o distanciamento social.

Mas as declarações e o conteúdo das políticas de Guedes parecem o oposto disso. Suas políticas são não só compatíveis como a consequência lógica da retórica despreocupada com a proteção da vida.

Desde o começo da crise, Guedes defende a ideia de que a queda rápida no desempenho econômico será compensada por uma retomada acelerada, em formato de V. "Vamos surpreender o mundo", disse repetidas vezes.

O otimismo com a possibilidade de retomada rápida não é compatível com nenhum dos cenários apontados pelos epidemiologistas que preveem a necessidade de períodos de quarentena intercalados com períodos de relaxamento controlado --pelo menos até encontrarmos um tratamento efetivo ou uma vacina.

O que o otimismo de Guedes antes sugere é a crença de que a crise é uma janela de oportunidade, versão sofisticada da conspiração do "vírus chinês". Ela pressupõe que os riscos e os danos do coronavírus estejam sendo exagerados pelas autoridades médicas e sanitárias e que quem não se deixar levar pelo alarmismo pode se beneficiar das vantagens de retomar a atividade econômica mais cedo.

Esse entendimento é consistente com a profunda insensibilidade social das medidas de proteção ao trabalho e da limitação dos fundos para apoiar os estados e as empresas. A taxa de reposição dos salários que sofrerem redução das jornadas ou suspensão dos contratos --isto é, o quanto o governo repõe do que as empresas cortam-- está muito abaixo da média da OCDE, grupo ao qual o governo Bolsonaro quer se juntar. O auxílio aos informais oferecido por Guedes era de ridículos R$ 200 por família, e só foi ampliado para até R$ 1.200 depois que Maia tomou o problema para si.

Por isso, o atraso no desembolso do auxílio às empresas e aos trabalhadores muitas vezes não parece apenas incompetência, mas uma forma dissimulada de forçar a abertura precoce da economia e atropelar o distanciamento social.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Escalada acelerada

Enquanto Bolsonaro aspira ruptura institucional, establishment e oposição tentam criar condições para o impeachment

O jogo parece travado. Bolsonaro gostaria de atropelar as instituições, mas não tem força para fazê-lo; o establishment e a oposição gostariam de impedir o presidente, mas não têm apoio popular nem voto no Congresso.

Enquanto nenhuma ação definitiva é tomada, as tensões vão escalando.

Bolsonaro parece cercado. As investigações sobre as rachadinhas no Ministério Público do Rio, as investigações sobre a máquina de propaganda do gabinete do ódio no Supremo e o depoimento de Moro a pedido da PGR podem vir à tona a qualquer momento. Em todas essas frentes podem emergir evidências que façam Bolsonaro perder apoio e subsidiem um pedido de impeachment mais robusto.

Para reagir ao cerco, Bolsonaro está fazendo três movimentos simultâneos. O primeiro é tentar controlar a Polícia Federal, primeiro com a indicação de Alexandre Ramagem e, agora, com a indicação de Rolando de Souza. Com tanto escrutínio e com tanta oposição na PF, pode ser que o presidente não consiga exercer bem esse controle.

O segundo movimento de Bolsonaro é comprar apoio no Congresso para impedir um processo de impeachment. Para reduzir a insatisfação na sua base de apoio, Bolsonaro está oferecendo apenas cargos do segundo escalão, que são menos visíveis.

A aliança com o centrão tem tudo para durar pouco. Esse é o mesmo centrão que dava sustentação ao governo Dilma e que, ao primeiro sinal de fraqueza, saltou para o barco do impeachment.

Além de aliado naturalmente instável, o partido do fisiologismo tem motivos para não confiar em Bolsonaro. O presidente não apenas descartou Sergio Moro, que parecia pilar do governo, como descartou sem pudor aliados outrora fundamentais, como Magno Malta, Gustavo Bebianno, Joice Hasselmann e o general Santos Cruz. Regina Duarte e mesmo Paulo Guedes podem estar a um passo de sair.

O terceiro e último movimento é preparar uma ruptura institucional tentando fazer crescer as carreatas antigovernadores e aliciando lunáticos para o acampamento paramilitar, "dos 300", que se estabeleceu em frente ao Congresso.

