O Globo

Roberto Freire: O novo pede passagem

É preciso ter cuidado para identificar os interesses escusos

Em meio à descrença generalizada que se espraia pela sociedade em relação à política partidária e aos políticos, especialmente em função da degradação moral que envergonha o país, parece consensual a tese de que é necessária a aprovação de novas regras válidas já a partir das próximas eleições de 2018. A grande questão é se haverá disposição e coragem para que se leve adiante uma reforma que modifique profundamente as estruturas estabelecidas e, sobretudo, crie condições para o surgimento de mecanismos que libertem a cidadania e possibilitem uma outra política.

No bojo desse inadiável debate, é preciso ter cuidado para identificar os interesses escusos que buscam criar “cortinas de fumaça” para confundir a opinião pública, oferecendo respostas simples para problemas complexos, de modo que nada significativo venha a ser de fato alterado. Em nome dos grandes partidos — justamente os protagonistas das malfeitorias reveladas pela Operação Lava-Jato —, o que tem se buscado é “mudar algo para que tudo continue como está”, para citarmos a frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa em “O Leopardo”, imortalizada no cinema por Luchino Visconti.

A legislação que regula a atividade partidária no Brasil impõe uma série de restrições que impedem a oxigenação do ambiente político e praticamente afastam a possibilidade do surgimento de novas forças representativas da cidadania. Tudo o que se discute no Congresso são meros remendos que continuam a beneficiar a velha ordem. Pouco importa se serão fechadas ou abertas as listas de candidatos ou, em especial, o grande achado das cláusulas de barreira, pois todas essas alterações asseguram a manutenção e a primazia dos atuais grandes partidos. Tais reformas impedem que novos atores de representação da cidadania surjam e se afirmem nos processos eleitorais.

Entre as inúmeras distorções do sistema atual, talvez a mais grave seja o acesso indiscriminado e irrestrito aos recursos do Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e na TV. Diante das facilidades para que todas as legendas recebam o dinheiro do Fundo, foi criado um balcão de negócios à custa do dinheiro público. Isso tem de acabar. Entretanto, ao invés da restrição arbitrária e antidemocrática à criação de novas agremiações, o que se deve limitar é o acesso ao Fundo Partidário apenas às legendas que alcançarem, pelo voto, uma representação mínima na Câmara.

É preciso construir novas regras que, ao romperem com o monopólio dos atuais grandes partidos, garantam o mínimo de visibilidade aos novos entes partidários ou movimentos políticos, inclusive às candidaturas avulsas. A democracia brasileira só avançará se levarmos a cabo uma reforma política que preze a liberdade total e uma maior participação da cidadania, sem nenhum tipo de tutela ou restrição. Que tenhamos coragem de defender e aprovar uma reforma que seja digna do nome e que, efetivamente, mude regras, práticas e costumes que a sociedade brasileira não tolera mais. O novo pede passagem.
* Roberto Freire é deputado federal (PPS-SP) e presidente nacional do PPS

 


Fernando Gabeira: Luzes e trevas

É o momento de avaliar não só um governo, mas todo o processo de redemocratização. A notícia da condenação de Lula chegou num momento especial. Acabara de escrever um artigo sobre o apagão no Senado. E comparava aquilo aos apagões nos estádios de futebol: a luz volta aos poucos. E concluía que, no universo político, as luzes só voltarão completamente em 2018. A condenação de Lula é uma pequena lanterna para enxergar parcialmente o cenário das eleições presidenciais.

A estratégia de lançar a candidatura para escapar da Justiça, de politizar o processo, sofreu um golpe. Talvez por falta de alternativa, a esquerda pode insistir nela. Mas é um equívoco fixar-se no destino de uma só pessoa e esquecer o país. O Tribunal Regional em Porto Alegre pode levar até nove meses para julgar um recurso, uma condenação fundada em provas testemunhais, documentais e periciais. Pode até levar mais. Legalmente é possível ser candidato. Mas será preciso levar um guarda-roupas de candidato e uma malinha com as coisas indispensáveis na cadeia.

O candidato vai se mover sempre com essa espada na cabeça, e supor que isso não influa na sua viabilidade só é possível aos que o seguem com um fervor religioso. Ao mesmo tempo em que Lula era condenado por Sergio Moro, a Câmara discutia se aceitava ou não a denúncia contra Temer.

Embora esses fatos apareçam de forma isolada, fazem parte de um mesmo processo histórico. O governo petista caiu, em seu lugar ficaram os cúmplices da aventura que arruinou o país. Agora, a coisa chegou a eles.

Um ex-presidente condenado, um presidente denunciado, dois presidentes impedidos. É o momento de avaliar, não só um governo mas todo o processo de redemocratização.

É possível começar de novo? As diretas eram uma bandeira clara. A luta contra a corrupção, também. Mas o principal cenário dessa luta acontece na Justiça, onde os processos correm.

Resta o caminho eleitoral. Em alguns países da Europa, como a Dinamarca, num determinado momento, e a França agora, eleições costumam ser um sopro de vida ao sacudir um sistema envelhecido. Aqui no Brasil, o sistema não apenas envelheceu mas também se corrompeu. Muito possivelmente a renovação será orientada por valores que estiveram soterrados nesse período. No entanto isso não basta. Estamos vivendo problemas diante dos quais apenas a honestidade não resolve. As questões emergenciais estão aí, muitas delas decorrentes do colapso dos governos corrompidos.

Segurança, por exemplo. Meu projeto era escrever sobre isso até apagarem as luzes do Senado e ver aquelas mulheres comendo quentinhas. Isso me fez refletir sobre luzes e trevas.

