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Deputado baiano propõe criação de mês de combate ao racismo religioso

Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram denunciados na Bahia

Dindara Ribeiro / Agência Alma Preta

Com objetivo de implementar políticas públicas que garantam o respeito e direito à liberdade religiosa, o deputado baiano Hilton Coelho (PSOL) acaba de apresentar um projeto de lei (PL) estadual que propõe a criação do "Janeiro Verde", mês voltado para o combate ao racismo religioso na Bahia.

O texto sugere que, durante todo o mês, o Governo da Bahia e demais órgãos estaduais realizem ações de combate, prevenção e conscientização sobre o racismo religioso através de palestras, rodas de conversa, campanhas publicitárias, debates, além de produções artísticas e culturais. O PL também destaca os direitos constitucionais da liberdade religiosa no país e sugere que a Secretaria da Educação fique responsável por promover ações educativas nas escolas a fim de valer as estratégias do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e índigena e o desenvolvimento de um regime de proteção à liberdade religiosa e à laicidade na educação pública.

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"Queremos, com esse projeto, provocar que as instituições públicas dos três poderes se comprometam com diversas formas de contribuição com o debate público sobre o racismo religioso, que é um crime de ódio e fere a liberdade e a dignidade humana. Mas, mais do que isso, queremos também que nesse compromisso institucionalizado o foco seja o protagonismo dos povos de religião de matriz africana na luta por sua memória ancestral. Então uma lei como essa, que determina a difusão do conhecimento sobre esse tema, ajuda a fissurar, de alguma forma, o racismo institucional, quando obriga as próprias instituições a promoverem ações refletidas e políticas públicas de combate a esse crime", disse Hilton à Alma Preta Jornalismo.

Na Bahia, as vítimas de intolerância religiosa e racismo são acompanhadas pelo Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi). Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram registrados pelo Centro. Em 2020, foram 29 ocorrências em todo o ano. No total, já são 270 casos de intolerância religiosa acompanhados desde a implementação do Centro, em 2013.

O preconceito religioso é considerado crime, conforme previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989. A pena para o crime varia de um a três anos, além da aplicação de multa. Em junho deste ano, a justiça da Bahia teve a primeira condenação em segunda instância por crime de intolerância religiosa contra uma evangélica. De acordo com a denúncia do Ministério Público, Edneide Santos de Jesus hostilizava candomblecistas do Terreiro Oyá Denã, localizado na região Metropolitana de Salvador, com sucessivos abusos racistas e expressões preconceituosas como a atribuição dos orixás à satanás. A mãe de santo do terreiro, ialorixá Mildredes Dias, conhecida como Mãe Dede de Iansã, morreu em 2015 e familiares atribuem a piora na saúde da religiosa aos constantes ataques feitos pela evangélica.

Um dos casos mais fatídicos de intolerância religiosa na Bahia e que se assemelha ao caso da Mãe Dede de Iansã foi a morte da ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, mais conhecida como Mãe Gilda de Ogum e fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador. Mãe Gilda também teve a saúde agravada por causa de ataques verbais, morais e físicos causados por membros da igreja Universal.

Em um dos ataques, evangélicos chegaram a invadir o terreiro dizendo que iriam "exorcizá-la". Mãe Gilda morreu no dia 21 de janeiro e a sua morte marca o Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa, data nacional em vigor desde 2007.

Diante do caso, o Supremo Tribunal de Justiça condenou a Igreja Universal a indenizar os familiares da ialorixá por danos morais e uso indevido de imagem, já que os evangélicos também usaram fotos e notícias falsas para difamar Mãe Gilda.

"Estamos num momento de acirramento do ódio e da efetivação de necropolíticas. E isso não está somente no plano nacional. Aqui na Bahia temos visto várias ações do governo Rui Costa que contribuem com o racismo estrutural. Então com tudo que o projeto poderá acionar, do ponto de vista do debate público e da conscientização sobre o racismo religioso, ações como a privatização dos parques públicos e áreas de proteção ambiental, como quer o governo do Estado, ou ainda a construção do elevatório de esgoto na Lagoa do Abaeté, por exemplo, com certeza serão temas colocados em pauta nessa agenda pública pelos movimentos populares contra o racismo religioso", completa o deputado.