Um dos motivos que fazem a situação ainda mais confusa é o apagão de informações. Com o isolamento social, os institutos de pesquisa que faziam entrevistas presenciais, consideradas mais sólidas, migraram para as entrevistas telefônicas, utilizadas pelos institutos menores. Os dados dos diferentes institutos divergem um bocado entre si, e não sabemos dizer com certeza se com a crise do coronavírus Bolsonaro perdeu, manteve ou ampliou o apoio ao seu governo.

Pablo Ortellado é professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Uma política para o rastreamento digital

Tecnologias que monitoram a cadeia de contaminação do coronavírus precisam respeitar a privacidade

Para planejarmos a saída do isolamento, provavelmente precisaremos adotar políticas de rastreamento digital, seja para acompanhar a dinâmica de movimentação das pessoas, de maneira agregada e anonimizada, seja para acompanhar a movimentação individual.

Esse monitoramento agregado e supostamente anonimizado já está sendo feito. Ele é a base dos relatórios com índices de isolamento social produzidos por empresas como a Google ou pelos governos a partir de dados das empresas telefônicas. Se realizado de maneira agregada, anonimizada e incluindo ruídos para impedir que se identifiquem indivíduos, pode conciliar proteção à privacidade e capacidade de retratar com precisão a adesão ao isolamento social.

Mas começam a emergir tecnologias para monitorar individualmente a infecção e controlar a cadeia de transmissão. Essas tecnologias apresentam riscos muito maiores à privacidade e são particularmente preocupantes quando adotadas por governos com vocação autoritária, como é o caso do governo brasileiro.

Governos europeus começaram a discutir a adoção de políticas de rastreamento individual que sejam compatíveis com um alto nível de proteção à privacidade.

A abordagem mais promissora consiste em adotar um protocolo que utiliza o bluetooth dos celulares para registrar contatos próximos entre usuários. Sempre que celulares se aproximam, o software registra a distância e o tempo de contato. Caso o usuário descubra que foi infectado pelo coronavírus, ele informa um software que então aciona um alerta para todos os contatos prolongados registrados nos últimos dias para que façam um teste e guardem quarentena. Nem mesmo o usuário infectado sabe para quem o alerta foi disparado.

A virtude dessa abordagem --em oposição a outras centralizadas-- é que o registro dos contatos é anonimizado, armazenado em cada aparelho (e não em um servidor central) e governos e empresas não têm acesso a esses dados individuais sensíveis. Embora desenhado para uso voluntário, se tiver ampla adoção pode ajudar a controlar a cadeia de transmissão da doença.

Precisamos começar a discutir qual tipo de tecnologia adotaremos por aqui. O governo Bolsonaro já deu sinais de que não respeita a privacidade, propondo adiar a entrada em vigor da lei de proteção de dados pessoais e emitindo medida provisória que entrega cadastros telefônicos sem restrição ao IBGE.

Organizações de direitos civis se preocupam com razão que dados desse tipo possam ser utilizados por órgãos de inteligência ou pelo gabinete do ódio para os mais sinistros propósitos.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: O 'vírus chinês'

Teoria da conspiração diz que o coronavírus é arma biológica da China

A postura do governo federal de se contrapor à política de isolamento social preconizada pela ciência e por autoridades sanitárias gera justificada indignação, mas, às vezes, a indignação nos indispõe a entender a motivação dos agentes.

O que o governo Bolsonaro quer, afinal?

Acredito que devemos olhar para o que os círculos bolsonaristas e olavistas estão discutindo para encontrar a resposta. E a resposta que se encontra ali é a do “vírus chinês”.

O vírus chinês é uma teoria da conspiração segundo a qual o coronavírus seria relativamente inócuo, tão grave quanto uma gripe comum. Apesar disso, o partido comunista chinês teria montado um circo e falsificado dados de letalidade, com a intenção de gerar pânico, parar a economia global e dar assim uma vantagem competitiva à economia chinesa, que, à despeito do teatro, seguiria em plena atividade.

Há algumas variantes dessa teoria conspiratória: o vírus teria sido desenvolvido em laboratório como arma biológica; agentes chineses estariam se infiltrando em aglomerações urbanas para espalhar o vírus; empresas chinesas estariam suspendendo o pagamento por produtos já adquiridos para ferir as economias locais.