Mas quando pensava em segurança, minha ideia era mostrar alguns reflexos psicológicos de quem mora numa cidade como Rio. Um deles é o perigo de se acostumar com a violência. Começava por mim mesmo. Vivo na base de um morro onde sempre houve tiroteio. Numa visita a Porto Príncipe, no Haiti, hospedado na casa de um diplomata brasileiro, ouvi tiros ao longe. Virei para o canto e dormi como se estivesse em casa.

Não sei que impacto teria a morte de inocentes em outros lugares. Mas a morte de crianças e adolescentes no Rio é recebida com uma certa resignação.

O terrorismo não é o melhor parâmetro. Mas suas vítimas são cultuadas e as próprias autoridades aparecem para visitar as famílias. Absortos em suas manobras defensivas, os políticos não têm sensibilidade para isso. Nem espero que tenham nesta encarnação.

No entanto, não importa que governo fique de pé, é essencial conseguir dele alguma resposta à violência urbana. Na verdade, seria necessário que tivesse uma visão clara de como gerir os colapsos que explodem em vários pontos da máquina.

A sucessão de crimes nas cidades e sucessão de escândalos no poder produziram uma certa anestesia. Suspeito que muita gente vai se perguntar se ainda vale a pena gastar alguma energia em mudanças. Creio que uma resposta negativa tende a perpetuar essa etapa constrangedora da história moderna brasileira.

Não porque goste de eleições e tenha muita paciência com o festival de demagogia que gravita em torno delas. É que não vejo outra saída. Ainda assim uma saída estreita, precária. Esta é sociedade mais extensamente informada de nossa história moderna. Talvez consiga um Congresso renovado que, apesar de modesto, pelo menos não atrapalhe.

A política tornou-se um tema central porque a corrupção e suas consequências roubaram a cena. Sem esses fatores dispersivos, é possível concentrar mais energia em campos que, realmente, nos empurram para a frente: trabalho, inovação, conhecimento.

A política terá o seu papel, que certamente vai se desenhando pelo caminho. Mas não pode mais ser essa pesada mala nas costas do país. Mala cheia de malinhas: dinheiro, joias, obras de arte, cartões de crédito, contas no exterior.

Mas o grande peso mesmo não é monetário. É a perda de esperança num futuro comum, o eclipse de um sentimento de país.

* Fernando Gabeira é jornalista

 


Marco Antonio Villa: Adeus, Temer. E depois?

Impeachment deu a falsa ilusão de que tudo estaria resolvido com a mera substituição do titular do Planalto por Temer

Não há na nossa história republicana nenhum caso de um presidente que tenha tido uma agonia política tão longa como a de Michel Temer. No início da República, Deodoro da Fonseca, após ter fechado o Congresso Nacional, permaneceu mais uma quinzena no poder antes de ser obrigado a renunciar, após a rebelião da Marinha, entregando o governo a Floriano Peixoto. Mais de meio século depois, Getulio Vargas resistiu 19 dias até a tragédia do 24 de agosto de 1954. A crise de novembro de 1955 foi resolvida no próprio mês, mesmo tendo três presidentes em um curto espaço de tempo. Já em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, em duas semanas, fundamentalmente, foi possível encontrar uma solução para o impasse sucessório. Três anos depois — e, neste caso, com a decisiva presença militar — em alguns dias foi construída uma nova situação política. Agora, mesmo tendo instituições um pouco mais sólidas do que nos momentos históricos citados, nada indica que seja possível encontrar, a curto prazo, um caminho que retire o país da mais profunda crise da nossa história.

Com a redemocratização, foi construído um estado democrático de direito que não conseguiu lançar os fundamentos de uma República democrática. Pelo contrário, a institucionalidade acabou — graças à sua complexidade e ausência de controle público — dando guarida segura àqueles que conspiraram sistematicamente contra os valores republicanos. O que deveria servir como um instrumento de defesa da cidadania acabou, ao longo de três décadas, sendo utilizado para garantir legalmente — por mais paradoxal que pareça — uma República apodrecida pela corrupção.

Os republicanos passaram por diversos momentos de desilusão política. A cada aparente ruptura, vinha — em seguida — a desilusão. E isso desde o 15 de novembro de 1889, passando por 1930, 1945, 1964, 1985 e, especialmente para a conjuntura que vivemos, 1988 e a sua “Constituição cidadã.” De Saldanha Marinho, lá no início do governo Deodoro, até a atual sociedade civil — participante, ativa, que transformou as redes sociais em instrumentos de combate político — todos dizem que não vivemos na República dos nossos sonhos.

A cada dia fica mais profundo o fosso que separa o cidadão comum da elite dirigente — elite dirigente, entenda-se, dos Três Poderes da República. O poder continua petrificado, de costas para a sociedade. Não quer saber de mudança. Quer manter, na essência, tudo como está. Basta recordar que estamos a cerca de um ano das eleições presidenciais e nada indica que haverá uma profunda alteração do que vivemos no processo eleitoral de 2014. Ou seja, teremos o habitual jogo sujo, com os mesmos partidos políticos, com os marqueteiros de sempre, os eternos candidatos e os ridículos debates. E no segundo turno, se houver, teremos dois candidatos representando frações eventualmente distintas do grande capital. E a cidadania? Ah, esta pouco importa — ou melhor, importa só como eleitor, naqueles segundos em frente à urna eletrônica.

Desta forma, a crise do governo Temer é muito mais profunda. Que o presidente não está à altura do momento histórico, disso não há dúvida. Poderia liderar o país até o processo eleitoral de 2018, mas se apequenou, seduzido pelas benesses financeiras do poder. Resta agora, desesperadamente, se manter à frente do governo, manobrando da forma mais vil. Contudo, nada indica que deva permanecer até 31 de dezembro de 2018.

