o estado de s paulo

Eliane Cantanhêde: Na CPI, guerra é guerra

Bolsonaro quer impor roteiro, desqualificar Calheiros e dar Pazuello aos leões, mas os fatos o condenam

Com a instalação da CPI da Covid, começa hoje uma nova fase do governo Jair Bolsonaro, que, além de já estar em campanha eleitoral antecipada para 2022, vai estar muito ocupado em tentar explicar o inexplicável numa tragédia histórica que já levou 390 mil vidas no Brasil. Bolsonaro vai passar a ter oposição real e muita visibilidade negativa.

A CPI é como o coronavírus: desconhecida, altamente contagiosa e potencialmente letal. Se Bolsonaro reagir a ela com o negacionismo com que trata o próprio vírus, ficará em maus lençóis. Mas, se ele é incompetente como presidente, é esperto como candidato e na relação com o Centrão. Suas três prioridades: impor o roteiro da CPI, desqualificar o senador Renan Calheiros como relator e manter controle sobre o general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.

Quanto ao roteiro, o Planalto fez 23 perguntas a ministros sobre os erros mais gritantes, mas tem muito mais. Exemplos: por que tratar a pandemia até hoje como “gripezinha”? E por que Bolsonaro jogou no lixo documentos do Exército e da Abin sobre isolamento? Nenhum ministro tem resposta para isso, assim como ninguém sabe que tipo de motivações, ou interesses, estão por trás da posição sobre isolamento, máscaras e vacinas – e sem pôr nada no lugar, além de cloroquina...

Atacar Calheiros é fácil, pelos processos no Supremo e por ser pai do governador de Alagoas, Renan Filho, como acatou ontem a Justiça Federal no DF. Mas Renan pode ser tudo, menos bobo. É experiente, tem liderança e, depois de tanto tempo recolhido, sabe bem o que o esperava e espera ao voltar aos holofotes.

Quanto a Pazuello, ele é um risco para Bolsonaro. Como ministro, já se atrapalhava todo com jornalistas, mentindo, apresentando previsões irreais de vacinas, tirando onda de irritado. Já imaginaram numa CPI com raposas, maioria oposicionista, montanhas de erros e nenhuma defesa?

Até na véspera da CPI, Pazuello e o sucessor, Marcelo Queiroga, continuaram errando. Um ex-ministro da Saúde passeando sem máscara num shopping logo de Manaus? E o atual tentando culpar o Butantan por falta de segundas doses? De Pazuello não se espera muito e o próprio Exército não sabe o que fazer com ele. Mas Queiroga? Está mal informado, ou entrou na dança política?

Ontem, Queiroga jogou para governadores, Butantan e Coronavac a culpa por muitos brasileiros, sabe-se lá quantos, não conseguirem tomar a segunda dose. Se há vacinas, o Brasil deve à Coronavac. E por que não há segunda dose? Porque, em 21 de março, dois dias antes da nomeação de Queiroga, o Ministério da Saúde liberou Estados e municípios a gastarem todo o estoque na primeira. É mais uma irresponsabilidade criminosa, até porque as previsões de doses nunca foram confiáveis. O ministro não sabia?

Foi também o Ministério da Saúde quem confiscou toda a produção nacional do kit intubação, mas, quando os insumos e medicamentos começaram a faltar e o governo de São Paulo mandou nove ofícios pedindo envio urgente de kits, o que Queiroga respondeu? Mandou os “Estados ricos” comprarem seus próprios kits. Comprar onde, se todo o estoque foi requisitado pelo governo federal?

A estratégia do governo é jogar Pazuello aos leões e deixar os demais ministros na fila da jaula, inclusive Paulo Guedes e o ex-chanceler Ernesto Araújo. Todos, porém, só cumpriram ordens. Um manda, os outros obedecem. O presidente Jair Bolsonaro é o grande responsável, cometeu os grandes erros, é o grande alvo. A intensa articulação do Planalto para esvaziar a CPI, atacar Calheiros e usar Pazuello de escudo esbarra numa antiga verdade: contra fatos, não há argumentos. Nem articulação que dê jeito.


Rubens Figueiredo: CPI da Covid tem potencial explosivo contra o Planalto

Comissão nem foi instalada, mas os movimentos de aquecimento prometem; Bolsonaro já mostrou que vai para o confronto e saiu em defesa de Pazuello

Se o futebol é considerado uma caixinha de surpresas, imagine o que nos reserva uma CPI da Covid que vai investigar principalmente as ações do Executivo federal, que é comandado por um presidente negacionista em atrito permanente com os outros dois Poderes da República. As informações chegarão à sociedade via redes sociais de eleitores radicais (muitos quase psicopatas) ou através da mídia convencional, enxovalhada quase diariamente pelo principal investigado.

Galões de nitroglicerina pura chacoalhando na carroceria de um caminhão sem amortecedores têm menos potencial explosivo do que isso. A comissão nem foi instalada, mas os movimentos de aquecimento prometem. Bolsonaro já mostrou que vai para o confronto e saiu em defesa do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, aquele do “é simples assim: um manda, outro obedece”. 

Outra pitada de gasolina na fogueira foi a curiosa entrevista do ex-secretário de Comunicação do governo federal Fábio Wajngarten, atestando “incompetência e ineficiência” da área da Saúde na compra de vacinas. Wajngarten isentou de qualquer responsabilidade o presidente da República, tentando colocar a culpa apenas no ministro Pazuello e seus colaboradores. Mas se um faz o que o outro manda...

CPIs são situações nas quais se medem forças; são processos mais políticos que jurídicos. Buscar a verdade é um instrumento, não o objetivo. São ajustes de contas entre o Legislativo – parlamentares, blocos, partidos – e o Executivo. É sabido que Bolsonaro vive uma relação tensa com o Congresso e a maioria esmagadora de seus ministros não foi indicada pelos partidos. O Senado, sem nenhum titular entre as pastas, é um “pote até aqui de mágoas”. Vale lembrar que até Dilma Rousseff, que não chegava exatamente a ser um primor em termos de habilidade política, em certo momento reservou dois ministérios para cada casa Legislativa. Mesmo assim, deu no que deu.

