oglobo

Míriam Leitão: Resposta errada do governo no meio ambiente

Os primeiros movimentos de resposta do Brasil aos investidores apontam para o fracasso. Que chance tem de dar certo a estratégia de convencer que o Brasil respeita o meio ambiente com o presidente Bolsonaro afirmando que eles estão com “uma visão distorcida” dos fatos e uma carta que tem entre os signatários a dupla Ricardo Salles e Ernesto Araújo? Não há o que Salles faça que apague seus abundantes atos e palavras contra o meio ambiente neste um ano e meio. Araújo vive em órbita pelo mundo da lua capturado por teorias da conspiração. Para piorar, existe o danado do fato: o Inpe acaba de mostrar que o Brasil bateu novo recorde de queimada na Amazônia.

Do ponto de vista econômico, o que está acontecendo é uma enorme contradição. A maior recessão da história do país e o desmatamento subindo. Como pode o nível de atividade estar em queda livre, e o desmatamento e as queimadas, em alta? A resposta é: o governo Bolsonaro deu fartos incentivos à atividade ilegal. Os criminosos sabem que ficarão impunes e que, se tiverem mais sorte, verão uma Medida Provisória aprovada consolidando seu domínio sobre áreas que grilaram.

O vice-presidente Hamilton Mourão no comando do Conselho da Amazônia foi um avanço, mas o desmatamento está crescendo forte pelo segundo ano consecutivo mesmo com as ações do Exército. A entrada do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na turma que quer demover grandes fundos de saírem do Brasil tem um ganho e dois óbices. O bom é que Roberto Campos circula fácil pelo mundo das finanças internacionais e tem boa rede de contatos. O primeiro problema é que um presidente do Banco Central não se envolve tanto com questões de governo como ele tem feito, segundo, pelo que disse até agora, ele também esposa a tese de que os outros é que estão mal informados.

Só pela carta que os 29 fundos mandaram para as embaixadas brasileiras, cobrando explicações sobre a política ambiental, já ficou claro que eles sabem exatamente o que se passa no Brasil. Citaram até a boiada pandêmica do Salles. O mundo de hoje é o da informação instantânea. A tese de que os outros países estavam desinformados a nosso respeito foi usada na época da ditadura para negar a tortura. Mesmo naquele mundo analógico, a estratégia deu errado porque contrariava os fatos.

O melhor é mudar os fatos. Essa é a forma de convencer. O vice-presidente disse à “Folha” que convidará embaixadores para sobrevoar a Amazônia. A visão do verde dos nossos bosques não convencerá porque todos podem consultar as imagens de satélite que mostram a progressão do desmatamento no Brasil. Os avanços que o governo pode relatar, como, por exemplo, a queda da taxa de desmate a partir de 2004 pertencem ao governo Lula. A tendência começou a mudar nos governos Dilma-Temer e a destruição acelerou nesta administração. Se os dados atuais forem comparados com a taxa de 2004 haverá sim uma redução, mas foi resultado de políticas ambientais e fortalecimento dos órgãos de controle, totalmente desmontados na atual gestão.

Se quiser mudar a imagem do país, o governo brasileiro tem que começar trocando os ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores. Salles é um dano ambulante à imagem do Brasil. Ele faz qualquer coisa para destruir o meio ambiente, até rasgar dinheiro, como fez com o Fundo Amazônia diante da Noruega e da Alemanha. O problema de Araújo é de outra natureza. Decorre da sua falta de conexão com a realidade. Ele costuma deixar seus interlocutores constrangidos pela maneira como interpreta a conjuntura internacional e sobrevoa os eventos contemporâneos a bordo de teorias lunáticas.

O ponto central da dificuldade de melhorar a imagem ambiental do Brasil é que o presidente Jair Bolsonaro acredita em tudo o que disse e fez nesse campo. Ele acha que o bom é liberar o garimpo e perdoar grileiros. Já que não pode acabar com as terras indígenas, ele quer mineração nessas unidades de conservação. Se pudesse, fecharia órgãos como o Ibama e o ICMbio. Como não pode, ele os enfraquece e ameaça os servidores, como fez com os que destruíram tratores encontrados em desmatamentos de terras públicas. Salles segue ordens do seu chefe. A imagem do Brasil reflete o que tem infelizmente acontecido. Distorcida é a visão de Bolsonaro.


Cora Rónai: O privilégio de estar aqui e agora

O ano de 2020 será lembrado para sempre, assim como nós nos lembramos até hoje de 1348, o ano em que a peste negra chegou à Europa 

A vida mudou de endereço. Não acontece mais na rua; “lá fora” é um lugar pouco frequentado, exótico, cheio de riscos. Moro numa avenida movimentada e nem preciso ir à janela para saber a quantas anda a quarentena; o barulho ou o silêncio me informa. Há poucos carros. Já houve menos. Num primeiro momento, tudo o que se ouvia eram as motos dos entregadores. No último fim de semana o trânsito aumentou, e ficou equivalente ao do intervalo de um jogo decisivo da Copa, apressado e escasso — mas ainda assim intenso demais para uma população que deveria ficar em casa.

O ar melhorou muito. Antigamente, quando as janelas ficavam abertas, minha sala era vítima de uma poeira preta e pegajosa. Limpava-se, e horas depois, já estava tudo sujo de novo.

(“Antigamente”, hoje, é advérbio que se aplica ao mês passado.)

A poeira sumiu.

Ando descalça e, ao fim do dia, as solas dos meus pés continuam bastante limpas. Eu já nem me lembrava que isso pode acontecer onde não há poluição; aqui nesse apartamento, onde moro há tanto tempo, nunca aconteceu.

Ouço os passarinhos lá do outro lado.

A natureza agradece a pandemia; o planeta respira aliviado sem a nossa presença. Se continuar viva, vou ter saudades desse ar puro, dessa falta de poeira e dos dias claros. Vou ter saudades também da esperança que insiste em achar que vamos sair disso melhores, mais humanos, menos egoístas; não vamos.

O mundo já passou por toda a espécie de calamidade, e nem por isso a humanidade aprendeu os princípios essenciais da empatia e da compaixão.

Mas nesse momento, isolada há mais de três semanas, consumindo toda informação que posso, acompanhando estatísticas lúgubres e gestos de grandeza, vendo fotos de cidades vazias e de hospitais cheios, não consigo deixar de imaginar que, de agora em diante, vamos repensar as nossas prioridades e prestar mais atenção à nossa volta.

Também não consigo deixar de pensar que é uma espécie de privilégio existencial estar aqui, agora. O ano de 2020 será lembrado para sempre, assim como nós nos lembramos até hoje de 1348, o ano em que a peste negra chegou à Europa.

— As grandes cidades do mundo pararam em 2020 — dirão os netos dos netos dos nossos netos.

Que diferença faz isso se, em algumas décadas, mesmo os mais jovens e saudáveis dentre nós já não estarão mais aqui? A longo prazo, nenhuma. Mas o que se leva dessa vida é um conjunto de experiências e de vivências, e nós estamos passando pela experiência mais extraordinária do século, talvez do milênio.

Nós estamos experimentando em primeira mão o espanto diante das imagens de metrópoles desertas que, amanhã, serão as ilustrações batidas dos livros de História.

(Sim, eu acredito na sobrevivência dos livros.)

Nós somos a primeira geração que ainda não sabe como isso vai acabar. É lógico que, podendo escolher, nenhum de nós escolheria passar por isso; mas essa não é uma escolha.

Então pelo menos vamos observar bem, e vamos tentar ser as melhores testemunhas que pudermos ser.


Míriam Leitão: Aumento de gastos e defesa de valores

Armínio Fraga recomenda aumento de despesas porque há uma calamidade. Governo baixou pacote com pouco dinheiro novo

Armínio Fraga acha que o país vai entrar em recessão, que o governo deve aumentar o gasto público porque as leis que fixam limites de gastos preveem espaço para quando há uma calamidade. “E para isso acho que não deveria haver limites.” No Banco Central, algumas formas de estimular a oferta de crédito foram anunciadas e o Ministério da Economia soltou um pacote que foi quantificado como de R$ 147 bilhões, mas na verdade pouco desse valor é dinheiro novo. No intenso dia de ontem, houve de tudo, inclusive o presidente Jair Bolsonaro voltando a escalar nos ataques ao Legislativo, numa entrevista de manhã.