Frente a esse cenário, diz o argumento, o melhor que o Brasil poderia fazer é não aderir ao pânico, adotar medidas preventivas moderadas e explorar a vantagem competitiva que os chineses vislumbraram para si.

Essa estratégia, no entanto, estaria enfrentando a oposição de governadores ignorantes e corruptos que aderiram à histeria global e vão afundar a economia e enterrar a oportunidade única de o Brasil dar um salto de desenvolvimento enquanto o resto do mundo está com a economia paralisada.

Nada disso faz o menor sentido: pressupõe que apenas Bolsonaro, e nenhuma potência global, conseguiu desvelar o complô chinês; pressupõe que os modelos epidemiológicos com dados de contaminação na Europa e nos Estados Unidos não têm validade. É tão absurdo que em circunstâncias normais não mereceria nossa atenção.

Mesmo assim, é isso o que está sendo discutido nos canais de YouTube e nos áudios de WhatsApp —e acredito que temos motivos para acreditar que é isso o que move o presidente e o seu entorno.

Se esse é mesmo o raciocínio que move o presidente, devemos esperar não apenas pressão pela adoção do isolamento vertical, contra toda a evidência científica, como um atraso ainda maior na adoção de medidas econômicas efetivas, com o intuito de pressionar empresas, comerciantes e trabalhadores a regressarem ao trabalho.

Estamos fodidos.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Pablo Ortellado: Menor do que Trump

Plano de Bolsonaro para ajudar trabalhadores é cruel até em comparação com o de Donald Trump

Não há mais dúvidas de que a crise do coronavírus vai gerar uma recessão. No Brasil, as medidas sanitárias levaram ao fechamento do comércio, ao isolamento da força de trabalho e a uma redução do consumo das famílias. Teremos encolhimento da atividade econômica, diminuição da arrecadação e forte incremento dos gastos de saúde. Se não agirmos logo, além dos doentes e dos mortos teremos também milhões de desempregados e desassistidos passando fome.

O Brasil tem hoje 18,6 milhões de trabalhadores sem carteira assinada, 4,5 milhões deles ocupados como trabalhadores domésticos; temos também 19,3 milhões de trabalhadores por conta própria sem CNPJ. Nosso comércio varejista, que está quase todo fechado, emprega outros 5,6 milhões de trabalhadores, já excluído o setor de supermercados e alimentos.

A tudo isso se somam 11,9 milhões de trabalhadores que já estavam desempregados. São dezenas de milhões de brasileiros que precisarão de apoio para alimentar suas famílias.

Em todo o mundo, governos têm abandonado temporariamente os preceitos de equilíbrio fiscal e adotado medidas de economia de guerra. Setores duramente atingidos estão recebendo apoio financeiro, a folha de pagamento das empresas está sendo parcialmente subsidiada pelo Estado para evitar demissões e trabalhadores informais estão recebendo auxílio na forma de uma renda básica de cidadania.

Enquanto isso, o plano de Bolsonaro é psicótico, não sabemos se motivado por cegueira ideológica ou por uma brutal insensibilidade social. Mesmo se comparadas às do plano de Donald Trump, as medidas de Bolsonaro são cruéis.

Embora as negociações no Congresso americano ainda estejam em curso enquanto esta coluna é escrita, tudo indica que os Estados Unidos devem dar US$ 1.200 por adulto e mais US$ 500 por criança para as famílias americanas com renda menor do que US$ 75 mil (para sobreviverem por cerca de três meses); enquanto isso, Bolsonaro quer dar aos trabalhadores informais que estão no cadastro único para programas sociais R$ 200 de auxílio, por três meses.

Enquanto Trump vai ajudar 57% das famílias americanas, Bolsonaro vai ajudar 36% das famílias brasileiras; enquanto Trump vai dar cerca de 80% de um salário mínimo americano por mês, Bolsonaro vai dar 20% de um salário mínimo brasileiro; enquanto Trump quer empregar nesse auxílio 1% do PIB americano, Bolsonaro quer empregar apenas 0,2% do nosso PIB.

O programa de Bolsonaro, mesmo em termos relativos, é apenas um quinto do que o de Trump, seu mentor.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.