CPIs existem para dar voz às minorias do Parlamento. Tanto que é necessário apenas um terço de assinaturas (no caso do Senado, 27) para abrir os trabalhos. Um governo forte se blinda, garantindo a maioria dos integrantes da comissão e a titularidade dos cargos estratégicos, como a presidência e a relatoria. Bolsonaro não tem maioria (perde de 7 x 4) e os protagonistas do processo serão senadores independentes. De previsível, só o comportamento imprevisível de Bolsonaro.

*Rubens Figueiredo é cientista político pela USP

NOTÍCIAS RELACIONADAS


Rubens Barbosa: Em busca do ouro

O Brasil tornou-se o centro das facilidades da lavagem de dinheiro com o minério ilegal

Uma das afirmativas do presidente Jair Bolsonaro na conferência do clima foi a de “eliminar o desmatamento ilegal da Amazônia até 2030”. O combate às práticas ilícitas na região incluem as queimadas e o garimpo. A intenção presidencial foi considerada “encorajadora” pelo presidente Joe Biden, e “construtiva” por John Kerry, mas ambos dizem aguardar medidas concretas e “sólidas” nesse sentido.

O governo Bolsonaro poderia iniciar o cumprimento dessa promessa com ações para reprimir a exploração de ouro e diamantes, uma das atividades mais lucrativas e que mais prejuízos trazem à floresta e às comunidades indígenas. A busca pelo ouro na Amazônia está enraizada em práticas ilegais, que hoje respondem por cerca de 16% da produção do País, com a extração em áreas proibidas e sem nenhum tipo de controle. Essa ilegalidade pode ser muito maior, já que não há como contabilizá-la com exatidão. Cerca de 320 pontos de mineração ilegal foram identificados em nove Estados da região. A área para a pesquisa de ouro já ocupa 2,4 milhões de hectares. Desde 2018 houve um aumento no número de solicitações nesses territórios, com um recorde de 31 registros em 2020.

Em unidades de conservação, os pedidos para a pesquisa de ouro já ocupam 3,8 milhões de hectares. No total são 85 territórios indígenas afetados pelos pedidos de pesquisa para o ouro e 64 unidades de conservação. Só na Terra Indígena Yanomami, entre os Estados do Amazonas e de Roraima, são 749 mil hectares sob registro. Na Terra Indígena Baú, no Pará, a segunda em extensão de processos, 471 mil hectares estão registrados, ocupando um quarto de seu território.

Os municípios da Amazônia Legal arrecadaram em 2020, pela extração de ouro, 60% mais do que em todo o ano de 2019 e 18 vezes acima do valor registrado há dez anos. Em Rondônia acaba de ser aprovada lei que legaliza 200 mil hectares de terras griladas em duas unidades de conservação, Jaci-Paraná e Guajará-Mirim.

Os Institutos Escolhas e Igarapé acabam de divulgar importantes estudos sobre a exploração do ouro na Amazônia. Os resultados desses trabalhos mostram corrupção, desmatamento, violência, contaminação de rios e destruição de vidas, sobretudo de populações indígenas. A extração desses minérios não é capaz de transformar a realidade local no longo prazo e manterá a região pobre, doente e sem educação. Ao não trazer desenvolvimento econômico, a exploração de ouro e diamantes abre a discussão sobre as alternativas econômicas que poderiam gerar riqueza e bem-estar duradouros.

O trabalho do Escolhas foi enviado à Comissão de Valores Mobiliários e ao Banco Central, que lançou um conjunto de ações de responsabilidade socioambiental, para responder à pressão de investidores e instituições financeiras no Brasil e no exterior por incentivos que favoreçam negócios sustentáveis e combatam o desmatamento. Esse compromisso do setor financeiro nacional pode ajudar a limpar o setor de mineração de ouro no Brasil e fazer que esse metal ilegal não consiga ingressar no mercado. Exigir lastro de origem legal e de conformidade ambiental é um imperativo constitucional e deve ser um compromisso ético e moral do setor financeiro nacional.

De acordo com a Constituição federal, pelos artigos 176 e 231, a mineração em terras indígenas só pode ser feita mediante lei do Congresso Nacional e com consulta às comunidades, mas hoje não existe legislação que regulamente a atividade dentro dos territórios. Por iniciativa do senador Fabiano Contarato, o Projeto de Lei 836/2021 prevê a criação de um sistema de validação eletrônica para comprovar a origem do ouro adquirido pelas instituições financeiras e permitirá o cruzamento de informações com outras bases de dados, como a de arrecadação de impostos e de produção da Agência Nacional de Mineração (ANM). Pretende-se que, para efetivar a transação, seja exigida a comprovação de que o ouro tenha sido extraído de área com direito de lavra concedido pela ANM e que a pessoa física ou jurídica que estiver fazendo a comercialização seja titular do direito de lavra ou portadora de contrato com quem tenha esse direito. Além disso, o vendedor terá de apresentar a licença ambiental da área.

A criação de um marco de controle sobre a atividade de exploração de ouro ganha ainda mais urgência quando se observam tentativas de regulação da atividade contrárias à Constituição, como é o caso da Lei 1.453, de 8 de fevereiro de 2021, sobre o licenciamento para a atividade de lavra garimpeira no Estado de Roraima, ou a aprovada em Rondônia. A norma estadual dispensa a apresentação do estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima), em violação de preceitos constitucionais (artigos 23, 24, 223), para favorecer a continuidade das atuais práticas danosas à sociedade, aos povos indígenas e ao meio ambiente em geral.

