o estado de s paulo
Eliane Catanhede: Proliferam não só nomes, mas frentes para um projeto pela democracia, pela vida
Em debate, Ciro, Doria, Haddad, Leite e Huck focam na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial ‘genocida’
O principal recado do debate entre Ciro Gomes, João Doria, Fernando Haddad, Eduardo Leite e Luciano Huck, sábado à noite, foi a civilidade, até gentileza entre eles, ao longo de quase três horas. Deixando as divergências de lado, eles focaram na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial “genocida”.
Há inúmeras frentes para virar a página Bolsonaro e tocar a reconstrução do País, uma espécie de transição à la Itamar Franco pós-Collor. Assim como naquela época, o PT não participa de um projeto de união nacional, mas Haddad compôs bem a mesa, com conhecimento e sobriedade.
Ciro Gomes, ex-candidato três vezes à Presidência, ex-ministro e ex-governador do Ceará, é o que mais impressiona, com seu malabarismo verbal para juntar temas diferentes, amontoar números e produzir uma imagem de experiência e competência. Foi, também, responsável pela maior lista de “atributos” do presidente.
Doria foi Doria, a começar do vídeo e do áudio impecáveis, tudo milimetricamente programado. O governador de São Paulo explorou o fato de ter liderado a guerra pelas vacinas contra a covid no País e deixou o carimbo mais contundente contra Bolsonaro: “mito das mortes”.
Haddad, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro da Educação e ex-adversário de Bolsonaro no segundo turno de 2018, foi menos candidato, mais militante, preocupado em defender os feitos dos governos do PT, enquanto batia duro no “autoritarismo” de Bolsonaro.
Eduardo Leite, o jovem tucano que saiu de uma prefeitura do interior para o governo do Rio Grande do Sul sem passar pelo Legislativo, mediu palavras e fugiu da eloquência e da agressividade dos demais contra o presidente e o governo. Foi bastante crítico, mas num tom abaixo.
Essas impressões são, de certa forma, consensuais, mas quem mais dividiu opiniões foi Huck, celebridade sem passagem pelo setor público. Para uns, incapaz de enfrentar o debate no campo da economia e das políticas públicas. Para outros, foi o que focou nos dois temas do futuro: era digital e desigualdade social. “Mais jovem, mais atualizado”, resumiu uma importante jornalista. Se isso define um bom candidato, é outra história.
No final, o professor Hussein Kalout, que dividia comigo a mediação no encerramento da Brazil Conference, organizada por estudantes brasileiros de Harvard e MIT, lançou um desafio: Bolsonaro fez algo de bom? O primeiro a cair na armadilha foi Ciro: a menor taxa de juros em 30 anos. Leite citou a reforma da Previdência. Huck, o auxílio emergencial.
Na verdade, a reforma veio do governo Temer e o auxílio emergencial foi obra do Congresso. Haddad foi no ponto: todo governo democrático tem qualidades e defeitos, mas os “autoritários” não têm qualidades. E Doria concluiu: o grande feito de Bolsonaro foi transformar o Brasil em pária internacional. Só ele conseguiria isso.
Foram abordados: pandemia, fome, economia, política externa, ambiente, educação, ciência e tecnologia, mas também autoritarismo e investidas sobre polícias estaduais. Ao citar o motim da PM do Ceará, quando seu irmão, senador Cid Gomes, levou dois tiros, Ciro Gomes disse que a intenção de Bolsonaro é “formar uma milícia militar para resistir, de forma armada, à derrota eleitoral”. O temor é generalizado.
Exceto Haddad, os outros já tinham assinado um manifesto pela democracia e novos nomes nessa linha continuam surgindo: Tasso Jereissati, Temer, Luiza Trajano, Luiz Henrique Mandetta... Quem tem tantos nomes é porque não tem nenhum, mas o fundamental é que proliferam frentes para construir um projeto de união nacional pela democracia, pela gestão, pela vida. É assim que tudo começa...
Felipe Salto: O governo não viu as emendas do Orçamento virarem um monstrengo?
Executivo precisa cumprir o teto, aumentar emendas e obras, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais, mas equação não fecha
A Hidra é um monstro grego que, ao ter a cabeça decepada, ganha duas novas. A gestão das contas públicas transformou o arcabouço fiscal num monstrengo difícil de driblar. O projeto de lei (PLN) n.º 2 altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021 para: a) retirar gastos da meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros); e b) aumentar a possibilidade de ajuste dos gastos discricionários (não obrigatórios).
A primeira mudança autoriza gastos por fora da meta legal. O Pronampe (ajuda a empresas), o BEm (medida para manter empregos) e a saúde (restritas ao combate à covid-19) são excluídos da meta de déficit primário. Independentemente da manobra contábil, a dívida será afetada. A alternativa, mais transparente, seria alterar a meta.
A segunda inovação restringe as alterações orçamentárias ao cumprimento do teto de gastos. Isto é, se as despesas sujeitas ao teto superarem o limite, contingenciamentos terão de ser feitos. No limite, a medida poderá autorizar contenções de emendas aumentadas no processo orçamentário.
