Monica de Bolle

Pública: “As pessoas não acreditam mais em partido político, mas acreditam na igreja”, diz Monica de Bolle

Diretora de estudos latino-americanos da Johns Hopkins comenta futuro Governo Bolsonaro

Por Ciro Barros, da Agência Pública

Quando o bispo Marcelo Crivella (PRB) foi eleito para a prefeitura do Rio de Janeiro, a economista Monica de Bolle, PhD pela London School of Economics e diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University, passou a sentir uma “coceira”, como ela diz. A eleição de um quadro importante da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) para a prefeitura da segunda cidade mais rica do Brasil lhe pareceu simbólica. “Como a crença nos partidos caiu enormemente, mas a crença nas igrejas não, parece que isso está levando a uma coesão maior da frente parlamentar evangélica, que está se unindo a outros grupos para definir a agenda do futuro Governo Bolsonaro”, argumenta. “Isso talvez seja a história da implosão dos partidos políticos relacionados à corrupção. No Brasil, isso deu espaço para ser ocupado por um grupo que almejava um espaço político maior tendo em vista a eleição do Crivella no Rio de Janeiro, em 2016. Agora esses grupos veem esse espaço aberto porque as pessoas não acreditam mais em partido político mesmo. Elas vão acreditar no quê? Elas vão acreditar na igreja.”

P. O que é a religious right e quais as comparações possíveis com a Frente Parlamentar Evangélica?
R. Os paralelos são muito claros. A religious right, aqui nos Estados Unidos, é uma certa fauna diversa, como são os movimentos evangélicos no Brasil, mas tem um elemento de fundamentalismo cristão que une esses políticos que estão todos dentro do Partido Republicano. Essa religious right aqui consiste basicamente nesses “born again christians” [cristãos renascidos], que são os neopentecostais. Não são os protestantes tradicionais, como os luteranos ou batistas, mas os cristãos fundamentalistas. Eles estão no Partido Republicano há muito tempo, é o pessoal que tem a pauta dos costumes, adeptos do chamado movimento pró-vida e de movimentos contrários às pautas identitárias — movimentos anti-LGBT, antiminorias. O que é curioso é que o que está despontando na bancada evangélica e no futuro Governo Bolsonaro é muito semelhante com esse grupo de pessoas dos Estados Unidos. É o mesmo tipo de gente com o mesmo tipo de visão, muito calcada nos costumes, nos valores, a partir de um fundamentalismo religioso, mas com um componente ideológico adicional que aqui não existe, que é a história do marxismo cultural. Tudo é marxismo cultural agora no Brasil — as pessoas não sabem o que é marxismo, mas tudo é marxismo cultural. O próprio novo chanceler brasileiro [Ernesto Araújo, nomeado por Bolsonaro para encabeçar o Ministério das Relações Exteriores] é alguém que cita a globalização como anti-humana e anticristã [Araújo opõe-se ao que chama de “globalismo”, que, em suas palavras, é “a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”].

O que me chamou muita atenção foi o manifesto que a bancada evangélica produziu no dia 24 de outubro, que é um plano de governo e, se o Bolsonaro tivesse tido a preocupação em preparar um plano de governo, é mais ou menos o que ele teria preparado — o documento vai muito na linha do que ele tem anunciado e feito já —, mas com esse componente de fundamentalismo cristão e ideologia religiosa claros porque no fim do documento tem toda aquela parte de Escola sem Partido e marxismo cultural. O que também chama atenção é que, pela primeira vez, eu vi a bancada evangélica apresentar uma proposta mais ampla: falam de reforma do Estado, falam de reformas econômicas. Isso me levou a comparar os dados do resultado do segundo turno em 2018 com os do segundo turno em 2014 e olhar, por exemplo, em nível municipal, como foram as votações do Bolsonaro e do Aécio Neves nos municípios em relação à proporção de autodeclarados evangélicos nesses municípios. Claramente os municípios com maior número de evangélicos são exatamente os municípios onde o voto no Bolsonaro foi acima de 60%, e isso não foi verdade em 2014 — nem para Dilma nem para Aécio. Com as indicações de ministros, com a história de Ministério da Família, que agora vai se chamar outra coisa, esse sujeito que vai ocupar o MRE com as coisas que disse, dá uma sensação de que tem um movimento orquestrado por trás de uma religious right meio parecido com o que tem aqui nos Estados Unidos, que almeja poderes maiores do que almejavam anteriormente e até maiores do que os daqui almejam, porque os daqui [dos EUA] estão basicamente no Congresso e têm outro tipo de pretensão. No Brasil, parece ser uma disposição para ocupar os espaços executivos. Isso já vem me chamando atenção desde a eleição do Marcelo Crivella [PRB] no Rio.

"O que está despontando na bancada evangélica e no futuro Governo Bolsonaro é muito semelhante com esse grupo de pessoas dos Estados Unidos"

P. Você diz que nos Estados Unidos a articulação da direita religiosa se deu dentro da estrutura partidária, no caso o Partido Republicano, ao contrário do caso brasileiro, onde essa articulação se dá por fora dos partidos. Por onde passa a articulação dessa direita religiosa brasileira?
R. Você tem 23 partidos, mais ou menos, que compõem a bancada evangélica, sendo que alguns têm mais presença do que outros. O PRB, por exemplo, tem um monte de deputados na bancada, o que não surpreende sendo o partido da Igreja Universal. Fora o PRB, tem o PR, o PP e o próprio MDB. Talvez seja um pouco cedo para afirmar isso, mas pela cara desse manifesto, pelo encaminhamento dessa transição de governo, [pelas] pessoas que o Bolsonaro já falou, que está indicando para cargos-chave, parece haver uma união dessa bancada evangélica, que talvez hoje esteja bem mais coesa do que já foi. Como houve uma diluição dos partidos no Brasil e como a crença nos partidos caiu enormemente, mas a crença nas igrejas não, por serem instituições em que ao menos boa parte da população vê que não há corrupção e que determinados valores estão mantidos, parece que isso está levando a uma coesão maior da Frente Parlamentar Evangélica, que está se unindo a outros grupos para definir a agenda do futuro governo Bolsonaro. E ele, por sua vez, acho que está muito confortável com isso porque muda o chamado jogo político no Brasil. O que a gente entendia como o chamado presidencialismo de coalizão é que o presidente, minoritário, tinha sempre o desafio de construir uma coalizão estável e, em um sistema muito fragmentado como é o sistema partidário brasileiro, isso era sempre muito complicado. Mas, se você de repente transforma isso num grupo de bancadas onde as legendas são só legendas e as pessoas que pertencem a determinadas legendas não estão necessariamente interessadas nas agendas dos seus partidos — até porque seus partidos não têm propriamente uma agenda —, mas na agenda da bancada, você passa de um regime onde a coalizão era construída nos partidos para um regime em que a coalizão é construída com o apoio da bancada. E a bancada evangélica é enorme: são 199 deputados na Câmara mais quatro parlamentares no Senado e com uma intercessão esquisita aí com a bancada ruralista. Essa costura com os evangélicos pode garantir de fato uma governabilidade que a gente não estava enxergando.