O pacote de Paulo Guedes é insuficiente e ele sabe disso. Tanto que avisou que voltará a anunciar novas medidas. No conjunto de ontem, há as decisões de antecipação de pagamentos que o governo teria que fazer aos aposentados e pensionistas, ou a trabalhadores de baixa renda. O 13º será pago todo até maio, e o abono, até junho. Em outro lado das medidas, o governo permite que o FGTS seja recolhido com atraso e adia também a parcela federal do Simples Nacional. Isso não é dinheiro novo.

Para o economista Armínio Fraga, o país pode e deve aumentar as despesas públicas para evitar o pior na área da saúde e na economia. Armínio sempre fez parte do grupo de economistas que defende o controle fiscal. Mas agora a situação é diferente, na visão dele. O país vai entrar em recessão e é preciso foco no principal que é a política de saúde para tentar reduzir a propagação do coronavírus.

— Está previsto na lei, em todas as leis, de responsabilidade fiscal, do teto de gastos, todas preveem espaços para gastos em situações de calamidade. Esta é sem dúvida uma calamidade. Penso que todo gasto temporário que tem a ver com medicina, com reduzir o impacto social da crise, o impacto nas empresas, muitas terão que fechar temporariamente, deve ser feito. Cabe uma resposta muito enérgica, específica para esse caso. E para isso acho que não deveria ter limite — disse Armínio.

Essa noção de que a crise tem uma dimensão sem precedentes chegou nos principais países do mundo. O presidente Donald Trump, que sempre desdenhou a ciência, estava ontem, compenetrado, dizendo que todo mundo “tem um papel crítico a exercer” neste momento para “parar o avanço da transmissão da doença”. Só o Brasil tem um presidente nesse grau delirante de irresponsabilidade que Bolsonaro demonstrou nos últimos dois dias. Num dia, passeata com ataques a outros poderes, no dia seguinte, entrevista em que ataca os presidentes do Congresso.

O mundo está vivendo uma crise de duas cabeças. De um lado, a da saúde, de outra, a economia, que está parando. Armínio lembrou que o mundo está diante de uma crise raríssima. “Calamidade não acontece a toda hora.” Por isso acha que é preciso ser tratado de forma rápida, técnica e firme. “E custa dinheiro, não tem jeito.”

Perguntei a ele se 2020 pode ser considerado um ano perdido na economia. Ele disse que “está com cara”. Por isso, neste ano talvez perdido, é que ele recomenda mais gasto público:

— Um remédio tradicional, vamos dizer keynesiano, para a recessão é reduzir juros, aumentar despesa. Parte dessa receita se aplica agora, mas há uma urgência absoluta. É preciso atacar na veia. O investimento de longo prazo é bom, mas não é o assunto do dia.

O governo anunciou ontem que mudará a meta fiscal, que é de R$ 124 bilhões de déficit para ampliar as despesas, o que é considerado por todos os especialistas como inevitável. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes ameaçou fazer um contingenciamento de R$ 16 bilhões caso não fosse aprovada a privatização da Eletrobras até sexta.

O Brasil tem um problema extra no meio de toda essa crise. As ameaças à democracia. E isso tem diretamente a ver com a economia. Mesmo antes desta crise, Armínio disse que os ruídos provocados pelo governo têm afastado investidores. Não basta, segundo ele, ter uma agenda liberal em meio ao “obscurantismo” e à “falta de cuidado com temas relevantes como o meio ambiente”:

— Acho impossível o Brasil se desenvolver plenamente sem contar com uma democracia plena, vibrante, aberta, plural. E isso hoje está sob ameaça. Não dá para medir as palavras. Esse é um período de resistência. As instituições estão resistindo e os sinais recomendam não relaxar.


Merval Pereira: Outro patamar

Moro não fez críticas aos parlamentares e negou-se a comentar a possibilidade de ser vice em 2022

O ministro Sergio Moro está se saindo um “hábil político”, como disse Bolsonaro. Ontem, passou o dia no Congresso, negociando a aprovação do pacote anticrime, e a autorização para a prisão em segunda instância, que foi retirada dele, mas deve ser votada separadamente.

À noite, teve uma vitória importante, mesmo que alguns pontos tenham sido perdidos. Nessa luta, deu uma declaração polêmica que o favorece, e, em certa medida, o governo Bolsonaro, mas criou arestas com o governador de São Paulo, João Doria, que havia lhe oferecido guarida meses atrás, quando parecia que sua relação com o presidente Bolsonaro não ia bem. O excludente de ilicitude, que foi proposto pelo presidente Bolsonaro, deveria mesmo ser retirado. E o “juiz de garantias”, criado por proposta dos deputados, é uma boa novidade.

O ministro da Justiça foi a primeira autoridade a criticar os policiais paulistas pelo que chamou de “erro operacional grave”, referindo-se à tragédia na favela de Paraisópolis, em que nove jovens morreram pisoteados.

Moro elogiou a Polícia Militar do Estado de São Paulo, “uma corporação de qualidade, elogiada no país inteiro”, mas não se furtou a comentar o caso, afirmando que “aparentemente houve lá um excesso, um erro operacional grave”.

O que o ministro Sergio Moro queria era mesmo defender o “excludente de ilicitude”, que o Congresso retirou do pacote anticrime. Refutava críticas de que a ação policial em São Paulo teria sido feita já sob influência da proposta que encaminhou ao Congresso.

Moro, que comemorava a queda dos índices de criminalidade em todo o país, sabe que a cada tragédia como a de Paraisópolis, ou da menina Ágatha no Rio, cresce em parte ponderável da sociedade a rejeição a tal instrumento, que é visto como uma “licença para matar”.

Para ele, os dois casos são situações em que o “excludente de ilicitude” não poderia ser utilizado, pois “em nenhum momento ali existe uma situação de legítima defesa”.

Em outro front, ele conseguiu que o Senado tente um caminho mais rápido para a aprovação da prisão em segunda instância. Em vez de uma emenda constitucional como quer a Câmara, a alteração seria por projeto de lei, mudando o Código de Processo Penal (CPP). A presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Simone Tebet, decidiu pautar a votação do projeto de lei na próxima terça-feira, na reunião da CCJ.

Além de precisar de menos votos do que uma emenda constitucional, a mudança do CPP pode ser terminativa na própria CCJ, sem ir a plenário. Na Câmara, o projeto também pode ser aprovado apenas pela CCJ, a não ser que uma décima parte do total da Câmara ou do Senado peça que o assunto vá ao plenário.

É provável que já no Senado haja esse pedido, pois bastam oito senadores para isso. Mas a aprovação parece garantida, já que a senadora Simone Tebet recebeu um documento com a assinatura de 43 senadores pedindo que o assunto fosse adiante, sem esperar a decisão da Câmara.

A aprovação na Câmara pode ser mais complicada, pois o presidente Rodrigo Maia defende a utilização de emenda constitucional, alegando que dá mais segurança jurídica. Como bastariam 51 deputados para exigir que o tema seja submetido ao plenário, é provável que isso aconteça.

O ministro Sergio Moro defende a tese de que é possível tratar o assunto das duas maneiras, sem que o projeto de lei do Senado prejudique a emenda constitucional da Câmara.

A aprovação do pacote anticrime, que endureceu muito as penas e restringiu regalias para os criminosos mais violentos, poderá ser coroada com a mudança sobre a prisão em segunda instância, que era, talvez, o ponto mais importante do pacote anticrime.

Como “político hábil”, Moro não fez críticas aos parlamentares, e negou-se a comentar a possibilidade de vir a ser vice de Bolsonaro em 2022, alegando que o lugar é do general Mourão. Está disposto a prosseguir seu périplo pelo Congresso para angariar apoio na luta contra a violência nas cidades, tema que assumiu lugar de destaque em seu discurso. Promovido a símbolo do combate à corrupção, Moro parece buscar agora um outro patamar.


Míriam Leitão || Natureza do MP e abuso de autoridade

Políticos querem limitar o poder das investigações, e Bolsonaro quer um Ministério Público que seja o seu espelho e siga as suas ordens

O Congresso há muito tempo quer aprovar o projeto de abuso de autoridade e ficou esperando um momento da fraqueza da Lava-Jato. Conseguiu. Nenhuma autoridade pode estar acima da lei e todas devem ter limites, mas o projeto foi feito com o interesse direto de inibir as investigações que atingem os políticos. O ex procurador-geral da República Claudio Fonteles diz que não é necessária uma lei, porque o ordenamento jurídico atual é o suficiente. O procurador regional José Robalinho Cavalcanti acredita que a lei foi melhorada durante a tramitação, mesmo assim defende que sejam vetados alguns pontos.