Além disso, exclui-se o gasto com custeio da máquina das prioridades de execução. Essa despesa, que é parte da discricionária do Executivo, tem tratamento diferenciado na LDO por corresponder a gastos essenciais ao Estado. O PLN 2 tira a blindagem para permitir cortes maiores nesse grupo. Aumentaria o risco de shutdown.
As emendas de relator-geral (incluídas demandas de parlamentares e do próprio Executivo incluídas) totalizam R$ 29 bilhões. Se forem vetados, no dia 22, cerca de R$ 10 a 12 bilhões, como discutido pela imprensa, e a tesoura do Executivo trouxer mais R$ 9 bilhões das próprias despesas discricionárias (algo como 10%), o corte total ficaria em cerca de R$ 20 bilhões.
Ocorre que esse valor não evitaria o estouro do teto de gastos. A IFI mostrou que o limite seria rompido em R$ 31,9 bilhões, dados os gastos discricionários inflados, no Orçamento, e as projeções da instituição para as despesas obrigatórias – mais realistas que as do Orçamento.
As emendas de relator-geral só podem ser cortadas se retiradas pelo próprio relator (aliás, um ofício foi enviado ao Executivo nesse sentido) ou por meio do veto presidencial. Mas o PLN 2 manda que todas as alterações orçamentárias sejam limitadas pelo teto.
Ora, se o veto presidencial incidir sobre apenas R$ 10 a 12 bilhões e isso for insuficiente para resolver o problema do teto, outros gastos terão de ser cortados. Os obrigatórios têm de ser executados, os discricionários do Executivo já teriam sido reduzidos e as emendas individuais e de bancada só podem ser contingenciadas proporcionalmente à redução das discricionárias do Executivo.
Restaria contingenciar mais um pedaço das emendas de relator. A equação não fecha: cumprir o teto, aumentar emendas, contemplar obras de certas áreas do Executivo, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais. O governo não viu o monstrengo se materializar?
*Diretor Executivo da IFI
Marcelo Godoy: Brigadeiro chama de traidor general que se opõe a Bolsonaro
Clube Militar publica artigos que declaram guerra aos críticos do governo; Jobim é tratado como comunista e Sarney como esquerdista
As fragilidades do governo de Jair Bolsonaro e a perda de apoio que se consolida à medida que aumentam as mortes evitáveis da pandemia levaram o Clube Militar a atacar em sua revista pela primeira vez os militares que criticam o presidente, cuja reeleição cada vez se vê mais ameaçada. Caminha-se no Planalto ainda entre uma provável ida ao segundo turno e uma improvável vitória diante do antibolsonarismo majoritário que se forma no País, enquanto as forças de centro tentam se unir e ultrapassá-lo. E teme-se a CPI da Covid, que vai atrás dos generais do governo.
Com sua sede no centro do Rio, o Clube Militar se radicalizou, expondo-se como baluarte do bolsonarismo e das ações do partido militar, aquele que se pensava morto com o início da Nova República e com as reformas de Castelo Branco na estrutura das Forças Armadas. A entidade é presidida pelo general Eduardo José Barbosa, que acredita viver em um país majoritariamente saudosista da ditadura militar, uma nação que começaria na Avenida Brasil e terminaria na Avenida Rio Branco.
Com o título O Brasil Vencerá, a revista do Clube abre a sua edição com a Ordem do Dia do Ministro da Defesa, Walter Braga Netto, para "saudar" o golpe de 31 de Março de 1964. A publicação lista os inimigos do bolsonarismo: ali estão a imprensa, as universidades e políticos de oposição, todos tratados – como sempre e indistintamente – como vermelhos. Vermelho é tudo o que limita os desejos liberticidas dos que sofrem de incontrolável medo hobbesiano? Fazer do triunfo despótico da vontade um objetivo indisfarçável não seria uma traição à República e à busca do bem comum?
O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é chamado na revista do Clube de "criptocomunista" e o ex-presidente José Sarney é qualificado como "enrustido esquerdista, líder da ala esquerda da União Democrática Nacional (UDN)". Está no texto Os Sovietes Brasileiros, do coronel Jorge Baptista Ribeiro, que termina a peça afirmando que Bolsonaro “foi obstado em seus propósitos” pela “ditadura das togas vermelhas”.
Na Itália dos anos 1990, o direitista Silvio Berlusconi costumava chamar os magistrados da Operação Mãos Limpas de toghe rosse, togas vermelhas. No Brasil dos anos 2000, depois de o procurador-geral da República nomeado por Bolsonaro acabar com a Operação Lava Jato, os acólitos do presidente passaram a atacar os juízes – os mesmos que devem analisar o caso de Flávio Bolsonaro, o senador que comprou uma casa de R$ 6 milhões em Brasília – de idêntica maneira à dos aliados de Berlusconi.
O coronel nos remete ainda mais ao passado ao citar Sarney e a UDN. Principal líder udenista, Carlos Lacerda manchetou uma vez em seu jornal, A Tribuna da Imprensa: “Somos um povo honrado, governado por ladrões”. Era 2 de agosto de 1954. Coronéis como o autor do artigo publicado pelo Clube Militar subscreviam manifestos e liam provocações públicas aos chefes militares de então. Vivia-se um permanente alvoroço. A Força Terrestre se dividia em grupos, imperavam os peixes e os políticos na caserna.