Mas se o problema fosse somente Michel Temer, tudo poderia facilmente ser resolvido. A questão é mais complexa, é estrutural. Não estamos passando por uma crise política, o que não é pouco, como tantas outras na História do Brasil. Agora há uma crise sistêmica que atinge os Três Poderes. Temer, Lava-Jato, JBS, Dilma, Odebrecht, Lula, Aécio et caterva são faces conhecidas de um sistema que entrou em colapso.

O processo do impeachment deu a falsa ilusão de que tudo estaria resolvido com a mera substituição do titular do Palácio do Planalto. Ledo engano. Tanto que, no “novo governo”, grande parte da base parlamentar é a mesma da antiga situação e, inclusive, teve — e ainda tem — no Ministério Leonardo Picciani, que votou contra a autorização para a abertura do processo contra Dilma Rousseff.

Entre as principais forças políticas com representação no Congresso, há um relativo consenso de que tudo o que ocorreu nos últimos anos não passou de mero acidente de percurso. Algo inevitável, típico de uma jovem democracia. Insistem na falácia de que as instituições estão funcionando, mesmo em meio aos escândalos que transformaram o Brasil no país mais corrupto do mundo ocidental. É a velha conciliação, sempre presente na nossa história, principalmente nos momentos de tensão política.

Desta vez, dada a profundidade e magnitude temporal da crise, é provável que a conciliação fracasse. Isso só poderá ocorrer se a sociedade civil tiver uma ação ativa e propositiva. E aí mora um dos problemas. Fazer o quê? Como? Quais são as propostas? De que forma encaminhá-las? Como combinar a institucionalidade vigente com ideias de reorganização do aparelho de Estado? E de que forma construir o novo em meio a uma estrutura arcaica, que impede as mudanças?

Michel Temer deve logo abandonar o Palácio do Planalto. Mas a crise sistêmica vai permanecer. Ela é muito mais profunda do que a mera substituição do presidente. E se for seguido o velho figurino brasileiro — o que é mais provável — permaneceremos em meio à turbulência nos próximos anos, com reflexos diretos na economia e na sociedade.

* Marco Antonio Villa é historiador

 


O Globo: Fragilização de Temer fortalece alternativa Maia

Relatório na CCJ é uma derrota do presidente, que deseja um processo rápido de votação para evitar o aprofundamento do desgaste político contínuo

Já era esperado que o relator do pedido de licença para que o presidente Michel Temer seja julgado no Supremo pelo crime de corrupção passiva, deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ), aprovasse a admissibilidade do processo. Na sessão de ontem da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Zveiter, advogado de profissão, disse que a denúncia encaminhada pela Procuradoria-Geral da República contém “sólidos indícios de práticas delituosas”.

A defesa de Temer, feita por Antonio Cláudio Mariz, seguiu a linha da tentativa de desconstruir a denúncia pela suposta falta de provas. Por exemplo, de que os R$ 500 mil guardados na mala com que Rocha Loures foi filmado nas ruas de São Paulo seriam mesmo para o presidente.

O fato é que começa a se desenhar a saída de Temer, por até 180 dias, com a posse do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para esperar o veredicto do STF, e, se houver a condenação do presidente, convocar uma eleição indireta em 30 dias, à qual o próprio Maia poderia ser candidato de consenso da base do governo.

A rigor, a crise política que desgasta o governo Temer transita em pista dupla: da consolidação do entendimento de que a posição do presidente é indefensável, e pela via das negociações no Congresso em torno de um nome que possa levar o país até as eleições de 2018, daqui a pouco mais de um ano. É neste contexto que se fortalece Rodrigo Maia, também aceito por ter forte compromisso com as reformas. Definido este consenso, Temer terá ainda mais dificuldades políticas.

Por tudo já conhecido até agora — desde a revelação pelo GLOBO da gravação por Joesley Batista de sua conversa nada republicana, em altas horas, com Michel Temer, no porão do Palácio do Jaburu —, as provas e indícios contra o presidente são fortes. Da temática daquela conversa — cuidados pecuniários com Eduardo Cunha e Lúcio Funaro, para não fecharem acordos de delação — à propina acertada com Loures, indicado por Temer para o empresário tratar de qualquer assunto.

O tempo corre contra Temer, à medida que as informações decantam na opinião pública. Daí o Planalto querer que as votações ocorram logo na Câmara — na CCJ e, depois, no plenário. Quebra-se, também, uma espécie de encanto que se tentou criar em torno de Temer, vendido no mercado das esperanças como o único capaz de garantir as reformas. Quando, na verdade, passou a ser o contrário, à medida que o inquilino do Planalto, fragilizado, deixou de ter condições de aprová-las, a não ser negociando-as no balcão do toma lá dá cá. E assim, tornando-as inócuas. Uma aprovação de fantasia.

Haja vista o exemplo da reforma trabalhista, em que o Planalto emite sinais de recuar no fim do imposto sindical, tornando-o uma contribuição espontânea, mas por etapas. Assim, será perdida chance preciosa de se moralizar a vida sindical, tornando as agremiações de fato representativas, inclusive as patronais, sem espertalhões acostumados ao acesso fácil do dinheiro público, arrecadado pelo imposto que precisa ser extinto.

Fica cada vez mais evidente, na prática, que a Constituição tem o mapa do caminho para a saída da crise, por definir de maneira clara o rito para a saída de Temer ou a sua permanência.

 


Sérgio Besserman Vianna: Corredores da vida 

Temos o poder de degradar severamente a natureza de nosso tempo

O Ministério do Meio Ambiente criou o Programa Conectividade de Paisagens — Corredores Ecológicos, aos quais está dando prioridade. Governos estaduais e municipais, empresas privadas, ONGs e atores sociais e individuais também procuram priorizar em seus programas de reflorestamento a conectividade entre territórios conservados ou sendo restaurados.