O Brasil tornou-se o centro das ramificações criminosas e das facilidades da lavagem de dinheiro com o ouro ilegal. As terras indígenas e as unidades de conservação na Amazônia Legal estão ameaçadas pela busca do ouro, apesar de a atividade ser proibida. O ilícito na Amazônia tem de ser coibido pelos governos federal e estadual e o Congresso tem de fazer a sua parte.

*Presidente do IRICE


Felipe Salto: O desmonte do Estado brasileiro

Reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública

É sintomático que o Orçamento de 2021 tenha sido sancionado em bases irrealistas. Os cortes promovidos pelo Poder Executivo devem permitir o cumprimento do teto, mas ao preço de desmontar o Estado brasileiro. Na ausência de mudanças estruturais no gasto obrigatório, reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública.

O chamado shutdown não acontece da noite para o dia. Na verdade, políticas públicas essenciais estão sendo desidratadas ao longo dos últimos anos. Dada a opção pelo teto de gastos, mas sem avanços para conter a despesa mandatória, a fatura vai recaindo sobre o gasto discricionário (mais exposto à tesoura).

Em 2021, o caso do censo demográfico é emblemático. Em pleno ano de pandemia, quando se processam mudanças sociais e econômicas profundas, o Ministério da Economia anunciou que a pesquisa não será realizada. Motivo? Falta de orçamento.

O último censo realizado foi em 2010 e custou R$ 1,1 bilhão. Atualizado pelo IPCA e pelo aumento do número de domicílios, o orçamento do programa deveria ser de R$ 2,8 bilhões em 2021. O censo fundamenta a análise, o planejamento e a formulação de uma miríade de políticas sociais, econômicas, educacionais, etc. Os cortes anunciados levaram o orçamento dessa pesquisa a cerca de R$ 53 milhões. Na verdade, esse gasto não será sequer suficiente para preparar a realização do censo em 2022.

As despesas discricionárias do Executivo estão orçadas em R$ 74,6 bilhões para 2021. É o menor nível da série. O Ministério da Educação ficou com R$ 8,9 bilhões. Somando as emendas de relator-geral, vai a cerca de R$ 10 bilhões. Em 2016 as despesas discricionárias executadas nessa área totalizaram R$ 21,8 bilhões. Isto é, o valor de 2021 corresponde à metade do observado cinco anos atrás. Isso sem considerar a inflação do período. Isto é, uma redução brutal.

Na pasta da Saúde, as discricionárias do Executivo ficaram em R$ 15,5 bilhões, apenas meio bilhão acima do valor observado em 2016. Somando as emendas de relator-geral remanescentes (após os cortes do presidente da República), esse valor sobe para R$ 23,3 bilhões. Ainda assim, é um patamar muito baixo, sobretudo quando comparado a 2020 (o dobro), que também foi um ano de pandemia.

O governo argumenta que os recursos adicionais necessários à saúde serão executados por meio dos chamados créditos extraordinários, que de fato estão sendo autorizados por medidas provisórias. Aliás, alterou-se o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para deixar essas e outras despesas novas de fora da meta fiscal de déficit primário fixada em lei (receitas menos despesas, exceto juros da dívida).

Em benefício da transparência, o ideal seria ter mudado a meta de déficit (R$ 247,1 bilhões). A outra regra fiscal, o teto de gastos, já estaria resolvida, porque todo crédito extraordinário – desde que justificadas a imprevisibilidade e a urgência – não é contabilizado nas despesas sujeitas ao limite constitucional. Estimo, preliminarmente, que o déficit primário efetivo, o que afeta a dívida pública, poderá ficar em torno de R$ 290 bilhões neste ano.

Mais um exemplo da situação crítica das despesas de custeio e manutenção da máquina e de programas essenciais está no Ministério das Relações Exteriores. Após os cortes e bloqueios, o Itamaraty contará com despesas discricionárias de R$ 551 milhões. Em 2016, o orçamento foi quase três vezes maior (R$ 1,5 bilhão).

Na verdade, o remanejamento de verbas promovido via vetos ao Orçamento e bloqueios de despesas por decreto promoveu um corte geral de cerca de R$ 29 bilhões. Esse valor é próximo das contas feitas pela Instituição Fiscal Independente (IFI), R$ 31,9 bilhões, em março. No início da semana passada o governo soltou na imprensa que R$ 20 bilhões seriam suficientes para cumprir o teto de gastos. Errou.

Os cortes realizados mantiveram um orçamento elevado para áreas como Desenvolvimento Regional, cuja discricionária total (Executivo) será de R$ 1,5 bilhão mais R$ 6 bilhões em emendas de relator-geral não atingidas pelos vetos presidenciais. Em 2016 gastou-se R$ 1,3 bilhão e em 2020, R$ 4,4 bilhões.

Se o risco de paralisação de políticas essenciais se materializar, como é provável que continue a ocorrer, o governo sofrerá pressões para desbloquear o que foi tesourado por decreto. Os vetos, vale dizer, só poderiam ser revertidos pelo Congresso. Esses cortes deverão preservar o teto, mas de maneira perigosa e ineficiente.

No ano passado o governo não planejou o Orçamento público de 2021 para um cenário de recrudescimento da crise pandêmica. O plano deveria ser realista e coerente com a responsabilidade fiscal. Já se sabia das dificuldades a serem enfrentadas neste ano, dos riscos de novas ondas da covid-19 e da precariedade social, econômica e fiscal.

O “deixa como está para ver como é que fica” custou caro. Após os cortes, pode-se até cumprir o teto, mas não sem um desmonte do Estado brasileiro. Ou isso ou vão acumular uma montanha de contas a pagar para 2022.

