Natureza

Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assumiu o cargo em cerimônia no Salão Nobre no Palácio do Planalto | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Revista online | A natureza pede democracia

Habib Jorge Fraxe Neto*, consultor do Senado, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição/janeiro de 2023)

A proteção e a conservação do meio ambiente vicejam melhor onde correm as águas da democracia, e o recente discurso de posse da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, indicou o curso dessas águas. Passados quatro anos desde que se iniciou o desmonte sistemático da governança ambiental, em 2019, a natureza – nós nela incluídos – respirou aliviada, como as seculares árvores amazônicas respiraram aliviadas quando dos empates vitoriosos de Chico Mendes e outros seringueiros. Desde então, o mundo mudou muito. Se naquele tempo eles se perfilavam no interior do Acre em torno das árvores para impedir seu corte, hoje se colocam contra o desmatamento de nossas florestas atores do porte da comunidade europeia e das empresas globais de seguros. O governo anterior não entendeu essa mudança.

Nos últimos quatro anos, nosso Sistema Nacional do Meio Ambiente foi colocado à prova, e quem acompanhou a passagem da boiada sabe que a precarização da governança ambiental foi tramada entre quatro paredes e de modo a ruir suas bases, convertendo o país de líder em pária da questão ambiental. Nada mais contrário à democracia, que exige a participação da sociedade civil, da ciência e do máximo de atores dedicados à causa do meio ambiente, dada a complexidade das soluções necessárias. 

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O novo governo entendeu a gravidade do que foi executado. Estávamos indo na contramão da racionalidade científica e socioeconômica, e nossas políticas ambientais haviam sido colocadas a serviço do crime organizado, sobretudo na Amazônia Legal. As medidas até aqui anunciadas alinham-se com as mais modernas práticas em políticas públicas. E os tempos são outros, passados 20 anos desde o início do primeiro governo Lula, também com Marina na pasta ambiental. 

Hoje até os então mais céticos concordam que a mudança do clima precisa ser enfrentada. Os mercados pressionam cada vez mais nesse sentido, considerando os imensos custos arcados pelas seguradoras globais (grandes conglomerados financeiros) devido a acidentes naturais associados a eventos climáticos extremos. Em nosso caso, cerca de dois terços das emissões de gases de efeito estufa associam-se ao desmatamento da vegetação nativa e a atividades agropecuárias. Absolutamente irracional foi descartar, como fez o governo derrotado, planos efetivos de combate ao desmatamento.

Marina e sua equipe precisarão reconstruir as políticas de controle do desmate, a exemplo do que fizeram de 2004 a 2012, quando as taxas de corte raso da Floresta Amazônica diminuíram 83%. O novo governo precisa ainda viabilizar, em especial na Amazônia, modelos socioeconômicos para a geração de renda que não dependam de atividades ilegais. A operação do Fundo Amazônia (que foi retomada no primeiro dia do novo governo, após quatro longos anos de paralisação) poderá contribuir de forma significativa para isso via pagamentos, inclusive internacionais, por resultados de desmatamento evitado. 

Técnicas de agricultura de baixo carbono constituem outro pilar das políticas ambientais e, nesse campo, há imenso potencial para diminuir a vulnerabilidade dos sistemas agrícolas e, ao mesmo tempo, aumentar a renda dos produtores rurais. A transversalidade ministerial anunciada na posse da ministra Marina será fundamental para conciliar a dicotomia, equivocada em nosso entender, que classifica o setor rural como inimigo do meio ambiente. Um dos grandes gargalos é a precariedade nos incentivos, na produção de tecnologias e na assistência técnica para que o setor agrícola adote técnicas menos emissoras em carbono, que têm vantagem econômica e ambiental quando comparadas às da agricultura convencional. 

Confira, a seguir, galeria:

Reprodução: Canal Agro Estadão
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Foto: Wenderson Araújo/CNA_Trilux
Foto: Igo Estrela/Metrópoles
Foto: Igo Estrela/Metrópoles
Foto: Boris Baldinger/World Economic Forum
Reprodução: Canal Agro Estadão
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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Foto: Igo Estrela/Metrópoles
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Foto: Boris Baldinger/World Economic Forum
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Reprodução: Canal Agro Estadão
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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Foto: Igo Estrela/Metrópoles
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Foto: Boris Baldinger/World Economic Forum
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Os desafios são imensos, diante do papel brasileiro de ser e continuar sendo uma potência ambiental, pela sua imensa riqueza natural, pela matriz energética forte em renováveis e, em especial, pelo gradual fortalecimento das instituições e movimentos sociais dedicados à proteção da natureza que se observou até 2018. E, ainda que o governo anterior tenha se dedicado ao desmonte, a sociedade civil e os servidores públicos da área ambiental fortaleceram resistências que agora serão de grande valor. 

A reconstrução da governança ambiental é um grande desafio e exige o apoio de toda a sociedade. Além dos temas aqui apontados, há muitos outros de relevância social e econômica, como políticas de saneamento básico. Diversas pesquisas recentes apontam que, mesmo em uma sociedade ideologicamente dividida como a nossa, cerca de 80% dos brasileiros consideram a proteção ambiental uma prioridade. Poder público e setores econômicos devem nortear suas ações nesse rumo para assim fortalecer nossa democracia. A natureza agradece. 

Sobre o autor

* Habib Jorge Fraxe Neto é consultor legislativo do Senado Federal, na área de meio ambiente. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Quase 100 crianças do povo Yanomami, entre um e quatro anos, morreram devido ao avanço do garimpo ilegal na região em 2022 | Foto: Reprodução/Instagram/urihiyanomami

Revista online | Yanomami: Crise humanitária deve ser resolvida de forma definitiva

Luciano Rezende*, ex-prefeito de Vitória (ES), especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro de 2023)

A mais recente crise humanitária envolve os Yanomami, que vivem no norte da Amazônia, na fronteira Brasil-Venezuela.  Esse povo constitui um conjunto cultural e linguístico composto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas da mesma família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). A população total dos Yanomami, no Brasil e na Venezuela, era estimada em cerca de 35.000 pessoas em 2011.

As atividades do garimpo provocam conflitos violentos entre garimpeiros e os povos indígenas locais, levando a agressões e mortes.

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Além disso, as atividades do garimpo são extremamente perigosas para o meio ambiente devido ao uso de metais pesados que contaminam o solo e os rios, levando riscos graves à saúde dos povos expostos ao envenenamento do solo, da água e dos animais não só no local do garimpo, mas também longe do local da extração. É o que parece ser o motivo principal da agudização da grave crise humanitária atual com os Yanomamis.

A atividade garimpeira utiliza o mercúrio para possibilitar a amálgama com o ouro, de forma a recuperá-lo nas calhas de lavação do minério. Tanto o mercúrio metálico perdido durante o processo de amalgamação como o mercúrio vaporizado durante a queima da amálgama para a separação do ouro são altamente prejudiciais à vida.  

Alguns insetos metabolizam o mercúrio metálico em dimetilmercúrio, o qual é altamente tóxico para os seres vivos. Como esses insetos fazem parte da cadeia alimentar, o mercúrio orgânico acaba por ser ingerido pelo ser humano. 

O mercúrio vaporizado ao ser inalado também é altamente tóxico. O mercúrio atinge todo o sistema nervoso, podendo levar à perda da coordenação motora, e, se ingerido ou inalado por grávidas, haverá a possibilidade de geração de fetos deformados, sem cérebro, etc.[1]

Confira, a seguir, galeria:

Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Condisi-YY/Divulgação
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Sumaum/Divulgação
Foto: Reprodução/Jornalistas Livres
Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto
Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Condisi-YY/Divulgação
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Sumaum/Divulgação
Foto: Reprodução/Jornalistas Livres
Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto
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Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Condisi-YY/Divulgação
Foto: Reprodução/Urihi - Associação Yanomami
Foto: Sumaum/Divulgação
Foto: Reprodução/Jornalistas Livres
Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto
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É necessária uma ação imediata e permanente para restabelecer o equilíbrio nessas regiões. Legislação adequada, fiscalização, punição de criminosos e gestão cuidadosa dessa gravíssima crise é urgente.