Fote: Agência Alma Preta
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Andrea Jubé: 'Deus poupou-me do sentimento do medo'

Centro já descartou Huck e Moro como presidenciáveis

Vamos tratar aqui de três presidentes: pela ordem, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, e Jair Bolsonaro. Este passou recibo, com firma reconhecida, de que sentiu a mão fria do “impeachment” roçar-lhe as costas na semana passada, quando o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) desferiu-lhe duas bordoadas: confirmou a ordem de instalação da CPI da pandemia, e o restabelecimento dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A CPI da pandemia, se não tem o impedimento do presidente como alvo, provocará enxaquecas palacianas. Lula, por sua vez, desponta hoje como a principal ameaça à reeleição de Bolsonaro. Mas, remarque-se que a política muda como as nuvens - ou como o humor presidencial.

Bolsonaro está mal humorado, e deixou o azedume transparecer na “live” de quinta-feira, quando o STF sacramentou a investigação contra seu governo, e a elegibilidade de Lula. “Só Deus me tira da cadeira presidencial, e me tira, obviamente, tirando a minha vida", vociferou.

Em recado velado, porém, audível, ao Congresso, ao STF e à oposição, acrescentou, com ênfase, que salvo a prerrogativa divina, “o que nós estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo. Não vai mesmo, tá ok?” Nesse trecho cifrado, Bolsonaro aludiu à ameaça de “impeachment”.

O temor do impedimento ronda o Planalto há meses, e vai e volta em ondas, como o mar. Ou como a pandemia, para ser exata. A primeira onda deu-se em junho do ano passado, quando Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), foi preso, o que acendeu a luz amarela no Palácio. O episódio teve o condão de suspender a sucessão de atos antidemocráticos pelo fechamento do Congresso e do STF, que Bolsonaro, e sua militância, estimulavam.

A segunda onda se consumou há algumas semanas, quando o Centrão redobrou a pressão pela saída do chanceler Ernesto Araújo, em paralelo ao recrudescimento da pandemia. Para não passar recibo, Bolsonaro improvisou uma ampla reforma, aproveitando-se para se livrar do incômodo ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos três comandantes das Forças Armadas, que, pela sua percepção, não o respeitavam como comandante-em-chefe, conforme prescreve a Constituição Federal.

Nessa ampla reforma o medo do “impeachment” ganhou nome e sobrenome: Flávia Arruda, a elegante e discreta ministra da Secretaria de Governo, cuja nomeação selou a aliança de Bolsonaro com o Centrão raiz: o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o PL de Valdemar Costa Neto.

Quando os generais Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto decidiram finalmente ceder e entregar a articulação política para o Centrão, uma semana antes do domingo de Páscoa, o primeiro nome lembrado foi o do senador Eduardo Gomes (MDB-TO), que tinha o padrinho mais forte do mercado: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Mas toda a força de Flávio empalidece diante da caneta de Arthur Lira (PP-AL), que despacha os requerimentos de “impeachment”. Por isso, os dois generais concluíram que o novo ministro tinha de ser egresso da Câmara, e abençoado por Lira. Ontem Flávia admitiu em uma “live” promovida pela XP Investimentos, que recebeu o convite de Bolsonaro para assumir o cargo, mas tratou do assunto com Lira, e com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Com Flávia Arruda, Bolsonaro reforçou a blindagem contra o “impeachment” com uma segunda camada. A primeira camada é o vice-presidente, Hamilton Mourão. Num cenário de instabilidade quase permanente, nenhum deputado ou senador calejado de crises quer apear um ex-deputado do poder para passar a caneta para um general. “Ele não inspira confiança”, reconheceu um cacique do Centrão em conversa com a coluna.

Um cacique do Centrão é categórico ao rechaçar qualquer risco de “impeachment”, a começar porque falta o elementar: povo na rua. “Impeachment” depende de dois motivos: o político e o jurídico. A pandemia complica o elemento “povo na rua”, mas isso não basta para revisar a fórmula basilar dos impedimentos presidenciais: motivo político, primeiro; depois, o jurídico. “O motivo jurídico se arruma, no [Fernando] Collor foi o Fiat Elba, com a Dilma [Rousseff], foram as pedaladas, mas tem que ter o ingrediente da sociedade cobrando”, explica o líder do centro.