*Diretor Executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI)


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Mais dificuldades, mais diálogo

Uma surpresa a cada esquina barra investimentos e trava negócios

A economia brasileira é caracterizada por contrastes. Nas últimas semanas, esse paradoxo histórico ficou mais uma vez evidenciado. Por meio de 16 ofertas iniciais de ações, os IPOs, e títulos emitidos, empresas brasileiras captaram R$ 102 bilhões no primeiro trimestre, melhor resultado em mais de dez anos.

Atenta aos efeitos positivos do pacote trilionário de estímulos dos EUA e da retomada chinesa, a Bolsa recuperou perdas e alcançou o patamar de 120 mil pontos.

Em reforço a essa tendência, um novo ‘boom’ global das commodities beneficia o Brasil. O Banco Central projeta, em razão da alta na demanda e nos preços, superávit de US$ 2 bilhões nas contas externas em 2021, o que vai deixar o balanço de pagamentos do Brasil no azul.

Os agentes econômicos têm dados concretos para se sentirem otimistas. 

Do lado do governo, o primeiro leilão do ano para concessões de aeroportos, estradas e ferrovias, a Infra Week, teve todos os seus 28 lotes arrematados. Na política monetária, inicia-se um ciclo de normalização, o que aponta para menos volatilidade dos ativos e redução da curva longa dos juros.

Esse é o caminho virtuoso. São tendências com valor estratégico, que apontam para o horizonte muito além da pandemia e das eleições de 2022. 

No outro prato da balança, os dados negativos mostram o peso do desequilíbrio. O País é um dos líderes mundiais de óbitos pela covid-19. Deixamos a nona posição dos maiores PIBs do planeta para ocuparmos agora o 12.º lugar. No período de um ano, o real foi uma das quatro moedas que se desvalorizaram frente ao dólar, entre 31 pesquisadas pela FGV Ibre. O desemprego sobe, e a renda per capita caiu 4,8% em 2020.

Esse contraste é um fenômeno antigo da economia brasileira, muitas dificuldades imediatas e vantagens estratégicas que ancoram o otimismo de longo prazo e mitigam o pessimismo do presente.

Convivem um lado exuberante e desenvolvido com outro cercado pelas dificuldades. Sabemos crescer rápido. O que falta é equilibrar as desigualdades. 

A forma de fazer convergir essas duas faces é o diálogo entre as instituições, insistir no convencimento. Antes de a pandemia da covid-19 atingir em cheio os indicadores econômicos e sociais, conseguimos avanços consistentes por meio do entendimento. Praticamente por consenso, o Congresso aprovou a reforma previdenciária. 

O resultado, ao contrário do que professavam os céticos, não destruiu nosso sistema de proteção social, mas o modernizou e dinamizou. Quando mais reformas estruturantes eram ensaiadas, o vírus se espalhou pelo mundo e não parou mais. Agora, diante da dramaticidade do quadro atual, as urgências são outras, mas as soluções prosseguem assentadas nos pilares do diálogo, do respeito e da colaboração. Ouvir mais. Refletir mais. 

É por meio da negociação política que, desde 1988, a partir da atual Constituição, o Brasil tem conseguido melhorar a qualidade de vida da sua população, o ambiente de negócios e a confiança nas instituições. 

Dialogar passou a ser a forma de arte política mais elevada. Toda conduta no conceito do “quanto pior, melhor” nos fará fracassar como Nação. Quanto maiores as dificuldades, mais necessário intensificar a busca de convergências. Não podemos nos furtar a conversar com quem pensa diferente de nós.

Para que o debate avance, nada é mais importante, hoje, do que atender às necessidades básicas da população. Ou seja, alimentação, insumos hospitalares, vacina e emprego. Fora dessa agenda, até mesmo as reformas podem ter seu timing redefinido. 

Sem baixar a temperatura institucional e política, dançamos à beira do abismo. A agenda básica começa pela busca da serenidade entre os protagonistas dos Três Poderes. Uma surpresa a cada esquina barra investimentos e afeta os negócios, assusta. É preciso tranquilidade e previsibilidade para atrair capital. Um pouco de paciência evita impasses desnecessários. 

É hora de insistir na tempestividade e na resiliência. 

*PRESIDENTE DO CONSELHO DE  ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS


Gustavo H.B. Franco: Negacionismo fiscal

Em Brasília, o negacionismo fiscal é uma doença antiga, fácil de se contrair

A palavra está na moda, infelizmente. Ouve-se negacionismo a todo momento, até demais.

Aconteceu recentemente com outras palavras emproadas como protagonismo, narrativa, ressignificar, empoderar, resiliência, disruptivo, assertivo. Há muitas assim, pegajosas e que subitamente parecem brotar de todas as bocas e não se consegue duas frases sem nelas tropeçar.

São palavras que funcionam como um adereço extravagante, como um cinto ou bolsa que tem uma grife de meio metro, pintada de dourado, e que transforma os usuários em uma propaganda ambulante, e os define pelo seu pertencimento a uma tribo.

Use uma dessas palavras, e as pessoas vão se lembrar de você as pronunciando, sem se dar conta sobre o que você estava falando. 

Dentre essas palavras de grife, as que comandam mais respeitabilidade são as que terminam com “ismo”, um sufixo geralmente utilizado para designar filosofias, teorias, movimentos artísticos. Quem usa “protagonismo” vira entendido em relações internacionais, e quem fala de “narrativa” se mostra um “insider” em estudos culturais contemporâneos. 

Tudo isso não obstante, a ideia de negacionismo descreve com precisão a postura típica de líderes populistas diante de técnicos e experts, incluindo os da medicina convencional, eis que esse tipo de político não admite qualquer mediação em seu relacionamento com o “povo. Para eles, não existe ciência, só narrativa.

O negacionismo é primo-irmão da pseudociência, e por isso mesmo, tal como se passa com os líderes populistas, é muito mais popular do que se pensa. Quem não gosta de uma solução mágica e de uma cura milagrosa?

Em geral, as pessoas não acreditam em superstições, mas se divertem em praticá-las, sobretudo se são inofensivas. Como horóscopo de jornal. Vai que funciona. 