P. No manifesto da FPE, nota-se entre as pautas econômicas propostas de cunho liberal como, por exemplo, o enxugamento e modernização do Estado. No entanto, muitas dessas grandes lideranças evangélicas estavam no palanque da Dilma em 2014, quando a presidente vinha de um governo que adotou outra prática econômica e não acenava para essas pautas na campanha. Por que essa adesão a esse receituário liberal?
R. Eu acho que esse não é o ponto principal para eles. A agenda liberal na economia é meio que irrelevante para eles. Eles não estão preocupados com isso, se é liberal ou se não é liberal. A preocupação maior é: número um, ocupar espaços políticos — e eu acho que agora eles estão vendo um espaço enorme para isso, dada a diluição dos partidos —, essa é a primeira preocupação, então temos que entendê-los como a gente entende qualquer político; e, número dois, empurrar essa agenda de costumes à frente, fazer com que essa agenda seja implantada, coisa que eles nunca iam conseguir nos governos petistas, mas estar junto dos governos petistas atendia ao primeiro anseio, que era estar perto do poder para ganhar plataforma política. Isso eles conseguiram. Agora eles têm a chance de colocar em prática a agenda que de fato interessa para eles e que não tem nada a ver com a economia.

P. As lideranças evangélicas podem assumir o papel que antes pertencia tradicionalmente ao MDB, de ser uma espécie de “fiador” da governabilidade, a partir da capilaridade das igrejas?
R. Acho que sim. E acho que esse papel passa por duas coisas. A primeira é que muitas pessoas depositam confiança nas igrejas, dado que o número de evangélicos no Brasil cresceu muito nos últimos anos, e a segunda coisa é justamente pela capilaridade. As igrejas substituíram o MDB em termos de capilaridade. O que era o MDB antes, que ocupava os espaços regionais, essas igrejas têm um espaço muito, mas muito maior. A capilaridade fica em nível granular, desce para o bairro. Ela não fica só na prefeitura. Existe um potencial de substituição dessa capilaridade. Partindo do pressuposto de que eles estejam organizados dessa forma, porque como é uma fauna essa coisa dos evangélicos — você tem todo tipo de igreja, instituição e movimento religioso que a gente coloca nessa classificação de “evangélicos” —, mas supondo que eles estejam de fato atuando dessa forma coesa e estejam decidindo atuar apoiando uns aos outros, o projeto de hegemonia em termos de poder para eles tem um potencial de ser muito mais hegemônico do que qualquer projeto do MDB ou do PT. Porque é religião mesmo, não é outra coisa.

P. Esse projeto de hegemonia vai dar aonde? Vai parar nessas pautas morais como o Escola sem Partido?
R. Acho que não, acho que vai mais longe. Isso é que talvez seja a história da implosão dos partidos políticos relacionados à corrupção. Essa implosão, quando aconteceu na Itália, por exemplo, deu espaço para várias outras esquisitices na política, mas nenhuma delas foram esquisitices religiosas: apareceram outros partidos, apareceu o Berlusconi. Hoje em dia a Itália continua marcada pelos populismos diversos, é uma bagunça só. No Brasil, o que isso deu foi um espaço maior para ser ocupado por um grupo que já almejava ocupar um espaço político maior tendo em vista, por exemplo, a eleição do Crivella no Rio de Janeiro em 2016, que é bem sintomático desse processo. E agora esses grupos veem esse espaço aberto porque as pessoas não acreditam mais em partido político mesmo. Elas vão acreditar no quê? Elas vão acreditar na igreja.

P. Outro componente desse governo Bolsonaro, que você deve estar vendo há mais tempo aí nos Estados Unidos com o Trump, que é esse “governo online”. Há um governo que se comunica diretamente com o seu eleitorado mais fiel — e inflamado — por meio das redes sociais. Isso não dificulta a moderação do discurso de Bolsonaro, sobretudo nessas pautas morais?
R. Demais. Acredito nisso piamente. Esse meio de comunicação direta por meio de Twitter, WhatsApp, Facebook, seja lá o que for, dificulta, sim, a moderação. Quando o Trump se elegeu aqui, havia essa ideia de que “ah, mas a presidência é algo que tende a moderar o discurso, porque os presidentes enfrentam todo o peso da instituição da presidência, os contrapesos do Congresso, isso tende a modular o discurso e tudo mais”. Não foi absolutamente isso que a gente viu com o Trump, muito pelo contrário. Não mudou nada. Ele está pior do que estava quando entrou. Parte da razão para isso é exatamente esse canal direto de comunicação com a base nas redes sociais, que é onde o povo está preparado para reagir da forma mais instintiva possível. As pessoas não pensam, não tem um espaço reflexivo nas redes sociais, é totalmente reativo. Chega lá o presidente eleito e coloca um tweet meio inflamatório sobre uma determinada coisa, digamos, chamando o globalismo de marxismo cultural. Aí vem a turba inteira achando aquilo absolutamente correto, e "é isso mesmo, tem que acabar com o marxismo cultural". Começa aquela bagunça e aquele discurso que acaba validando o discurso político do presidente eleito. E ele se sente, portanto, com capital político para continuar fazendo aquilo. É uma maneira um tanto diferente de as coisas operarem no sistema político do que no passado. Sob esse ponto de vista, não vejo qualquer espaço para que discursos sejam moderados. Acho que eles tendem ou a ficar iguais, ou até a ficar um pouco mais radicais por conta dos temas que são levantados, sobretudo nessa pauta de costumes, que é algo que gera naturalmente esse tipo de reação. São coisas muito controvertidas.

P. Talvez a pauta dos costumes seja o que tenha feito com que tanta gente se arregimentasse em torno do discurso do Bolsonaro. Se Bolsonaro, durante a campanha, anunciasse pautas mais técnicas — como a reforma da Previdência ou o ajuste fiscal, por exemplo —, talvez não tocasse tanta gente. Até onde vai essa crença de que o problema do Brasil são essas questões morais, naturalmente subjetivas, quando estamos diante de problemas objetivos mais graves, como as contas públicas, por exemplo?
R. Se ficar só nisso, se o governo Bolsonaro não fizer as reformas que precisa fazer para que a economia volte a reagir, o desemprego continuar alto e as pessoas começarem a ver que os problemas permanecem os mesmos, a chance de que as pessoas se desiludam com esse discurso todo é enorme. O Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, não tem solidez econômica nenhuma no momento. É bem possível, dado que existe hoje no Brasil uma vontade de vários segmentos e de vários lados de que o Bolsonaro dê certo simplesmente para acabar com o PT de vez — é um pouco essa a cabeça das pessoas atualmente no Brasil —, acho que vai haver um pouco de boa vontade em relação à paciência que segmentos de diferentes sociedades vão ter diante das reformas, e acho que a paciência vai se estender também para a qualidade das reformas. Então, por exemplo, se o Bolsonaro acabar fazendo uma reforma da Previdência que não resolva o problema da Previdência, mas que ele possa dizer que ele fez, mais ou menos como o Trump fez aqui em relação a algumas pautas, acho que vai ser o suficiente para os investidores e empresários que estão nesse mesmo barco de apoiar qualquer coisa para não ter o PT de volta. Vão apoiar, vão dar suporte, o que pode fazer com que a economia até melhore um pouco. Acho que não tem muito potencial de melhora muito grande, não, mas pode melhorar o suficiente para gerar o sentimento de que “ah, até que as coisas não estão mal assim”. O perigo maior que eu vejo é: a agenda que está colocada realmente é uma agenda super-retrógrada de costumes. Foi nisso que as pessoas acabaram votando. Concordo com essa visão. Ela resolve a situação do país? Não. Porém, como tem muita gente querendo que esse governo dê certo simplesmente para não ter a volta do PT ou algo parecido, é possível que o Bolsonaro tenha espaço para fazer algumas reformas, ainda que meio ruinzinhas, o que vai fazer com que todo mundo ache que era isso mesmo, estava tudo certo. E isso gera uma certa perpetuação de poder, né? E tem um clã para se perpetuar ali no poder, tem a família toda.

