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Paulo Hartung: Na travessia da pandemia, o presente e o futuro

É impositivo reformar o Estado, em todos os níveis, tornando-o contemporâneo

Nesta dura travessia, para além da angústia das incertezas e do sofrimento dilacerante das perdas, há que exercitar a altivez do espírito e a grandeza da razão. Isso porque, se não há – e não há – sentido algum intrínseco a esta tragédia, que produzamos um sentido a partir do seu enfrentamento. Só esse duro desafio nos tornará aptos a concluir essa caminhada em pé, e não de joelhos, capacitados para a reconstrução e também para a prevenção de situações como a que nos abate.

Esse é um caminho possível, porque toda crise tem três forças: aprendizados, oportunidades e finitude. Além disso, as mais bem-sucedidas travessias de tempos trágicos, ou seja, as que implicaram menos perdas e possibilitaram uma reabilitação mais rápida e com uma sociedade mais preparada, tiveram o dom de dar prioridade às demandas do momento e ao olhar no pós-crise – mais que o olhar, o agir em prol do futuro.

Nesse sentido, sempre no espectro dos valores democrático-republicanos e humanísticos, o atual enfrentamento consolida certezas como a prioridade absoluta de salvar vidas, cuidar dos vulneráveis, preservar empregos, empresas e atividades econômicas. Há também a consciência de que devemos ter humildade diante deste obscuro mal, investindo nas melhores ferramentas da ciência e nas virtudes da prudência, da generosidade e da justiça.

No campo dos aprendizados e das oportunidades que a crise enseja, há pontos importantes. A pandemia escancarou a infâmia da desigualdade social no Brasil. Num país que ainda debate sobre a necessidade ou não de quarentena, há mais de 30 milhões de irmãos nossos sem acesso regular a água tratada. Não se trata de discutir distanciamento social, mas de não ter água dentro de casa para lavar as mãos. Mais: 100 milhões não estão conectados aos sistemas de coleta e de tratamento de esgoto. Assim, além do aspecto humanitário e sanitário, os investimentos em saneamento são uma oportunidade, seja para gerar ocupação e renda, seja para enfrentar um dos maiores desafios de nossa secular desigualdade socioeconômica.

A superação dessa desigualdade tem no investimento em educação básica o seu mais potente recurso. Uma educação qualificada promove a autonomia cidadã, é agente de prosperidade compartilhada. E nem é preciso reinventar a roda. Há experiências bem-sucedidas, como as de Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, entre outras, assim como há exemplares movimentos da sociedade, como o Todos Pela Educação e os Institutos Unibanco, Ayrton Senna, Natura, ICE e Sonho Grande.

No enfrentamento emergencial da desigualdade, tão manifestamente exposta pela crise da covid-19 e sua gigantesca demanda por suporte e amparo aos mais carentes, resta evidente que é preciso unificar os programas sociais do País e criar um bem estruturado programa nacional de renda mínima, dando prioridade ao socorro aos mais empobrecidos.

A tragédia do saneamento insere-se na grave desorganização da infraestrutura no País, incluindo rodovias, ferrovias, aeroportos, energia, transmissão de dados e portos. Esse setor tem uma demanda urgente de atualização de marcos regulatórios, conferindo-lhe diretrizes modernas, segurança jurídica e atratividade para os investidores nacionais e estrangeiros. Aqui, além de incrementar as bases da produtividade e da competitividade, dinamizando a produção de riquezas, vale notar também a oportunidade de geração de emprego.

O coronavírus tem mostrado também o atoleiro analógico em que está imerso o Estado brasileiro. Revelando mais uma faceta de uma estrutura governativa cara e ineficiente, na hora de se conectar com os milhões de trabalhadores informais para a ajuda emergencial o governo simplesmente não tinha redes nem bancos de dados desse contingente que, apesar de pagar tributos, é desconhecido por esse implacável cobrador de impostos. Ou seja, é impositivo reformar o Estado, em todos os níveis, tornando-o contemporâneo do nosso tempo, incrementando sua interface com a digitalidade, libertando-o do cativeiro imposto por corporações e grupos de interesse, enfim, conferindo-lhe agilidade e eficácia.

Esta travessia, além de destruir riquezas, evidencia algumas tendências para o pós-crise, entre elas, o fortalecimento da ciência, o valor da cultura, o enfraquecimento do populismo autoritário e o incremento inédito da digitalidade em campos como trabalho, consumo, educação e medicina, entre outros. Esperamos que as questões climáticas também entrem de vez na pauta de todo o planeta.

Em meio a tanta dor e desolação, que, paralelamente à luta sem trégua, sejamos capazes de aprender e, assim, possamos sustentar nossa caminhada com o saber e a sabedoria das superações, as de hoje e as do ontem. Esse é o caminho para que possamos resistir com o menor sofrimento possível e para concluir essa travessia tormentosa com rumo, bússola, mapa e energia para investir cada vez mais na dignidade humana e no bem-estar coletivo, de modo socialmente inclusivo, economicamente sustentável e politicamente democrático.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, ex-governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Eliane Cantanhêde: Crise sobre crise

A covid-19 avança, mas o tipo de crise de que Bolsonaro gosta é outro. Melhor não alimentá-lo

O objetivo não era esse, mas o ministro do Supremo Alexandre de Moraes pode ter salvo, ou ao menos aliviado, o presidente Jair Bolsonaro no processo em que é acusado pelo ex-ministro Sérgio Moro de investir contra a autonomia da Polícia Federal para obter informações sigilosas e interferir em processos autorizados pelo próprio Supremo.