Parece algo importante, mas é muito mais do que isso. Um quadro com nove “limites planetários” — espaço operacional seguro para a manutenção da humanidade — foi definido em 2009 por um grupo de cientistas ambientais liderado por Johan Rockström, do Stockholm Resilience Centre, na Suécia, e Will Steffen, da Universidade Nacional Australiana.

Os “limites do planeta” não são um problema para a natureza da Terra. Esta conta seu tempo em milhões, dezenas de milhões de anos. A humanidade não tem capacidade de fazer mal à natureza nesse tempo longo. Entretanto, temos, no nosso tempo curto, contado às dezenas ou centenas de anos, o poder de degradar severamente a natureza de nosso tempo e, dessa forma, afetar também severamente as condições de vida e bem-estar da humanidade nas próximas décadas.

A humanidade já ultrapassou, entrando na “zona de perigo”, quatro dos nove “limites planetários”, segundo estudo atualizado publicado pelo mesmo grupo na “Science” de janeiro de 2015. São eles: a alteração do ciclo biogeoquímico do nitrogênio e fósforo, mudanças no sistema terrestre, as mudanças climáticas e a crise de biodiversidade, as duas últimas consideradas fronteiras fundamentais.

O risco envolvido no último limite citado, a extinção das espécies, inclui a queima da “Biblioteca de Alexandria Natural”, ou seja, o reservatório genômico das espécies que serão extintas para todo o sempre. Mas, na verdade, o risco é muito maior.

A perda de integridade da biosfera pode acarretar colapsos ecossistêmicos, ruptura de cadeias alimentares e, com isso, causar grandes perdas e muito sofrimento, especialmente para os mais vulneráveis, os pobres de todo o mundo, contados às centenas de milhões.

Suas maiores causas são o uso do solo (desmatamento e outras destruições) e as espécies exóticas. Mas aproxima-se uma ameaça ainda maior, que põe em risco até mesmo a eficiência das políticas de conservação e restauração: as mudanças climáticas, que tornarão hostis a muitas espécies seus habitats atuais, mesmos os de áreas conservadas.

Muita ação humana, ciência, luta e paixão serão necessárias para enfrentar tamanho desafio. Mas para que os seres vivos possam enfrentar o impacto destruidor das mudanças climáticas, o principal será fornecer à natureza os meios para que ela mesma descubra e construa caminhos para a adaptação ao novo clima.

A ferramenta principal é a conectividade entre os espaços naturais remanescentes ou restaurados, os corredores ecológicos, ou corredores da vida.

* Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro

 


Fernando Gabeira: O interessante estado de direito

Há coisas que não entendo no Brasil. Ou melhor, coisas que me esforço para entender. O STF, por exemplo, negou a liberdade a uma prisioneira que roubou xampu e chicletes. Mas decidiu soltar Rodrigo Rocha Loures, que recebeu a mala preta com R$ 500 mil numa pizzaria. Sou leigo e fiquei sabendo que a mulher foi mantida na prisão porque era reincidente. Provavelmente roubou um tubo de creme dental no passado e, como essas pessoas são insaciáveis, deve ter levado também a escova de dentes.

Leio no belo livro “Triste visionário”, de Lilia Moritz Schwarcz, sobre o escritor Lima Barreto, que o médico Nina Rodrigues, expoente da Escola Tropicalista Baiana, defendia no fim do século XIX que negros e brancos eram diferentes biologicamente e o Brasil precisava ter dois códigos penais. Felizmente, as ideias racistas de Nina, que conheci pelo seu trabalho pioneiro sobre a maconha, foram sepultadas. Existe apenas um código penal.

Suspeito, no entanto, que existam diferentes estados de direito. A mais generosa versão desse conceito surgiu no país quando começou a ser desmontado o gigantesco esquema de corrupção.

A Lava-Jato é responsável apenas por um terço das conduções coercitivas no país. Nunca houve problemas até que, depois da centésima experiência, a operação trouxe Lula para depor. Resultado: um grande debate nacional sobre condução coercitiva. Em 2013, o Congresso aprovou o instrumento da delação premiada. Era destinado a desarticular o crime organizado. Ninguém protestou. Ao ressurgir na Lava-Jato, a delação premiada precisou se revalidar no contexto do novo e delicado estado de direito.

Marcelo Odebrecht disse que ensinava aos seus filhos que era feio delatar. No Congresso, a delação premiada foi definida como a tortura do século XXI. E Dilma Rousseff comparou os delatores a Joaquim Silvério dos Reis, nivelando a Inconfidência Mineira ao assalto à Petrobras.

Mostrei num curto documentário como as famílias dos presos sofrem para visitar os parentes no Complexo de Bangu, às vezes, passando a noite ao relento, à espera de uma senha.

A televisão revela agora como Sérgio Cabral recebe visitas à vontade, inclusive como chegam encomendas da rua no setor onde está preso agora. Sua mulher, Adriana Ancelmo, está solta para cuidar dos filhos, e a polícia encontrou nas casas da irmã e da governanta joias escondidas por ela. Leio nos jornais que numa excursão da Escola Britânica ao exterior, o filho de Cabral foi o único a viajar na classe executiva.

Se a mulher de Cabral ajudá-lo, de novo, a roubar R$ 1 bilhão do povo do Rio, inclusive com prêmios por conceder aumento da passagem de ônibus, creio que, pela leitura da lógica do STF, irá para a cadeia. Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex, dizia o velho anúncio. A mulher que roubou o xampu deve ser jovem, desconhece slogans publicitários do passado.