Era nessa época que os relatórios reservados costumavam apontar criptocomunistas, inocentes úteis e abertamente comunistas como forma de deslegitimar quem se opunha aos desejos de radicais – como o almirante Pena Botto – que buscavam impor seus propósitos ao País. Lacerda, que planejou e apoiou a deposição de João Goulart em 1964, acabaria cassado em 1968 e preso. Ele disse: "A Revolução de 1964 destruiu-se a si mesma, na medida em que seus aproveitadores consolidaram o domínio das oligarquias". No passado, eram as oligarquias; no presente, o Centrão. No país sonhado pelo coronel, Lacerda seria cassado novamente. Quanto aos corruptos, estes sempre vicejam, desde que apoiem o Idi Amin Dada de plantão.
Em outro artigo da revista, o major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez chama de traidor “um oficial general” que, segundo ele, age como os “brigadistas incendiários” de Santarém – reparem que o oficial toma como verídicas as acusações do controverso inquérito do Pará. Diz que, se tudo o que mídia publica a respeito do tal oficial for verdade, "o general que protagonizasse essa traição não seria digno do que aprendeu na Academia, muito menos das estrelas que ostenta no ombro". O brigadeiro não teve a coragem de nomear o general em seu artigo, mas dez entre dez de seus colegas apostam que ele se referia a Carlos Alberto dos Santos Cruz.
Sanchez continua sua argumentação, afirmando que "ordem absurda não se cumpre", mas afirma que não se deve "desmoralizar o comandante diante da tropa (Jair Bolsonaro), especialmente se provocado pelos inimigos, que todos sabemos bem quais são". Em 23 de outubro de 2020, pouco depois da famosa frase de Eduardo Pazuello (“Um manda e o outro obedece”), Santos Cruz escreveu: “Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres. Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'... Como mandar varrer a entrada do quartel".
Sanchez culpa a imprensa por tentar indispor Bolsonaro com o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Como se Bolsonaro precisasse da imprensa para tanto. A acusação do brigadeiro equivale a receber um aviso de cobrança e culpar o carteiro pelo dívida. Diz ainda não existir divisão nas Forças Armadas em razão do presidente. Para tanto, o estabelecimento militar deveria ter exatamente os mesmo anseios do partido militar. Se isso é verdade, a Nação espera ansiosa a explicação do brigadeiro para a decapitação da cúpula das Forças Armadas operada por Bolsonaro. Talvez diga que é encenação, que todos caminham juntos para preservar sinecuras e privilégios conquistados e mantidos em meio à mais grave crise do século. E a CPI nem começou...
Sanchez diz pertencer a um grupo, os 504 Guardiões da Nação. Seu artigo despertou reações entre militares que o leram. Viram no texto "falta de responsabilidade institucional", ideias saudosistas e afinadas com teorias da conspiração, que fazem de todos os que não são bolsonaristas traidores e comunistas. Enfim, textos marcados pelo fanatismo, enquanto o "Brasil está à deriva, voando no escuro e com o GPS quebrado". Não que a gritaria mude grande coisa; o que não falta nesse País é candidato a Simão Bacamarte. Para o consolo do brigadeiro, se for derrotado em 2022, Bolsonaro ainda poderá chamar a Casa da República de "meu Clube Militar".
José Roberto Mendonça de Barros: A novela do Orçamento
A questão do Orçamento é só mais um passo no sistema de enfraquecimento do Executivo
A frase é antiga, mas apropriada a esta situação: quando pensamos que já vimos de tudo, algo ainda mais inusitado ocorre. Digo isso a propósito do que se transformou a LOA para 2021.
Jamais havia acontecido uma demora de tal magnitude na aprovação da mais importante lei econômica de qualquer país. Como se sabe, no final do ano passado as lideranças políticas decidiram não votar o Orçamento para não criar problemas nas manobras que antecederam a eleição das mesas da Câmara e do Senado, que só ocorreriam em fevereiro deste ano. Foi o que aconteceu e os trabalhos legislativos a respeito só avançaram a partir de março.
Embora apenas isso já fosse complicado, as discussões, muito tensas, acabaram por produzir e aprovar uma peça orçamentária absolutamente equivocada, possivelmente contendo ilegalidades, e impossível de ser executada. Em resumo, as despesas obrigatórias foram grosseiramente subestimadas para que um volume sem precedentes de emendas parlamentares fosse incluído no Orçamento. Além disso, parâmetros conhecidos, como o valor do salário mínimo vigente, não foram levados em consideração, e ainda há outras impropriedades.
Aprovada a lei, criou-se outra dificuldade: a área econômica passou a argumentar que a sanção sem vetos do Orçamento poderia levar a um crime de responsabilidade, enquanto que as lideranças parlamentares, especialmente as da Câmara, argumentavam que tudo que estava consignado na lei foi discutido e aprovado pelos representantes do Executivo, não abrindo mão da sua aprovação sem vetos.
Daí o impasse criado, pois o governo rachou entre ministros favoráveis aos gastos e a área econômica e, de outro lado, a área parlamentar que, enquanto este artigo está sendo escrito, insiste na aprovação da lei tal como está.