P. Algumas pessoas, como o professor Pablo Ortellado (EACH-USP), por exemplo, fazem outro paralelo com os Estados Unidos. Ele cita o livro Culture wars: the struggle to define America (Guerras culturais: a batalha para definir a América, numa tradução livre), do sociólogo americano James Hunter. Nele, Hunter afirma que houve uma articulação dos setores religiosos dos Estados Unidos quando alguns movimentos sociais passaram a pautar as relações interpessoais. Por exemplo, quando o movimento feminista, após conquistar direitos civis para a classe das mulheres, como o voto, passou a enfatizar também o machismo do dia a dia, nas famílias, nas empresas, nas ruas etc. Segundo Hunter, houve reação conservadora a esse fenômeno articulada pelos segmentos religiosos católicos, protestantes e judaicos. Você acha que tem paralelos desse fenômeno no Brasil?
R. Tem paralelos, sim. Para nós, brasileiros, esse fenômeno é muito mais recente, então ficou no ponto cego de muita gente, os nossos analistas e cientistas políticos não pegaram isso. E está ainda no ponto cego. Aqui nos Estados Unidos, as guerras culturais estão conosco há pelo menos uns 30 anos, senão mais. Já é algo que faz parte da política. Com a eleição do Trump, a gente viu uma certa ascensão desse conservadorismo que está muito associado a ele, toda essa pauta anti-imigração, antiminorias, anti-LGBT. As pautas são mais ou menos as mesmas, mas em resposta a isso a gente teve agora, nas eleições de meio de mandato, uma enorme tentativa [de reação] dessa população que se sentiu marginalizada por essa ascensão do conservadorismo. Teve o fato da Câmara ter voltado para as mãos dos democratas, mas não só isso: de os democratas voltarem a ter tanto espaço nos estados, não só nos governos estaduais, mas nas legislaturas. Você vê que o perfil das pessoas que ganharam esses mandatos são pessoas radicalmente opostas a essa pauta ultraconservadora. Então aqui, como as guerras culturais estão aí há muito tempo e a sociedade americana é muito fluida, muda muito, porque tem uma composição muito fluida, você acaba tendo um equilíbrio natural de forças. Um movimento se ergue e naturalmente você tem uma reação. Tem um efeito moderador nesse vai e vem que eu acho que não existe no Brasil. O contrapeso a essa onda conservadora está totalmente desarticulado. Onde esse movimento está? Nos progressistas. Quem são os progressistas? São as pessoas que se autoidentificam como centro-esquerda ou esquerda. Esse lado, no Brasil, está completamente desarticulado hoje.

P. É possível que essa aproximação dos religiosos ou mesmo do ideário conservador com o poder vá além da estrutura governamental, do Executivo, e passe também para as instituições, como o Judiciário, o Ministério Público? Tivemos recentemente uma nota assinada por mais de 200 procuradores se colocando em favor do Escola sem Partido
R. Eu acho que já está muito presente, na verdade. Esse próprio manifesto em prol desse projeto é um exemplo disso.


Monica De Bolle: E coisa e tal

O espantalho da imigração que hoje vive no imaginário de Trump e de seus seguidores simplesmente não existe

“Direita é do mito
Esquerda é propina.
Direita é águia
Esquerda é rapina.”

Mal parafraseando Arnaldo Jabor, estamos assim. Direita é isso, esquerda é aquilo. Mas ao contrário do amor e do sexo, protagonistas da crônica original, não há complementos entre os dois vértices da política, ao menos não no Brasil das distopias que emerge das cinzas das eleições de 2018.

Nas últimas semanas, soubemos que o nazismo é de esquerda, o globalismo é vertente nefasta do marxismo cultural, ideologia é o que há de pior ainda que se confunda com ideias, e que a bela música Imagine de John Lennon é hino em prol da hiperglobalização, e do sonho comunista. Para os que dizem coisas como essas, privatizar é de direita, intervir no funcionamento dos mercados é de esquerda, priorizar o comércio internacional é de direita, combater a desigualdade de renda é de esquerda. Há apenas dois mundinhos: o da direita divina ou o da esquerda pagã. E, a política econômica, necessariamente, deve se enquadrar em algum desses mundinhos porque caso não o faça, não merece qualquer atenção – nem do bem, nem do mal.

Ocorre que, no Brasil, um governo social-democrata privatizou. Vários governos militares, que de esquerda nada tinham, intervieram no funcionamento dos mercados até não mais poder, causando os desarranjos que hoje muitos preferem esquecer. O comércio internacional sempre foi pauta tóxica que nem a direita, nem a esquerda quiseram abraçar. Afinal, o protecionismo sempre reinou absoluto no País tropical, abençoado por Deus, esse País em que dizer que Ele está acima de todos virou mote de campanha e de governo. O globalismo – Deus nos livre – torna o homem escravo e Deus irrelevante, avisam. Só não nos dizem exatamente como.

Tampouco nos iluminam sobre como o Brasil sairá do seu eterno isolamento global sem passar por algum processo que possa não ser identificado como globalização. A imigração é o mal do século, querem que acreditemos. Contudo, há estudo após estudo mostrando que políticas que facilitam a imigração são capazes de aumentar a produtividade e de impulsionar o crescimento. O espantalho da imigração que hoje vive no imaginário de Donald Trump e de seus seguidores simplesmente não existe, menos ainda no Brasil, onde quase não recebemos – mais – imigrantes. Os recebemos aos montes no passado, somos um País de imigrantes. Mas, é fácil esquecer disso na balbúrdia da atualidade.

Quanto às desigualdades e a justiça social, dia desses tive a prova mais certa e amarga de que esses são temas que parte da sociedade brasileira passou a associar ao que acreditam ser a esquerda, os comunistas, os vermelhos. Como sabem alguns leitores, dirijo o programa de estudos latino americanos da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade de Johns Hopkins, a SAIS. Criamos recentemente uma bolsa para alunos sub-representados e/ou interessados em estudar temas relativos à justiça social, à equidade, à representatividade política, à violência e exclusão social na América Latina. A bolsa tem por objetivo prover ajuda financeira para que esses alunos talentosos, porém sem capacidade financeira para custear um mestrado de dois anos numa universidade privada de prestígio internacional, possam fazê-lo. A bolsa leva o nome da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada junto com seu motorista em março desse ano no Rio de Janeiro.