Nessa quadra, cresce a corrida pela terceira via capaz de quebrar a iminente polarização entre Lula e Bolsonaro. A novidade é que embora ainda figure nas pesquisas, o nome do apresentador Luciano Huck foi alijado das conversas de bastidores no Centrão. Com Lula no jogo, a convicção unânime é de Huck refugou. Por ora, o ex-juiz Sergio Moro também não é levado a sério como presidenciável, apesar da boa performance nas pesquisas.

Sem Huck e Moro, o nome que mais empolga no momento é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM. Na pesquisa Ipespe realizada no Estado de São Paulo, encomendada pelo Valor, Mandetta alcançou 6% no cenário com o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, disputando, sem João Doria.

Entretanto, o DEM também já colocou no radar de presidenciáveis o nome do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que larga com alguma vantagem em relação ao correligionário: ocupa cargo de visibilidade nacional, e é mineiro, representante do segundo maior colégio eleitoral, berço de presidentes da República, desde a política café-com-leite, até Tancredo neves e Itamar Franco.

Para citar os mineiros, faz falta a Bolsonaro um conselheiro político do quilate de Tancredo Neves, que serviu a Juscelino Kubitschek. Tancredo ajudou o poeta Frederico Schmidt a redigir para JK um pronunciamento que se tornou famoso ao repelir uma rebelião militar. A frase mais forte proclamava: “Deus poupou-me do sentimento do medo”.


Eliane Catanhede: Proliferam não só nomes, mas frentes para um projeto pela democracia, pela vida

Em debate, Ciro, Doria, Haddad, Leite e Huck focam na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial ‘genocida’

O principal recado do debate entre Ciro Gomes, João Doria, Fernando Haddad, Eduardo Leite e Luciano Huck, sábado à noite, foi a civilidade, até gentileza entre eles, ao longo de quase três horas. Deixando as divergências de lado, eles focaram na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial “genocida”.

Há inúmeras frentes para virar a página Bolsonaro e tocar a reconstrução do País, uma espécie de transição à la Itamar Franco pós-Collor. Assim como naquela época, o PT não participa de um projeto de união nacional, mas Haddad compôs bem a mesa, com conhecimento e sobriedade.

Ciro Gomes, ex-candidato três vezes à Presidência, ex-ministro e ex-governador do Ceará, é o que mais impressiona, com seu malabarismo verbal para juntar temas diferentes, amontoar números e produzir uma imagem de experiência e competência. Foi, também, responsável pela maior lista de “atributos” do presidente.

Doria foi Doria, a começar do vídeo e do áudio impecáveis, tudo milimetricamente programado. O governador de São Paulo explorou o fato de ter liderado a guerra pelas vacinas contra a covid no País e deixou o carimbo mais contundente contra Bolsonaro: “mito das mortes”.

Haddad, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro da Educação e ex-adversário de Bolsonaro no segundo turno de 2018, foi menos candidato, mais militante, preocupado em defender os feitos dos governos do PT, enquanto batia duro no “autoritarismo” de Bolsonaro.

Eduardo Leite, o jovem tucano que saiu de uma prefeitura do interior para o governo do Rio Grande do Sul sem passar pelo Legislativo, mediu palavras e fugiu da eloquência e da agressividade dos demais contra o presidente e o governo. Foi bastante crítico, mas num tom abaixo.

Essas impressões são, de certa forma, consensuais, mas quem mais dividiu opiniões foi Huck, celebridade sem passagem pelo setor público. Para uns, incapaz de enfrentar o debate no campo da economia e das políticas públicas. Para outros, foi o que focou nos dois temas do futuro: era digital e desigualdade social. “Mais jovem, mais atualizado”, resumiu uma importante jornalista. Se isso define um bom candidato, é outra história.

No final, o professor Hussein Kalout, que dividia comigo a mediação no encerramento da Brazil Conference, organizada por estudantes brasileiros de Harvard e MIT, lançou um desafio: Bolsonaro fez algo de bom? O primeiro a cair na armadilha foi Ciro: a menor taxa de juros em 30 anos. Leite citou a reforma da Previdência. Huck, o auxílio emergencial.

Na verdade, a reforma veio do governo Temer e o auxílio emergencial foi obra do Congresso. Haddad foi no ponto: todo governo democrático tem qualidades e defeitos, mas os “autoritários” não têm qualidades. E Doria concluiu: o grande feito de Bolsonaro foi transformar o Brasil em pária internacional. Só ele conseguiria isso.