Temos aqui, portanto, quatro grandes problemas de uma única vez:
– Abriu-se um grave problema político, pois o Executivo, muito fragilizado, não consegue decidir se veta parcialmente a LOA ou se a sanciona e, em seguida, envia um projeto de lei para fazer os consertos necessários, como pedem as lideranças legislativas. Enfrentar o Legislativo pode custar caro.
– Por outro lado, sancionar o Orçamento e corrigi-lo com um projeto de lei pode resultar em ajustar os gastos obrigatórios ao real e, ao mesmo tempo, acabar por expandir largamente os gastos totais e os déficits, o que a área econômica não deseja.
– Existe um problema orçamentário concreto, pois, na ausência de uma grande correção nos excessos praticados no Legislativo, o governo poderá ter enormes dificuldades e se inviabilizar no dia a dia por escassez absoluta de recursos em muitas áreas (apenas a título de exemplo, os recursos para o crédito da agricultura familiar, o Pronaf, foram zerados e os recursos para o Plano de Safra foram cortados pela metade).
– Finalmente, existe um grande problema fiscal, ou seja, mesmo que legalizados os excessos de gastos, via créditos extraordinários, ou alguma variante do chamado Orçamento de Guerra, esses terão efeitos deletérios sobre o crescimento da dívida e as expectativas dos agentes econômicos. E boa parte dessas despesas se destina a projetos paroquiais, sem maior relevância social ou econômica.
O que mais chama a atenção é o gigantesco grau de incompetência dos dois Poderes que gerou o monstrengo do Orçamento. O populismo desenfreado, a absoluta falta de coordenação no Executivo e o enfraquecimento crescente do ministro da Economia, Paulo Guedes, se somaram à falta de competência dos líderes do Legislativo. Dizer, como dizem estes, que tudo foi combinado com o Executivo não resolve a questão, pois não transforma um absurdo numa coisa razoável. Tem-se a impressão de que nenhuma das partes acaba por avaliar o volume de problemas que está sendo criado.
A questão do Orçamento e suas consequências políticas representam apenas um passo a mais no sistemático enfraquecimento do Executivo. A incapacidade de lidar com a pandemia está contaminando e derrubando as perspectivas de crescimento, que se espraiam para o ano que vem. Todos os analistas têm reduzido as projeções de crescimento para este ano e para 2022.
O governo está esfarelando e fazendo água por todos os lados.
ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS
Carlos Pereira: A justiça (agora) foi feita
A confiança na Justiça é mediada pela congruência entre identidade ideológica e decisão judicial
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar a 13.ª vara de Curitiba incompetente para julgar o ex-presidente Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro gerou reações polarizadas. Por um lado, foi fortemente criticada por adversários do petista, que expressaram insatisfação com o sistema de Justiça criminal brasileiro supostamente "disfuncional, casuístico e irracional". Por outro lado, tal decisão foi extremamente celebrada por seus apoiadores como uma "vitória da democracia", reparação de uma "injustiça histórica" e que "restabelece a segurança jurídica e a credibilidade do sistema de Justiça".
Há quase quatro anos, quando foi anunciada a primeira condenação do ex-presidente Lula, as reações foram diametralmente opostas. Seus opositores viram naquela decisão uma sinalização de que "juízes e procuradores brasileiros estariam comprometidos com a lei e com a ideia de que ninguém estaria acima dela". No outro extremo, seus seguidores a interpretaram como “injusta” e como uma "perseguição política contra o ex-presidente".
Em democracias, espera-se que o sistema de Justiça atue de forma imparcial ao investigar e julgar líderes políticos que apresentem comportamentos desviantes. No entanto, com a polarização política - não apenas na sua dimensão ideológica, mas fundamentalmente identitária e afetiva - nas alturas, cidadãos tendem a perceber o sistema de Justiça como parcial dependendo de qual lado penda a decisão do juiz.
Quando a decisão judicial se apresenta de forma congruente com as identidades afetivas e ideológicas das pessoas, espera-se que elas interpretem que a justiça foi feita. Mas quando a Justiça contraria as suas expectativas afetivas, espera-se que elas percebam o sistema de Justiça como injusto.
Mas até que ponto a percepção das pessoas sobre um julgamento de um líder político depende de sua identidade ideológica e afetiva?
Para responder a essa pergunta, eu e meus coautores, André Klevenhusen (doutorando da FGV EBAPE) e Lúcia Barros (professora da FGV EAESP), implementamos, via internet, uma pesquisa de opinião experimental com 829 cidadãos brasileiros entre os dias 26 dezembro de 2020 a 13 de janeiro de 2021.
Os participantes tiveram a oportunidade de escolher, em uma eleição hipotética, seu candidato preferido entre quatro alternativas ideológicas distintas: liberal, libertário, populista e conservador. Distribuímos aleatoriamente uma vinheta na qual um desses quatro candidatos, que estava liderando as pesquisas de opinião, tinha sido condenado pelo Tribunal de Justiça por corrupção. Em seguida, os participantes responderam a perguntas que mediam a sua confiança nas decisões judiciais.
Um resultado até certo ponto positivo para a Justiça brasileira foi o de que a maioria dos respondentes nela confia e o grau de confiança independe do seu perfil ideológico. Este padrão persiste em cenários de congruência (o candidato rejeitado é condenado) e indiferença (nem o candidato preferido nem o rejeitado são condenados) em relação aos veredictos dos juízes.