Marielle Franco elegeu-se pelo PSOL. Contudo, as causas que abraçava não eram nem de direita, nem de esquerda. As causas que abraçava eram, antes de tudo, humanitárias. Causas humanitárias pertencem a todos nós, sejamos de direita, ou de esquerda, ou de nada. No entanto, houve reações muito estranhas no Brasil quando do anúncio da bolsa. Muitos viram na iniciativa o seu propósito real. Outros, nem tanto. Outros, mordidos pela mosca da confusão mental generalizada que engoliu a Nação, viram doutrinação, vermelhidão, e esse tal espantalho do marxismo cultural que virou espécie de mantra do transe coletivo.

Bobagens vêm dos outros e vão embora – espera-se. Reflexão vem de nós e demora. Mas, por ora:

“Direita é isso
Esquerda é aquilo
E coisa e tal
E tal e coisa.”


Monica De Bolle: Escafandrista de subsolo

A verdade verdadeira, com tudo que está acontecendo, é que não fazemos a menor ideia do que virá pela frente

“Ano após ano, economistas teóricos produzem montanhas de modelos matemáticos e exploram em grande detalhe suas propriedades formais; econometristas tentam adequar funções algébricas de todos os tipos possíveis essencialmente às mesmas bases de dados sem avançar, de qualquer forma perceptível, a compreensão sistemática da estrutura e da operação de um sistema econômico real.” A observação é de Wassily Leontief, economista russo-americano vencedor do Nobel de Economia em 1973, célebre por seus estudos sobre como determinados setores da economia afetam outros setores, aquilo que muitos conhecem pelo nome técnico de “matriz insumo-produto”. Falecido em 1999, a observação meio niilista de Leontief continua muito atual.

Dia desses estava eu em um seminário aqui em Washington – vai-se a muitos seminários aqui em Washington – e alguém me perguntou o que iria acontecer com o Brasil, mais especificamente com a economia. Respondi com muita simplicidade, sem nenhuma ponta de ironia, “não faço a menor ideia”. Ao que a pessoa, surpresa, retrucou, “nossa, poucas vezes ouvi economista dizer isso”. Tomei como elogio e deixei para lá, mas a verdade é que não faço mesmo a menor ideia de como ficará o Brasil sob o novo regime. Tampouco sei dizer se o novo regime será novo mesmo ou mais do mesmo.

Há quem argumente que a economia está tão mal das pernas, as pessoas tão preparadas para alguma esperança ainda que passageira, que basta que o time de Bolsonaro não erre a mão. Basta que façam uma reforma da Previdência meio amuada, um ajuste fiscal acanhado, que os mercados estarão prontos para reagir com alegria, que o investimento retornará, que o novo governo será capaz de fazer a economia crescer ao menos um tantinho mais do que nos últimos anos, e que isso tudo já terá sido o suficiente para engatar um ciclo. Ciclo meio achacado, mas ciclo de alguma expansão. Segue o raciocínio que isso, em si, já daria ao novo governo ares de credibilidade. Sabem do que mais? É até possível. É até possível que o presidente eleito, mesmo que inexperiente nos ditames do Congresso Nacional, tenha apoio para alguma agenda econômica que caminhe lado a lado com a agenda retrógrada de costumes que anda despontando por aí.

Outra possibilidade é que fiquemos meio a ver navios, perdidos entre as brigas por poder no entorno de Bolsonaro, as desavenças entre membros da equipe econômica e articuladores políticos, as constantes reviravoltas que têm caracterizado o atual processo de transição. Contudo, é justo também dizer que processos de transição podem ser atabalhoados, sem que isso sinalize qualquer coisa sobre a capacidade de organização do governo uma vez instalado. Meu ceticismo impede que acredite fielmente nisso, mas esse é viés pessoal.

Ainda uma terceira possibilidade é que a turma de Paulo Guedes tenha grandes dificuldades para articular uma agenda que não foi discutida durante a campanha e que as reformas, por conseguinte, não saiam do papel, levando a um quadro de turbulência e inflação à vista. Para alguns, esse ainda é o cenário mais provável, mas às vezes me pergunto o seguinte: o País está tão farto da falta de rumo e tão preparado para ver vingar uma alternativa que não seja o PT – isso inclui vários setores da sociedade, do cidadão comum, ao empresário, ao congressista recém-eleito, ao trader sentado na mesa de operações – que quiçá tenha paciência para aguentar alguns desacertos iniciais assim como para aceitar reformas antes tidas como absolutamente impopulares e inviáveis. Sob esse cenário o tanque de Bolsonaro não atola de imediato, quiçá siga em frente até por um tempo mais longo do que o esperado, possivelmente.

A verdade verdadeira é que entre as mudanças políticas que ocorreram nessas eleições com a ascensão das bancadas, sobretudo da frente evangélica, a diluição dos partidos tradicionais com possibilidade de extinção de alguns, e um regime que parece não ter precedentes pois social-democracia de algum tipo é que não é, não fazemos mesmo a menor ideia do que virá pela frente. Portanto, a única imagem que me vem à mente no momento é a de um escafandrista no subsolo escuro, úmido, cavando cenários com as próprias unhas sem ter entendimento sistemático de nada. O inferno não são só os outros. O inferno é a consciência.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Tubarões no formol

No liberalismo verdadeiro não cabe a ultraortodoxia que reza pela primazia dos mercados sobre a sociedade

Para quem está perplexo com o título do artigo, explico: andei assistindo, pela terceira vez, a entrevista de Mario Vargas Llosa concedida ao programa Roda Viva em maio de 2013. Maio de 2013, um mês antes dos protestos que se alastraram pelo Brasil, os protestos que jamais receberam resposta adequada dos políticos. Como outros, vejo na falta de resposta dos partidos brasileiros, sobretudo dos maiores, o início dessa trajetória turbulenta que nos levou à escolha de Sofia de 2018. Por que os tubarões? Porque na entrevista para o Roda Viva, o grande escritor fala sobre a degradação das artes plásticas e utiliza como exemplo a obra de Damien Hirst, artista britânico famoso por várias obras esquisitas, inclusive a do tubarão dissecado, suas partes expostas dentro de imensos tanques de formol.

Dizia então Vargas Llosa que a política estava passando por imenso desprestígio no mundo, e apontava o quanto isso poderia ser perigoso. Falava o escritor sobre a política alijada da literatura, sintoma desse desprestígio, do sentimento de que a política passara a ser algo degradante para as pessoas, a ponto de ser banida das artes, da expressão cultural. O desaparecimento do espírito crítico das artes plásticas capturado pelo tubarão no formol de Hirst seria sinal de tempos sombrios. Enfatizava o autor que consequências atrozes viriam da ausência da cultura e das artes como instrumentos de fiscalização do poder político. “Podemos vir a ter sociedades aparentemente democráticas e livres, que na realidade serão sociedades de zumbis”. Até aí nem se havia falado das redes sociais.

“Na música, nas artes, estamos chegando a um ponto em que já não sabemos do que gostamos e do que não gostamos”, advertira Vargas Llosa. Na política, sua presciência arrepia. Na política brasileira, essa frase expressaria com precisão o caminho que nos levou à terrível polarização do segundo turno. Sem saber direito do que gostávamos ou não, deixamo-nos levar pelos anseios não de gente decente e inteligente na política, mas pela visão de corruptos e tontos.