Resolver a crise causada pelo garimpo ilegal é, na verdade, ir muito além da preservação do solo, dos rios, dos animais e do ser humano. É, também, cuidar da nossa rica diversidade étnica, além de respeitar e ser justo com os nossos povos originários, uma extraordinária riqueza que forjou a nossa própria identidade como povo e nação.

Sobre o autor

* Luciano Rezende é professor, médico, ex-prefeito de Vitória (ES) por dois mandatos (2013-2020) e presidente Conselho Curador FAP/Cidadania.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Foto: Jacqueline Lisboa/WWF-Brasil

Revista online | O protagonismo indígena e o Ministério dos Povos Indígenas 

Marcos Terena*, escritor indígena, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro/2023)

O chamado protagonismo indígena não pode ser tratado como ação de um partido político, de um governo ou de uma organização indígena apenas.

Ao longo do tempo, a grande caminhada indígena para afirmar sua soberania e dignidade começou, talvez, naquele dia em que Caramuru, o português Borba Gato, chegou com um litro de aguardente e ameaçou queimar as águas dos rios, caso não lhe fosse mostrado onde encontrar as pedras preciosas.  

Não se deve desconsiderar as formas de vida, a inteligência, a economia sustentável e os mistérios espirituais indígenas e suas relações com a Mãe Terra em cada bioma.

Durante todo o processo colonizador, em que mais de mil povos ancestrais desapareceram, a aplicação da meia verdade tornou-se uma moeda corrente, inclusive para justificar a instituição do paternalismo, da dominação e da falsa ideia do enriquecimento fácil, como o arrendamento territorial. 

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No final dos anos 1970, os chefes indígenas de vários povos e regiões passaram a conhecer os caminhos do poder de Brasília e a observar como eram e ainda são invisíveis aos olhos do poder público, do Judiciário, do Legislativo e do próprio Executivo.

É preciso recordar que as questões indígenas eram tratadas como casos de segurança nacional e, recentemente, como casos de polícia. 

No entanto, o protagonismo indígena nunca parou de avançar. Aquele protagonismo tribal ou comunitário da dignidade, da inteligência e da coragem que mostra os chefes Mario Juruna e Celestino Xavante sempre renasce e está vivo na nova geração a partir do conceito “posso ser o que você é, sem deixar de ser quem sou!”.

São sementes históricas marcantes das quais não se deve esquecer, especialmente pelos jovens indígenas que acessaram a universidade por sistemas de cotas articuladas e negociadas pelo mesmo protagonismo indígena.

No ano de 1992, com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, os povos indígenas se uniram para mostrar que “caminhamos em direção ao futuro, nos rastros de nossos antepassados”. Dessa forma, o fogo sagrado do bem viver foi aceso para recordar o valor ancestral do vínculo com a Mãe Terra e os compromissos com todos.

O movimento indígena, nos últimos anos, vem criando as condições possíveis para construir uma política indigenista dentro do sistema governamental. Afinal, as regras de afirmação já estão postas na Constituição Federal ou no cenário internacional, como na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ou na Declaração da ONU sobre os direitos indígenas. 

Depois, surgiram jovens indígenas que passaram a dominar a linguagem dos grandes debates internacionais após a RIO 92 e a COP 8, eventos realizados no Brasil sobre meio ambiente e diversidade biológica. Seguiram essas agendas os debates na COP 27, no Egito, e na COP 15, em Ottawa, agora sob a roupagem de mudanças climáticas e proteção à biodiversidade e conhecimentos indígenas.

A realidade brasileira indígena, devido a essa gama de articulações, de certa forma, encurralou o sistema governamental ao mostrar essas credenciais, como ocorreu no encontro com o presidente Lula e a primeira dama Janja, no Egito, apresentando a fatura por programas e compromissos factíveis com a realidade dos mais de 300 povos e 240 línguas, por exemplo. Além do Ministério dos Povos Indígenas, também houve proposta para criação de uma Universidade Intercultural e até de um centro de pesquisa e proteção à saúde indígena, com a novidade de ser coordenada pelo próprio protagonismo indígena.

O Ministério dos Povos Indígenas chegou, e Lula, em ação inédita, assinou o ato que o torna parte da história, ao nomear a primeira ministra indígena, a deputada Sonia Guajajara, eleita por São Paulo.

Veja, abaixo, galeria:

Reprodução: Revista Amais
A pintura Batizado de Macunaíma, de Tarsila do Amaral, em 1956, retrata a cerimônia batismal da criança que nasceu do fundo do mato virgem | Reprodução: Arte Brasileiros
Foto: Tacito.fotografia/Shutterstock
Reprodução: Elisclésio Makuxi/Agência Brasil
Foto: Joa Souza/Shutterstock
Reprodução: Atelier
Foto: Joa Souza/Shutterstock
Foto: Daiara Tukano/Instagram
Foto: Ricardo Stuckert/Instagram | Os índios atravessaram a ponte
Reprodução: Revista Amais
A pintura Batizado de Macunaíma, de Tarsila do Amaral, em 1956, retrata a cerimônia batismal da criança que nasceu do fundo do mato virgem | Reprodução: Arte Brasileiros
Foto: Tacito.fotografia/Shutterstock
Reprodução: Elisclésio Makuxi/Agência Brasil
Foto: Joa Souza/Shutterstock
Reprodução: Atelier
Foto: Joa Souza/Shutterstock
Foto Daiara TukanoInstagram
Foto: Ricardo Stuckert/Instagram | Os índios atravessaram a ponte
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Reprodução: Revista Amais
A pintura Batizado de Macunaíma, de Tarsila do Amaral, em 1956, retrata a cerimônia batismal da criança que nasceu do fundo do mato virgem | Reprodução: Arte Brasileiros
Foto: Tacito.fotografia/Shutterstock
Reprodução: Elisclésio Makuxi/Agência Brasil
Foto: Joa Souza/Shutterstock
Reprodução: Atelier
Foto: Joa Souza/Shutterstock
Foto Daiara TukanoInstagram
Foto: Ricardo Stuckert/Instagram | Os índios atravessaram a ponte
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Mesmo com a assinatura desse ato, não podemos pensar que isso signifique a solução de todos os problemas dos mais de 500 anos de invasão e as demandas da modernidade, mas, sim, a responsabilidade do presidente do Brasil no cenário nacional e internacional de contribuir com a pavimentação desse caminho que não é indígena. Isto porque os inimigos dos indígenas existem e se organizam sob o manto da democracia parlamentar. 

Mais uma vez, os povos indígenas, com direito a quase 15% do território nacional onde está a resposta para o bem viver mundial, contribuem novamente para o resgate da afirmação da identidade cultural brasileira e, em especial, da credibilidade internacional. O país é megadiverso.  

O protagonismo indígena independente do governo. Deve estar organizado para o bom combate, como a demarcação territorial e a gestão das terras indígenas, e ter como estímulo a mensagem do chefe Sepeti Arajú: “Esta terra tem dono!”