Porém, quando ocorre incongruência (o candidato preferido é condenado), o grau de confiança na Justiça diminui. Ou seja, a confiança nos tribunais varia apenas quando o candidato preferido recebe um veredicto condenatório. Curiosamente, o grau de confiança na Justiça não aumenta quando o candidato rejeitado é condenado.
Embora não tenhamos ainda pesquisado o impacto da absolvição de políticos ideologicamente congruentes na confiança na Justiça, é plausível supor que os eleitores do ex-presidente Lula, que até então cultivavam uma percepção derrogatória da Justiça brasileira, passem, a partir da nova decisão do STF, a avaliar positivamente a Justiça, ainda que ele não tenha sido absolvido.
* É professor titular, FGV EBAPE, Rio de Janeiro
Fernando Gabeira: Bem-vindos à Neverlândia
A França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por aqui.
Isso que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar de Neverlândia.
É um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num quadro da oposição.
No final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a luz de padaria e um cenário com cores berrantes.
Em Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta & Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.
Em Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.
Em Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes musculares.
Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.
Aquele país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais. Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.
A ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está aí.
Será um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição para a Neverlândia.
Para reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da Federação, mas um estado de espírito.
Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.
Éramos um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era, indiretamente, uma atração turística.
A pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.
A sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.
Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.
Estamos diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.
Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência.
Mas e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.
O Estado de S. Paulo: CPI da Covid põe militares no foco das investigações
Já na mira do TCU, os generais Eduardo Pazuello e Walter Braga Netto devem estar entre os primeiros a serem ouvidos pela comissão parlamentar no Senado
Mateus Vargas e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Nem o presidente Jair Bolsonaro nem os governadores. A Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Senado para investigar a atuação do governo na pandemia deve mirar primeiro nos militares. Os generais Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa, que comandou um comitê de crise quando estava na chefia da Casa Civil, entre outros oficiais, devem ir a um incômodo “banco dos réus”. Ambos os generais entraram na mira do Tribunal de Contas da União (TCU) e de membros da CPI.
A convocação de Pazuello já era certa, mas ontem senadores da CPI combinaram de incluir entre os primeiros a serem ouvidos também o atual ministro da Defesa. A decisão ocorre após o Estadão revelar que técnicos do TCU consideraram que Braga Netto não atuou de forma a “preservar vidas” quando comandou o comitê da crise. O general teria entrado em contato ontem com ministros da Corte para se defender e tentar sair da mira do tribunal, cujos relatórios costumam pautar as CPIs. Ao Estadão, o Ministério da Defesa negou que o comitê tenha sido omisso com a crise.
Membro da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) disse que as apurações não podem ficar restritas à conduta do ex-ministro Pazuello. “O Ministério da Saúde não é só Pazuello. Existe uma estrutura organizacional de cargos, com responsabilidades. Quando o Pazuello foi ao Senado, por exemplo, o secretário executivo dele (o coronel da reserva Elcio Franco) estava do lado”, disse. Sobre a conduta de Braga Netto, afirmou: “Vamos averiguar, pedir informações ao TCU. A investigação vai ditar os requerimentos de informações e as convocações”.
“Não tenha dúvida que vamos discutir a convocação de Braga Netto. Acompanhamos tudo dos relatórios do TCU, do MPF e denúncias. Vamos atrás de cada uma. O relatório do TCU é muito rico, vai ser uma base importante para os trabalhos”, reforçou o senador Humberto Costa (PT-PE), que também integra a comissão.
“Na medida em que a CPI busca fazer uma radiografia completa da atuação do governo federal no combate à pandemia, avaliar a atuação do comitê presidido pelo ministro Braga Netto será provavelmente indispensável”, complementou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores da CPI.
Diante dos novos fatos envolvendo militares, interlocutores do Planalto já avaliam que o governo estará no lucro se os debates da comissão se limitarem a Eduardo Pazuello. Sua equipe mais próxima na Saúde era formada por cerca de 20 nomes da ativa e reserva.
A disposição dos senadores, contudo, é convocar todos a depor em sessões transmitidas ao vivo. Eles não costumam ter parcimônia com seus investigados e a história registra episódios em que depoentes saíram presos de comissões. Razão pela qual é cada vez mais frequente que depoentes acionem o Supremo Tribunal Federal (STF) para não serem obrigados a dar as caras e prestar depoimentos. Uma CPI também tem poderes para quebrar sigilos fiscal, telefônico e bancário.
“Estão fazendo prejulgamento antes de instalar a CPI. Não é um tribunal de inquisição, temos que ter calma. Já estão condenando, isso não funciona. Primeiro, temos que ver o que está acontecendo”, disse o senador Jorginho Mello (PL-SC), um dos dois governistas na CPI, que tem 11 membros.
Alertas
Sob comando de Pazuello na Saúde, o Brasil saltou de cerca de 15 mil óbitos para 300 mil vítimas da pandemia e tornou-se uma ameaça global. Na quarta-feira passada, o TCU acusou o general de alterar o plano de contingência da Saúde na pandemia para livrar o governo de responsabilidades no monitoramento de estoques de medicamentos, insumos e testes.