Há tontos de todos os lados. Gente confusa que usa e abusa do termo fascismo. Gente confusa que vê risco de uma Revolução Comunista no Brasil. Gente nem tão confusa que vê no vácuo ambiente propício para uma escalada ao poder. Teve pouca repercussão na imprensa o manifesto “O Brasil para os Brasileiros”, o programa de governo elaborado pela bancada evangélica do Congresso. Muito bem redigido em várias partes, sobretudo nas propostas econômicas – sim, a bancada evangélica apresenta uma pauta econômica detalhadíssima – o documento é repleto de espantalhos quando se chega ao final. Lá estão os alertas sobre a doutrinação comunista a qual estariam sujeitos nossos jovens e crianças nas escolas.

Para quem não sabe, Vargas Llosa – que chegou a ser candidato a presidente no Peru – é político. Como político, é defensor do capitalismo, rechaça a ditadura venezuelana, tem horror ao chavismo-madurismo. Vargas Llosa é um liberal clássico, um liberal britânico. Há uma distância muito grande entre o liberalismo de raiz e o ideário libertário de botequim que tomou conta do debate brasileiro antes e depois das eleições.

O Brasil não está entrando nos trilhos do liberalismo. O liberalismo verdadeiro exige abertura e diversidade, se molda às necessidades contemporâneas como se moldou ao defender as respostas econômicas à Grande Depressão. Cede espaço aos direitos e às vozes de todos. O liberalismo verdadeiro não dita o que deve ou não fazer um professor em sala de aula, não se intromete nas escolhas individuais, reconhece a existência de desigualdades e prega a necessidade de reduzi-las da forma mais eficiente possível. No liberalismo verdadeiro cabe a social-democracia virtuosa, aquela que bem alinha o tamanho da rede de proteção social à prudência fiscal. No liberalismo verdadeiro não cabe a ultraortodoxia que reza pela primazia dos mercados sobre a sociedade. Essa ultraortodoxia asfixia as mesmas redes de proteção que o liberalismo verdadeiro reconhece como prementes. Ao asfixiá-las, alija da sociedade expressivos segmentos que carecem de representatividade política, tornando-os cidadãos de segunda classe. Não há nada mais antiliberal do que isso.

Não precisamos tirar os tubarões do formol, tampouco lá colocá-los. Precisamos estar atentos a eles para não transformarmos um País já degradado em algo irreconhecível.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Conversa na Igreja Universal

A bancada evangélica, para minha surpresa, defende a abertura comercial sob diretrizes não apenas razoáveis, mas absolutamente recomendáveis.

Conversa na Igreja Universal “Da soleira do La Crónica, Santiago fita a Avenida Tacna sem amor: carros, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos espalhafatosos de pôsteres flutuando na névoa, o meio-dia cinzento. Em que momento havia o Peru se arruinado?” Essa é a abertura de Conversa no Catedral, de Mario Vargas Llosa, um de meus romances políticos prediletos.

Outro de meus romances políticos favoritos é O leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, belíssima crônica da unificação italiana no século XIX. Os atropelos e impasses políticos e a tentativa da aristocracia de manter sua relevância política em meio às grandes mudanças são muito bem resumidos pelo personagem Tancredi na célebre frase: “Para que tudo permaneça igual, é preciso que tudo mude”.

Nas eleições de 2018, houve impressionante renovação no Congresso brasileiro, incluindo a bancada evangélica, que cresceu — agora são 199 deputados e 4 senadores. A Frente Parlamentar evangélica, composta por diversas agremiações, é quatro vezes maior do que as bancadas do PT e do PSL individualmente, embora haja sobreposições. Recentemente, li o manifesto da frente evangélica lançado em 24 de outubro, intitulado O Brasil para os brasileiros — afinal, não apenas essa bancada tem significativa representação na Câmara, como também já havia declarado apoio ao presidente eleito Jair Bolsonaro antes do primeiro turno. O documento está estruturado em quatro eixos: a modernização do Estado, a segurança jurídica, a segurança fiscal e a “revolução na educação”.

Como parte do primeiro eixo, o manifesto defende a redução do número de ministérios para 15. Destacam-se o Ministério da Economia, englobando o Ministério da Fazenda e do Planejamento; o Ministério do Agronegócio, englobando o Ministério da Agricultura e o do Meio Ambiente; e o Ministério da Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, um pot-pourri. Tudo bem alinhavado com o que tem defendido Bolsonaro.

O terceiro eixo, o da segurança fiscal, fala em obter superávits fiscais consecutivos, ao mesmo tempo que propõe a simplificação do sistema tributário, concentrando-o na renda, não no consumo. Diante da calamidade das contas públicas federais e estaduais, defender superávits e simplificações tributárias não são, no momento, objetivos compatíveis. A bancada evangélica defende ainda a independência do Banco Central para proteger a economia de “governos populistas e perdulários”, proposta também defendida por Bolsonaro a despeito de seu superministro da economia ter falado recentemente na gestão do câmbio e das reservas, ações que cabem ao Banco Central.

A Frente Parlamentar também é a favor da reforma da Previdência e do combate aos privilégios, “com a igualdade de regras entre as aposentadorias do setor privado e do setor público”, evidentemente sem destacar quem são os principais beneficiários dos privilégios, como os militares que apoiam Bolsonaro. Se o Brasil realmente tiver como pauta tudo o que ali está, há espaço para uma ampla integração do país aos fluxos de comércio e investimento internacionais.

O quarto eixo, o da “revolução educacional” é, ao meu ver, o mais problemático. O Brasil está entre os piores colocados no exame Pisa, da OCDE, sobretudo em leitura e matemática. Há muito o que fazer para melhorar a educação no país. Contudo, o manifesto se perde em ideias tacanhas, como a de afirmar que “escolas e universidades públicas se tornaram instrumentos ideológicos que preparam os jovens para a Revolução Comunista”.

Lembra a Guerra Fria que contextualizava a Conversa no Catedral, de Vargas Llosa. Fala numa “destruição de valores” que contribuiu para a “violência contra a civilização judaico-cristã”. Quer “libertar a educação pública do autoritarismo da ideologia de gênero”.

Ou seja, pretende-se, a partir desses anseios, usar argumentos que podem facilmente resvalar para a formação de jovens sem pensamento crítico, algo que já está em nítida falta entre a elite intelectual brasileira. Mudar tudo para nada mudar é o risco dessas propostas que integram a ideologia dos que estão no entorno do presidente eleito. O Brasil ficou para lá de complicado desde o último 28 de outubro.


Política Democrática: Prioridade do próximo presidente deve ser agenda fiscal, diz Monica de Bolle

Economista avalia que nem Bolsonaro nem Haddad têm “a menor noção do que fazer com as exigências econômicas do país”

Por Cleomar Almeida

Ajustes de curto prazo nas contas públicas, acompanhados da reforma da previdência, devem ser prioridade do novo presidente. A avaliação é da economista Monica de Bolle, 46 anos, em entrevista exclusiva à revista Política Democrática digital, lançada nesta quarta-feira (24), com conteúdo que pode ser acessado de graça pelos internautas. “Eu acho que a agenda prioritária é a agenda fiscal”, afirma ela. “Não tem outra”, enfatiza.