Sobre o autor

*Marcos Terena é escritor indígena, fundador do primeiro movimento indígena, da tradição Xumono e articulador dos direitos indígenas.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Alertas registrados em dezembro atingiram área do tamanho do Recife (PE) - Valter Campanato/ Agência Brasil

Alertas de desmatamento crescem 54% em 2022 e atingem pior marca da série

Brasil de Fato*

Os alertas de desmatamento na Amazônia Legal em 2022 atingiram a maior área desde 2015, quando teve início a série histórica do Deter-B, sistema de monitoramento em tempo real do Inpe. Os dados foram divulgados nesta sexta-feira (6). 

Entre janeiro e 30 de dezembro do ano passado, os alertas totalizaram 10.267 km², o equivalente a mais de 8 vezes a cidade do Rio de Janeiro. O acumulado entre agosto e setembro também foi o pior dos últimos sete anos (4.793 km²) e teve aumento de 54% em relação ao mesmo período do ano passado. 

Apenas no último mês de 2022, a Amazônia pode ter perdido área equivalente à da cidade de Recife (PE). Em dezembro, os alertas atingiram 218 km², 150% a mais do que em 2021. É o terceiro pior dezembro desde 2015. 

A taxa oficial de desmatamento na Amazônia, divulgada pelo sistema Prodes, é medida de agosto a julho do ano seguinte. Por isso, os recordes de desmatamento destruição serão herdados pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva

"O governo Bolsonaro acabou, mas sua herança ambiental nefasta continua”, disse o secretário executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini.

“Os alertas de destruição da Amazônia bateram recordes históricos nos últimos meses, deixando para o governo Lula uma espécie de desmatamento contratado, que vai influenciar negativamente os números de 2023", complementou.

Corrida pela destruição 

Segundo o Observatório do Clima, as estatísticas comprovam que houve uma corrida pela destruição da Amazônia na reta final do governo de Jair Bolsonaro (PL). Após o resultado das eleições, os alertas cresceram de maneira sem precedentes em redutos bolsonaristas da Amazônia.

Em Rondônia e no Acre, as queimadas na primeira semana de novembro ultrapassaram os piores números já registrados desde o início da série histórica, em 1998. Os estados deram mais de 70% dos votos a Bolsonaro e reelegeram apoiadores do ex-presidente para governador.

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato já temiam que a troca de governo provocasse um salto no desmatamento. Ao contrário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se elegeu prometendo lançar as bases para atingir "o desmatamento zero" até 2030. 

Texto publicado originalmente no portal Brasil de Fato.


Os desafios do novo governo Lula na área ambiental

Made for Minds*

A demora em anunciar o nome de quem comandará o Ministério do Meio Ambiente é vista como um indício dos grandes desafios a serem enfrentados na área durante o futuro governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Embora Marina Silva, ex-ministra e atual deputada federal eleita por São Paulo seja a mais cotada, o anúncio oficial ainda não foi feito.

Falta de servidores nos órgãos de fiscalização ambiental e pouco dinheiro serão grandes obstáculos para lidar com uma herança deixada por Jair Bolsonaro: a alta do crime organizado e do desmatamento na Amazônia.

"A criminalidade cresceu muito na área ambiental e fortaleceu laços com o narcotráfico e outros tipos de crime. Tem uma situação grave de impunidade, será necessário reestruturar órgãos ambientais, será algo muito complexo", avalia Adriana Ramos, assessora política do Instituto Socioambiental (ISA).

Nos últimos meses do governo Bolsonaro, o sistema de alertas de desmatamento na Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou dados preocupantes. De agosto a novembro de 2022, o acumulado de devastação atingiu 4.574 km², o que representa uma alta de 51% em relação ao mesmo período do ano passado – e um recorde da série histórica.

"O cenário é de muito desmatamento, muitos garimpos irregulares, de destruição em todos os biomas. O novo governo será cobrado a dar retorno rápido e terá que, de imediato, tomar medidas fortes na área", opina Suely Vaz, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama).

Diante de uma política ambiental desestruturada, órgãos de fiscalização paralisados e enfraquecidos, as medidas iniciais aguardadas pelo Ministério do Meio Ambiente precisam demonstrar eficácia e que a lei será, de fato, cumprida, apontam os especialistas ouvidos pela DW.

"O desmatamento de agora não é o mesmo de outros governos. Medidas de comando e controle não bastam, tem que envolver mais força policial, talvez o próprio Ministério da Justiça", pontua Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (ICS).

Para Ramos, o confronto ganhou contornos truculentos. "Os elementos da violência com a multiplicação de clubes de caça e tiro pela Amazônia faz com que, hoje, as condições objetivas do enfrentamento disso sejam quase como uma guerra." 

Cofres vazios

A retomada do Plano de Ação de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) é vista como essencial para o combate à devastação. Criada em 2004, no primeiro mandato de Lula e com Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente, a iniciativa reuniu diversas pastas em torno da meta de frear o desmatamento e desenvolver a região de forma equilibrada.

O aperto financeiro, por outro lado, deve ser um entrave nesse retorno. As restrições orçamentárias deixadas pelo governo Bolsonaro indicam que a pasta terá o menor volume de recursos dos últimos 20 anos, ressalta Raul do Valle, especialista em políticas públicas do WWF.

"O combate ao desmatamento não terá recursos, o governo terá que repor esse orçamento. Será difícil, dada a grande disputa por dinheiro. Portanto, o ministério terá que contar com apoio da cooperação internacional para que o Brasil consiga ter um sistema ambiental minimamente funcional neste primeiro ano", explica Valle.

É por isso que o Fundo Amazônia deveria ser retomado logo nos primeiros dias de 2023, considera Suely Vaz. "Seria importante também para que entre dinheiro para os projetos socioambientais", afirma.

Criado em 2008, o Fundo Amazônia recebeu recursos principalmente da Noruega e Alemanha para apoiar iniciativas que combatem o desmatamento e promovem a conservação. Dos cerca de R$ 1,5 milhão desembolsados, projetos geridos pela União, estados e municípios foram os que mais receberam dinheiro, totalizando R$ 1 milhão.

Desde que assumiu a presidência, em 2019, Bolsonaro e o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, eleito deputado estadual por São Paulo nas últimas eleições, paralisaram o fundo.

Ao fim dos quatro anos de mandato de Bolsonaro, a alta acumulada de desmatamento da Amazônia foi de 60% em relação aos quatros anos anteriores, sob os presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer. É o maior aumento visto em qualquer mandato presidencial desde o início do sistema de medição Prodes, do Inpe, em 1988, destaca o Observatório do Clima.

Boiadas à espera

Na avaliação de Vaz, o Ministério do Meio Ambiente terá que ter força para coordenar a reversão de várias "boiadas" que passaram sob Bolsonaro. "As piores foram no plano infralegal, ou seja, foram decretos, portarias, e isso o governo consegue arrumar", comenta.

No plano legal, ou seja, o que foi votado e aprovado pelo Congresso, os pontos mais graves apontados são o subsídio para geração de energia a carvão até 2040 e a contratação de usinas térmicas a gás – emenda embutida no meio da lei de privatização da Eletrobras.

"Será ainda preciso retirar de votação projetos polêmicos, como o que autoriza mineração em terras indígenas e seguir a luta de retrocessos que podem ser aprovados pelo Congresso Nacional", ressalta Vaz.

Nessa arena, os embates entre a liderança da pasta e parlamentares não será fácil. "O grande problema no debate sobre a temática ambiental é que a bancada que deveria representar os produtores rurais do país tem um interesse muito maior no mercado de terras do que na questão na produção", avalia Adriana Ramos, do ISA, citando ainda outros projetos na fila relacionados ao licenciamento ambiental e à regularização fundiária de terras griladas.