Até onde se sabe, Moro acusa o presidente de “intenções”. Se o ministro Moraes não tivesse impedido a posse do delegado Alexandre Ramagem na direção-geral da PF, estariam criadas as circunstâncias para que essas “intenções” se transformassem em atos – ou não. Sem Ramagem e com o delegado Rolando Alexandre de Souza na PF, os cuidados serão naturalmente redobrados para não jogar álcool na fogueira.

Logo, Alexandre de Moraes pode ter obtido o efeito inverso ao pretendido, dando uma mão para Bolsonaro e evitando que ele saísse do mundo da vontade para o da execução, caso Ramagem já chegasse reunindo investigações sobre este ou aquele amigo, este ou aquele inimigo do presidente e enviando diretamente para o Planalto. A subjetividade teria adquirido materialidade.

Por ora, é a palavra de Moro contra a de Bolsonaro. Os generais Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno, apontados pelo ex-colega como testemunhas, não podem nem mentir para a Justiça nem incriminar o chefe. Basta confirmar que Bolsonaro exigia, sim, trocar o diretor da PF e ameaçava, sim, demitir o ministro da Justiça. E daí? É atribuição do presidente nomear e demitir o outro.

Com Moro autorizando a divulgação de seu depoimento de oito horas à própria PF e ao Ministério Público, pode-se vir a saber e balancear o que ele entregou. Com 22 anos de magistratura, não seria ingênuo de fazer acusações pesadas, e justamente contra o presidente, sem provas. De outro lado, ele teria apagado as conversas pelo celular, preservando apenas as dos últimos 15 dias antes da queda.

Se for assim, o torpedo mais letal contra Bolsonaro é a mensagem, já divulgada pela Rede Globo, em que ele reclama de investigações sobre “dez a doze deputados do PSL” e termina com uma frase bastante comprometedora: “Mais um motivo para a troca (na PF)”. Mas será que Moro só tem isso?

Como as demonstrações de Bolsonaro contra o STF e o Congresso, houve um consenso contra ele e pró-Alexandre de Moraes. Porém, juristas, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, e os militares do Planalto estão convencidos de que Moraes extrapolou. E, assim, deu pretexto para Bolsonaro ameaçar também extrapolar. O risco é crise institucional.

E assim vai-se vivendo, de manifestação em manifestação de inspiração golpista, embalada pelo presidente da República e pelos símbolos e cores nacionais e agora com ataques covardes a enfermeiros e a jornalistas, como os brilhantes fotógrafos Dida Sampaio, do Estado, e Orlando Brito, um veterano, e ao motorista Marcos Pereira.

A cada provocação de Bolsonaro e de bolsonaristas, o Ministério da Defesa tem de acertar o tom na defesa da democracia sem atacar Bolsonaro e pregar “a independência e a harmonia entre os Poderes”. Está virando rotina. O coronavírus atinge mais de cem mil brasileiros e mata mais de 7 mil, mas o presidente não está nem aí. O tipo de crise de que ele gosta é bem outro. Quanto menos se alimentar, melhor.

Equilibristas

Nos deixaram na segunda-feira, 4, além de Flávio Migliaccio, o iluminado Aldir Blanc, autor do hino informal da reabertura política, e o grande político Guilherme Palmeira, que liderou com Marco Maciel e Jorge Bornhausen a dissidência do regime que se revelou fundamental para enterrar a ditadura. A morte de ambos traz memórias e reflexões preciosas neste momento difícil, às vezes assustador.


Fábio Gallo: Democracia. Não temos consciência desse bem ainda

A busca de saídas inteligentes para a crise vai depender muito do correto funcionamento das entidades do Estado

As pessoas no geral, mas principalmente os trabalhadores que perderam renda e/ou emprego, estão atordoadas e de certa forma desesperançadas com a situação econômica. A situação aflige o mundo todo, mas nós brasileiros estamos vendo o pico da crise da saúde junto a outras crises, a econômica e a política. Tudo indica que viveremos tempos muito difíceis após a pandemia.

A proteção financeira das famílias historicamente é muito baixa, assim, passar por esse período está difícil e as perspectivas não são claras. Situação como esta exige um grande esforço de busca de geração de economias no orçamento familiar. A recomendação, que é óbvia neste momento, é a de identificar possíveis cortes nos gastos – se ainda houver algum espaço para isso.