Monica é a única mulher latino-americana a integrar a equipe do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos, e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University, em Washington. Segundo ela, é preocupante a forma como os mercados e os investidores estão reagindo diante da hipótese de vitória do candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro, no segundo turno, no próximo domingo (28).

Confira aqui a entrevista na versão digital de Política Democrática

De acordo com a economista, a perspectiva de vitória de Bolsonaro carrega, entre alguns setores da sociedade, de forma equivocada, a noção de que tudo no país estará resolvido, como a aprovação da reforma da previdência no congresso e o novo ajuste fiscal. No entanto, acrescenta, não é isso que o candidato vem dizendo.

Se não houver um ajuste fiscal logo no primeiro trimestre ou quadrimestre de governo, conforme avalia Mônica, “o Brasil vai de novo passar por um momento de extrema turbulência”. “E não acho improvável que a gente tenha alguma recessão pela frente em algum momento”, diz a economista, que, na entrevista, também ressalta a urgente necessidade de o país também ter reformas política e tributária.

Na avaliação de Monica, tanto Bolsonaro quanto o candidato do PT à Presidência da República, Fernando Haddad, não sabem o que fazer com as demandas econômicas do Brasil. “É um país que está começando a sair de uma crise extremamente severa, com uma taxa de desemprego nas alturas, que hoje corre o risco de não reduzir essa taxa de desemprego e de até conseguir aumentá-la, porque os dois candidatos que estão aí não têm a menor noção do que fazer com as exigências econômicas do país”, analisa.

 

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Monica De Bolle: O que os perdedores revelam

Os eleitores estão dispostos a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata

Como parte de um ambicioso projeto de pesquisa com colegas do Peterson Institute for International Economics, tenho lido os programas de governo dos principais partidos políticos dos países que compõem o G-20 antes e depois da crise de 2008. Nosso interesse é identificar nas propostas partidárias indícios de políticas e diretrizes com maior conteúdo nacionalista no âmbito da economia, sobretudo no período pós-crise. A análise dessas plataformas acabou revelando mais do que pretendíamos em alguns casos.

As duas maiores economias latino-americanas, Brasil e México, já tiveram ou estão tendo eleições gerais este ano, assim como no período que antecedeu a crise de 2008: esses mesmos países elegeram novos presidentes, congressistas e governadores em 2006. Curioso é que, em 2006, dois candidatos que concorreram à presidência no Brasil e no México também concorreram em 2018. São eles Geraldo Alckmin do PSDB e Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) no México. Como sabemos, AMLO obteve expressiva vitória nas urnas, derrotando o candidato do PRI, partido de centro-direita ao qual pertence o atual presidente. Em 2006, AMLO foi derrotado por Felipe Calderón do também centro-direitista PAN por margem estreitíssima, de manos de 1% dos votos totais.

As plataformas de AMLO em 2006 pelo PRD – partido de centro-esquerda do qual saiu em 2012 para lançar seu atual partido, o MORENA – e de AMLO em 2018 não foram muito distintas: o componente nacionalista está presente nas propostas de uma política industrial com forte presença do Estado, nas políticas comerciais que priorizam a promoção das exportações e a proteção de setores considerados importantes para a criação de empregos, e uma forte crítica às políticas neoliberais que “buscaram a estabilidade dos preços” em detrimento do crescimento e do desenvolvimento.

Nos dois períodos, 2006 e 2018, PAN e PRI pregaram a cartilha do liberalismo econômico sensato, aquele que defende uma política industrial horizontal, beneficiando todos os setores de igual maneira, a abertura comercial respeitando as regras internacionais, a prudência na condução da política macroeconômica sem deixar de lado políticas para a inclusão social. Em 2006, o liberalismo econômico com pitadas social-democratas chegou perto de ser derrotado. Em 2018, foi definitivamente derrotado com o auxílio de uma grande movimentação dos eleitores mexicanos contra a corrupção e em prol da renovação política. A partir de dezembro, o México terá novo governo marcado por claras diretrizes nacional-desenvolvimentistas e com maioria no Congresso.

Interessante é constatar que o PSDB sofreu destino semelhante ao do PRI e do PAN. Contrastando os programas do PSDB e do PT em 2006, tinha o do PT algum conteúdo nacionalista nas propostas de política industrial, embora não fossem muito distintos do programa do PSDB: ambos falavam em “priorizar setores que criam empregos melhores e mais bem remunerados, como a indústria de transformação”. Na área macroeconômica, ambos citavam como prioridade manter a estabilidade dos preços e a sustentabilidade fiscal. Na área comercial, o programa do PT era levemente mais protecionista do que o programa do PSDB. Portanto, é razoável afirmar que no quesito nacionalismo econômico, PT e PSDB tinham pitadas aqui e acolá.

Já em 2018, a diferença é brutal. O programa do PSDB apresentava medidas exatamente no ponto de neutralidade, isto é, a plataforma era uma proposta bem elaborada do consenso liberal ma non troppo que caracterizou as políticas econômicas nos países avançados até a eleição de Trump em 2016. Já o programa do PT foi para os extremos do nacionalismo econômico na política industrial, nas propostas para o comércio, nas diretrizes macroeconômicas. Como escrevi na semana passada, o programa do PSL de Bolsonaro é difícil de avaliar nessas dimensões, visto que não há diretrizes ou propostas, apenas frases vazias.

A conclusão a que chego é que nesse fim de década, os eleitores – quando se preocupam com propostas – estão mais inclinados a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata do pós-guerra, seja lá o que isso for. O México foi para o campo nacionalista. O Brasil está prestes a entregar cheque em branco, ainda que o nacionalismo econômico não tenha sido, de forma alguma, banido do imaginário nacional. Aos vencedores, as batatas quentes.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica de Bolle: O que é um populista?

Com a arma da mensagem direta e pessoal, simples e confeccionada para provocar uma reação emocional — de raiva, de indignação, de revolta —, o populista não precisa de plano de governo detalhado.

O que é um populista? Se há uma região no mundo em que ondas populistas deixaram marcas profundas na política e na economia, essa região é a América Latina. Por conseguinte, deveríamos ser capazes de enxergar políticos com essas tendências à distância e deles ficarmos, no mínimo, desconfiados. Afinal, sabemos como acabam os arroubos populistas: com economias desarranjadas pelas necessidades do líder “do povo” de atender aos anseios da população, ao mesmo tempo que alimenta sua própria necessidade de ser visto como um messias, um grande salvador, o pai dos pobres, o defensor dos bons costumes, o caçador de marajás, o perseguidor de bandidos ou qualquer outro rótulo de ocasião. Como bem documentaram os economistas Rudiger Dornbusch e Sebastian Edwards em seu magistral The macroeconomics of populism in Latin America, publicado em 1991, não há qualquer caso de populismo que tenha tido final feliz na região.

Por que, então, temos tido tanta dificuldade em enxergar na candidatura de Bolsonaro traços inequivocamente populistas, que deveriam nos deixar cabreiros, mas em vez disso causam euforia, sobretudo entre aqueles que tão bem conhecem o legado? Deixo aqui uma tese: o populismo na América Latina e no Brasil sempre foi caracterizado pelo discurso redistributivo. De Getulio Vargas a João Goulart, o foco nas desigualdades e nos excluídos da vida econômica e política do país norteou os discursos e as políticas adotadas. Em termos de comparação histórica com o momento atual, Jânio Quadros, o presidente-cometa, é parâmetro interessante.