Os excessos de procuradores e policiais têm que ser combatidos, evidentemente. O caso mais eloquente de que isso é necessário é o da investigação que envolveu o então reitor da Universidade de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier. Ele se matou depois de condução coercitiva e um interrogatório sobre supostas irregularidades. O grande problema é que os que redigiram e aprovaram o projeto, que agora vai para sanção presidencial, o fizeram em interesse próprio. O presidente Bolsonaro diz que foi elei topara combatera corrupção, mas considera excessiva qualquer investigação que envolva um dos integrantes da sua família. Ameaça reestruturara Receita Feder alporque ela teria feito uma “devassa” nas contas de seus familiares. Se tivesse feito, a ação dele seria vingança usando os poderes da Presidência. Se a Receita não fez, ele está ameaçando um dos órgãos do Estado. É abuso de poder.

Fiz um programa ontem na Globonews com Fonteles e Robalinho sobre abuso de autoridade e a função do Ministério Público.

— A grande pergunta é a seguinte: é necessário ter uma lei nesse sentido, de abuso de autoridade? Eu considero que esse projeto é inoportuno. Porque o nosso ordenamento jurídico já dispõe de mecanismos legais suficientes —diz o ex-PGR.

Robalinho avalia que a proposta original era muito pior:

—Um projeto de abuso de autoridade poderia até ser defensável, porque o que existe é de 1965, um alei feita de propósito para não funcionar. Mas a forma e o momento mostram que as forças políticas preferem se unir para tolhera atividade do Estado de perseguição criminal.

Outro defeito do projeto é que os tipos de abusos são propositadamente abertos, de definição subjetiva:

— O presidente da República tem falado tanto que é preciso dar mais segurança jurídica à ação policial, essa lei vai no sentido contrário —diz Robalinho.

A oportunidade da lei foi criada pelos erros da Lava-Jato. Perguntei aos dois se houve erro. Fonteles acha que sim, Robalinho diz que não. O ex-procurador-geral diz que se for verdade o que está sendo divulgado é grave:

—A condutado magistrado viola um dos predicados fundamentais da magistratura, que é a imparcialidade, a igualdade das partes no processo. Eu não posso privilegiar o meu colega em detrimento do defensor. Por isso, precisa haver uma apuração séria e rigorosa.

Robalinho afirma que o que tem sido divulgado está editado, e é parte de conversas obtidas ilegalmente. De qualquer maneira, ele diz que as conversas não ferem limites institucionais:

— O que quero dizer é que isso não ultrapassa os limites da normalidade. Juízes e procuradores sentam lado alado, audiência a audiência, às vezes por horas a fio. Isso está desde sempre no ordenamento jurídico.

Na sucessão na Procuradoria-Geral da República, os dois disseram que o presidente erra quando procura alguém que pensa como ele. O Ministério Público no Brasil tem poderes da magistratura. Os procuradores têm independência. O PGR é chefe do MP, mas não pode tirar a autonomia dos procuradores. Mesmo se o presidente conseguir alguém que acredite nas teses que ele defende em assuntos como índios, meio ambiente, minorias, o PGR não terá força para garantir que o MP seja um espelho do governo. Por isso, eles defendem que seja escolhido alguém da lista tríplice, que terá liderança sobre o Ministério Público.

— O PGR deve prestar contas a quem? Ao presidente da República? Jamais. Externamente ele presta contas à sociedade, a todas as instâncias que formatam a democracia —diz Claudio Fonteles.

Bolsonaro pensa agora até em deixar um interino para continuar buscando a pessoa que considera certa. Ele não terá o que quer: um Ministério Público homogêneo, que siga suas ordens.


Ascânio Seleme: Ministros que poderiam ser

Quem teria lugar de honra no governo e seria páreo duro para Damares Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo

Para não dizer que apenas Bolsonaro é capaz de chamar ministros esquisitos para o governo, vale lembrar algumas figuras que fizeram História no Brasil e que poderiam muito bem compor a equipe atual. Já houve quase tudo no cenário da política nacional. Teve um ministro que preferia fazer poesias a governar, outro mais belicista do que qualquer membro do ministério atual. Nos primórdios da nova democracia brasileira, um ministro inventou um vernáculo para o idioma pátrio. Mais recentemente, surgiu outro que, embora fosse brasileiro, falava português tão mal quanto o colombiano que foi ministro da Educação. Para não amolar o leitor, vou fazer uma lista breve, apenas com os grandes destaques. Aqueles que teriam lugar de honra no governo e que seriam páreo duro para Damares Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo.

O Imexível . O número um, o que não faltará em lista alguma, mesmo daqui a cem anos e 25 novos ministérios, é o saudoso Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho de Fernando Collor de Mello. Magri criou uma nova palavra no idioma nacional ao dizer que era “imexível” no Ministério, quando começaram a surgir as primeiras denúncias contra ele. Um dia, o ministro levou prostitutas para uma reunião da OIT na Suíça e deixou-se fotografar ao lado delas. Mais tarde, explicou assim o fato de ter recebido propina para facilitar liberação de recursos do FGTS: “O dinheiro caiu do céu”. Mas a melhor foi a explicação que deu ao ser flagrado levando seu cachorro ao veterinário num carro de serviço do ministério: “Meu cachorro é um ser humano como outro qualquer”. Magri causaria inveja em Damares.

O ministro bomba . Dentro desse governo que se diz “armamentista”, Roberto Amaral cairia como uma luva. Ele foi ministro de Ciência e Tecnologia do governo Lula. Numa de suas primeiras declarações, logo depois da posse em janeiro de 2003, o ministro disse à BBC que o Brasil deveria dominar a tecnologia da bomba atômica. Imaginem que maravilha, que alegria para Jair Bolsonaro, ter entre os seus um ministro desse calibre. Roberto Amaral vivia mais no mundo da lua do que o ministro astronauta Marcos Pontes. Ele seria um representante brasileiro no exterior à altura do chanceler Araújo, não deixaria uma ponte em pé.

O texano . Muito antes de Ricardo Vélez Rodríguez aportar na Esplanada dos Ministérios falando um português difícil, complicado, houve outro que soava como estrangeiro. Trata-se de Mangabeira Unger, guru de Ciro Gomes, que fala português com sotaque de americano do Texas. Mangabeira disse em 2005 que o governo Lula era o mais corrupto da História do Brasil. Dois anos depois, convidado por Lula, assumiu a Secretaria de Assuntos Estratégicos dizendo que havia no país “uma nova vanguarda vinda debaixo”. Seria sócio fácil da turma atual.

O encrenqueiro . Teve um ministro no governo Dilma que comprou uma briga com parlamentares de tamanho que nem Paulo Guedes conseguiria enfrentar. Cid Gomes, então ministro da Educação, disse que a Câmara tinha entre 300 e 400 achacadores. Convocado para se explicar no plenário, foi chamado de mal educado pelo presidente da casa, Eduardo Cunha. Respondeu que preferia ser mal educado a achacador. O bate-boca foi generalizado. Os deputados do PT, que deveriam apoiá-lo, o abandonaram no confronto dentro do plenário. Ele saiu de lá para ser demitido por Dilma pelo telefone.

O rei da gafe . Ricardo Barros, ministro da Saúde de Temer, se notabilizou pelas suas inúmeras gafes. Certa vez, Barros disse que os homens vão menos ao médico porque trabalham mais do que as mulheres. Depois sugeriu que a maioria dos pacientes que procura a rede pública de saúde apenas “imagina” estar doente. Mais adiante afirmou que faltava dinheiro na Saúde por causa da “incapacidade” dos brasileiros de pagar impostos. Finalmente, chamou o mosquito aedes aegypti de indisciplinado. “Se o mosquito se comprometesse a picar só quem mora na casa, seria fácil”. É ou não é um concorrente de peso para Weintraub?