Foram abordados: pandemia, fome, economia, política externa, ambiente, educação, ciência e tecnologia, mas também autoritarismo e investidas sobre polícias estaduais. Ao citar o motim da PM do Ceará, quando seu irmão, senador Cid Gomes, levou dois tiros, Ciro Gomes disse que a intenção de Bolsonaro é “formar uma milícia militar para resistir, de forma armada, à derrota eleitoral”. O temor é generalizado.

Exceto Haddad, os outros já tinham assinado um manifesto pela democracia e novos nomes nessa linha continuam surgindo: Tasso Jereissati, Temer, Luiza Trajano, Luiz Henrique Mandetta... Quem tem tantos nomes é porque não tem nenhum, mas o fundamental é que proliferam frentes para construir um projeto de união nacional pela democracia, pela gestão, pela vida. É assim que tudo começa...


Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, suposto complô para matar o presidente vira denúncia bombástica

O vídeo em que a jornalista Leda Nagle repercute a postagem de um perfil falso do diretor-geral da Polícia Federal sobre uma suposta conspiração do STF e de Lula no atentado contra Jair Bolsonaro em 2018 incendiou as redes bolsonaristas nesta segunda-feira. 

O vídeo de pouco mais de 2 minutos surgiu nas redes logo pela manhã, quando Leda leu os tuítes da conta falsa de Paulo Maiurino, já suspensa pelo Twitter, em uma live privada. 

"Minha Nossa Senhora do perpétuo socorro (…) Eu não sei o que fazer, fico tão assustada com isso tudo! Porque isso não é política, né? Isso é tudo, menos política", disse a jornalista, depois de ler toda a postagem falsa em nome de Mairuino. 

Imediatamente, foram disparadas mensagens em massa reproduzindo a fake news, e apontando Leda Nagle como a responsável pela suposta apuração.

“A ordem para matar Bolsonaro partiu do STF e Lula! Diretor da Policia Federal Paulo Maiurino fez declaração que pode provocar uma intervenção no país, assistam! Fonte: Jornalista Leda Nagle”, diz um texto replicado em vários grupos.

No início da tarde, Polícia Federal informou que o perfil do diretor, Paulo Maiurino, havia sido falsificado. Leda Nagle chegou a se desculpar publicamente por ter divulgado a informação falsa, mas era tarde.  

A narrativa da conspiração foi multiplicada ao longo de todo dia, acompanhada de memes e reproduções de mensagens com apelos por uma ruptura institucional e ataques críticas ao STF e ao PT.

Numa delas, Adélio Bispo, preso pela facada que deu em Bolsonaro durante a campanha de 2018, aparecia dizendo "eram 11, mas só um deu a ordem". 

“Estamos neste momento em guerra. Conforme o chefe da Polícia Federal, foi o STF quem mandou matar Bolsonaro. Exigimos o fechamento e a prisão de todos os membros do STF que estão por trás desse crime”, escreveu um bolsonarista em caixa alta. 

“As suspeitas de envolvimento do STF na tentativa de assassinato do presidente, se confirmadas, poderão levar a uma reviravolta completa na atual organização política do Estado Brasileiro. E muitas, muitas prisões serão efetuadas”, apostou outro apoiador do presidente, com mais de 10 mil seguidores no Twitter, em publicação replicada em vários grupos do WhatsApp.

No Telegram, um áudio apócrifo contava sobre um suposto relato do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) e de um integrante “barra pesada” do Gabinete de Segurança Institucional que "revelava" outros mandantes da falsa conspiração: Jean Wyllys, José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso.  

À noite, quando diversas reportagens denunciando as fake news já haviam sido publicadas, o teor das postagens se inverteu.

Aí, o link mais compartilhado era o de uma postagem em um site bolsonarista acusando "gabinete de ódio" da esquerda de “linchar” Leda Nagle e promover fake news a respeito dela.

Em outro vídeo bem popular, o jornalista Alexandre Garcia, também ligado a Bolsonaro, defende a colega. "A ironia disso é que muita gente que está caindo de pau sobre ela inventa notícia todos os dias. Não tem moral para gozar alguém que foi enganada."

Junto com as postagens, uma mensagem bastante reproduzida dizia: "Leda Nagle, o Brasil te Ama". 