Vinculado aos setores mais conservadores do país, como a extinta UDN, e candidato pelo nanico PTN, suas falas eram carregadas de um espírito moralizador e sua campanha calcada no combate à corrupção (“Varre, varre, vassourinha /Varre, varre a bandalheira/O povo já está cansado/De viver dessa maneira”). Seu governo foi de 31 de janeiro de 1961 até 25 de agosto de... 1961. Não estou dizendo que um futuro governo Bolsonaro está fadado a durar meses, evidentemente. O que estou dizendo é que nos esquecemos de Jânio quando vemos as propostas simplórias de Bolsonaro para defender suas três bandeiras: a “moralização” do país, o combate à corrupção, o combate à violência.

Populistas defendem o “povo” ignorado pelo establishment e pelos partidos políticos tradicionais. A mensagem é que há algo persistentemente ignorado pelo “sistema” que afeta o “povo”: seja sua cultura, religião, seu lugar na sociedade, suas circunstâncias econômicas. O populista se apresenta como o único capaz de enxergar como o “povo” a quem se dirige é especial e único, como seus anseios não estão sendo atendidos. A comunicação é direta, o apelo é pessoal.

Portanto, esquivar-se de debates é fundamental, já que debates, por definição, são um modo de comunicação indireto com o “povo”. Na era das redes, o apelo direto se dá por meio do Facebook, do Twitter, do Instagram. Planos atrapalham a mensagem, dão margem às interpretações e às discussões que inevitavelmente desvirtuariam o foco do eleitor. Não espanta, portanto, que o plano de governo apresentado por Bolsonaro seja uma colcha de retalhos repleta de chavões e clichês em todas as áreas: da segurança pública à educação, da saúde à reforma da Previdência, da reforma do Estado à retomada do crescimento econômico, e por aí vai.

Desse modo, o populista tem o mandato para fazer tudo e não fazer nada ao mesmo tempo. Como bem disse Carlos Alberto Sardenberg em recente coluna para O Globo, o eleitor de Bolsonaro quer que ele faça a reforma da Previdência e que ele não faça a reforma da Previdência. Sendo o populista que é, Bolsonaro atenderá aos apelos contraditórios de sua base, deixando brevemente parte do país em estado de perplexidade.

Falta a palavra final sobre o entorno de Bolsonaro. Há militares, há sua família, há os novos congressistas conservadores, há os evangélicos, há a turma de Paulo Guedes. Todos esses grupos estarão brigando por influência e poder. Bolsonaro, se eleito, teria de negociar as divergências, que não seriam poucas, e os anseios por autoridade e comando em determinadas áreas. Vamos supor que ele não seja o populista que eu acredito que ele seja. Digam-me: em que circunstâncias será ele capaz, realmente, de transformar o país a contento de seus eleitores?

Varre, varre, vassourinha.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics


Monica De Bolle: O caminho da prosperidade?

O plano de Bolsonaro foi feito em power point, não com texto articulado e dados para substanciar propostas

Em 2015, tivemos A Ponte para o Futuro, o plano de governo elaborado pelo então PMDB antes do impeachment de Dilma Rousseff. O documento até que era bom: falava na necessidade de conter gastos, na reforma da Previdência, nas reformas microeconômicas, pincelava algo sobre a reforma tributária, e até fazia acenos ao mundo com diretrizes para a abertura da economia brasileira. Como sabemos hoje, a ponte caiu no meio do caminho e o futuro resvalou para a desilusão e a raiva.

Há quase 20 anos, tivemos um voto indignado no Brasil que elegeu o PT – era a época do “temos de acabar com tudo isso o que está aí”. E por algum tempo, foi possível imaginar que o Brasil tivesse no “caminho para a prosperidade”. Mas, no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho. A pedra não foi fruto do acaso, mas moldada pelo PT e pelos demais partidos responsáveis pela inaudita corrupção que destruiu o Brasil e a civilidade dos brasileiros.

Agora, novamente nos oferecem O Caminho da Prosperidade, o plano de governo do candidato que lidera com margem ampla as pesquisas de intenção de voto. Eu li o plano de Bolsonaro, plano elaborado em power point, não em forma de documento com texto articulado e dados para substanciar propostas. Eis que logo na primeira página dei de cara com uma citação bíblica: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, João 8: 32. Trata-se da primeira vez que vejo a Bíblia citada em um plano de governo, o que não deixa de ser desconcertante. Mas, o que esperar de um candidato cujo mote da campanha é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”? Quem tem a primazia, o Brasil ou Deus? Pode parecer picuinha semântica, mas não é. Afinal, estamos escolhendo o governante do País, não o líder de uma seita ou igreja. Achei que tivéssemos nos libertado disso quando Lula foi afastado da política.

Na quarta página do programa, o cabeçalho exclama: Liberdade e Fraternidade! Contudo, de lado ficou a igualdade, que não parece ser bandeira de Bolsonaro. O plano diz que “qualquer forma de diferenciação entre os brasileiros não será admitida”, mas difícil é saber o que isso significa. O power point de Bolsonaro tem 81 páginas em que 11 são dedicadas a temas complexos como saúde e educação – nada há de conteúdo, de propostas.

Lá para a metade do monte de páginas chega-se aos temas relativos à Economia. Há uma página dedicada à retomada do crescimento, repleta de clichês. Há uma página dedicada à estabilidade macroeconômica, repleta de clichês. Há uma página dedicada à redução dos ministérios sem esmiuçar como será feita a unificação da Fazenda, do Planejamento, e da indústria e do comércio cujas pautas são bastante complexas. Lembra o esforço inútil de Collor em criar o Ministério da Economia. Há duas páginas, com três parágrafos de aproximadamente cinco linhas, dedicada aos temas eficiência do Estado e controle dos gastos. Duas páginas, quinze linhas.

Há uma página sobre juros da dívida e privatizações que contém a seguinte frase: “Algumas estatais serão extintas, outras privatizadas e, em sua minoria, pelo caráter estratégico serão preservadas”. Esse é todo o plano de privatizações de Bolsonaro, cuja frase é um tanto incompreensível.

Há uma página sobre a reforma da Previdência e outra sobre reforma tributária. A reforma tributária é um retalho de contradições. Fala-se em simplificar e unificar tributos, ao mesmo tempo em que se afirma a descentralização e a municipalização dos impostos. Fala-se em imposto de renda negativo “na direção de uma renda mínima universal”, sem explicar como isso será implantado ante as restrições fiscais que o País enfrenta. A parte sobre a Previdência é sofrível – em dois parágrafos menciona-se a migração para um sistema de capitalização, e ponto. Na mesma toada, o plano de Bolsonaro contém uma página sobre a legislação trabalhista, uma página sobre a abertura comercial, e uma página genérica sobre o aumento da produtividade. Esse é todo o “plano econômico” de Bolsonaro, resumido em parágrafos simplórios versando sobre temas extremamente complexos. Pitadas de “liberdade” ali, “liberalismo” acolá, e algumas menções do economista Milton Friedman são as migalhas que fizeram muitos acreditarem na miragem de que Bolsonaro tem, de fato, um caminho bem traçado para a prosperidade.