Nessa parte do mundo em especial, tendo em vista nosso desapego ao real, à hegemonia da intuição e à desconfiança para com o racional, conforme a descrição de Mario Vargas Llosa, a popularidade da medicina alternativa é gigante. E, se é assim com a medicina, imagine com a economia.

O negacionismo tomou a economia há muitos anos, e apenas agora, com a pandemia e com os absurdos gerados pelo negacionismo médico, é que se percebe a exata estrutura conceitual do charlatanismo. É claro que há negacionismo em todas as outras áreas do conhecimento, talvez mais na economia que em qualquer outra. 

Quanto perdemos com a busca de soluções mágicas para problemas econômicos? Um caso em evidência, nessa semana que passou, é a encrenca do Orçamento. 

Os detalhes técnicos são menos importantes que atentar para o modo como os representantes do povo fazem as escolhas sociais. São os parlamentares eleitos que devem escolher entre o Bolsa Família e o Bolsa Empresário, ou entre a habitação popular e o submarino nuclear (ou as fragatas da Marinha), ou entre os auxílios emergenciais e as emendas parlamentares paroquiais.

Entretanto, no Brasil, por estranho que pareça, o Parlamento não gosta de escolhas, pois sempre há perdedores.

A melhor escapatória, e de longe a mais comum, consiste em questionar a necessidade de escolher, negando-se a reconhecer a existência de qualquer limitação aos recursos existentes. Só assim é possível ficar com o almoço e com o dinheiro. Muitos parlamentares preferem duvidar da escassez, para não competir entre si ou confrontar seus coleguinhas. Parece sempre mais cômodo antagonizar o pessoal da área econômica. Ou mesmo a própria ideia de responsabilidade fiscal. Ou negar a existência de “restrições orçamentárias”. Ou dizer que o ministro esconde o dinheiro.

Não será sempre necessário, conveniente e fotogênico duvidar da escassez e, heroicamente, explorar a possibilidade de realizar todos os sonhos, a despeito das (im)possibilidades?

Vai que funciona.

Esse é o negacionismo fiscal, uma doença antiga, fácil de se contrair em Brasília, pois começa com a compulsão em não desagradar ninguém, prossegue com nosso espírito aventureiro (o gosto pela solução mágica) e parece ganhar nova vitalidade com a pandemia.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS 


Eliane Cantanhêde: O nosso Exército, sem aspas

Objetivo não é usar Exército contra o caos, mas contra a CPI, o STF e a candidatura Lula

O ex-presidente Lula coleciona vitórias no Supremo e o presidente Jair Bolsonaro reage com medo a Lula e à CPI da Covid, ameaçando os governadores – e o País – com o Exército nas ruas. Está apoiado no GSI, no novo ministro da Defesa, general Braga Neto, no novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, e em todos os seus ministros? Isso não é brincadeira.

O Supremo já tem maioria pela suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá, que levou Lula à prisão por 580 dias. O grande vitorioso é Lula, já em campanha para 2022. Os maiores derrotados são Moro e a Lava Jato. E perde também o relator Edson Fachin, que tentou favorecer Lula e a Lava Jato ao mesmo tempo. Não rolou.

Bolsonaro está em pé de guerra. Já não se refere ao “meu Exército”, mas ao “nosso Exército”, e embrulha seus propósitos com legalidade ao dizer que vai usar os militares para “fazer valer o artigo 5.º da Constituição”, sobre o direito de ir e vir, a liberdade de trabalho e culto. Mero pretexto, porque ele nunca esteve preocupado com direitos e não vê a hora, isso sim, de dar um golpe branco, dentro da lei.

Por que ele inviabilizou o Censo pelo segundo ano seguido? Pelo medo da terrível realidade que o IBGE divulgaria às vésperas da eleição. É justamente por causa dessa realidade, de desemprego, fome, drama social, que o presidente acena com Exército nas ruas.

O que evitaria esse caos? Liberar geral? Deixar o vírus tomar conta do País de vez? Não. É o oposto. Uma política nacional para restringir com rigor a circulação de pessoas e garantir rápida e maciçamente as vacinas é o que seguraria o vírus, aliviaria o sistema de saúde, garantiria a volta à normalidade e a reação da economia mais rapidamente.

Depois de exibir os generais Braga Neto e Eduardo Pazzuelo num ato de campanha em Goianópolis (GO), sem máscara e distanciamento social, Bolsonaro arranjou um cargo para Pazzuelo, pôs o general debaixo do braço e foi com ele a Manaus, síntese dos erros na pandemia. E há a primeira manifestação do novo comandante do Exército.

O general Paulo Sérgio tirou 10 ao praticar no Exército tudo o que Bolsonaro não praticou no País contra a pandemia. Não foi nomeado por isso, obviamente, mas entrou em sintonia com o presidente ao dizer que o Exército é 1) “vigoroso vetor de estabilidade e de garantia da ordem e da paz social” e 2) “esteve e estará sempre junto ao povo brasileiro”. Isso reforça a dúvida desta coluna em 18/4: que povo? A Nação brasileira ou o “povo” do Bolsonaro?

Excepcionalidade exige medidas excepcionais. Estados e municípios decretam restrições à circulação, a cultos e compras, não por serem sádicos, contra a Constituição e queiram destruir a economia, mas pelo oposto: porque têm de salvar vidas e recuperar o quanto antes a economia. Com a incerteza das vacinas, a arma é isolamento. Mas o presidente ataca pelos dois lados: é o grande culpado pela falta de vacinas e guerreia também contra os paliativos.

Bolsonaro é um prato cheio para a CPI e a entrevista do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten à Veja, apesar da dubiedade, põe mais pimenta ao acusar o Ministério da Saúde de Pazzuelo pelo fracasso na compra da Pfizer em 2020 e relatar que a questão foi tratada – e as chances desperdiçadas – dentro do gabinete presidencial.