"O governo Lula precisa rever tudo isso de acordo com as promessas feitas na campanha e na Conferência do Clima. A demora na nomeação para o Ministério do Meio Ambiente sinaliza isso, que há uma negociação no sentido de atender esses interesses", sugere Ramos.

O clima e a frente ampla

Para Ana Toni, do Instituto Clima e Sociedade, resta saber como o ministério irá coordenar as várias vertentes ambientais existentes no país.

"A gente tinha um alvo comum, que era um governo contra a agenda ambiental como foi o de Bolsonaro e que uniu todas as diversas frentes minimamente ambientalistas. Um dos desafios é o que será essa agenda ampla ambiental e climática que esse governo tem", comenta.

A priorização do combate ao desmatamento é um consenso, mas o mistério permanece em relação a outros temas interligados, como clima, energia e agricultura.

"A pauta climática não é só ambiental. Ela é econômica, é uma oportunidade para o desenvolvimento brasileiro, para a indústria. Como a pasta do Meio Ambiente vai comandar tudo isso, juntando setor privado, academia, sociedade civil, é um desafio", opina Toni.

Toda essa articulação irá ocorrer sob um Estado de direito abalado, o que deixa o quadro mais delicado, diz Valle. "O grau de impunidade e de benefício para aqueles que agem contra a política ambiental foi tamanho no governo Bolsonaro que uma cultura de impunidade se impôs", justifica.

É por isso que o novo ministério sob Lula terá que se apoiar numa comunicação bem feita com a população e no apoio político, aponta.

"Esses grupos [que se beneficiam com a impunidade de crimes ambientais] sempre tiveram e aumentaram sua influência política em Brasília, com parlamentares eleitos e outros representantes, que vão tentar a todo momento obstruir o caminho. É grave, profundo, e não tem solução fácil", adverte.

Texto publicado originalmente no Made for Minds.


Macron apoia proposta de Lula de realizar COP na amazônia | Foto: reprodução/DW Made For Minds

Macron apoia proposta de Lula de realizar COP na Amazônia

DW Made for Minds*

O presidente francês, Emmanuel Macron, apoiou nesta quinta-feira (17/11) a proposta do presidente brasileiro eleito Luiz Inácio Lula da Silva de realizar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP) de 2025 na Amazônia.

"Gostaria imensamenente que pudéssemos ter uma COP na Amazônia, portanto apoio totalmente essa iniciativa de Lula", disse Macron, em viagem a Bangkok para uma cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC, na sigla em inglês).

"Apoio o retorno do Brasil a uma estratégia amazônica. Precisamos disso", acrescentou.

"A França é uma potência indo-pacífica e uma potência amazônica. A maior fronteira externa da França e da Europa é a fronteira de nossa Guiana com o Brasil", disse Macron.

Lula: oportunidade para o mundo conhecer a Amazônia

Durante a COP27, realizada atualmente no Egito, Lula expressou nesta quarta-feira a vontade de que a COP30 seja sediada por um estado da Amazônia, ecossistema essencial para o equilíbrio do clima global.

"Seremos cada vez mais afirmativos diante do desafio de enfrentar a mudança do clima, alinhados com os compromissos acordados em Paris e orientados pela busca da descarbonização da economia global", discursou Lula, reafirmando que a conferência seria a oportunidade de o mundo conhecer de perto esse bioma que seu governo promete proteger.

Em sua fala de aproximadamente meia hora, o presidente eleito repetiu para a audiência internacional a promessa de colocar o combate à crise climática no topo da agenda. A mensagem frisada é a de que o Brasil "está de volta" e que o isolamento internacional provocado por Jair Bolsonaro chegou ao fim.

O Brasil deveria ter sediado a COP25, em 2019, mas o governo Bolsonaro, então recém-eleito e em transição, retirou a oferta, alegando restrições orçamentárias.

Reaproximação entre Brasil e França

A vitória eleitoral de Lula no mês passado abriu caminho para uma aproximação entre Paris e Brasília, após relações tensas sob Bolsonaro.

Uma violenta polêmica estremeceu as relações entre Bolsonaro e Macron em 2019, em meio a incêndios florestais na Amazônia, cujo desmatamento aumentou acentuadamente sob Bolsonaro. Em meio a troca de farpas, o presidente ultradireitista brasileiro chegou a criticar Brigitte Macron, esposa do presidente francês, por seu aspecto físico.

Em telefonema com Lula após ao segundo turno, Macron afirmou que a eleição do petista é "uma excelente notícia" para a França. "Devo dizer que esperava com muita impaciência por este momento para que possamos reativar uma colaboração estratégica à altura de nossa história e dos desafios que temos pela frente", disse Macron, que foi um dos primeiros líderes estrangeiros a parabenizar o petista após a vitória.

Há exatamente um ano, Lula foi recebido por Macron em Paris com honras de chefe de Estado.

Nesta terça-feira, o secretário de Estado francês para Assuntos Europeus, Laurence Boone, afirmou que Paris vê o Brasil como um "parceiro essencial na América Latina".

lf (AFP, DW)

*Texto publicado originalmente no site DW Made for Minds


Queimadas na Amazônia | Foto: B.Kelly

Alertas de desmate na Amazônia são recorde para setembro

Made for minds*

Alta é a maior da série de medições do Inpe iniciada em 2015. Cifra representa crescimento de 47,7% em relação a setembro de 2021 e quase equivale ao tamanho da cidade de São Paulo

Os alertas de desmatamento na Amazônia em setembro foram os mais altos para esse mês na série histórica iniciada em 2015, de acordo com os dados, divulgados nesta sexta-feira (07/10), do monitoramento por satélite do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O acumulado de alertas de desmatamento em setembro foi de 1.455 km², quase a área da cidade de São Paulo. Em relação ao mesmo mês de 2021, houve crescimento de 47,7%. A cifra  é ligeiramente maior que o recorde anterior, de setembro de 2019 (1.454 km²), durante o primeiro ano do governo Bolsonaro.

De acordo com o Observatório do Clima, essa devastação pode ter emitido 70 milhões de toneladas de gás carbônico, o equivalente ao que um país como a Áustria emite num ano inteiro.

Com três meses restantes, o desmatamento acumulado para 2022 já superou o registrado de janeiro a dezembro de 2021. As áreas de alerta de desmatamento já somam 8.590 km², cifra 4,5% superior a todos os alertas do ano anterior.

Queimadas

O Inpe também divulgou que o número de queimadas registradas no bioma em setembro foi de 41.282, o maior desde 2010. Na comparação com o mesmo mês de 2021, o crescimento foi de 147%. Ainda no nono do ano corrente, a cifra de 82.872 queimadas já supera o total de 2021, que foi de 75.090.

O Deter produz sinais diários de alteração na cobertura florestal para áreas maiores que 3 hectares (0,03 km²), tanto para áreas já desmatadas como para regiões em processo de degradação florestal.

O Deter não é o dado oficial de desmatamento, mas alerta sobre onde o problema está acontecendo. A medição oficial, feita pelo sistema Prodes, costuma superar os alertas sinalizados pelo Deter.

Texto publicado originalmente no Made for minds.


UNODC/Laura Rodriguez Navarro Meninas em comunidade indígena na Colômbia

Dia Internacional dos Povos Indígenas foca no papel da mulher

ONU News*

Este 9 de agosto é o Dia Internacional dos Povos Indígenas. O tema deste ano é o papel das mulheres indígenas na conservação e transmissão dos conhecimentos tradicionais.

Em mensagem de vídeo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, lembra que elas são as guardiãs de sistemas tradicionais de alimentação e remédios naturais.

Desenvolvimento sustentável e voz das mulheres

Para Guterres, são também as mulheres indígenas que transmitem as línguas e as culturas dos povos indígenas e defendem o meio ambiente e os direitos humanos.