Luiz Carlos Azedo: Entre a cruz e a caldeirinha

CPIs têm poder de polícia, podem fazer acareações e quebras de sigilo, convocar ministros e toda a equipe de governo. Podem virar o Inferno de Dante

A velha expressão lusitana que intitula a coluna vem a calhar por causa da situação macabra em que estamos. Sua origem é do tempo em que as pessoas morriam em casa, com um crucifixo sobre o peito e água benta junto aos pés, ou seja, seu significado original era estar moribundo, entre a vida e a morte, mas foi abrandado com o tempo: hoje, nos remete à situação angustiante, que, depois de vencida nada resolve, porque outra lhe sucede. Essa é situação do presidente Jair Bolsonaro, entre o Orçamento aprovado pelo Congresso e a CPI da Covid, que tiram seu sono no Palácio da Alvorada.

Com o ministro da Economia, Paulo Guedes, Bolsonaro tenta uma saída para não desmantelar o acordo feito com o Centrão na Câmara, que foi atropelado no Senado. O relatório do senador Marcio Bittar (MDB-AC) estourou o teto de gastos, pressionado pelo ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP). Presidente do Congresso, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) lavou as mãos sobre o Orçamento e, agora, está em apuros, porque o governo o pressiona para adiar a instalação da CPI da Covid, enquanto não se chega a um acordo em relação aos mais de R$ 20 bilhões em emendas parlamentares incluídas no Orçamento. A conta da eleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), era R$ 16 bilhões. Bolsonaro fará vetos para não correr o risco de ser acusado de irresponsabilidade fiscal, mas o alcance dos vetos depende dessas negociações.

O acordo proposto por Guedes prevê um extrateto orçamentário de R$ 100 bilhões, a pretexto de combater a epidemia da covid-19. Além dos R$ 16 bilhões em emendas parlamentares, para obras escolhidas a dedo pelo Centrão, seriam destinados R$ 42 bilhões à compra de vacinas (sendo R$ 20 bilhões em restos a pagar), mais R$ 10 bilhões com o BEm (Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda) e R$ 5 bilhões
do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte). Entretanto, para isso, é preciso aprovar uma emenda à LDO que desobrigue o governo de medidas compensatórias, para Bolsonaro não infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. O problema é que isso aumentará ainda mais a dívida pública, mesmo com o governo bloqueando gastos não obrigatórios, como o orçamento da Defesa.

Investigações
A outra dor de cabeça de Bolsonaro é a CPI da Covid, que está sendo dominada pela oposição. O futuro presidente da CPI, indicado pela maior bancada, é o senador Omar Aziz (PSD-AM), cujo irmão 10 anos mais novo faleceu há 40 dias, vítima da doença. O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), é considerado um desafeto por Bolsonaro. Desde a derrota na eleição para a Presidência do Senado, em 2017, o político nordestino estava mergulhado, mas emergiu com a faca e o queijo nas mãos. Pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), Calheiros é um inimigo figadal de Arthur Lira, o presidente da Câmara, que pretende assumir o controle político do estado com apoio de Bolsonaro.

O esquema de trabalho da CPI, sugerido pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), tem a marca registrada de quem domina as investigações criminais. CPIs têm poder de polícia, podem fazer acareações e quebras de sigilo, convocar ministros e toda a equipe do governo. Podem virar o Inferno de Dante, cuja imagem é a de um cone invertido, dividido em círculos. No início, no círculo maior, estavam aqueles que não foram batizados e que não conseguiam reconhecer o próprio erro. Seguem os círculos daqueles que pecaram por incontinência. Esses estão no limbo.

Há um círculo para os que se entregaram à luxúria, outro para os que se deixaram dominar pela gula; em seguida, para os avaros e os pródigos (ou seja, para quem não gasta nada e para quem gasta muito); depois, um círculo para os iracundos e cheios de rancor, e por fim, para os hereges. Há círculos para: assaltantes, suicidas, blasfemos, sodomitas e usurários. Círculos para os rufiões (aqueles que exploram a prostituição), os aduladores e lisonjeadores. Para os que vendem milagres, traficantes, hipócritas, fingidos, mentirosos; para os ladrões, os falsários, os maus conselheiros e os intrigantes. Por último, os traidores. São os piores.


Felipe Salto: O governo não viu as emendas do Orçamento virarem um monstrengo?