Há algum tempo, desisti de esperar uma reação previsível do Supremo. Carmem Lúcia, de vez em quando, me consola prometendo que o clamor das ruas será ouvido.

De vez em quando, sim, o clamor das ruas será ouvido. Mas o sistema politico partidário brasileiro envolve com seus tentáculos os próprios ministros do Supremo. O ubíquo Gilmar Mendes articula leis no Congresso, encontra-se com investigados, discute o preço do boi com Joesley Batista e foi padrinho da casamento de Dona Baratinha, herdeira do clã que enriqueceu cobrando caro para que o povo do Rio viaje nos seus ônibus vagabundos.

A Lava-Jato lançou a ideia de que a lei vale igualmente para todos. É uma ideia tão antiga que pronunciá-la parece apenas repetir um lugar comum. Vencemos a etapa em que o racismo teorizava um código penal para brancos e outro para negros.

Mas a realidade mostra como existe ainda um grande caminho a trilhar. A lei não é igual para todos. Ela afirma que os portadores de diploma universitário têm direito à prisão especial.

E cria uma dessas situações que talvez só possa se resolver numa peça de ficção. Nas cadeias do Rio, em condições tão distintas, os cariocas que Sérgio Cabral arruinou e o novo rico que a corrupção alimentou.

Na realidade concreta do cotidiano, é um conflito insolúvel. A lei vale para todos, contudo, entretanto,você sabe como é, estamos no Brasil, um país que, definitivamente, não tolera roubo de chicletes. Como dizem os defensores do estado de direito, vivemos o perigo de um estado policial. Hoje o chiclete, amanhã um quilo de açúcar, daqui a pouco os homens podem nos levar pelo simples desvio de um milhão de dólares.

No tempo da corrupção, éramos felizes e não sabíamos. Ninguém tinha feito delação premiada. Era possível comprar eleições em nove países do continente e, sobretudo, comprar uma Olimpíada. O complexo de vira-lata foi jogado no lixo; do pingue-pongue ao polo aquático, gritávamos: Brasil, com muito orgulho e muito amor.

Aí, chegou a polícia.

* Fernando Gabeira é jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/o-interessante-estado-de-direito-21569500

 


Cristovam Buarque: Onde erramos

Preferimos defender direitos dos servidores de estatais à qualidade dos serviços públicos

O jornalista Paulo Guedes escreveu nesta página, em 19-6-2017: “os partidos social-democratas que nos dirigem há mais de três décadas devem explicar nossa degeneração política e o medíocre desempenho econômico”. Eu acrescento: “a persistência da pobreza e da desigualdade, a desagregação social, a violência generalizada, o desencanto dos jovens com a política e a tolerância com a corrupção”.

Uma explicação: não nos sintonizamos com o “espírito do tempo”, perdemos o vigor transformador. Enquanto a realidade se transformava, continuamos com as ideias do passado. Não entendemos que hoje a divisão entre presente e futuro é mais importante que entre capitalistas e trabalhadores; nem que estes se dividiram entre modernos, com bons padrões de consumo, e tradicionais pobres e excluídos, com um “mediterrâneo invisível” separando-os. Tampouco aceitamos que os sindicatos representam o setor moderno. Preferimos defender direitos dos servidores estatais à qualidade dos serviços públicos; ignoramos que estatal não é sinônimo de público, sob falso conceito de igualdade, abandonamos o reconhecimento ao mérito de alguns profissionais.

Optando pela disputa entre corporações, de capitalistas ou de trabalhadores, governamos sem buscar coesão social e rumo histórico. Substituímos propostas de um mundo melhor para as futuras gerações, por promessas de maior consumo no presente; criamos consumidores, não cidadãos. Caímos no oportunismo eleitoral ao prometer que todos atravessariam o “mediterrâneo invisível” apenas com “bolsas” e “cotas” para pobres e isenções fiscais para empresários. Não percebemos que o esgotamento dos recursos fiscais e naturais exige austeridade nos gastos e eficiência na gestão. Aceitamos a irresponsabilidade populista sem ver os riscos de induzir soluções inflacionárias e autoritárias no futuro.

Não entendemos que a justiça social vem da aplicação correta e responsável dos resultados de economia eficiente; que no mundo global não há mais futuro para economias movidas por nacionalismos isolados; nem reconhecemos que o capital do século XXI está no conhecimento para inovar e usar as novas máquinas inteligentes. Faltou a compreensão de que a eficiência e a justiça não virão da ocupação do Estado para subordinar as economias sob controle dos partidos, mas da educação para todos, filhos de pobres e de ricos em escolas com a mesma qualidade. Não acreditamos que a igualdade educacional com qualidade teria sido nossa nova bandeira.

No lugar de gigante deitado em berço esplêndido, deixamos um Brasil amarrado em laços corporativos e antiquados. Nossos intelectuais ficaram acomodados em ideias antigas, filiações partidárias, fascínio por líderes. Substituímos ideias por slogans, filósofos por marqueteiros. Caímos em narrativas falsas e passamos a acreditar nas próprias mentiras. Prisioneiros de siglas partidárias sem ética e programas, trocamos princípios por preconceitos. Sem rumo, caímos no eleitoralismo populista e na corrupção, que mora ao seu lado. E ainda não fizemos uma autocritica, nem pedimos desculpas à história e ao povo.

* Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/onde-erramos-21566743

 


O Globo: Os ineditismos do presidente Temer

Além de primeiro presidente em exercício denunciado por corrupção, Temer se notabiliza por se cercar de pessoas com problemas na Justiça e Ministério Público

O advogado do presidente Michel Temer, Antônio Cláudio Mariz, protocolou ontem a defesa que fará do cliente na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Avança o relógio da tramitação do pedido da Procuradoria-Geral da República para processar Temer no Supremo Tribunal Federal, assunto a ser votado na CCJ, prevê-se, na penúltima semana do mês. Não importa o resultado, a decisão final será do plenário da Casa.

Enquanto isso, o presidente Michel Temer acumula ineditismos. Além de ostentar o posto de primeiro presidente da República em exercício a ser denunciado por corrupção, Temer tem, e teve, ao redor auxiliares e aliados com diversos tipos de problemas com a Justiça e o Ministério Público. Numa dimensão nunca vista pelo menos em passado recente.

O mais novo caso é do ex-ministro Geddel Vieira, preso na segunda-feira, sob a acusação de tentar obstruir o trabalho da Justiça nas investigações sobre tramas de Eduardo Cunha, já trancafiado, Lúcio Funaro, idem, e Fábio Cleto. Em questão, falcatruas com dinheiro do fundo de investimento do FGTS, o FI-FGTS, na Caixa Econômica, com a cobrança de propinas a empresários.

A Caixa, cedida pelo PT, depois da aproximação com o PMDB, para ser feudo deste partido, abrigou o próprio Geddel Vireira como um dos vicepresidentes. No governo Dilma Rousseff, Cunha, um dos chefes da legenda, nomeou Fábio Cleto como dono da chave de cofres do FI-FGTS, e lá instalou um guichê de recolhimento de propinas, confiadas ao doleiro Funaro. Geddel foi ministro da Secretaria de Governo de Temer com este prontuário.

Outro do círculo próximo a Temer fora de circulação é o ex-ministro do Turismo Henrique Eduardo Alves preso sob a acusação de desvio de verbas na construção da Arena das Dunas, Natal, no Rio Grande do Norte, estado do político.

Dois assessores muito próximos ao presidente, com gabinetes no Planalto, também não escapam desta marca. O ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, e Moreira Franco, ministro que ocupa a secretaria que foi de Geddel. Padilha e Moreira são investigados pela Lava-Jato.

A lista é extensa. Outro dos ex-assessores, preso e solto há pouco, é o deputado suplente pelo PMDB do Paraná Rodrigo Rocha Loures, o qual, na gravação feita por Joesley Batista, Temer indicou para o empresário resolver com ele “tudo”.

Batista gravou uma conversa posterior com Loures sobre o pagamento de uma propina com muitos zeros, para o político ajudar a resolver problemas do grupo JBS no Cade. Para Joesley e o diretor da empresa Ricardo Saud, o destinatário do dinheiro seria Temer.

Falcatruas não são uma exclusividade do PMDB. O mesmo se vê no PT e na cúpula do PSDB. O problema para Temer é que o político da vez a ser julgado no Legislativo é ele. Com assessores com este perfil, o trabalho do advogado Antônio Carlos Mariz fica mais pesado.

Editorial do O Globo

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/os-ineditismos-do-presidente-temer-21558157

 


O Globo: Sentimento de impunidade ainda estimula corrupção

Prisão de Geddel Vieira, por tentar obstruir a ação da Justiça, é uma das provas de que investigados por corrupção não se atemorizam diante dos organismos de Estado

Editorial

Desde o começo das investigações do mensalão, em 2005, passando pela condenação de mensaleiros, em 2012, chegando à Lava-Jato, lançada em 2014, até hoje, transcorreram 12 anos, e mesmo assim poderosos ainda continuam a ser presos em nítido delito. Isso, mesmo que haja correntes que considerem parcelas do Ministério Público e do Judiciário, envolvidas neste enfrentamento da corrupção, a reencarnação dos radicais jacobinos da Revolução Francesa e suas guilhotinas, ou a ressurreição de Torquemada, o frade da Inquisição espanhola responsável por despachar para sessões de tortura e fogueiras, alegadamente purificadoras, hereges, judeus, homossexuais etc.

Se eles espalharam o terror na França do final do Século XVIII e na Espanha medieval, no Brasil dos tempos que correm não assustam denunciados por corrupção. O ex-ministro Geddel Vieira é o mais recente exemplo em pessoa de que, apesar de denúncias de que agentes públicos perseguiriam suspeitos por sobre leis e a Constituição, os tais perseguidos não demonstram qualquer pudor em continuar na delinquência.

Geddel foi preso segunda-feira, por determinação da Justiça, a pedido do Ministério Público e da Polícia Federal, acusado de pressionar a mulher de Lúcio Funaro, Raquel, para que sondasse o marido, preso, sobre a intenção dele de fazer acordo de delação premiada com o MP. Manobra com o objetivo evidente de criar obstrução à Justiça. Outro motivo de preocupação deGeddel era, eé, o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha, também trancafiado. Temer concorda, a julgar pela gravação de Joesley Batista.

A razão é que Geddel, segundo denúncias, se beneficiou de um esquema montado por Eduardo Cunha, com o aval da presidente Dilma Rousseff, na área do fundo de investimentos do FIFGTS, na Caixa Econômica, para cobrar propinas de empresários, um dinheiro a ser gerenciado pelo operador Funaro.

Cabe registrar que Geddel ostentava esta desenvoltura para erguer obstáculos às investigações mesmo depois de o presidente Temer ser obrigado a afastá-lo da Secretaria de Governo quando o colega de Ministério, Marcelo Calero, da Cultura, o denunciou por fazer forte pressão para que o Iphan, da jurisdição de Calero, licenciasse um prédio em área preservada em Salvador. Nele, Geddel adquirira um imóvel. Nenhuma sanha persecutória de procuradores ou policiais federais o demoveu de nada.