Bolsonaro fez tudo errado desde o primeiro momento, deu no que deu. Agora, quer manipular o Exército, atacar os governadores e prefeitos e convencer o “povo” de que a culpa do caos é do combate à pandemia, não da sua total incompetência no combate à pandemia. Seu real objetivo é usar as Forças Armadas, não contra o caos que ele criou e alimenta, mas contra a CPI, o STF e a candidatura Lula.


Adriana Fernandes: Guedes precisa ter sangue-frio diante das pressões por mais dinheiro

Será preciso sangue-frio para aguentar a insatisfação geral e se preparar para esse período difícil dos próximos meses.

Se o presidente Bolsonaro e o Ministério da Economia não estiverem preparados para a pressão dos órgãos por mais orçamento (verbas) até o terceiro trimestre, a chance de o acordo naufragar é grande.

Com riscos até de uma crise em proporções maiores do que a enfrentada no último mês depois que a lei orçamentária foi aprovada cheia de problemas com maquiagens nos números.

O “miolo” do ano é um período complicado em termos do impacto do aperto nos gastos. O funcionamento da máquina vai falhando... até que, no fim do ano, o Tesouro Nacional vai soltando o dinheiro à medida que as previsões mais conservadoras de gastos não se confirmam.

Em algumas áreas, as falhas começam primeiro, justamente naquelas que já estavam operando no limite com as despesas muito restritas e os problemas se avolumando. O caso que mais chama atenção é o corte quase a zero da verba para dar continuidade às obras da faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida, rebatizado pelo governo de Casa Verde e Amarela. Não tem como isso dar certo.

Se Guedes conseguir segurar a pressão, a avaliação técnica é de que tem chance de ter sido um bom acordo diante do tamanho do impasse criado pela decisão do governo, incluindo o próprio ministro da Economia, de fechar um acerto político para acomodar no Orçamento R$ 16,5 bilhões. Essa foi a fatura para a aprovação da PEC emergencial, que no curto prazo não serviu para muita coisa em termos de ajuste fiscal. O espaço para emendas nunca existiu e foi o pulo para a crise.

Todo mundo saiu perdendo na crise, mas o relator do Orçamento, Márcio Bittar, que fracassou completamente na tarefa que recebeu de conduzir os acordos e abrir espaço fiscal para gastos prioritários este ano, nem tanto. Bittar manteve nas mãos ainda muito poder, o comando de R$ 18,5 bilhões em emendas de relator, o que torna o governo mais refém do Congresso.

Esse foi o Orçamento mais difícil desde o de 2016, votado em dezembro de 2015, um dia antes da saída do então ministro da Fazenda Joaquim Levy, substituído por Nelson Barbosa, ministro do Planejamento até então.

Ministro da ex-presidente Dilma Rousseff, Levy viu ampliar o seu desgaste dentro do governo justamente após disputa para que o projeto do Orçamento não fosse enviado pela primeira vez no vermelho, com a previsão de déficit de R$ 30,5 bilhões, o que ocorreu de fato. A lei orçamentária de 2016 foi aprovada depois prevendo superávit, como queria Levy, de 0,5% do PIB, mas contando com R$ 10 bilhões de receitas de uma nova CPMF que nunca saiu do papel.

O Orçamento de 2016 acabou sendo “corrigido”, a CPMF não vingou e o resto é história. A ironia é que o relator desse Orçamento problemático foi o deputado Ricardo Barros, hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara.

Mesmo com acordo do Orçamento entre Bolsonaro e Centrão, o problema das emendas de relator tende a se repetir, como um “fantasma” a assombrar os próximos orçamentos. Essa “inovação” orçamentária foi criada em dezembro de 2019 para a LDO de 2020, sob a relatoria do deputado Cacá Leão (PP-BA). O beneficiado com as emendas foi o relator do orçamento daquele ano, deputado Domingos Neto (PSD-CE).

Embora em menor proporção do que agora, uma briga política também se instalou no início do ano passado em torno do Orçamento. Para 2021, o governo mandou o projeto sem essas emendas de relator, mas elas acabaram vingando de novo.

Após acordo que está no radar no curto prazo, são as pautas-bomba (com impacto para o cofre do governo) que começaram a pipocar e dar as caras, como a derrubada de um veto do ex-presidente Lula de 11 atrás que trata de cargos de servidores da Receita e tem custo de R$ 2,7 bilhões.

A mais preocupante das pautas-bomba são duas medidas provisórias (1.016 e 1.017), que devem ser votadas e permitem a renegociação de dívidas de fundos constitucionais e de investimento da Amazônia e do Nordeste. Já tem gente prevendo que a fase de pauta-bomba da época do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha está de volta.


Foto: Beto Barata\PR

João Gabriel de Lima: O bom aluno foi para a turma do fundão

O Brasil está entre os países onde a democracia mais se deteriorou nos últimos 10 anos

 “A terceira onda de democratização começou, de maneira implausível e silenciosa, aos 25 minutos depois da meia-noite, na quinta-feira 25 de abril de 1974, em Lisboa, quando uma emissora de rádio tocou a canção Grândola Vila Morena.” Assim começa, de forma épica, o livro de Samuel Huntington que narra um dos momentos mais fascinantes da história política do século 20 – aquele em que várias ditaduras do Ocidente entram em modo dominó e dão lugar à forma de governo que iria predominar desde então: a democracia.

A primeira vaga de democratização, segundo o cientista político americano, seguiu o liberalismo do século 19. A segunda veio depois da derrocada do totalitarismo nazi-fascista. A Terceira Onda, título do livro citado acima, começou quando o rádio tocou a música-senha para a sublevação dos quartéis portugueses, e é produto do declínio da Guerra Fria. Primeiro caíram as ditaduras de direita – incluindo a do Brasil – e depois as de esquerda, os satélites da União Soviética.