Executivo precisa cumprir o teto, aumentar emendas e obras, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais, mas equação não fecha

A Hidra é um monstro grego que, ao ter a cabeça decepada, ganha duas novas. A gestão das contas públicas transformou o arcabouço fiscal num monstrengo difícil de driblar. O projeto de lei (PLN) n.º 2 altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021 para: a) retirar gastos da meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros); e b) aumentar a possibilidade de ajuste dos gastos discricionários (não obrigatórios).

A primeira mudança autoriza gastos por fora da meta legal. O Pronampe (ajuda a empresas), o BEm (medida para manter empregos) e a saúde (restritas ao combate à covid-19) são excluídos da meta de déficit primário. Independentemente da manobra contábil, a dívida será afetada. A alternativa, mais transparente, seria alterar a meta. 

A segunda inovação restringe as alterações orçamentárias ao cumprimento do teto de gastos. Isto é, se as despesas sujeitas ao teto superarem o limite, contingenciamentos terão de ser feitos. No limite, a medida poderá autorizar contenções de emendas aumentadas no processo orçamentário.

Além disso, exclui-se o gasto com custeio da máquina das prioridades de execução. Essa despesa, que é parte da discricionária do Executivo, tem tratamento diferenciado na LDO por corresponder a gastos essenciais ao Estado. O PLN 2 tira a blindagem para permitir cortes maiores nesse grupo. Aumentaria o risco de shutdown.

As emendas de relator-geral (incluídas demandas de parlamentares e do próprio Executivo incluídas) totalizam R$ 29 bilhões. Se forem vetados, no dia 22, cerca de R$ 10 a 12 bilhões, como discutido pela imprensa, e a tesoura do Executivo trouxer mais R$ 9 bilhões das próprias despesas discricionárias (algo como 10%), o corte total ficaria em cerca de R$ 20 bilhões.

Ocorre que esse valor não evitaria o estouro do teto de gastos. A IFI mostrou que o limite seria rompido em R$ 31,9 bilhões, dados os gastos discricionários inflados, no Orçamento, e as projeções da instituição para as despesas obrigatórias – mais realistas que as do Orçamento.

As emendas de relator-geral só podem ser cortadas se retiradas pelo próprio relator (aliás, um ofício foi enviado ao Executivo nesse sentido) ou por meio do veto presidencial. Mas o PLN 2 manda que todas as alterações orçamentárias sejam limitadas pelo teto. 

Ora, se o veto presidencial incidir sobre apenas R$ 10 a 12 bilhões e isso for insuficiente para resolver o problema do teto, outros gastos terão de ser cortados. Os obrigatórios têm de ser executados, os discricionários do Executivo já teriam sido reduzidos e as emendas individuais e de bancada só podem ser contingenciadas proporcionalmente à redução das discricionárias do Executivo. 

Restaria contingenciar mais um pedaço das emendas de relator. A equação não fecha: cumprir o teto, aumentar emendas, contemplar obras de certas áreas do Executivo, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais. O governo não viu o monstrengo se materializar?

*Diretor Executivo da IFI


Luiz Sérgio Henriques: Crônica de uma nação descentrada

Rompe-se o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo

No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.

Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.

Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.

“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.

Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.

Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.

Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.

De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.

O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos. Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Marcos Fuch: Brasil avança na epidemia do autoritarismo

Estudo em parceria com a Conectas antecipado pelo EL PAÍS em janeiro revelava como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas à pandemia. Operação de sabotagem segue sendo realizada por Bolsonaro mesmo diante de colapso da rede de saúde

A defesa primordial da vida deveria ser o direito mais básico a ser tutelado pelo Estado, mas a resposta brasileira ao enfrentamento da covid-19 não tem priorizado a proteção da vida e da saúde dos brasileiros. Um recente estudo realizado pelo Cepedisa (Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário) da USP, em parceria com a Conectas, com base em mais de 3.000 normas produzidas pela União desde o início da pandemia, revela como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. O levantamento foi obtido com exclusividade pelo EL PAÍS no fim de janeiro.

MAIS INFORMAÇÕES

A mesma pesquisa avaliou a propaganda contra a saúde pública, como o discurso político que mobilizou argumentos econômicos, ideológicos e morais com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas necessárias para conter o avanço da doença.