O chefe da ONU afirma que sem dar voz às mulheres indígenas será impossível alcançar equidade e sustentabilidade como previsto na Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável.

A ONU News ouviu a indígena e filósofa brasileira, Cristine Takuá, que falou do estado de São Paulo, sobre a data.

"Se hoje existem florestas, é porque os indígenas são guardiões, grandes sabedores, que dialogam com os espíritos, com as montanhas, os rios, as árvores, com todos os seres, animais, vegetais e minerais. O dia 9 de agosto deve ser lembrado como uma forma de resistência. Uma resistência onde todas as avós, todas as mães, no momento do parto, trazem as crianças ao mundo com uma sabedoria ancestral."

A ONU Mulheres lembra que a transmissão do conhecimento indígena é passada de geração a geração pelas mulheres como um valor imensurável.

Exploração de recursos indígenas sem autorização

E apesar do compromisso internacional para preservar e proteger a cultura e tradições indígenas, ainda existe exploração desses recursos. Em alguns países, objetos sagrados dos indígenas são usados, ameaçados ou patenteados para uso comercial sem autorização.

Para a agência da ONU, é preciso criar regimes legais para garantir que as mulheres indígenas possam ser beneficiadas de seu próprio conhecimento com reconhecimento internacional, evitando o uso ilegal por terceiros.

Por isso, as mulheres indígenas têm que ser parte do processo de decisão de como sua própria herança é usada, mantida e gerenciada.

Pnud Peru Indígenas em área protegida da Amazônia.

Biodiversidade e perspectivas

Em março, a Comissão sobre o Estatuto da Mulher encorajou Estados-membros a assegurar que as perspectivas de todas as mulheres e meninas indígenas e rurais fossem levadas em consideração.

A agência da ONU afirma que o conhecimento tradicional dos indígenas tem potencial na erradicação da pobreza, na segurança alimentar biodiversidade e para expandir o desenvolvimento sustentável.

*Texto originalmente publicado no ONU News. Título editado


Bolsonaro culpa Bruno Pereira e Dom Philipps pela

O país da Atalaia do Norte no Vale do Javari e da Faria Lima

Luiz Werneck Vianna

Num ponto extremo da Amazônia, em fronteira com o Peru, o misterioso desaparecimento de um indigenista brasileiro e de um jornalista inglês, até então inexplicável, ambos apaixonados pela região, tira do foco da conjuntura o processo eleitoral e assesta a viseira em cheio para o teatro real em que se move o capitalismo brasileiro em busca de uma expansão de suas fronteiras para novas formas de acumulação como na mineração e na ampliação de novas oportunidades para madeireiras e da pesca ilegal, que, na prática, se acham cumpliciadas com crime organizado que campeia na região pelo tráfico de drogas.

Aí se desvela o caráter encapuzado da ação do governo, pondo-se a nu sua natureza predatória, sua agenda anticivilizatória e adversa aos valores cultivados por nossas melhores tradições, muitas delas consagradas constitucionalmente, na medida em que por omissão deliberada na repressão às ilegalidades e aos crimes ali praticados favorece a sua multiplicação. O Brasil é concebido como um território ocupado por forças que lhe são estranhas, empenhadas em destruir os fundamentos da sua civilização e assentar sobre suas ruinas um capitalismo sem freios e excludente da sua população entregue à sua própria sorte.

Protestos em Londres pelo desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Philipps

Decerto o episódio que envolve o paradeiro desses dois exploradores amazônidas ainda é incerto, embora suspeitas assustadoras pairem sobre seu destino, mas de qualquer forma se está diante de um fato revelador das políticas nocivas levadas a cabo pelo governo Bolsonaro no sentido de abrir caminho à penetração orquestrada de negócios escusos no coração da Amazônia tratada como um faroeste sem lei sob controle de aventureiros em busca da fortuna.

Na região se patenteia nos seus traços fortes o projeto Bolsonaro de remodelar o país pelo padrão neoliberal de confiar os rumos do país a um capitalismo vitoriano diante de um Estado absenteísta especializado na pura intervenção coercitiva sobre seus cidadãos a velar para os fins de preservar a lei das selvas. O dogma de Margareth Thatcher, de que não existe essa coisa chamada de sociedade, rejeitado em seu país natal, torna-se aqui palavra de ordem.

O projeto de capitalismo autoritário, esgotado nos quarteirões lustrosos da Faria Lima e adjacências, procura seiva nova nas paragens amazônidas submetida às investidas contra suas florestas e suas populações autóctones com furor genocida para os fins de mais um movimento expansivo da acumulação capitalista. Nesse propósito, desencadeia-se uma sorte de guerra de guerrilha, pilotada de longe pelos agentes do projeto bolsonarista, levada a cabo por aventureiros com biografias dedicadas ao crime que dirigem em bandos armados as invasões das terras indígenas e expropriam seus recursos naturais como a floresta, a pesca e a caça, malbaratando suas terras com práticas deletérias de mineração.

A pretexto da defesa da soberania nacional na Amazônia confia-se o destino da estratégica região à cupidez de negócios e ao afã pela riqueza fácil de homens sem eira nem beira, devolvendo à vida a tragédia da colonização do continente americano. Dos amazônidas contra essa máquina de guerra orientada à sua destruição sob beneplácito do governo atual, surgem resistências, especialmente dos seus novos intelectuais, muitos deles descendentes dos povos originários, já identificados com o significado da defesa da Amazônia em termos planetários, e capazes de estabelecer interlocução direta com a opinião pública mundial assim como com as suas populações autóctones.

Bruno Pereira e Dom Philipps, com histórias e trajetórias de vida, distintas que o amor comum pela natureza amazônica aproximou, defensores da integridade da região e de suas populações, como é sabido, estão desaparecidos há dias sem que se saiba o destino deles. O fato é que saíram em missão investigativa numa singela embarcação, motivados pelo zelo de apurar malfeitos que em relatórios já tinham apurado e que agora são de conhecimento público. Conhecedores daquelas inseguras vias de comunicação fluvial, a possibilidade de que se tenham se perdido é remota, e com o passar dos dias afirmam-se como prováveis as hipóteses de que tenham sido vítimas de um crime. De quem é o que se pergunta, e todos os olhos se voltam para o que é a suspeita de todos, como sempre camuflado embora qual na história do gato deixe o rabo de fora.

*Texto publicado originalmente no Horizontes Democráticos


Os impactos do garimpo ilegal no território indígena Munduruku

A invasão aos territórios é violenta, destruindo as florestas e os modos de vida das comunidades tradicionais que dependem de uma relação equilibrada com a natureza.

Por Marcos Pedroso

Além de invadir os territórios habitados há muito tempo por populações tradicionais, o garimpo ilegal destrói sua cultura e modos de vida. Isso acontece por meio das limitações a sua manutenção cultural, e ainda com o avanço de doenças e vícios trazidas por esses “novos colonizadores”.

Reconhecido pela FUNAI, o território dos Munduruku deveria ser preservado, a fim de garantir a segurança e o modo de vida dos indígenas. Porém, a investida dos garimpeiros ilegais nesse território tem crescido diante de um sentimento de impunidade, situação que pode agravar-se ainda mais caso seja aprovado o PL 191/2020, que prevê a regulamentação de mineração em terras indígenas.

Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais e o Ministério Público Federal (MPF) apontou que 28% da produção nacional de ouro possui evidências de irregularidades. O Pará é o estado campeão de ilegalidades, principalmente no entorno da terra indígena Munduruku. O estudo identificou 5,4 toneladas de ouro de origem ilegal (quase 18% do total produzido pelo Estado do Pará) apenas nos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, onde se situam terras indígenas dos povos Munduruku e Kayapó.