Os dançarinos . Dois ministros de Collor protagonizaram a primeira história de amor de membros do primeiro escalão do governo que se transformou em assunto nacional. Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia, e Bernardo Cabral, da Justiça, dançaram ao som de Besame Mucho, coladinhos, em demonstração pública de afeto, numa festa em Brasília ,enquanto o país ruía pelo caos econômico gerado pelo confisco capitaneado por Zélia. O romance começou numa reunião ministerial, quando Cabral mandou um bilhetinho para Zélia enaltecendo a beleza das pernas da colega. O caso foi constrangedor para ambos porque Cabral era casado. Não há paralelo no governo casto de Bolsonaro, o que pode ser considerado uma oportunidade.

Lula livre
Se as exigências formais, técnicas e legais já estão cumpridas, Lula deve ser transferido imediatamente para prisão domiciliar. Se as condições exigirem o uso da tornozeleira, Lula terá de usá-las. Como ele, dezenas de milhares de brasileiros continuam presos, apesar de já terem atingido todos os critérios para a sua libertação estabelecidos pelo Código do Processo Penal. Muitos desses homens e mulheres já cumpriram penas integrais e continuam presos. Sempre foi assim no Brasil, mesmo durante a gestão do ex-presidente.

Aliás
Por que João de Deus, o médium que abusou de algumas dezenas de mulheres em Goiás, está preso numa sala do estado maior da PM de 120 metros quadrados? Seguramente tem mais espaço e conforto do que Lula.

Casa ainda não
O ministro Paulo Guedes mora desde o início do ano em um hotel de Brasília. Aos amigos, diz que só vai se mudar para um endereço permanente, uma casa ou um apartamento, quando a reforma da Previdência for aprovada. Julga que por ora sua situação no governo é provisória.

Cumprindo promessas
Bolsonaro mandou ao Congresso projeto liberando compra e uso de armas de fogo de potência e em número nunca imaginados. Também encaminhou proposta reduzindo multas de trânsito, inclusive para quem circular com crianças soltas dentro dos carros. Por portaria, liberou 197 agrotóxicos, mais de um por dia. O governo diz que o presidente está cumprindo promessas de campanha. Não me lembro de Bolsonaro ter prometido tomar medidas que garantidamente aumentassem o número de brasileiros mortos a cada ano.

Até que ele ia bem
O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, ia bem, se destacando naquele mar revolto que Bolsonaro arrumou ao seu redor. Aí assinou o projeto das cadeirinhas, no qual afirmou que multas para quem transportar crianças soltas no carro são “exageros punitivos”.

Não é ser bom
O caso de Rodrigo Caio, zagueiro do Flamengo, mostra bem como pensam alguns brasileiros. O jogador foi hostilizado pela torcida do São Paulo, seu ex-time, porque disse que fora ele e não o adversário, já advertido com cartão pelo juiz, que pisara sem querer no pé de um outro jogador caído. Ficou com fama de “bonzinho” e foi tripudiado logo pela torcida do São Paulo, uma espécie de Fluminense paulista. Para esses, não é bom ser bom ou bonzinho.

Falando sozinho
Não quero me intrometer em assunto que cabe mais ao Carlos Mansur do que a mim, mas será que vale mesmo pagar salário de R$ 1 milhão ao português Jorge de Jesus, novo técnico do Flamengo? E o Neymar? Bom, melhor deixar o Neymar pra lá.

Cartórios
A Secretaria da Fazenda municipal mandou mensagem contestando teor de nota publicada aqui na semana passada. Segundo a secretaria, os cartórios têm, sim, obrigação legal de identificar guias de ITBI falsificadas. Afirma que há inúmeros casos de “falsificações grosseiras” que poderiam ser observadas com uma simples análise superficial. O caso está na Justiça, porque o município quer cobrar dos cartórios o dinheiro não arrecadado em razão dessas falsificações.


Dorrit Harazim: Mulheres, bagunçai!

A vida é mais interessante e indomável. Melhor focarmos nela primeiro

Na sexta-feira passada, Dia Internacional da Mulher, as homenagens e atos foram sendo noticiados em moto quase contínuo, com sua maré crescente de autocongraçamentos, cobranças relevantes, pronunciamentos edificantes. No fundo, o 8 de março lembra um pouco os fogos de artifício em cascata que celebram o Ano Novo: uma onda contínua que começa lá pelas bandas da Nova Zelândia, no extremo Leste do mundo, e seguindo o fuso horário de festejos completa sua rota no Oeste californiano.

Também houve silêncios notáveis, ou referências inadequadas, tudo computado e compartilhado em tempo real pelas redes sociais. E houve sobretudo a imensa massa das (dos) que têm a vida para tocar e precisam tocá-la à margem da história. Em meio a esse mundaréu cabe refletir um pouco sobre a mensagem utilitário-subliminar da guru japonesa Marie Kondo.

Autora do fenômeno global “A mágica da arrumação do lar” (Sextante), que desde 2014 é consumido aos milhares em mais de 30 países, Kondo, no primeiro dia de 2019, também estreou seu método de organização doméstica no Netflix — e com igual estrondo. Os oito episódios dessa primeira temporada repetem à exaustão a fórmula que a consagrou. Capitã Marvel de casas em desalinho, ela atende a chamados com uma solução eficaz para devolver ordem e paz a famílias: basta aprender a arrumar e a descartar.

As famílias socorridas por Kondo têm em comum mães estressadas que se autoincriminam, e pais aflitos. Quando a porta se abre para Kondo, é como se entrasse um facho de luz. Sempre vestida de jaqueta branca que combina com sua pele alvíssima, a diminuta guru é um furacão minimalista. Saltita entre montanhas de roupas que emergem de armários abarrotados, reordena o conteúdo de uma casa inteira sem alterar penteado e sorriso, e nunca sua, mesmo quando carrega tralhas e mais tralhas de um ambiente a outro.

Aos 34 anos, Kondo se apresenta como salvação alcançável para milhares de mulheres que cresceram convencidas de que a arrumação da casa depende delas, e a felicidade do lar, também. Várias dicas do método aperfeiçoado pela autora desde os seus tempos de menina são práticas e factíveis, solucionam problemas e simplificam o cotidiano. Mas Marie Kondo, cuja aparência de felicidade absoluta é quase robótica, tornou-se fenômeno contagioso por prometer mais. “Quando experimentar o que é ter uma casa realmente organizada, sentirá como todo o seu mundo ficará iluminado”, garante ela. Ao final, quando toda a casa tiver sido devassada, entranhas de fora, com tudo selecionado, organizado e enxugado em um terço, teremos uma mulher, esposa e mãe acalmada, plena. À la anos 1950, apenas sem avental. Lar arrumado, sinônimo de harmonia familiar e individual.

“Pois eu não quero ser essa mulher tão impecável quanto uma jaqueta branca. Quero ficar em casa sem fazer nada, de moletom cinza e cabelo não lavado, no sofá de uma sala com cara de sala em casa onde tem crianças”, escreveu no semanário alemão “Die Zeit” a colunista alemã Mareice Kaiser, a propósito do ideal de arrumação da japonesa. “Aliás, é hora de sair em defesa da mulher preguiçosa, da mulher que tem gana de parar”.

Foi no hoje lendário 24 de outubro de 1975 que as mulheres de Reykjavik cruzaram os braços e fizeram aflorar a força e o peso do trabalho feminino na Islândia. Paralisaram o sistema de comunicações do país, escolas e creches não puderam abrir, o cotidiano da capital emperrou, ficou irreconhecível. Quatro anos depois, as instituições responderam às demandas daquele protesto e, desde então, a Islândia figura com destaque no ranking mundial de igualdade de gênero no trabalho.

Desordem estimula criatividade, como já se discutiu tanto, ou, ao contrário, crianças que crescem em ambientes desarrumados tornam-se adultos problemáticos? Sempre existirão estudos apontando em direções contrárias, mas satisfazer-se com a execução de uma meta confinada a quatro paredes é enganoso. Ao contrário de uma casa, armário ou gaveta, onde uma ordem perfeccionista é possível, a vida é mais interessante e indomável. Melhor focarmos nela primeiro. É o que fizeram as grandes mulheres da história — da marroquina Fatima Al-Fihri, fundadora da primeira universidade do mundo ainda em atividade (em Fez).