A obediência de Pazuello ao presidente ficou nítida em outubro de 2020, quando cancelou uma compra de 46 milhões de doses da Coronavac. “É simples assim. Um manda e outro obedece”, disse na ocasião. A promessa de aquisição da vacina havia enfurecido Bolsonaro, pois os dividendos políticos iriam para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Ainda em fevereiro, um ministro do STF demonstrava, em conversa reservada com o Estadão, a preocupação diante da possibilidade de os militares serem alvo de uma CPI. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, que mirou agentes da reserva e questões da história, havia criado uma crise na cúpula militar e um estranhamento entre o governo Dilma Rousseff e a caserna.
Nesta semana, o ministro Gilmar Mendes disse ao Estadão não temer problemas institucionais. Ele observou que os militares foram “reprovados” na gestão pública e defendeu o direito da CPI de investigá-los. Em julho de 2020, o ministro já havia afirmado que o Exército estava se associando a um “genocídio”.
Enquanto Bolsonaro atacava a vacina, as Forças Armadas foram vitais para turbinar a produção da cloroquina, sem eficácia comprovada contra a covid-19. O Laboratório do Exército fez 3,2 milhões de comprimidos na pandemia. O lote anterior, de 2017, foi de 256 mil. A passagem de Pazuello na Saúde ainda ficou marcada por críticas sobre a omissão do governo no colapso no Amazonas.
O Ministério da Saúde afirmou que “desde o início da pandemia tem trabalhado incansavelmente para salvar vidas”. Braga Netto não quis comentar.
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É preciso ter mais debates públicos, não só pela internet, como o da Brazil Conference neste sábado, mas também pela imprensa escrita e televisiva
Quem assistiu ao debate organizado pela Brazil Conference com cinco potenciais candidatos à Presidência da República – Ciro Gomes, João Doria, Fernando Haddad, Luciano Huck e Eduardo Leite – teve contato com diagnósticos precisos e bem elaborados sobre a realidade brasileira. A despeito das diferenças políticas, e numa discussão que evitou a polarização tóxica, prioridades comuns foram destacadas: melhorar a educação, combater a desigualdade, criar um modelo de desenvolvimento sustentável, modernizar a gestão pública, fortalecer a saúde pública, em suma, sintonizar o País com os desafios do século 21.
O problema é que o Brasil está sendo governado por uma postura oposta. Vigora o negacionismo científico frente à pandemia, o descaso educacional, o desastre ambiental, a postura presidencial autoritária e a incompetência governamental. As luzes do debate de ontem se contrapõem ao pesadelo vivido pelo País hoje.
Mas 2022 pode repetir 2018, não se pode esquecer disso. Duas coisas podem evitar isso. Primeiro, todos devem estar contra Bolsonaro e aumentar sua pressão contra o presidente. O sofrimento diário dos brasileiros na pandemia precisa de uma oposição mais forte do que a atual. E a grande lição deste sábado: é preciso ter mais debates públicos, não só pela internet, mas também pela imprensa escrita e televisiva. Isso não pode ocorrer somente no período eleitoral de dois meses. Em boa medida, a falta de discussão política da última eleição favoreceu a escolha que gerou o pesadelo. Melhores ideias precisam vencer o populismo autoritário.
*Doutor em Ciência Política pela USP e professor de Gestão Pública da FGB-EAESP
Eliane Cantanhêde: Enfraquecido em várias frentes, Bolsonaro atiça 'seu povo' e 'seu Exército' contra a democracia
Enfraquecido em várias frentes, Bolsonaro atiça 'seu povo' e 'seu Exército' contra a democracia
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou duas vezes no Supremo, com a anulação de suas condenações na Lava Jato e a correspondente volta ao jogo eleitoral, e essas duas vitórias devem ser aprofundadas nesta semana com a ratificação em plenário da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. Significa começar tudo do zero, para ficar no zero.
A grande dúvida é quanto ao “efeito sistêmico” das decisões que envolvem Lula, tanto na questão da competência de Curitiba para julgá-lo quanto na suspeição de Moro. Se valem para Lula, por que não valeriam para todos aqueles condenados brancos, poderosos, de colarinho branco? E o que sobra da Lava Jato?
Um a um, os ministros do Supremo negam a possibilidade, argumentando que cada “paciente” é um “paciente” e o que cabe para Lula não cabe, ao menos necessariamente, para os outros da Lava Jato. E o jornalista Carlos Alberto Sardenberg lembra que, pela psicanálise, se tantos precisam insistir que não cabe, é justamente porque cabe – ou pode caber.
Há excitação entre condenados e alvoroço entre seus advogados, mas, quando a Segunda Turma do STF decidiu pela suspeição de Moro, o ministro Gilmar Mendes enumerou fatos que distinguem a situação de Lula da dos demais e jogam luz no que seria uma perseguição política específica.
A esses fatos: prisão coercitiva de Lula sem motivo; divulgação de uma conversa obtida fora do prazo legal entre ele e a então presidente Dilma Rousseff, para impedir sua posse na Casa Civil; o vazamento de partes da delação do ex-ministro Antonio Palocci às vésperas da eleição. Sem falar nos diálogos da The Intercept Brasil e no ponto fraco de Moro: o cargo no governo Bolsonaro, com as urnas ainda quentes.