Reação em cadeia
A antropóloga Deborah Goldenberg, estrategista de garimpo do WWF-Brasil, explica que a alteração do ambiente natural pelo garimpo provoca mudanças sociais e culturais na vida dos povos indígenas. “Quando essas populações vivem do modo tradicional, a vida delas é totalmente interligada com a natureza. É uma especificidade dos povos ameríndios de nem fazer distinção entre o mundo humano e a natureza, então tem toda essa interação com a natureza em várias camadas”, conclui.

Os indígenas, em sua maioria, são contra qualquer prática de mineração dentro de seus territórios. Essa postura tem levado a intimidações e ameaças por parte dos garimpeiros e são inúmeros os casos de violência física praticados contra as comunidades tradicionais, como destruição de suas casas, associações, embarcações e, em casos mais graves, mortes, a fim de intimidar e silenciar as populações locais.

Jacareacanga é a cidade que vivencia um conflito muito grande em decorrência do garimpo ilegal, principalmente nas terras tradicionais, o que têm gerado muito medo. “A gente aqui está acostumada com uma outra forma de viver e de lidar com a terra. Quando esses garimpos acabam entrando nos nossos territórios, a gente percebe o quanto eles são cruéis. A gente perde a nossa cultura, a gente perde o nosso bem-viver e a forma como a gente vê o mundo. Então, é uma destruição não só da terra, do meio ambiente, mas também é uma destruição de uma população, de uma comunidade que até então estava vivendo muito bem, em coletivo. Agora a gente só vê destruição pra tudo quanto é lado. As crianças não têm mais a liberdade brincar, de andar por aí livremente. Agora têm que se preocupar com as escavadeiras e com essas pessoas entrando em nosso território”, afirma Jéssica da Silva, moradora de Jacareacanga.

O professor Doutor em Antropologia, Rogério do Pateo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que, quando um garimpo é aberto, rapidamente forma-se um povoado, e, nesses locais, os índices de violência costumam ser superelevados. A violação das mulheres indígenas é outro problema sério, que vem acompanhado da disseminação de doenças sexualmente transmissíveis. “Há um processo de cooptar jovens para trabalhar no garimpo. Há abuso sexual, prostituição, alcoolismo, vários tipos de violência, e inclusive a distribuição de armas de fogo nas aldeias, o que acaba tendo um impacto nas relações entre elas", afirma Pateo.

Ainda segundo ele, o alcoolismo também é um problema muito sério que atinge os indígenas, ameaçando uma das bases fundamentais de suas vidas, a família. A formação de pequenos povoados nas áreas de garimpo nos territórios indígenas agrava ainda mais esse problema, pois a comercialização de álcool se intensifica nos arredores das aldeias.

O recrutamento de indígenas para trabalhar nos garimpos também resulta em problemas sérios de saúde. Ainda que, atualmente, as máquinas e instrumentos de garimpagem sejam mais desenvolvidas com o intuito de aumentar a produção, a extração de ouro continua sendo uma atividade que demanda muita força física. Geralmente os indígenas, que são recrutados pelos garimpeiros, desempenham atividades insalubres e, por conta disso, acabam desenvolvendo sequelas para o resto de suas vidas, chegando até à invalidez. Boa parte dessa força de trabalho indígena recrutada pelo garimpo volta para as aldeias, mas não consegue mais realizar as atividades fundamentais para manutenção dos seus modos de vida, como pescar, caçar e plantar.

A antropóloga Luísa Molina, que estuda os impactos da degradação socioambiental causada pelo garimpo no Tapajós, aponta ainda que o desmatamento aumentou muito na região do Alto Tapajós. “A terra indígena dos Munduruku esteve no ano passado [2020] entre as áreas mais desmatadas do país. E sabemos que lá no alto do Tapajós não tem outra atividade expressiva que possa ter provocado um desmatamento como esse a não ser o garimpo ilegal dentro dos territórios tradicionais”, ressalta.

Ao causar desmatamento, o garimpo também contribui para o aumento do número de casos de Malária, pois as piscinas de lama nas áreas de extração de ouro viram locais de reprodução do mosquito Anopheles, vetor do parasita Plasmodium, causador da Malária. Segundo dados do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, o número de casos de malária nas aldeias Munduruku aumentou mais de cinco vezes de 2018 para 2020, o que resultou em mais mortes de indígenas.

Você sabia?
Historicamente, os Munduruku são conhecidos por serem um povo guerreiro, sua cultura sempre teve forte influência em toda a Bacia do Tapajós. Atualmente vivem, na sua maioria, na porção alta da bacia, área conhecida como Mundurukânia, mas há aldeias em outras regiões próximas.

Os primeiros contatos dos Munduruku com não indígenas datam ainda no século XVIII, foi a partir desse período que as guerras deixaram de ser contra as aldeias inimigas e passaram a ser contra um inimigo mais perigoso, o homem branco colonizador, que veio para roubar as riquezas dos povos originários. Após muitos conflitos e resistência do povo Munduruku, houve um “acordo de paz” entre os exploradores e os indígenas, que passaram a viver nos aldeamentos missionários e passaram a coletar as “drogas do sertão”.

Com o Ciclo da Borracha ocorreu uma nova invasão à Amazônia, a procura pelo látex resultou em muitas invasões aos territórios indígenas, levando a deslocamentos forçados das populações indígenas.

O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib aponta que “na História [brasileira], muitos povos foram dizimados pela livre circulação de doenças, como na época da invasão portuguesa ou durante a ditadura militar, em que muitas doenças foram usadas como armas biológicas para exterminar povos.”

O momento é urgente, acabar com o garimpo ilegal é uma questão de sobrevivência para as populações indígenas, cada vez mais ameaçadas. Por isso, junto a outros coletivos, lançamos a campanha Chagas do Garimpo, com o objetivo de engajar novas audiências contra o garimpo ilegal em Terras Indígenas e incidir no debate público. Seja um aliado dessa luta, inscreva-se em: https://chagasdogarimpo.com.br/ para receber mais informações sobre como agir.


BBC Brasil: 'Tecnologia permite destruir Amazônia mais rápido do que fizemos com a Mata Atlântica'

Só 3% da madeira derrubada na Mata Atlântica para dar lugar a fazendas foi aproveitada; em geral, matas eram incendiadas e transformadas em pastos para prepará-las para a agricultura, assim como hoje ocorre na Amazônia

Por João Fellet, Da BBC News Brasil em São Paulo

Em 2005, então recém-formado na faculdade de Biologia da USP, o botânico Ricardo Cardim teve a ideia de percorrer áreas desflorestadas da Mata Atlântica atrás de árvores gigantes que haviam sobrevivido isoladas no meio de plantações e pastagens.

A pesquisa ganhou corpo ao longo dos últimos 13 anos e se transformou numa das maiores investigações sobre a história da destruição de uma das regiões mais biodiversas do planeta.

Em "Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios" (ed. Olhares), livro lançado em novembro, Cardim documenta a vertiginosa expansão econômica sobre o bioma, que, em pouco mais de um século, o fez perder 90% de sua vegetação original e dividiu as áreas sobreviventes em 245 mil fragmentos.

Ao lado do fotógrafo Cássio Vasconcellos e do botânico Luciano Zandoná, Cardim também elaborou um inventário de tesouros que resistiram às derrubadas - entre os quais exemplares centenários de figueiras, perobas e paus-brasil, retratados em expedições por seis Estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste.