Esta semana, a augusta Académie Française, guardiã oficial do idioma francês desde o século XVII, finalmente anunciou estudar a “feminização dos nomes de profissões, cargos, funções e patentes militares”. É quase uma revolução, considerando-se a notória cautela com que seus 40 membros (35 homens, 5 mulheres, 1 negro) lidam com a tarefa de atualizar o sagrado idioma. Assim, a variante feminina para, entre outros, “autor”, “escritor”, “mestre de conferências”, “presidente”, “deputado”, já há décadas de uso corrente na sociedade, receberá o selo oficial. Uma das palavras em torno da qual há menos consenso, até agora, continua sendo “chef” (seja na culinária ou na acepção genérica). Talvez fique para o próximo século.


Rogério Furquim Werneck: A costura da reforma da Previdência

O maior desafio tem sido conceber uma proposta que seja passível de aprovação no Congresso

‘Agora vou mudar minha conduta/ Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar”. É como Noel Rosa inicia “Com que roupa?”, uma de suas músicas de maior sucesso, lançada em 1930, que o compositor via como metáfora de “um Brasil de tanga, pobre e maltrapilho”. Talvez por isso, há quem ache que a melodia do primeiro verso evoca a do verso inicial do Hino Nacional.

Passados quase 90 anos, o tema não poderia ser mais atual. Conseguirá o Brasil mudar sua conduta? Será o país capaz de conter sua desastrosa inconsequência fiscal e, afinal, restringir os gastos públicos a limites condizentes com a carga tributária que a sociedade se dispõe a aceitar para financiar os três níveis de governo? Com que proposta de reforma da Previdência o governo pretende deflagrar sua primeira grande batalha pela mudança do insustentável regime fiscal que hoje tem o país?

A concepção e o detalhamento da reforma têm sido uma operação complexa, que vem tendo lugar há vários meses, desde o fim de outubro. Um passo inicial de grande importância foi dado pelo próprio ministro da Economia. Ao se desapegar de ideias preconcebidas e resistir à tentação de reinventar a roda, Paulo Guedes pôde tirar bom proveito de duas décadas de reflexão coletiva que redundaram na proposta de reforma do governo Temer e, mais recentemente, na proposta mais ambiciosa de Arminio Fraga e Paulo Tafner.

Na concepção da reforma, o ministro de Economia se vê obrigado a conciliar ousadia e viabilidade política. De um lado, a reforma tem de ser profunda e abrangente, para que possa fazer diferença no descalabro fiscal que hoje vive o país. De outro, tem de ter passagem, não só no âmbito do Poder Executivo, como no Poder Legislativo, que terá a palavra final sobre as mudanças propostas.

Não tem sido fácil explorar os limites do possível dentro do próprio governo, em cujo núcleo convivem visões muitos distintas sobre o grau de ousadia que deveria pautar a reforma. As recentes declarações desencontradas da cúpula do governo, acerca do teor da proposta de reforma que teria sido preparada pelo ministério da Economia, mostram que a discussão interna ainda não foi encerrada.

O maior desafio, contudo, tem sido conceber uma proposta de reforma que seja passível de aprovação no Congresso. Fragmentado, menos experiente e desprovido de grandes lideranças como agora está. E, quanto a isso, não deve haver ilusões. A resistência mais vigorosa à reforma advirá da enorme influência que o funcionalismo público ainda tem sobre deputados e senadores.

Como já argumentei em artigo publicado neste mesmo espaço há cerca de um ano, tal influência não decorre apenas da preocupação de cada parlamentar com a parcela do seu eleitorado constituída por servidores públicos. Isto pode até explicar o comportamento das bancadas do PT e de outros partidos de esquerda, ou de representantes ostensivos de corporações específicas do funcionalismo, como, por décadas, foi o caso de Jair Bolsonaro, na Câmara.

Pode também explicar o comportamento de parlamentares oriundos de unidades da Federação em que grande parte do eleitorado é composta por funcionários públicos e seus familiares, como é o caso do novo presidente do Senado. Mais da metade dos eleitores de Davi Alcolumbre reside em Macapá, cidade em que o funcionalismo público detém um terço de todos os empregos formais.

Para a maior parte dos parlamentares, contudo, as razões da resistência à reforma parecem ser bem mais simples e diretas. Com frequência, o parlamentar está enredado por complexa teia de interesses de toda uma extensa parentela de funcionários públicos — quase sempre bem posicionados —, tanto em Brasília como nos estados: cônjuge, pais, irmãos, cunhados, filhos, genros, noras, sobrinhos e netos.

Falta ainda um mapeamento mais objetivo das reais proporções desse enredamento que, em boa hora, poderiam ser levantadas pela mídia ou por esforços de pesquisa mais ambiciosos.

Conseguirá o Brasil superar tais resistências e, afinal, começar a mudar sua conduta?


Fábio Giambiagi: FHC e 2019

Não nos iludamos, o Brasil não vai mudar em 24 horas em 1º de janeiro, com o novo presidente

Por coincidência, ao mesmo tempo em que se iniciava o debate acerca da eleição de 2018, eu estava lendo o terceiro livro de memórias de Fernando Henrique Cardoso (FHC) acerca do seu período presidencial sobre os anos 1999/2000. Foi interessante avaliar o debate atual à luz das reflexões de FHC sobre o período em que conduziu o país. Um resumo das dificuldades é fornecido logo na apresentação, na qual ele diz: “Em nossa cultura política, e com o desenho político partidário em vigor, o presidente ou o governo só obtém maioria congressual com alianças. Precisa, portanto, entrar no corpo a corpo com os parlamentares para obter resultados legislativos, com toda a carga tradicional de redes de clientelismo e troca de favores. Com isso, ganha senão o repúdio, o distanciamento da sociedade. Para aprovar medidas legislativas, mesmo as requeridas pela maioria da sociedade, ou o governo tem o apoio de partidos e líderes, ou fica isolado e perde”.

Ao mesmo tempo, a chave — de notável atualidade — para entender os problemas está numa frase síntese emblemática das características nacionais, quando FHC explica a Arminio Fraga em 1999 como ele tinha que se conduzir na sabatina do Senado, antes de assumir a presidência do Banco Central: “O Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas não gostam do capitalismo, os jornalistas não gostam do capitalismo, os universitários não gostam do capitalismo. Eles não sabem que não gostam do sistema capitalista, mas não gostam. Eles gostam do Estado, eles gostam de intervenção.” (página 107)

Retomando as reflexões acerca das dificuldades de conciliar a agenda da modernização com a convivência com o “Brasil profundo”, FHC explica a vida como ela é: “(o partido) está amuado. Eles pretendem forçar a nomeação de pessoas... Estamos na difícil faina de defendermos o cofre e, ao mesmo tempo, obtermos os votos no Congresso. Nossa realidade política é assim... Temos que fazer uma tourada o tempo todo para evitar que isso vire um escândalo ou que eles usem esses recursos malversando-os. Ao mesmo tempo, não podemos romper, porque ... não há votos no Congresso.” (página 111)

E, em conversa com um amigo, reportada nas memórias, ele esclarece como funciona o mundo real: “Sem essa base eu não governo, e ela é assim mesmo. Não tenhamos ilusão de que no futuro, com a reforma dos partidos, haverá melhoras grandes. Mesmo que reformemos nossos partidos, a nossa cultura política é atrasada. Há interesses pessoais sobrepondo-se a tudo o mais, e os partidos vão continuar sendo aglomerados como são os que aí estão.” (página 113)

Tempos depois, numa das tantas crises que todo governo algumas vezes tem que enfrentar, ele analisa: “Isso tudo é consequência da percepção de impopularidade do governo; por causa da crise econômica, os parlamentares começam a botar as manguinhas de fora querendo afinar com a sociedade, mas esquecendo que a sociedade precisa das leis de transformação que estamos colocando em votação. Sobretudo a lei da Previdência. Toda vez que se fala em aumentar o tempo de trabalho para chegar à Previdência, as pessoas reagem fortemente.” (página 273; em 1999!!) E, algumas páginas depois, a propósito da demanda de um correligionário, ele explica o tipo de barganha própria do varejo parlamentar: “Tem um problema, que é o pai dele, uma pessoa que sempre apoiou o governo, tem 74 anos, precisa de uma posição num conselho qualquer para ter estímulo pessoal na vida, para ter algum interesse na vida.” (página 296)

A conclusão é amarga: “É sempre a mesma história, dificílimo governar um país com pluripartidarismo e quando se precisa de apoios para manter o governo; por outro lado, as brigas são encarniçadas em nível local — é realmente um sistema político dificílimo de manter à tona ... Essa choradeira é permanente, basta ler o livro do Getúlio, ela havia até no período do Império, é a mesma coisa: as regiões querem que o governo federal pague tudo para elas. É um federalismo de fachada.” (página 345)

O Brasil de 2002 era muito melhor que o de 1994, respeitando a democracia, entre outras coisas porque FHC era um estadista. Não nos iludamos: o Brasil não mudará em 24 horas dia 1º de janeiro. Quem vencer em outubro terá muito a aprender lendo essas reflexões.