Dificilmente houve algo assim em relação a empreiteiros, executivos da Petrobrás e de empresas privadas, governadores e parlamentares, os peixes graúdos da Lava Jato. Logo, a estratégia no Supremo para evitar o tal “efeito sistêmico” é focar em Lula como alvo político, diferentemente dos demais.
Toda decisão envolvendo Lula mexe com eleição, paixões, temores e ímpetos golpistas, porque tem dois efeitos opostos para Jair Bolsonaro em 2022. Ajuda, porque a polarização fortalece a unidade do seu lado e pode atrair parte do centro – caso não se encontre, como não se encontrou até hoje – uma alternativa competitiva. Mas ameaça porque, afinal, Lula é Lula.
Bolsonaro está irado, enfraquecido, nas mãos de um Centrão que não é de brincadeira e pressionado até por líderes do capital e, claro, pelos Estados Unidos de Joe Biden. Nada está fácil. Covid, registros de morte pela cloroquina, Orçamento maluco, corrosão do meio ambiente, terra arrasada na política externa e a diligência de STF, TCU e MP. A economia teria de ser um sucesso estupendo para equilibrar. Não é nem será.
Assim, Bolsonaro perde todas na CPI da Covid: não queria a CPI e ela foi instalada; achou que teria maioria, não tem; tentou tirar Randolfe Rodrigues da vice e Renan Calheiros da relatoria, perdeu; e Omar Aziz foi o “menos ruim”, o que restou ao Planalto para a presidência, mas ele não vai sabotar a comissão, até porque é do Amazonas, exemplo de dor, asfixia e tragédia.
Resta a Bolsonaro atiçar sua turba contra o Supremo, pelos votos de Lula, os governadores, cara a cara com a pandemia, e a mídia, que relata toda a história. Parte do plano é martelar que essa turba é o “povo”. Se 200 ou 500 alucinados atacarem de novo o prédio do STF, Bolsonaro apoiará: “Não jogarei o ‘meu’ Exército contra o ‘povo’!”. Saberemos então, finalmente, qual foi sua intenção ao derrubar toda a cúpula militar. A que saiu defendia a Constituição. A que entrou se escuda no “povo”, esse “povo”?
Luiz Sérgio Henriques: Crônica de uma nação descentrada
Rompe-se o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo
No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.
Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.
Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.
“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.
Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.
Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.
Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.
De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.
O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos. Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Adriana Fernandes: O limbo da reforma tributária
Arthur Lira quer apoiar ou enterrar o relatório da reforma tributária?
Novo fiador das reformas para o mercado financeiro e setor empresarial, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), não assinou a prorrogação dos trabalhos da comissão mista de reforma tributária.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, acabou assinando sozinho o ato que estendeu por mais um mês o funcionamento da comissão, criada no ano passado para dar uma solução ao impasse em torno das duas propostas de emenda constitucional de reforma tributária que tramitam no Congresso: a PEC 45, na Câmara, e a PEC 110, no Senado.
A recusa de Lira é tratada muito reservadamente nos corredores (virtuais e presenciais) do Congresso, mas o episódio retrata bem as relações estremecidas entre a Câmara e o Senado após a votação fatídica do Orçamento no dia 25 de março (que, aliás, continua até hoje sem solução com a indecisão do presidente Bolsonaro).
Lira não aceitou que o Senado tenha ficado com mais emendas do que os deputados, em valores acima do acordo político fechado entre as duas Casas e o governo. O presidente da Câmara se queixou de não ter sido consultado por Pacheco sobre a prorrogação até o dia 30 deste mês.
Lira está pressionando o relator, deputado Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB), para apresentar o seu parecer. Aguinaldo, que originalmente é o relator da PEC 45 (patrocinada pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia), queria que a Câmara fizesse uma nova rodada de conversas com empresários para apresentar o texto. Mas Lira não gostou da ideia e reclamou, com ironia, que se fosse fazer isso ele só apresentaria o relatório daqui a alguns anos.
A comissão foi criada, em fevereiro, em ato conjunto da Câmara e Senado, que recebeu as assinaturas dos então presidentes Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP). O colegiado foi formado por 25 deputados e 25 senadores e fez várias reuniões, sob a presidência do senador Roberto Rocha (PSDB-MA).
Sem rumo claro e com a proximidade do fim do prazo, as especulações se voltaram agora em desvendar a real estratégia de Lira em relação à reforma, que foi prometida por ele e Pacheco ao mercado e empresários em comunicado em fevereiro.
O presidente da Câmara quer apoiar ou enterrar o relatório da comissão? No início do seu mandato como presidente, Lira chegou a buscar nomes para trocar o relator. A desconfiança é de que a pressão para a apresentação do relatório seja uma armadilha para o parecer ficar exposto a bombardeios e críticas fortes de quem não quer essa reforma ou quem não acha o momento atual o ideal.
Essa preocupação tem sua razão de ser porque há empresários, apoiadores do governo Bolsonaro, que preferem que a reforma dessas PECs não seja aprovada.
Por enquanto, esse lado está ganhando a parada porque, depois de um ano da instalação da comissão mista, o avanço foi quase nenhum. Além dos entraves políticos, a razão para isso ter acontecido é o temor com o fim de incentivos tributários dos setores beneficiados e o aumento da carga tributária.