A árvore mais alta identificada, numa antiga fazenda de cacau em Camacã (BA), foi um jequitibá com 58 metros de altura e tronco com 13,6 metros de circunferência - dimensões extraordinárias, mas aquém das árvores gigantes do bioma no passado, como um jequitibá na região de Campinas (SP) cujo caule alcançava 19,5 metros de circunferência no início do século 20.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cardim diz que as condições que permitiram o desenvolvimento das árvores gigantes da Mata Atlântica não existem mais. Compartimentadas e cercadas por lavouras, muitas áreas de floresta sobreviventes se despovoaram de animais - essenciais para a renovação das plantas - e sofrem com a invasão de espécies exóticas e alterações climáticas.

Ele diz acreditar, porém, que as próximas gerações conseguirão reconectar os fragmentos da floresta e trazer os bichos de volta, garantindo a sobrevivência do bioma, ainda que sem a mesma riqueza original.

Cardim não nutre o mesmo otimismo em relação à Amazônia - que, segundo ele, vive hoje, passo a passo, o mesmo roteiro da destruição da Mata Atlântica. Segundo o botânico, enquanto o desflorestamento da Mata Atlântica parece ter sido contido, a Amazônia sofre com a ação "de um arco de aventureiros que são incontroláveis" e fragmentarão o bioma antes que a sociedade se conscientize sobre sua importância. "Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo".

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - O livro mostra que, ao contrário do que muitos pensam, a destruição da Mata Atlântica foi um processo bem recente. Como o bioma foi aniquilado tão rapidamente?
Ricardo Cardim - Até 1890, o que estava mexido no Brasil era um pedacinho de Pernambuco, por causa do ciclo do açúcar no século 17, e do Rio de Janeiro, por causa das fazendas de café. O resto era mata fechada, com índios dentro.

Parece incrível, mas a destruição da Mata Atlântica se deu mesmo no século 20. A grande cobiça era pelos húmus que fertilizaram o solo da Mata Atlântica ao longo de milênios. A madeira era muito mais um empecilho do que um benefício. Só no final do processo, quando já tínhamos muito caminhão e transporte facilitado pelas ferrovias, que a madeira começou a ser aproveitada. Mesmo assim, o índice de aproveitamento da madeira foi de cerca de 3% de tudo o que foi derrubado.

A ordem era "limpa logo para a gente começar a colher o ouro verde", que era o café. Fizemos como aquele cara que herda uma fortuna e na mesma noite vai gastar tudo em farra, e acorda pobre. Demoramos milhares de anos para formar aquele solo, criar aquelas condições perfeitas, e em cinco ou dez anos, aquilo não existia mais. Os solos que a gente cultiva hoje só são cultiváveis por causa da tecnologia, porque já foram exauridos.

BBC News Brasil - Você destaca no livro a destruição das matas de araucárias, na porção sul da Mata Atlântica. O que houve de peculiar nesse processo?
Cardim - A velocidade com que ocorreu. Essa é uma floresta que passa do século 19 ao 20 praticamente intacta. Brincava-se que era possível atravessar os Estados do Paraná e de Santa Catarina nos galhos das araucárias, de tão grudadinhas que elas estavam.

Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil importava madeira - o que era surreal para um país que estava destruindo florestas adoidado para plantar café. Mas, quando a Primeira Guerra impede esse comércio, o mercado começa a lembrar a araucária - um pinheiro maravilhoso, muito fácil de cortar. Começa um saque da floresta voltado para a madeira como se nunca viu.

A araucária vira uma grande divisa. Todo mundo que quer ficar rico vai para a floresta de araucária montar sua serrraria. Isso chega no auge nos anos 1950 e 1960. Cortavam tanta madeira que boa parte dela apodrecia antes de ser escoada para o mercado. Nos anos 1970, a floresta acabou. Houve uma quebradeira geral nas serrarias. Famílias que eram riquíssimas ficaram pobres.

A araucária simplesmente acabou. O que temos hoje são araucárias rebrotando, pequenas. O que sobrou hoje é uma sombra.

BBC News Brasil - O quão virgem era a Mata Atlântica antes de 1500?
Cardim - (O antropólogo) Darcy Ribeiro falava que havia entre 4 e 6 milhões de índios vivendo aqui no território. Acho possível, mas não acho que o impacto deles na floresta foi tão grande quanto o historiador americano Warren Dean falou em "A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira" (1996). Ele diz que não existia floresta intocada, porque os índios já tinham cortado aquilo pelo menos uma vez em um milênio.

Eu acredito que os índios tinham capacidade de alterar o meio, mas com ferramentas muito primitivas - machados de pedra, fogo -, e também tinham populações muito pulverizadas. As coivaras que eles faziam para queimar e plantar roças não eram suficientes para gerar uma extensa derrubada. Acho que os índios deixavam as árvores grandes no meio da coivara e plantavam embaixo delas. E não acho que tenham conseguido trabalhar todo o território a ponto de alterá-lo.

BBC News Brasil - Qual o cenário hoje para as árvores gigantes remanescentes da Mata Atlântica?
Cardim - É terrivelmente ameaçado. A Mata Atlântica virou uma colcha de retalhos. Sobrou um décimo do que ela era, e ainda por cima esse décimo é formado por vegetação secundária - por florestas que já foram queimadas, exploradas, derrubadas - e dividido em 245 mil fragmentos de diferentes tamanhos. As árvores gigantes que sobraram nesses pedacinhos, especialmente nos menores, estão superameaçadas.

O clima local altera quando se derrubam florestas - basta lembrar que São Paulo era a terra da garoa, e hoje não temos mais garoa porque sumiu o verde dentro e no entorno da cidade. Os ventos, alterações ecológicas como a infestação de cipós, uma série de desequilíbrios ecológicos causados pela invasão do homem na floresta estão colocando em risco as poucas árvores gigantes que sobreviveram no bioma - tanto dentro da floresta quanto aquelas que estão isoladas em pastos, plantações, meios urbanos.

Nossa geração talvez seja uma das últimas a conseguir enxergar essas árvores gigantes, porque elas estão desaparecendo. E acho difícil que novas árvores desse porte surjam se a gente não reconectar os fragmentos de floresta.

BBC News Brasil - É viável reconectar esses fragmentos, considerando as forças econômicas e políticas atuais? As paisagens na região parecem estar muito consolidadas.
Cardim - Nasci em 1978 e cresci numa casa que tinha telefone de disco, uma TV com bombril espetado em cima e meu pai assinando jornal. O mundo mudou muito, e não só em tecnologia, em visão do planeta, sociedade. As crianças estão vindo com outro olhar sobre a natureza. Tenho muita fé de que elas vão causar uma revolução, e a tecnologia vai resolver muitos problemas, produzindo muito alimento sem precisar de grandes territórios. Vai chegar o momento em que vamos conseguir ter a harmonia entre o conforto moderno e o modo de produção econômico, e conseguiremos restabelecer parte do território natural.

Em 2100, teremos a Mata Atlântica reconectada, sobrevivendo, em harmonia com as cidades e as atividades agrícolas. Sou otimista.

BBC News Brasil - A Mata Atlântica será capaz de se regenerar sozinha?
Cardim - Se o ser humano desaparecesse da Terra neste instante, a Mata Atlântica iria recompor todo seu espaço. O que a atrapalharia são as plantas invasoras. Trouxemos muitas plantas estrangeiras. Quando você traz algo de fora, isso pode prejudicar enormemente quem já estava aqui antes. Vemos isso no parque Trianon (em São Paulo) e na Floresta da Tijuca (no Rio de Janeiro).

A floresta abandonada, sem ser manejada, iria virar um híbrido de Mata Atlântica com Pinus elliotti (pinheiro nativo da América do Norte), com palmeira seafortia (espécie australiana), com jaqueiras (oriundas da Ásia), e isso poderia comprometer grande parte da bidiversidade até chegar num ponto de equilibrio. Teríamos uma floresta mais pobre do que aquela que os portugueses encontraram em 1500.