Demétrio Magnoli: O PSOL e o PT diante de Ortega

O filósofo Guilherme Boulos, um lulista próximo do PT, tornou-se o candidato presidencial do PSOL. A filósofa Marcia Tiburi deixou o PSOL e tornou-se candidata do PT ao governo do Rio. As portas giratórias da filosofia borram a fronteira entre a extrema-esquerda e a esquerda. Haverá, ainda, alguma diferença de fundo entre os dois partidos? Daniel Ortega indica que sim: enquanto o PT declarava seu apoio à repressão na Nicarágua, o PSOL a condenava. A diferença, porém, não é o que parece — como indica Nicolás Maduro.

A Venezuela aboliu as prerrogativas da maioria parlamentar oposicionista eleita em 2005. O regime chavista cassou os direitos políticos dos líderes da oposição e encarcerou centenas de oposicionistas. Apesar de tudo, em notas oficiais, PT e PSOL ofereceram solidariedade incondicional a Maduro. Por que, tal como o PT, o PSOL perfilase à ditadura venezuelana, mas repudia as violências cometidas pelo governo nicaraguense?

Sociologicamente, o PSOL é diferente do PT. O partido de Lula nasceu do movimento dos trabalhadores do ABC. Já o PSOL, dissidência do PT, organizou-se como condomínio de facções esquerdistas. O PT estabeleceu-se como grande partido parlamentar e lançou extensas redes na direção do alto funcionalismo público e do empresariado. O PSOL, em contraste, segue circunscrito à periferia do sistema político. Não por acaso, seu candidato ao Planalto é um forasteiro, recém-filiado, que acalenta o projeto de criar um novo partido, nos moldes do espanhol Podemos. Entretanto, na esfera do discurso político, PSOL e PT rezam pela mesma Bíblia —ou quase.

No plano internacional, a “pátria ideológica” do PT é a Cuba castrista. Nem sempre foi assim. Na década de 1980, a revista teórica petista qualificou o regime castrista como uma imperdoável ditadura. Tudo mudou em 1990, quando Lula e Fidel Castro criaram juntos o Foro de São Paulo. O Foro, articulação de partidos da esquerda latinoamericana, foi inventado para servir como escudo diplomático do regime dos Castro, que cambaleava sob o golpe da queda do Muro de Berlim. Dali em diante, o PT sujeitou-se ao “controle externo” cubano em todos os temas essenciais para o castrismo.

Há pouco, diante do Foro reunido em Cuba, Dilma Rousseff e Mônica Valente, secretária de Relações Internacionais do PT, caracterizaram as manifestações populares na Nicarágua como parte de “uma contraofensiva neoliberal, imperialista”. Maduro, Ortega, pouco importa o nome: o partido de Lula não faz distinções entre governos alinhados com Cuba. O PT age como um partido comunista das antigas —só que, no lugar de Moscou, seu coração mora em Havana.

A candidata petista Marcia Tiburi cultiva o hábito de denunciar o “exercício de poder sobre o corpo” mas não se comove com os “exercícios de poder” dos regimes de Maduro ou de Ortega contra os “corpos” de manifestantes desarmados. O PSOL, ao contrário, distingue nitidamente um cassetete do outro. “Há muito tempo a gente não via na América Latina um governo com esse nível de repressão”, clamou Israel Dutra, secretário de Relações Internacionais do partido, comparando Ortega ao sírio Bashar al-Assad. É que, para o PSOL, só regimes “revolucionários” têm o privilégio de violar as liberdades públicas.

A Venezuela destruiu sua economia em nome do socialismo. Por isso, segundo o PSOL, o cassetete chavista é virtuoso. Ortega, por outro lado, segue fielmente a cartilha do FMI. Na Nicarágua, a esquerda cindida com o sandinismo participa ativamente da onda de protestos contra o governo. Por isso, segundo o PSOL, o cassetete sandinista é vicioso.

“Mora na filosofia/ Pra que rimar amor e dor”. PT e PSOL são igualmente coerentes, mas orientam-se por bússolas distintas. O PT, partido pragmático, curva-se aos interesses geopolíticos de Cuba. O PSOL, partido ideológico, curva-se a seus próprios delírios revolucionários. No fim, porém, os dois são galhos da mesma árvore filosófica. Para ambos, democracia e direitos humanos não passam de utensílios descartáveis: copinhos plásticos de festas infantis.


O Globo: TSE pode impedir que nome de Lula apareça na urna em outubro

Para Admar Gonzaga, certidão seria ‘prova’ de inelegibilidade

Jeferson Ribeiro | O O Globo

CURITIBA- O ministro Admar Gonzaga, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), afirmou ontem que o pedido de registro de candidatura à Presidência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ser rejeitado de ofício pela Justiça Eleitoral — ou seja, antes mesmo de haver uma solicitação formal do Ministério Público ou de algum partido político pela impugnação. A declaração reforça o entendimento já manifestado pelo atual presidente do TSE, ministro Luiz Fux.

Gonzaga explicou que, entre os documentos que o candidato apresenta para requisitar o registro, está uma certidão que demonstra se ele tem alguma sentença imposta por órgão colegiado. Lula foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em segunda instância, portanto, está inelegível, de acordo com a Lei da Ficha Limpa. Então, segundo o ministro, o relator do caso no TSE poderia imediatamente negar o registro, sem permitir a abertura de prazos recursais.

— Quando se almeja o cargo de presidente da República, não podemos brincar com o país. Não podemos fazer com que milhões de brasileiros se dirijam à urna para votar nulo. Não contem comigo para isso. Na hora em que ele (candidato) traz uma certidão e uma prova da sua inelegibilidade, e eu sou um juiz — e isso já tem jurisprudência de 50 anos —, eu posso rejeitar o registro de ofício. A certidão (que comprova a condenação criminal) tem fé indiscutível. Eu vou perguntar a ele (candidato) alguma coisa? Ele confessou para mim, juiz, que é inelegível. Me desculpem, a decisão vai ser de ofício — disse Gonzaga no debate promovido pelo Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, em Curitiba.

O ministro acrescentou que o relator do caso também poderia negar o registro de ofício e pedir ao plenário do TSE que julgasse a decisão, para que não restassem dúvidas. Gonzaga, no entanto, considera que não há necessidade de contestar as provas fornecidas pelo próprio candidato sobre sua inelegibilidade.

A opinião do ministro provocou reações. O advogado Luiz Fernando Pereira, que também participava do debate, defendeu que, enquanto um candidato pode ter a sua condenação revertida em outras instâncias — situação de Lula— , ele pode conseguir uma liminar para disputar a eleição. No caso de um candidato à Presidência, o advogado sustentou que a decisão favorável à rejeição do registro não poderia ter eficácia imediata por dois motivos: o candidato pode conseguir uma suspensão em uma Corte superior e, segundo ele, há uma jurisprudência do TSE que só poderia mudar um ano antes do pleito, para respeitar o princípio da anualidade.

— Essa jurisprudência pode até mudar, é até razoável. Mas, se fizerem isso, que deixem bem claro o que está acontecendo — afirmou.

DIREITO AO CONTRADITÓRIO
Já o advogado Gustavo Guedes concordou com o ministro sobre a possibilidade de o TSE decidir sobre o registro e não esperar uma possível liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do Supremo Tribunal Federal (STF) para aplicar os efeitos da rejeição. Ele ponderou que seria necessário permitir o direito ao contraditório para o candidato que solicita o registro mesmo depois de condenado. Ele alertou, ainda, que a decisão sobre a possibilidade de Lula concorrer será a mais importante que o TSE tomará em todos os tempos.

— Para não brincar com o país, o TSE deve fazer um rito para ter contraditório e, se o candidato não conseguir a liminar (no STF ou no STJ), não poderá continuar em campanha. Não há teste maior para o TSE do que uma questão como essa. Há uma condenação criminal muito bem fundamentada pelo TRF-4 e um líder nas pesquisas do país. Se esse é um teste máximo, nós devemos enfrentar e não podemos julgar o Lula diferente do que julgaríamos um candidato a prefeito — argumentou.