Os lulopetistas também não se atemorizaram com a descoberta do mensalão, nem com a Lava-jato em seu início. José Dirceu, por exemplo, preso na Papuda, cumprindo pena de mensaleiro condenado, continuou a receber propina do petrolão.

Constata-se, portanto, que denúncias contra agentes públicos em ações contra a corrupção têm mais de tática de advogados de defesa do que de substância efetiva. O sentimento de impunidade continua presente.

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/sentimento-de-impunidade-ainda-estimula-corrupcao-21553568

 


Fernando Gabeira: Conversa num barco encalhado

Na semana passada nosso barco encalhou perto da Baía dos Pinheiros, no litoral sul do Paraná. A maré baixou rápido e ficamos mais ou menos perdidos: só tínhamos as coordenadas e um rádio. Não havia o que fazer, exceto esperar a maré subir. Alguém me provocou: nosso barco está encalhado como o país.

Nessas horas de espera a gente alonga a conversa. Disse que de uma certa forma . Até lá estaremos encalhados de uma forma diferente do pequeno barco colado na lama do fundo do mar. Haveria muita turbulência e, como estamos no final de uma grande investigação, muitas situações repetidas.

A de Temer, por exemplo, afirmando que não há provas, dizendo-se vítima de uma perseguição. Quem não ouviu essa fala em outros atores da grande série político-policial?

Embora às vezes a gente se sinta perdido na complexidade da crise brasileira, é possível achar um rumo. Ele passará pela sociedade e pelo Congresso. Vamos entrar num período eleitoral, e a sociedade costuma ter mais peso nessas épocas. O Congresso torna-se mais sensível às pressões populares. De memória, lembro-me apenas de uma grande exceção: a derrota na emenda Dante de Oliveira.

Enquanto o barco não sai do lugar, movido pelos ventos da legitimidade, há muito o que fazer na espera. Num barco, temos de distribuir as bananas, agasalhar a garganta do sudeste frio que sopra no litoral. Num país é preciso saber o que se quer enquanto estamos à espera de voltar a navegar. Fora Temer, ou fica Temer.

A Câmara terá que decidir isto. Mas não o fará sozinha. Se a pressão social a levar a aceitar a denúncia contra Temer, é o fim para ele. Só restará, depois de visitar a União Soviética, passar umas férias no Império Austro-Húngaro.

Começaria aí uma nova etapa, a escolha do novo presidente. É preciso algumas precauções básicas, pois não é possível derrubar presidentes com tanta frequência.

Entregue a si próprio, o Congresso tende a escolher alguém que o proteja da Lava-Jato. Mas não existe mais possibilidade de tomar as decisões nas madrugadas. Uma vigilância social pode conter os passos do escolhido para a transição.

O que se espera de um presidente de país encalhado é principalmente tocar a administração. Quando a maré subir, com eleitos no poder, tomam-se as grandes decisões.

Alguém me lembra que isso é não é uma situação sonhada. Mas a que a realidade nos coloca. Mesmo as eleições de 2018, embora tragam mais legitimidade aos eleitos, não devem ser vistas na categoria de sonho, mas sim de uma oportunidade, depois de tudo o que pessoas viram e ouviram sobre o sistema político partidário.

Na rua ouvem-se muito os nomes de Lula e Bolsonaro. Potencialmente pode surgir uma força de equilíbrio que suplante as duas. Não creio que aconteça o mesmo que aconteceu na França, onde houve uma ampla renovação, da presidência ao Congresso.

Mas alguma coisa vai acontecer. Enquanto a maré não sobe, há muito o que fazer no barco encalhado. É preciso que o essencial funcione.

No momento em que escrevo ouço os helicópteros da PM sobrevoando o morro. Uma dezena de tiroteios por dia, uma onda de roubos de carga, imagens de crianças deitadas no chão da escola enquanto os tiros ecoam.

Temer chegou a anunciar um plano de segurança para o Rio. Era pura agenda positiva, esse tipo de ação que fazem quando a barra está muito pesada e é preciso mudar de assunto. A dimensão da crise no cotidiano, a existência de 14 milhões de desempregados, esse pano de fundo inquietante torna a tarefa mais difícil. Quando governantes já caídos se apegam ao poder, na verdade colocam seu destino acima do destino nacional. Os reflexos na economia são sempre negativos. Encalhamos um pouco mais. A compreensão do momento vai exigir da sociedade evitar que o barco encalhado torne-se um barco naufragado. Será preciso um amplo entendimento entre todos que reconhecem a gravidade da crise, para que cheguemos em condições razoáveis em 2018.

Esta semana faltaram passaportes na Polícia Federal. É um sintoma. Se não houver o mínimo de energia na administração, daqui a pouco não faltarão apenas passaportes mas as próprias saídas.

Não é nada agradável se desfazer de dois presidentes num curto espaço de tempo. Mas o roteiro, de uma certa forma, estava escrito. Retirado o PT do governo, restaram em seu lugar os companheiros de uma viagem suja pelos cofres públicos brasileiros.

A investigação chegou a eles e à própria oposição. Não importa qual o desfecho jurídico desse imenso esforço, ele serviu para desvendar para a sociedade um gigantesco esquema de corrupção e um decadente sistema político partidário.

Daí pra frente a bola está com a sociedade.
* Fernando Gabeira é jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/conversa-num-barco-encalhado-21544014

 

 


O Globo: As forças do atraso contra a reforma trabalhista

A rejeição do projeto de reforma trabalhista, por um voto, na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, se deve em parte a uma desorganização na base do governo, em função da debilitação política do presidente Michel Temer sob acusações — de delatores premiados, da Procuradoria-Geral da República e agora da Polícia Federal. E isso abre espaço para todo tipo de interesses. Menos o de melhorar a regulação do mercado de trabalho em que 14 milhões estão desempregados, e metade dos que labutam não tem proteção da tão defendida CLT, por simples fé ideológica e saudades de Getúlio.