A cada onda aumenta o predomínio das democracias. Em 2017, 50% dos países tinham regimes de liberdade, ante 20% em 1960 e 5% em 1900. Os dados são do V-Dem, a plataforma mais usada nos estudos acadêmicos sobre o assunto. Ela disponibiliza estatísticas desde o fim do século 19 – o que possibilita acompanhar a evolução de todas as democracias do mundo.

Como o Brasil se comporta? “Até recentemente, estávamos entre os melhores alunos da terceira onda da redemocratização, com notas cada vez mais altas”, diz o cientista político Fernando Bizzarro, personagem do minipodcast da semana. Ele é pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Harvard, e um os pioneiros do projeto V-Dem. O último relatório da plataforma, no entanto, mostra que o bom aluno ficou de segunda época. O Brasil está entre os países onde a democracia mais se deteriorou nos últimos dez anos. Ficamos atrás apenas de Polônia, Hungria e Turquia – já há alguns anos frequentadoras contumazes da turma do fundão.

Para um país ser considerado uma democracia nos dias de hoje não basta ter eleições livres. São fundamentais, entre outras coisas, liberdade de imprensa, liberdade acadêmica e um debate público adulto, em que haja respeito, sem desqualificar quem pensa diferente. A polarização, tema de Bizzarro no minipodcast, destrói a qualidade do ambiente democrático – área onde a nota do Brasil foi drasticamente rebaixada. Trata-se de um ponto de atenção: democracias que escorregaram para o autoritarismo – casos de Turquia e Hungria – começaram assim.

Neste domingo Portugal celebra os 47 anos do 25 de abril. Há o que comemorar. Estudos baseados no V-Dem apontam a democracia portuguesa como uma das mais sólidas do sul europeu. Outro ranking, da Freedom House, dá a Portugal notas superiores às de França, Inglaterra e Alemanha. O Brasil tem uma lição de casa a fazer, e talvez já esteja começando. O debate civilizado entre os opositores do presidente Jair Bolsonaro, organizado por alunos de Harvard e transmitido no sábado 17 pela plataforma do Estadão, trouxe alguma esperança. 

Uma imagem marca o 25 de abril português: soldados marcham pelo centro de Lisboa com flores no cano de suas espingardas. Vem daí o nome “Revolução dos Cravos”. O símbolo pode inspirar o Brasil. Precisamos de maturidade e inteligência – atributos essenciais das democracias com notas altas – no lugar de brutalidade e armas.


José Eduardo Faria: A "sinalização do povo"

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Bolsonaro em manifestação de cunho golpista em Brasília. Foto: PR

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Bolsonaro fala a apoiadores na saída do Palácio. Foto: PR

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Carl Schmitt, à direita, na Paris ocupada, 1941. Foto: Reprodução

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.


Marco Aurélio Nogueira: Pacto pelo futuro

O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos

É preciso compreender a dificuldade das oposições democráticas de se contraporem ao governo Bolsonaro.

Elas hoje preenchem um espaço amplo, vão da direita à esquerda, passando pelo imenso centro, cada pedaço com suas legítimas pretensões e seus problemas. Nas que se inclinam para o centro, o déficit passa pela ausência de lideranças incontestes, de um programa claro e de uma identidade substantiva.

As esquerdas não estão em melhor condição, embora estejam a comemorar a volta de Lula, que as magnetiza e seduz, agora com o adicional da absolvição conquistada e da incorporação de um papel de injustiçado perseguido político. Roda-se em torno de Lula como se dele emanasse a luz.

O que há de consenso cívico de repúdio e desejo de mudança não se traduz em consenso político e plataforma de atuação. Há ensaios unificadores e um esforço dedicado para que as oposições baixem o tom e conversem olho no olho. Manifestos, debates e proclamações indicam isso com clareza, o que é um alento. Mas não foram dados os passos decisivos, aqueles que fazem uma equipe vencedora. O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos.

As oposições ainda estão a lamber as feridas da derrota de 2018. São feridas que tardam a cicatrizar, manuseadas nem sempre com habilidade. Enquanto permanecerem abertas, dificultarão aproximações e convergências, com o passado recente cobrando seu preço e embaçando o futuro. Além disso, há elementos que complicaram demais as interações, a começar da pandemia.

A pandemia tem lógica própria, deve ser enfrentada com toda a energia. Está expondo nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, a capacidade de resposta da ciência. Além dos estragos que provoca em termos de vidas e de pressão sobre o sistema sanitário, ela se mistura com os desdobramentos da revolução tecnológica do nosso tempo. A economia está desafiada, assim como o mundo do trabalho. Não há como fazer funcionar o que ficou para trás, em termos de arranjos sistêmicos, padrões organizacionais, práticas e leis. Tudo terá de ser repensado, seja para conter a disseminação da covid, seja para desenhar as políticas que serão necessárias para reforçar a saúde e proteger os desassistidos. Será preciso, além disso, reconfigurar o modo de organizar atividades produtivas, trabalhar, consumir, estudar. Estamos às portas de um começar de novo, tamanhas são as transformações com que temos de lidar.

Assistimos ao processamento de uma espécie de metamorfose, que da vida material atinge todas as esferas existenciais. Em termos políticos, centro-direita, centro-esquerda e esquerdas deveriam suspender temporariamente suas particularidades doutrinárias e ideológicas para promover a formação de um polo democrático encorpado, flexível e plural, que proponha uma política e uma governação com a marca da inovação. O momento pede que os democratas calcem as botinas da humildade e amassem barro no Brasil profundo. Não cabem jogos de cena, reiteração de projetos pessoais e checagens da força relativa de cada um.