Época: A crise e as eleições por dois respeitados intelectuais brasileiros

Por Ruan de Sousa Gabriel, de O Globo / Época

A greve dos caminhoneiros torna mais aguda a crise política que o Brasil vive?
ANDRÉ SINGER - A crise que estamos vivendo agora é decorrência da ruptura inconstitucional que ocorreu em 2016. A derrubada da Dilma por um golpe parlamentar, por uma manobra, representou um esgarçamento da democracia. A fraqueza do governo Temer, que fica visível com a crise dos caminhoneiros, é consequência dessa ruptura institucional. É um governo que tem muita dificuldade para encaminhar uma solução para uma situação desta gravidade. Infelizmente, o que estamos vivendo é consequência de um conjunto de decisões muito mal encaminhadas desde aquela época. Temos de conseguir atravessar este período difícil para chegar até as próximas eleições dentro de condições normais, dentro do calendário normal e, com isso, conseguir virar essa página. A legitimidade do governo Temer é muito baixa. Portanto, ele tem muita dificuldade para solucionar situações como esta que estamos vivendo. A crise é consequência da ruptura institucional e do esgarçamento da democracia que começou a ocorrer com o impeachment da ex-presidente Dilma.

BRASILIO SALLUM - Nossa democracia está em crise. Essa crise se manifestou no impeachment de Dilma e nas tentativas de impedir o presidente Temer. O exercício do poder ficou muito difícil. A situação na qual ocorreram as paralisações dos caminhoneiros já era uma situação de fragilidade. Temer não tem força para dirigir o processo. A greve dos caminhoneiros não enfraqueceu o governo. O governo já estava fraco. O Estado brasileiro não consegue definir seus rumos. Não é uma crise nova. Estamos em crise há muito tempo. O impeachment da Dilma foi uma “solução” institucional que não superou a crise. É uma crise grave, que afetou muito a organização do Estado brasileiro, deslegitimando todo o sistema político, que se assentava num solo de corrupção. A greve dos caminhoneiros revelou a fragilidade do governo, as dificuldades do governo para exercer autoridade. Mas tudo isso já vem de muito tempo.

Foi golpe?
AS - Foi golpe. É preciso reconhecer que a Constituição prevê o impeachment, mas exige a comprovação de crime de responsabilidade, o que jamais ficou demonstrado. Logo depois da reeleição de Dilma, diversas forças políticas, como o PSDB, começaram a questionar a legitimidade da presidente. Nos bastidores, Eduardo Cunha começou a trabalhar para que a presidente não concluísse seu mandato. E a extrema-direita começou a fazer manifestações pelo impeachment imediatamente, uma pauta que, na época, ninguém assumia. Até o PSDB era crítico da ideia de um impeachment sem base. Essa falta de embasamento jurídico persistiu. O impeachment de Dilma claramente não se sustenta do ponto de vista legal. É por isso que eu afirmo que, sim, houve um golpe parlamentar.

BS - Não foi golpe. O termo “golpe parlamentar” é uma figura de retórica que foi utilizada por quem perdeu. Collor também falava em “golpe parlamentar”. Temos de reconhecer o valor das regras democráticas. Os perdedores da disputa democrática não devem desqualificar as regras. Não se pode dizer que o impeachment não tem base jurídica ou que dois terços da Câmara e do Senado são golpistas porque concluíram que as pedaladas fiscais constituem crime de responsabilidade. Os perdedores podem discordar da tese, mas isso não transforma os outros em golpistas. Infelizmente, esse discurso do “golpe” se manteve, o que prejudica a democracia, pois desqualifica as regras segundo as quais vivemos. Mas, principalmente, esse discurso do “golpe” é um equívoco político tremendo porque tira do principal partido de esquerda do país a capacidade de negociar ao desqualificar seus adversários e transformá-los em inimigos.

Por que Dilma caiu se, diferentemente do que aconteceu no impeachment de Collor, não havia um amplo consenso das forças políticas em favor de sua destituição?
AS - Também por isso podemos falar em golpe. Para derrubar Dilma, formou-se uma maioria relativa para atender ao número de votos que a Constituição exige. No entanto, não se formou nenhum consenso capaz de um impedimento, ao contrário do que ocorreu na época do ex-presidente Collor. Naquela época, havia um consenso no Congresso e na sociedade de que o mandato tinha de ser interrompido porque havia crime de responsabilidade. Nada disso aconteceu agora. Repito: formou-se uma maioria relativa, mas não um consenso que garantisse, além de razões legais, bases sociais e políticas para sustentar o impedimento.

BS - No impeachment de Collor, houve um consenso entre as forças políticas que tinham promovido a redemocratização e a Constituição de 1988. Essas forças políticas democratizantes se articularam numa frente para evitar que Collor atuasse antidemocraticamente. Ele agia de forma extremamente voluntarista, não seguia as regras do presidencialismo de coalizão. Collor tinha uma coalizão precária e suspeitas de corrupção pessoal. No caso de Dilma, houve uma sucessão de equívocos da presidente, que tinha uma extraordinária dificuldade de manejar o sistema político — além de uma crise econômica terrível. Nos dois casos, eram presidentes voluntaristas e incapazes de manejar as demandas do Congresso. O que torna extraordinário o impeachment de Dilma é que não havia acusação de corrupção contra ela. Ela caiu por inabilidade política.

Qual o peso da economia na queda de Dilma?
AS - Enorme. É difícil quantificar, porque também houve a Lava Jato e a formação de uma frente antirrepublicana, comandada por Eduardo Cunha e Michel Temer. Mas, claro, a economia pesou muito. A ex-presidente tomou decisões econômicas consistentes. O problema não foi de competência. Não quero dizer que não tenha havido erros técnicos, mas, sim, que houve um plano econômico defensável e consistente, que respondia às demandas dos principais setores industriais, como desvalorização do real, queda dos juros e medidas de proteção à indústria. A nova matriz econômica era consistente, mas perdeu o apoio dos industriais. Dilma fez tudo isso para alavancar o investimento industrial, mas os empresários começaram a reclamar que o governo era muito intervencionista. Mas o governo intervinha em favor da indústria. Há um paradoxo político aí. De fato, em meados do primeiro mandato, Dilma perdeu uma base de apoio fundamental e não conseguiu se recuperar dessa perda.

BS - Tremendo. Houve a junção de duas coisas: crise econômica e suspeita de corrupção. O ritmo da economia caiu violentamente a partir de 2014. A crise, combinada à percepção de corrupção no governo petista, criou um mal-estar que justificou a paulatina oposição dos empresários, que, inicialmente, apoiavam Dilma.

Houve sete impeachments na América Latina entre 1992 e 2015. Esse número elevado contribui para a instabilidade das democracias da região?
AS - O impeachment é um recurso constitucional para ser usado muito raramente. Na América Latina, o impeachment está se tornando uma espécie de semiparlamentarismo. Governos muito fracos são interrompidos, o que é um recurso típico de regimes parlamentaristas. Nestes, os governos caem quando não têm mais maioria parlamentar. Mas, na América Latina, não há parlamentarismo, e sim presidencialismo. Esse uso do impeachment é uma completa distorção de sua finalidade.

BS - As democracias latino-americanos têm demonstrado extraordinária resistência. Os governos civis se mantiveram. Nos últimos 30 anos, os principais países do continente têm apresentado crescimento econômico medíocre se comparado ao desenvolvimento econômico pujante que ocorreu entre os anos 1930 e 1980. Depois dos anos 1980, houve uma queda assustadora do ritmo de crescimento. Nesse contexto de pobreza relativa, a preservação das regras democráticas é positiva. As quedas de presidentes simplesmente atestam que um presidente não pode governar de forma voluntariosa. Quando um presidente ultrapassa certos limites, ele não se sustenta mais. Ou se sustenta apenas na base da opressão.