Mesmo diante do colapso iminente do sistema público e privado de saúde em diferentes estados, o presidente Jair Bolsonaro segue atacando os gestores públicos que optam por adotar as necessárias―e impopulares ― medidas de distanciamento social. Enquanto as campanhas de vacinação não decolam, o distanciamento social e o uso da máscara são as medidas mais eficazes apontadas por autoridades sanitárias de todo o mundo para reduzir a rapidez do contágio do novo coronavírus e de suas novas variantes.

Ao ir na contramão da ciência, aprofundando a negligência e o negacionismo, temos observado uma estratégia de uso da pandemia para implementar a agenda Bolsonaro de retrocessos sociais e de retirada de direitos. O próprio ministro Ricardo Salles acabou por nos alertar quando, em reunião ministerial de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado após determinação do Supremo, declarou a intenção de aproveitar os holofotes direcionados à cobertura da covid-19 para “passar a boiada” do desmonte da proteção ambiental.

A pandemia foi usada como justificativa, por exemplo, para restringir direitos trabalhistas, alterar a Lei de Acesso à Informação, intervir na escolha de reitores das universidades federais e até para tentar mudar o rito de aprovação de medidas provisórias e, com isso, oferecer poderes plenos ao presidente de legislar sem intervenção de outros poderes. Muitas dessas medidas foram revertidas pelo Supremo ou pelo Congresso, impondo derrotas ao governo, mas intensificando os desgastes das instituições democráticas.

Houve ainda outros episódios que atacaram frontalmente os princípios do estado democrático, como quando se tirou do ar os dados epidemiológicos da covid-19, incentivou a invasão de hospitais de campanha ou promoveu aglomerações em protestos que pediam intervenção no STF (Supremo Tribunal Federal).

O Governo Bolsonaro também usou a pandemia como forma de atacar ou retirar direitos de minorias, como indígenas e quilombolas, migrantes e refugiados e a população carcerária ― todos grupos altamente vulneráveis aos efeitos do coronavírus e que antes mesmo da pandemia vinham sofrendo retiradas de direitos pelo Governo Bolsonaro.

Os indígenas e quilombolas precisaram recorrer ao STF para obrigar a União a elaborar um plano de contingência contra a pandemia que respeitasse suas necessidades. O Executivo Federal chegou a vetar, de um projeto de lei aprovado pelo Congresso de proteção às populações indígenas no contexto da covid-19, itens tão básicos como garantir o suprimento de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

No que se refere aos direitos dos refugiados, desde março de 2020 o governo promove restrições seletivas a pessoas provenientes da Venezuela, país assolado por grave e generalizada crise de direitos humanos. Sob a justificativa de conter a pandemia, refugiados que consigam chegar na fronteira são impedidos de pedir proteção no Brasil e são sumariamente deportados, ainda que turistas sejam permitidos de entrar por via aérea e a fronteira com Paraguai seja a única terrestre aberta, e a despeito de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não apresentar uma recomendação neste sentido.

Por fim, a população carcerária, altamente exposta a infecções em razão das condições insalubres e de superlotação dos presídios brasileiros, não foi nem ao menos considerada como grupo prioritário da campanha de vacinação elaborada pelo Ministério da Saúde. As audiências de custódia, aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve passar diante de um juiz no prazo de 24 horas para verificar a legalidade da prisão, seguem sendo realizadas por videoconferência na maioria dos estados ― algo que limita a capacidade de identificar indícios de tortura.

Se ainda não sabemos como, por quanto tempo e em quais circunstâncias teremos que conviver com a pandemia, podemos assegurar que os estragos do autoritarismo e conservadorismo que assolou o Brasil levarão anos para serem superados. Enquanto a maior pandemia da história recente já cobrou mais de 255 mil vidas no Brasil, experimentamos o avanço acelerado da epidemia do autoritarismo que corrói as instituições democráticas e ataca o pacto social estabelecido pela Constituição de 1988.

Marcos Fuchs é diretor da ONG Conectas Direitos Humanos


Arminio Fraga: ‘Não é só uma crise fiscal, há crise política e institucional’

Ex-presidente do BC ressalta que, enquanto não for superada, pandemia continuará sendo um freio para a recuperação da economia

Cassia Almeida, O Globo

RIO - Ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Gávea Investimentos, o economista Arminio Fraga diz que o Brasil passa por uma crise que vai além da área fiscal. Segundo ele, o Brasil é percebido hoje como um país de visão atrasada, que passa ao largo de grandes debates, como meio ambiente e qualidade da democracia.