O senador Renan Calheiros (PMDB-AL), por exemplo, adota a linha populista de esquerda para tentar se salvar em Alagoas nas eleições de 2018. Já o senador tucano Eduardo Amorim (SE) vota contra o relatório e o partido, alegando atender a pedido da mulher, do Ministério Público Trabalhista, uma das trincheiras contra a modernização das leis. E a oposição, por sua vez, aproveita para fazer luta política. Assim, por um voto, o relatório foi derrotado, depois de aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).

Semana que vem deverá ser apreciado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e tudo ficará para ser decidido em plenário, onde a derrota de terça poderá ser revertida.

O governo Temer precisa demonstrar uma competência mínima na condução da base parlamentar, e não repetir erros primários que depõem contra a imagem de sábios da política que têm os do seu grupo. Foi bisonho levar na comitiva da viagem a Moscou votos que fizeram falta na terça: Paulo Bauer (PSDB-SC) e o ministro Antônio Imbassahy (PSDB-BA). Numa reação previsível, os mercados sinalizaram negativamente — a Bolsa caiu 2%, e o dólar subiu 1,27%. Num lapso, o Planalto parece ter esquecido a relevância das reformas.

O projeto desta já foi muito debatido. Sabe-se como é necessário dar flexibilidade às relações patrão-empregado, permitindo-se que acordos entre as partes, sem alterar direitos pré-definidos, sejam aceitos pela Justiça Trabalhista. Também sabe-se como é estratégico acabar com o imposto sindical, tornando-o uma contribuição espontânea, a fim de que os sindicatos ganhem legitimidade e deixem de ser um desses grandes cartórios lucrativos que surgem às sombras do Estado, para viver de dinheiro extraído compulsoriamente da sociedade.

Por ilustrativa coincidência, esta reforma chega à fase final de votação quando, na França, um político jovem, o presidente Emmanuel Macron, faz maioria na Assembleia Nacional, acenando com uma reforma como esta brasileira, entre outras. Ganhou no voto de corporações sindicais como as que sabotam mudanças no Brasil. Faz lembrar Millôr Fernandes: “quando uma ideologia fica bem velhinha, ela vem morar no Brasil”. É o caso.

Editorial do O Globo

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/as-forcas-do-atraso-contra-reforma-trabalhista-21504316

 


Roberto Freire: Sem onda conservadora

Após verem sepultada a narrativa de que Dilma Rousseff foi apeada do Planalto por meio de um “golpe”, o PT e seus satélites tentam justificar a acachapante derrota nas eleições municipais com uma outra tese igualmente desprovida de qualquer sentido. A palavra de ordem entoada pelo núcleo duro do lulopetismo é de que o Brasil teria sido tomado, nas urnas, por uma “onda conservadora”.

Na realidade, o eleitorado rejeitou o projeto de poder representado pelo PT e pelos governos de Lula e Dilma, que nos levaram a uma das maiores crises econômicas de nossa história. Os maiores vitoriosos nas disputas municipais foram os partidos que votaram pelo impeachment e hoje compõem a base de sustentação do presidente Michel Temer — e aqui cabe ressaltar o êxito das legendas que integram o campo da social-democracia e dos partidos da esquerda democrática brasileira, como o PSB, o PPS e o PV.

A exceção talvez seja o PDT, partido de esquerda e aliado dos governos petistas, que também experimentou um crescimento eleitoral. Mais uma prova de que a “onda conservadora” é uma narrativa enganosa. A avaliação precipitada sobre os resultados eleitorais levou um jornalista a cometer a estultice de dizer que o PSDB é um partido de “ultradireita”.

Trata-se de um raciocínio equivocado, segundo o qual todos aqueles que se opõem ao PT são direitistas e, alguns, até traidores. Além de interditar o debate, tal postura é de uma desonestidade intelectual atroz. O PSDB, afinal, tem uma visão predominantemente social-democrata – e assim seria rotulado em qualquer país do mundo democrático. No Rio, alguns apregoam que a vitória de Marcelo Crivella seria um indicativo de que a “onda conservadora” veio para ficar.

É evidente que não se pode tomar um caso isolado como um retrato do que ocorreu por todo o Brasil. A cidade sentiu falta de alternativas políticas mais amplas e teve de escolher entre duas candidaturas fundamentalistas, uma de cunho religioso e outra politicamente dogmática. Uma de viés mais conservador e outra também sectária, de uma extrema- esquerda que muitas vezes serviu como linha auxiliar do lulopetismo.

Basta ver o comportamento do candidato do PSOL que, quando confirmado no segundo turno, excluiu a possibilidade de diálogo com as correntes políticas que considerava “golpistas”. Outra falácia é de que a “não política” teria sido a marca dessas eleições. É certo que houve uma forte rejeição aos políticos tradicionais, mas não à política em si.

Em São Paulo, João Doria se apresentou como um empresário, mas em nenhum momento deixou de destacar que é filho de um político cassado pelo golpe militar de 1964. Assim como a tese do “golpe” havia sido enterrada, a narrativa da “onda conservadora” foi desmentida pelo resultado das eleições.

Basta analisar o desempenho das forças políticas vitoriosas. Mesmo que algumas tenham contradições internas, nenhuma delas se confunde com a direita nacional. Todas estão no campo democrático e, em especial, honrando a esquerda democrática brasileira. (O Globo – 10/11/2016)

Roberto Freire é presidente nacional do PPS


Fonte: pps.org.br