Na política, diferenças, disputas e antagonismos não devem ser temidos. Funcionam como motores de organização e esclarecimento, na medida em que dialogam com o conjunto da sociedade e interpelam o imaginário social. Não são, porém, definitivos, compõem-se e se recompõem de múltiplas formas ao longo do tempo, criando novas exigências. Polarizações que remontam ao passado não ajudarão a que se pavimente o futuro. Se todos os democratas vencerem, haverá espaços para antagonismos mais profícuos e substantivos.

Não é fácil encontrar o ponto ótimo a partir do qual possa ocorrer tal convergência. A unidade política não exclui a diversidade, antes se alimenta dela. Constrói-se mediante muitos esforços, tensões e concessões, requerendo retomadas continuadas.

A definição desse pacto político se beneficiará da afirmação, pelos protagonistas, de alguns princípios básicos. Uma sociedade socialmente justa em termos de renda, oportunidades, etnia e gênero. Uma ideia de governo como operação cooperativa, que funcione como um colégio de líderes e especialistas, com um Executivo democratizado. A recuperação dos grandes sistemas públicos, a saúde, a educação, a assistência, o meio ambiente, a cultura, as relações exteriores, a segurança. O reconhecimento de que não deve haver tolerância com a corrupção, seja qual for a forma que assuma. Um reformismo de longo prazo, constante e progressivo, a ser definido por consultas constantes aos cidadãos. Uma ideia sustentável de desenvolvimento, que valorize e respeite o meio ambiente, o trabalho e o consumo consciente.

São pontos genéricos. Mas se forem proclamados firmemente pelos que se dispõem a governar o País, poderão mostrar que a política tem dignidade e mobilizar os cidadãos em prol da recuperação do Estado, com sua institucionalidade e seus deveres, da valorização da República (do bem público) e da reconstrução da solidariedade, que são a cada dia mais indispensáveis.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Eliane Cantanhêde: Rui o tripé ideológico

Bolsonaristas têm um trabalhão para seguir o salto triplo do ‘mito’ em saúde, política externa e ambiente

Depois de rasgar as bandeiras do combate à corrupção e do liberalismo econômico, o governo Jair Bolsonaro está desmoronando o seu tripé ideológico: saúde, política externa e ambiente. Isso, claro, cria um problemão para a sua seita, sobretudo na internet. Eles e elas terão de rever suas crenças e posições para seguir essa “inflexão”, ou salto triplo carpado, do presidente. Vão defender Joe Biden, França, Alemanha e Noruega? Cúpula de Paris, Fundo da Amazônia? Até China e vacina?

Não deve ter sido fácil para os bolsonaristas se alinharem com o PT no ataque ao ex-juiz Sérgio Moro, ícone do combate à corrupção, quando ele caiu acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal. E não está fácil jogar Paulo Guedes ao mar, depois do blablablá de que Bolsonaro podia não ser lá essas coisas, mas o Guedes segurava as pontas.

E lá se vai também o tripé ideológico. O diplomata Ernesto Araújo está de volta à sua insignificância e ao limbo dos seus delírios contra o comunismo. O general da ativa Eduardo Pazuello vaga pelo Exército, olhado de esguelha pelos companheiros de farda depois de humilhado e desautorizado pelo presidente na compra de vacinas e de se sair com o indecente “um manda, outro obedece”. Ambos, Araújo e Pazuello, estão na mira da CPI da Covid.

Com o cerco se fechando contra Ricardo Salles, Bolsonaro repete o script: elogia, leva para lives e confraternizações, dá tapinha nas costas e planta notinhas sobre o quanto gosta do ministro. Quanto mais o torniquete aperta, mais Bolsonaro prestigia seu ministro. Mas... quanto mais prestigia, mais o ministro esfarela.

Então, vejam como é a dura a vida de bolsonarista. Esquece Ernesto Araújo e o que ele fazia e dizia, para enaltecer o sucessor, Carlos França, e fazer juras de amor para China, França, Alemanha, Noruega, até para a Argentina de Alberto Fernández? E Joe Biden, chamado de “gagá”, “sequelado” e “esquerdista”, virou um cara legal.

E, agora, com Pazuello fora e o médico Marcelo Queiroga tentando correr contra o tempo e contra os erros gravíssimos na pandemia? Os e as que papagaiavam Bolsonaro, trocavam ciência por ideologia e comparavam as vacinas à talidomida, que matou e mutilou na década de 1950, correm para oferecer o braço e salvar suas vidas. Não consta que nenhum deles tenha virado jacaré...

Com os “novos” política externa e Ministério da Saúde, quem tem estômago deveria entrar nas redes para ver os bolsominions conclamando todos a se imunizarem e defendendo “aquela vacina chinesa do Doria”, que, na verdade, é praticamente a única maciçamente disponível no Brasil. Vencem a realidade e a racionalidade. Viva a China! O Butantan! A vacina! E viva a vida!

Mesmo antes do “novo Ministério do Meio Ambiente”, vem aí o novo discurso de Bolsonaro sobre sustentabilidade: antecipar a neutralidade das emissões para 2050, acabar com desmatamento ilegal até 2030, dobrar a verba para fiscalização já. Dá-lhe racionalidade! Viva a Amazônia! As leis ambientais! E viva o Biden, líder da causa ambiental no mundo!

Faltam: um pedido de desculpas ao cientista Ricardo Galvão, demitido do Inpe por alertar para desmatamento da Amazônia; resgatar o Ibama e o ICMBio; reativar as multas ambientais; cobrar compromissos com os indígenas. Bolsonaro quer escancarar as reservas para mineração, agricultura, turismo... Mas não tocou nisso na cúpula do clima.

O Brasil não tem só governo, um governo rechaçado no mundo inteiro. Tem cidadania, instituições, entidades, atores das mais variadas frentes, na pandemia, na política externa e no ambiente. Salvar o planeta é aqui e agora! Goste ou não Bolsonaro, ele é obrigado a cair na real. Governos vêm, governos vão, o Brasil fica.