O socorro financeiro emergencial aos trabalhadores que perderam renda sem dúvida trouxe alívio para milhões de pessoas, mas ainda deixa de fora outros milhões que estão fora do radar ou em filas intermináveis para buscar os seus direitos negados pela falta de organização ou burocracia. Mas, o que fazer? A busca de saídas inteligentes para a crise vai depender muito do correto funcionamento das entidades do Estado. E, por obviedade, da busca de harmonia entres essas instituições já que o equilíbrio de poderes é previsto na Constituição.

Desse equilíbrio depende a sobrevivência da própria Democracia. Depende, também, do nosso entendimento do que é a Democracia Liberal. Algo que vem fácil na boca de muitos políticos que, no entanto, dão mostras de que a sua prática não é essa. Com a desculpa de que se age dentro do espectro liberal é pregado que o cidadão tem o direito de furar o distanciamento social, carregar armas, entre outras coisas. Sem buscar fazer uma descrição exaustiva e teorizada sobre o tema.

Liberalismo é uma teoria política que protege a igualdade de liberdade de cada cidadão de agir dentro de sua concepção do bem, desde que essa prática não fira direitos dos outros. Nas raízes dessa teoria de Locke, Montesquieu, Hume, Adam Smith, Mill, Tocqueville, tem-se que a prática do liberalismo depende de os cidadãos exercerem algum grau de virtude. Virtude aqui entendida como a motivação do cidadão em agir corretamente, independentemente da lei. Sem isso colocamos em risco o ambiente necessário para sustentação das instituições e entes federativos. Temos que entender que a ética é que deve resgatar o liberalismo.

Para reduzirmos as incertezas e dar alguma esperança de que conseguiremos reduzir as consequências dessa crise, devemos parar de agir como tolos e praticarmos a virtude como cidadãos, em todas as esferas da sociedade.


Carlos Pereira: O presidencialismo de coalizão voltou

Ter ignorado o presidencialismo de coalizão pode custar a sobrevivência do governo

As relações entre instituições políticas, regras do jogo, e escolhas/preferências individuais são muito complexas. Em muitas ocasiões, as regras existentes podem deixar de fazer sentido para algumas pessoas ou mesmo para a própria sociedade. Nessas ocasiões em que as regras em vigor não mais conseguem oferecer os resultados esperados, mudanças institucionais têm maiores chances de acontecer.

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito negando as virtudes do presidencialismo de coalizão. Propôs um rompimento com o que chamou de jogo da política tradicional e se comprometeu com a implantação de uma suposta “nova política”. Preencheu as expectativas de uma parcela do eleitorado de “limpeza” da política, construindo uma plataforma essencialmente antipartido, enfatizando a imagem de que todas as siglas e seus membros seriam iguais e fariam parte de uma mesma elite corrupta. Ao associar diretamente o estilo predatório de presidencialismo de coalizão praticado pelos governos do PT à corrupção, Bolsonaro alimentou no eleitorado uma espécie de aversão à própria política.

Uma vez eleito, Bolsonaro se comportou de forma consistente com o que havia prometido durante a campanha. Se negou a montar uma coalizão de governo, acreditando que poderia governar na condição de minoria. Adotou uma estratégia conhecida como presidencialismo plebiscitário, estabelecendo conexões diretas com seus eleitores e ao mesmo tempo negligenciando as instituições numa espécie de cruzada contra todos que lhe oferecessem resistência.

Se estava de fato insatisfeito com o presidencialismo de coalizão, deveria ter aproveitado a força do início de seu governo e ter proposto uma reforma no sistema político. Preferiu nadar individualmente contra a corrente ao invés de propor mudanças institucionais que viessem a reduzir os problemas governativos decorrentes da ausência de uma coalizão majoritária dentro do presidencialismo multipartidário.

Dois choques recentes fragilizaram profundamente o governo Bolsonaro, reduzindo drasticamente seu apoio junto à sociedade, colocando em xeque sua escolha de continuar governando sem uma coalizão: um exógeno, a subestimação dos impactos da pandemia do novo Coronavírus; e outro endógeno, a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça.

Esses eventos obrigaram Bolsonaro a se voltar para a antes demonizada coalizão como forma de sobrevivência política. Busca apoio do conhecido “Centrão”, formado por partidos políticos heterogêneos, ideologicamente amorfos e não programáticos.

Ao corromper suas promessas de uma “nova política” junto ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro realiza um dos maiores estelionatos eleitorais da história recente. Substitui legitimidade eleitoral por sobrevivência. Sua conversão tardia ao presidencialismo de coalizão pode ter se dado em condições muito mais adversas que as que teria encontrado se tivesse construído uma coalizão majoritária e estável desde o início do seu governo.

Ainda é cedo para vaticinar o futuro do presidencialismo de coalizão a la Bolsonaro. Afinal de contas, antes tarde do que nunca. Entretanto, será muito difícil que Bolsonaro consiga impedir que os seus novos aliados inflacionem o preço do apoio.

Como esse é um jogo de repetição, é esperado que o Centrão aja de forma estratégica e aumente o valor da contrapartida para o suporte político a cada novo sinal de vulnerabilidade. Afinal de contas, o céu é o limite quando se perceber que o que está a prêmio é a cabeça do presidente.