Arminio diz que nenhum país cortaria o auxílio à população de forma abrupta. Ressaltou que mesmo em uma situação econômica e sanitária não tão negativa, a saída teria seria “suavizada”.

Tivemos a maior recessão desde o Plano Collor. O que nos espera?

O Brasil, na verdade, sofreu dois tombos. Tivemos o de 2014, 2015 e 2016, e agora esse. Olhando o gráfico com os dados trimestrais do PIB, é qualquer coisa de extraordinário: desde 2012, o PIB caiu mais que subiu. A queda do PIB per capita chegou a bater quase 10%. É um sinal muito ruim.

E a pandemia?

É um momento que requer muita reflexão. A economia só vai ter chance de se recuperar quando a pandemia estiver dominada. Há um consenso de que a reação do governo deixou muito a desejar, custando caro em número de vidas e em termos de PIB. Há a visão clara e pacífica de que, enquanto a pandemia não estiver superada, vai funcionar como um freio.

Há outras fontes de incerteza?

Outra fonte de incerteza é a política geral. Já falei isso no passado e continuo achando que os efeitos qualitativos, como a questão ambiental, a resposta à crise sanitária e temas em geral ligados à qualidade da nossa democracia, como esses vários decretos sobre armas, criam um pano de fundo tenso.

Do lado da economia, o investimento vem muito parado, a taxa de investimento é muita baixa. A do setor público caiu de 5 % do PIB para 1%. Mesmo um liberal como eu consegue imaginar um espaço importante de investimento tipicamente público complementar ao do setor privado.

Há outros pontos de preocupação?

Ao lado, temos um quadro fiscal precário, a respeito do qual pouco se fez. A reforma da Previdência foi aprovada, é importante, mas teremos déficit primário a perder de vista. Com a inflação arregaçando as mangas, o lado fiscal pode ficar ainda mais preocupante. Isso é algo para o que não está se encontrando resposta.

O vento a favor está muito forte lá fora, preço das commodities subindo, uma situação, para o Brasil, rara. Mesmo assim, a taxa de câmbio foi para R$ 5,70. As pessoas deveriam se perguntar o que está acontecendo. É um quadro geral extremamente preocupante, dificílimo, não há como negar.

O auxílio emergencial deve ser mantido?

Como parecia previsível, o governo não tomou nenhuma medida considerada antipática para viabilizá-lo, mas antipático é jogar o país em outra recessão. A situação sanitária recomenda auxílio. Não há a menor dúvida: nenhum país cortaria esse auxílio, nas circunstâncias atuais, de maneira radical. Mesmo em uma situação nem tão ruim, haveria uma saída minimamente suavizada do auxílio.

Sou a favor, mas correr mais risco na economia, caminhar para outra recessão é um risco social incalculável. Algumas pessoas esquecem que a crise do real em 1998 e 1999 foi equilibrada com o tripé macroeconômico (câmbio flutuante, meta fiscal e de inflação), que o colapso da economia entre 2014 e 2016 veio na esteira de um colapso fiscal.

Corremos o risco de colapso fiscal?

A irresponsabilidade do governo não foi surpresa. Vejo o Congresso ansioso, mas mais reativo e não proativo. O que quero dizer é que, quando a chapa esquenta, o Congresso se move. Não vejo o Congresso pensar na estrutura tributária, na reforma do Estado para valer. Cerca de 80% do gasto vão para folha de pagamento e Previdência.

Na esmagadora maioria dos países, inclusive os de renda média, a parcela corresponde a 60%. É um trabalho de uma década. Não é só uma crise fiscal, é muito mais que isso. No Brasil hoje, há elementos de crise política, institucional, da credibilidade do nosso arcabouço maior. O Brasil está com uma imagem externa ruim e, pior, com uma imagem interna também ruim, por isso o investimento aqui, que é o mais importante, está tão fraco.

Como fica a imagem lá fora?

O Brasil fica mal. Em muitas dimensões, é visto como um país que tem visões atrasadas e incompatíveis com as grandes questões existenciais do planeta, sobre meio ambiente, da qualidade da democracia.