O parlamentarismo garantiria democracias mais estáveis?
AS - Esse discurso confirma a hipótese do uso indevido do impeachment. No caso da presidente Dilma, o impeachment foi usado nesse espírito semiparlamentarista por forças que estavam, sim, muito inclinadas a sugerir a implantação do parlamentarismo no Brasil. Isso é ruim. Impeachment é uma coisa. Adoção do parlamentarismo é outra discussão. Eu defendi o parlamentarismo no plebiscito de 1993. No entanto, a política brasileira real acabou se configurando com a oposição entre um partido popular e um partido de classe média. Embora haja também um terceiro partido, que eu chamo de partido do interior, o MDB. A adoção do parlamentarismo inviabiliza a possibilidade de o partido popular chegar ao poder, porque o Parlamento tende a ser dominado pela aliança entre o partido de classe média e o partido do interior. Foi essa a aliança do impeachment. Na prática, o parlamentarismo no Brasil funcionaria como um filtro. Só chegariam ao poder aqueles que conseguissem compor com um Congresso dominado pela aliança desses dois partidos. No presidencialismo, o confronto entre o partido de classe média e o partido popular permite que as grandes questões brasileiras sejam decididas a cada quatro anos na eleição presidencial, quando a população se manifestar.

BS - O parlamentarismo é sempre mais estável, porque a queda de primeiros-ministros é corriqueira. A adoção do parlamentarismo não vale a pena porque a população já mostrou adesão ao presidencialismo. Melhorias podem ser implementadas para tornar o sistema presidencialista mais democrático e funcional, como mudar as regras eleitorais para que o Congresso esteja em sintonia com a sociedade. Atualmente, os representantes estão muito dissociados dos representados. O vínculo entre representantes e representados é fundamental para fortalecer o Parlamento e fomentar uma independência em relação ao Executivo que não seja voluntarista, mas em sintonia com os eleitores.

Um presidente forte, que conte com a legitimidade do voto popular, poderia reorganizar o sistema partidário?
AS - Não sei se o próximo presidente, se possuir a necessária capacidade de negociação, seria capaz de estancar a fragmentação partidária. No melhor dos cenários, ele seria capaz de agilizar uma reforma política, o que depende do Congresso, que nunca quer debater esse tema por entender que se beneficia da atual fragmentação do sistema.

BS - Um presidente forte é um presidente que carrega o prestígio eleitoral. Isso lhe garante uma janela de oportunidade para propor reformas. A reforma política deve ser prioridade.

Como possibilitar a renovação política?
AS - É preciso estabelecer um consenso na sociedade em torno de mecanismos como o voto em lista fechada. O eleitorado brasileiro está pouco informado e tende a achar que o voto em lista fechada reforça as burocracias partidárias em detrimento da liberdade do eleitor. Mas não é isso, sobretudo se, junto com a lista fechada, estabelecermos mecanismos como primárias que obriguem os partidos a se abrir para a votação de todos os cidadãos na hora de escolher os candidatos. Há uma série de mecanismos institucionais que poderiam ser adotados para, progressivamente, evoluirmos para uma democracia mais participativa, transparente, ideológica e representativa. Mas não sou otimista no que se refere a uma renovação dos quadros políticos, porque os partidos não estão conseguindo responder às demandas da população. Os partidos precisam prestar contas e tornar crível seu compromisso de mudar suas práticas para recuperar credibilidade. Não tenho nada contra quem defenda renovação política, mas será muito difícil uma renovação que descarte toda uma camada de políticos profissionais que sabem como o sistema funciona porque estão nele há décadas. Nenhum país que eu conheça conseguiu fazer isso, senão por meio de uma revolução. O Brasil enfrenta uma crise complexa, mas não há processo revolucionário em curso. É possível que, em 2019, vejamos mais ou menos as mesmas figuras no Congresso Nacional.

BS - A Operação Lava Jato mostrou que o sistema político é baseado em corrupção há muito tempo. Precisamos alinhavar sistemas eleitorais que sejam mais representativos e mais baratos. Temos de reduzir os custos das campanhas para que o dinheiro do fundo partidário seja suficiente e não haja um estímulo para políticos profissionais absorverem dinheiro de empresas que prestam serviços ao Estado. O voto distrital misto é um meio razoável de baratear as campanhas e aumentar a representatividade.

A polarização PT-PSDB — mesmo que representada por forças políticas próximas a esses partidos — tende a se repetir nas eleições de 2018?
AS - A polarização entre uma alternativa de classe média e uma alternativa popular tende a se repetir. Como essas alternativas vão se representar é um enigma. O panorama está muito confuso. Em que pesem todos os problemas que enfrentam, PT e PSDB continuarão a ser partidos importantes, pela experiência adquirida, pela capacidade de chegar aonde outros partidos não chegam, pelas lideranças que detêm. E também pelos programas que apresentam, que, de alguma maneira, recolocam as grandes questões nacionais, como a intervenção ou não do Estado na economia. PT e PSDB vão preservar algum grau de influência, mas não sei se será a mesma influência que tiveram entre 1994 e 2014.

BS - Seria desejável a repetição dessa polarização, com candidatos como Geraldo Alckmin e Ciro Gomes. Alckmin é um liberal democrata, um homem experiente, que não promete nenhuma maluquice. Ele tem capacidade de governo, é um homem de partido e não está envolvido em corrupção. Ciro é personalista, mas não representa um risco de ruptura. Apesar do personalismo, ele vai se articular com outros partidos. Foi governador, tem experiência administrativa. Não podemos ter um principiante na Presidência.

Lula não poderá concorrer e os outros pré-candidatos disputam seu espólio eleitoral. Quem será o herdeiro político do lulismo?
AS - É difícil fazer previsões porque é uma situação completamente inédita. Minha aposta é que o ex-presidente Lula, chegado o momento, terá um comportamento racional. Ele sabe que detém vários ativos — votos, liderança, popularidade — que podem garantir a sobrevivência do PT. O PT não é pouca coisa. Continua sendo o maior partido brasileiro. Acredito que Lula fará um movimento no sentido de preservar o PT. Em um momento que é difícil determinar, acredito que ele indicará o nome que seja mais interessante para o PT.

BS - Não vejo outras pessoas que tenham essa capacidade que Lula tem, de ser uma esquerda de composição. O PT, como os outros partidos, não produziu novas lideranças. Não se renovou. As lideranças políticas que temos hoje vieram da redemocratização e envelheceram sem que novos líderes fossem produzidos.

Ciro quer ter um empresário como vice em sua chapa. Ele repete o movimento lulista de 2002 ao acenar para a esquerda ao mesmo tempo que convida um patrão para compor sua chapa? O empresário José Alencar foi vice de Lula.
AS - A filiação do industrial Benjamin Steinbruch ao PP para ser vice de Ciro indica o movimento de aproximação do programa lulista, que é de transformação dentro da ordem. Ciro entendeu o que o lulismo fez e procura repetir essa fórmula. O problema é que ele não é do PT. O PT é central para o futuro do lulismo. O ex-presidente Lula apostou no futuro ao ficar no Brasil e se entregar à Polícia Federal e, assim, perpetuar sua liderança e o lulismo. Pesa bastante o fato de Ciro não ser do PT. Ele tem adotado um movimento de se afastar do PT, o que dificulta a possível incorporação dele ao futuro lulista. Não entendo muito bem por que ele faz esse movimento de aproximação do lulismo e afastamento do PT.

BS - Ciro é uma liderança personalista, não é um homem de partido. É um candidato forte. É provável que lideranças petistas o apoiem. Ele tem capacidade de atrair quadros lulistas. Mas, repito, ele não é um homem de partido, é uma liderança personalista. Espero que, se chegar à Presidência, consiga moderar seus impulsos para lidar com o Congresso.

O lulismo é capaz de sobreviver sem Lula e sem o PT?
AS - Lulismo sem Lula é como peronismo sem (Juan Domingo) Perón (presidente argentino). Lula plantou uma perspectiva que deve durar. Ele continua atuando, mesmo restrito pela prisão. Os lulistas estão fazendo um grande esforço para que ele continue a ser um líder, mesmo na prisão. Não vejo como o lulismo possa continuar sem o PT.

BS - O lulismo não sobrevive sem Lula. O mais preocupante é que o petismo aparentemente se transformou em lulismo. O PT não é mais um partido capaz de projetar um programa e lutar por ele. A possibilidade de o PT continuar como partido será definida neste ano. Do jeito como as coisas estão andando, o PT pode desaparecer como referência, porque ele depende pura e simplesmente de Lula. O partido vive uma situação muito complicada: ele precisa definir uma maneira de seguir sem a candidatura Lula e propor um programa para o país. Eu temo que, ao insistir na tática de defender a candidatura Lula, o partido perca sua relevância.