BBC News Brasil - O geógrafo Altair Sales costuma dizer que os trechos remanescentes de Cerrado são como fotografias do passado, porque muitas das interações entre insetos, plantas e animais que permitiram o desenvolvimento daquelas paisagens deixaram de existir à medida que o bioma foi sendo degradado - e que no futuro aquelas paisagens desaparecerão. Isso se aplica à Mata Atlântica?
Cardim - Sim. Temos hoje na Mata Atlântica florestas que são relíquias, restos de uma era quando tínhamos macacos muriquis andando de galho em galho do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, quando tínhamos antas, varas de queixadas e catetus, onças em todos os lugares.

Os bichos são fundamentais para plantar e polinizar a floresta. Nos anos 1930, o homem chegou à mata metralhando os bichos, caçava tudo o que via por ali. A vegetação tropical é intimamente ligada a seus bichos, uma evoluiu com o outro, com complexas interações que a gente nem imagina ainda.

Na Mata Atlântica, temos hoje a figura da floresta vazia, da floresta zumbi, como a do Parque Trianon, que não tem como se renovar. Para que a semente de um jatobá germine, ela tem de ter a dormência quebrada pelo intestino da anta. Sem anta, isso não acontece mais, a semente cai no chão e não germina. Os mecanismos estão profundamente comprometidos tanto no Cerrado quanto na Mata Atlântica.

Por isso, quando formos investir para reconectar os fragmentos, precisamos procriar os bichos para que eles possam voltar a transitar e reabilitar a floresta.

BBC News Brasil - Em vez de homogênea, a Mata Atlântica é descrita no livro como um bioma com múltiplas faces. O quão diversa é a formação?
Cardim - As pessoas tendem a pensar que a Mata Atlântica é aquele tapetão de floresta, como na Serra do Mar. Pensam que só ocorre no litoral, sem saber que ela vai até o Paraguai. Ela era realmente extensa. Outra coisa interessante é a diversidade de paisagens.

Na Mata Atlântica, podemos encontrar desde a restinga arenosa, um areial com ilhas de bromélias, cactos, pequenos arbustos, pitangueiras, verdadeiros jardins prontos - não é à toa que Burle Marx se inspirava nessas paisagens -, a campos de altitude, como em Itatiaia, ou na Serra dos Órgãos, que são campos com plantinhas no topo, até florestas monstruosas como as que existiram no norte do Paraná e no sul da Bahia.

Ela tem maior biodiverisade, comparativamente, do que a Amazônia, porque ela concentra diversas paisagens e espécies num território relativamente pequeno, graças à proximidade do oceano em alguns pontos e do relevo, que é bastante movimentado e cria diferentes condições para a vegetação.

BBC News Brasil - Já tivemos perdas irreparáveis de espécies de árvores gigantes na Mata Atlântica?
Cardim - Suspeito que sim. Por exemplo, a peroba-rosa encobria centenas de quilômetros de florestas. Ela foi tão cortada, sobrou tão pouco, que nos faz questionar o quanto sofreu de ersoão genética a ponto de se tornar viável. Uma doença talvez seja capaz de matar todas as restantes. São os últimos moicanos. Tenho a sensação de que muitas árvores da Mata Atlântica são os últimos moicanos.

Nas expedições que fiz durante a produção do livro, tinha o objetivo de ver a floresta original, mas acho que não consegui. A grande verdade é essa. Eu vi florestas que podem ter sido próximas daquilo, mas fiquei com a sensação de que não existe mais a floresta original, que meu tataravô possa ter visto quando estavam abrindo as fazendas.

BBC News Brasil - Quando se critica o desmatamento no Brasil, alguns representantes do agronegócio costumam citar a destruição das florestas na Europa e reivindicar o direito de fazer o mesmo por aqui. Como seria nossa sociedade se a Mata Atlântica não tivesse sido destruída?
Cardim - Esse argumento é tão hediondo como falar que, já que houve o Holocausto na Alemanha, podemos fazer um aqui também. A Europa hoje está preocupadíssima em restabelecer suas florestas e nunca mais vai restabelecer do jeito que era, porque as matas lá vêm sendo derrubadas desde a época romana.

Se tivéssemos encontrado outros meios de produzir riqueza, através da educação, da tecnologia, teríamos agora um patrimônio maravilhoso. Não sou contra a exploração de madeira. Sem a madeira, não teríamos orquestras, por exemplo. Eu adoro móveis de madeira nobre. Mas, se tivéssemos explorado de forma sustentável, poderíamos ter móveis de jacarandá pelo resto da vida.

Teríamos um potencial gastronômico inacreditavelmente grande, como alguns já começaram a perceber, como (o chef) Alex Atala. Teríamos muito potencial no ramo da biotecnologia, de medicamentos. E também de turismo, pois é impossível ficar indiferente diante dessas árvores gigantes. É como alguém diante da pirâmide de Queóps.

BBC News Brasil - O processo de destruição da Mata Atlântica é comparável ao que hoje enfrenta a Amazônia?
Cardim - A grande sacada desse livro é mostrar que fizemos uma coisa na Mata Atlântica nos últimos 100 ou 150 anos que é exatamente igual ao que estamos fazendo hoje na Amazônia. O que muda é a proporção, por causa da extensão da Amazônia e a tecnologia. Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo.

BBC News Brasil - Quais foram as etapas da destruição da Mata Atlântica que agora se repetem na Amazônia?
Cardim - Primeiro, criar uma motivação econômica para um acesso à floresta. Na época (dos presidentes) Costa e Silva e Médici, nos anos 1970, começa a surgir a ideia da terra sem homens da Amazônia para o homem sem terras do Nordeste. Esse caminho para o interior da Amazônia, que começa com a rodovia Transamazônica, tem como paralelo a entrada das ferrovias no seio da Mata Atlântica por causa do café. A ferrovia entrava e rasgava a Mata Atlântica - vem o eixo de penetração, saem estradas vicinais para saquear a floresta e aproveitar a terra.

É o que está ocorrendo hoje na Amazônia: primeiro vem o cara saquear madeira, depois se faz a queimada para aproveitar o solo, o fogo fertiliza aquela terra e planta-se capim para que o gado pisoteie os entulhos da floresta. Com dois ou três anos, aquela floresta desaparece e vira carbono, e aí entra a soja. No nosso caso, era o café que entrava. Temos registros em Campinas (SP), em 1840, da presença do gado entre ruínas de árvores colossais da Mata Atlântica. Era um modo de domar a terra para o café.

BBC News Brasil - Seremos capazes de frear o desmatamento na Amazônia?
Cardim - Sou otimista quanto à Mata Atlântica, mas não quanto à Amazônia. Acho que não vai dar tempo. A Amazônia vai ser fragmentada antes que as gerações futuras consigam entender a importância dela.

Existe lá um arco de aventureiros -políticos, grileiros - que são incontroláveis. Eles vão fragmentar a floresta antes que a gente consiga mudar a sociedade.

BBC News Brasil - As tecnologias e a legislação para evitar o desmatamento também não avançaram?
Cardim - Com certeza, mas ainda acho que são fracas perante o que está acontecendo lá. O que houve em Rondônia é emblemático. A floresta do Estado sumiu em dez anos. E hoje a última fronteira é o Estado do Amazonas, porque o Pará já foi muito detonado.

Estão derrubando por mais que coloquemos multas. Tem muita gente lá que não tem nada a perder e vai fazer isso acontecer. Talvez, daqui a 40 anos, alguém faça um livro como este que eu fiz contando como a Amazônia foi destruída.