Entre os empresários e tributaristas que apoiam o texto, a esperança de um acordo para a aprovação da reforma tributária, ainda no governo Bolsonaro, está minguando. Mas não morreu de vez.
Enquanto Lira ainda não deu sinas claros do encaminhamento que pretende dar à reforma tributária, no Senado as conversas de bastidores se intensificaram com lideranças em meio às discussões de um novo Refis. Pacheco quer a reforma e conseguiu a aprovação esta semana de um programa para atualização patrimonial voluntária de imóveis e bens móveis com alíquota de 3%, medida com grande interesse dos empresários.
O grupo que quer a reforma logo articulou um movimento de empresários, governadores e prefeitos para “ressuscitá-la”. Uma carta conjunta foi assinada em defesa de uma reforma ampla. Eles estão buscando apoio de mais instituições. A tentativa é manter o debate aceso aguardando a definição política que continua sem rumo.
Em encontro com representantes do mercado, o presidente da Câmara prometeu mais uma vez acelerar a agenda das reformas. Como mais novo fiador delas, papel que está ocupando no lugar da equipe econômica de Bolsonaro, será cobrado logo mais.
Rubens Ricupero: ‘Uma chance de ouro para o Brasil, mas sem chantagem’
Paula Bonelli, O Estado de S. Paulo
Com a experiência de seus 36 anos no Itamaraty e outros 9 na ONU, o embaixador Rubens Ricupero vê, na reunião da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, uma chance de alterar a imagem negativa do País, criada pelo impacto do desmatamento ilegal na Amazônia e de queimadas no Pantanal.
A seu ver, “se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma oportunidade de ouro para o País melhorar suas contribuições ao combate do aquecimento global. Mas ele adverte que isso “é difícil”. O Brasil “tem que dizer que precisa de dinheiro mas não colocando como uma chantagem”. Assim, poderia receber em troca a boa vontade dos Estados Unidos em relação à doação de vacinas excedentes ao Brasil contra covid-19, acredita Ricupero. O presidente Jair Bolsonaro está entre os 40 chefes de Estado convidados para o evento virtual nos dias 22 e 23.
Ricupero inaugura em maio curso da história da Diplomacia Brasileira no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) sobre a política externa brasileira do Império até os dias de hoje. “Se o Ernesto Araújo fosse chanceler ainda, eu não teria ânimo para falar de uma tradição que foi degradada. Ele deixou uma terra arrasada, agora precisa plantar, adubar, regar, fazer um esforço de reconstrução”, diz o ex-ministro da Fazenda.
Qual o balanço, a seu ver, da gestão de Ernesto Araújo?
É completamente negativo. No caso da pandemia da covid-19, ao invés de reconhecer que é um grande problema e colaborar com a Organização Mundial de Saúde, sua atitude desde o início foi de negá-la. Eles só entraram no consórcio Covax Facility porque a nossa embaixadora lá em Genebra os convenceu; mas, no final, o Brasil ficou com a cota menor.
Carlos Alberto França, o novo ministro das Relações Exteriores, pode mudar essa trajetória?
Se depender dele e da máquina do Itamaraty, sim. Mas se depender do presidente, do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, aí eu duvido. O primeiro teste do França é na reunião de cúpula do clima quando Biden pedirá que cada país melhore a proposta que tinha feito no Acordo de Paris, de 2015. Se o presidente tivesse o mínimo de bom senso, seria uma chance de ouro para o País melhorar suas contribuições no combate ao aquecimento global. E isso explicando que é difícil, que precisa de dinheiro, mas não colocando como uma chantagem. Agora, se o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles não fizer isso, o França não pode fazer porque não é a pasta dele. A cúpula do clima terá países que têm maior responsabilidade nas emissões. O Brasil é o sexto maior gerador de gases do efeito estufa. Com uma característica, os gases vêm do desmatamento e do uso da terra, da pecuária extensiva. Nos outros países eles se devem ao carvão para gerar energia.
Como vê os sinais iniciais do ministro França?
Ele provou que é capaz de fazer coisas boas porque tanto nos discursos de posse como na mensagem que enviou aos funcionários toca em todas as teclas corretas e não fala naquilo que não deve falar.
ONGs dizem que há negociação secreta do Brasil com o governo Biden, sobre temas ambientais.
A falta de transparência do que está se discutindo preocupa. Agora, o que preocupa mais é a falta de credibilidade do interlocutor do nosso lado, Ricardo Salles. O Fundo Amazônia tem, parados no BNDES, quase R$ 3 bilhões – por causa de um problema criado por ele, que discordou da governança do fundo. As doações vêm da Noruega principalmente e da Alemanha.
Bolsonaro enviou carta a Biden prometendo zerar o desmatamento ilegal até 2030.
A carta de Bolsonaro diz tudo o que Biden gostaria de ouvir, só que é o contrário do que o governo crê e pratica.
Biden esquecerá da demora de Bolsonaro em cumprimentá-lo quando venceu a eleição?
Eles são realistas. Sabem que terão que lidar com Bolsonaro e com seu governo até o final de 2022. Eu não acredito que os americanos vão adotar qualquer ação negativa mas também não vão fazer esforço para ajudar. O Brasil tem apelado por vacinas e os EUA adotado atitude evasiva. Eles já doaram vacinas ao México e ao Canadá mas ao Brasil não.