Se a sonhada ponte ruiu, corremos o imenso risco de que o caminho para substituí-la seja nada mais do que a estradinha de tijolos amarelos que leva ao Mágico de Oz, aquele que não é mágico, tampouco oráculo. Tudo acaba em tons de cinza, na melhor das hipóteses.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: A economia na escuridão

Ambos planos econômicos sofrem da mesma carência: não há conteúdo, não há diretriz, não há clareza

Cerca de 24 horas depois da apuração que deu a Jair Bolsonaro e Fernando Haddad a certeza de que haverão de se enfrentar no segundo turno das eleições, ambos falaram ao Jornal Nacional. Indagados sobre as ideias ventiladas durante a campanha de reescrever a Constituição que acaba de completar 30 anos, ambos afirmaram ter mudado de ideia. Pressionados sobre seus programas econômicos, os candidatos tergiversaram. Falaram por alto em reforma tributária, privatizações, e teto de gastos. Contudo não deram nenhuma indicação do que de fato pretendem fazer.

Mais cedo, o candidato Jair Bolsonaro havia postado vídeo nas redes sociais onde ao seu lado estava o assessor econômico Paulo Guedes. Guedes não disse palavra, enquanto Bolsonaro expôs sem deixar dúvidas que os planos de privatização antes anunciados por seu guru da economia seriam bem mais modestos do que este antecipara em entrevistas e sabatinas para emissoras de TV antes do sumiço e silêncio que precederam as semanas antes do primeiro turno. Referindo-se aos planos de privatização, disse Bolsonaro que empresas “estratégicas” como Banco do Brasil, Eletrobrás, Caixa Econômica Federal, e Petrobrás não seriam vendidas.

Dentre essa lista a única empresa realmente “estratégica” é a Petrobrás, que ainda mantém o monopólio em algumas operações. Privatizar monopólios nunca é uma boa ideia, mas não parece ser a isso que Bolsonaro se referia.

Em relação ao ajuste fiscal imediato, na ausência de cortes de gastos, não há muita alternativa que a de aumentar impostos. Bolsonaro, entretanto, rechaçou a ideia de Paulo Guedes de recriar a CPMF e nada sugeriu como alternativa. Falou sobre isentar indivíduos com renda até cinco salários mínimos do imposto de renda – assim como fez Haddad – e afirmou que adotaria alíquota única para outras faixas de renda de 20%. Ou seja, prometeu reduzir impostos diante de situação calamitosa para as contas públicas brasileiras. Mas mercados insistem em não enxergar o populismo implícito.

A questão da nova carteira de trabalho verde e amarela proposta por Bolsonaro tampouco está bem detalhada e não há nenhuma avaliação sobre se estaria ou não em consonância com a isonomia do trabalhador garantida pela Constituição. Por fim, prometeu o candidato reduzir o número de ministérios substancialmente sem levar em conta as restrições que isso imporia à construção de uma coalizão estável. Com a maior fragmentação do Congresso, cargos públicos serão ainda mais necessários para a formulação de coalizões – é triste, mas é a realidade brasileira. Falar em redução de ministérios nessas circunstâncias é demagogia pura que muitos insistem em não enxergar. Provavelmente será a primeira promessa a ser abandonada por um eventual presidente Bolsonaro.

Do lado de Fernando Haddad há, como no campo de Bolsonaro, muita fumaça e pouquíssima substância. O candidato fala em simplificar tributos com a introdução do imposto sobre o valor adicionado, mas não dá detalhes sobre como isso será feito. Fala em tributar dividendos, o que considero uma boa ideia diante da regressividade da estrutura tributária brasileira, mas não diz nada sobre alíquotas. Diz que vai revogar o teto dos gastos – já escrevi sobre os problemas do teto atual nesse espaço –, mas não diz o que vai colocar em seu lugar. Embora o atual teto tenha vários defeitos, é necessário que tenhamos mecanismos de controle das despesas, ou seja, é preciso ter algum tipo de teto, com formulação melhor do que a atual.

Haddad também afirma que fará uma reforma bancária sem dar detalhes, mas que de princípio soa bastante intervencionista. Tudo o que não precisamos é de mais intervencionismo. Promete que vai revogar a reforma trabalhista de Temer, mas não diz se fará outra melhor. Insiste no duplo mandato para o Banco Central, o que não seria uma má ideia a princípio salvo pelo fato de Dilma ter tentado instituí-lo na marra, o que acabou não funcionando. Por fim, não há clareza alguma sobre o que pretende na área da reforma da Previdência.

O balanço geral dos planos dos candidatos, portanto, é que ambos sofrem da mesma carência: não há conteúdo, não há diretriz, não há clareza. Enquanto mercados surtam de euforia com a fantasia que criaram sobre Bolsonaro, corremos o risco de não saber nada do que pretendem ambos os candidatos para colocar nos eixos a economia. Isso é grave.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: Balzaquiana

Essa eleição não deveria ter se transformado em referendo sobre a democracia versus referendo sobre a corrupção

Há poucas semanas, o general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, defendeu a elaboração de uma nova Constituição “sem os eleitos pelo povo” pois, afinal, “já tivemos vários tipos de Constituição sem ter passado pelo Congresso”. Nos últimos dias, o adversário de Bolsonaro e candidato do PT Fernando Haddad disse que alteraria a Constituição “se o Congresso assim entender”.

Embora a declaração do petista se enquadre nos moldes da democracia brasileira, ao contrário da declaração do general, é curioso que as campanhas dos dois candidatos favoritos a disputar o segundo turno neste momento tenham se referido à necessidade de mudar a Carta Magna do País justo quando ela completa 30 anos. A Constituição brasileira foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte em 22 de setembro de 1988 e promulgada em 5 de outubro do mesmo ano.

Trata-se, portanto, de uma balzaquiana. Mulher experiente e emocionalmente amadurecida, ainda que possa ter lá seus defeitos como qualquer outra balzaquiana.

Mulheres têm sido protagonistas nessas eleições tão estranhas. A elas fazem questão de se referir os candidatos nos debates na TV. Foram elas que organizaram o movimento #EleNão, que ganhou não apenas as ruas do País, mas também as páginas da imprensa internacional e a adesão de celebridades globais. A divisão dramática do País ficou evidente quando, um dia após os protestos contra Bolsonaro, houve manifestações apoiando o candidato da direita extrema em algumas cidades brasileiras. As pesquisas de opinião continuam a mostrar que, apesar do peso das eleitoras, o candidato rejeitado por grande contingente das mulheres brasileiras ganha novos adeptos e adeptas, todos aqueles eleitores que nele votarão para evitar o retorno do PT.

Que fique claro: o pior cenário eleitoral se consolida rapidamente. Essa eleição não deveria ter se transformado em referendo sobre a democracia versus referendo sobre a corrupção, mas essa é a escolha com a qual se defrontará a população, por mais que o instinto de negação queira demonizar o outro lado para evitar a dor dessa realidade. Realidade que é fruto de circunstâncias que escaparam do nosso controle.

Há os que querem se referir a Bolsonaro como “um fenômeno eleitoral”. Marketings e ingenuidades à parte, o candidato não é nada disso. Ao contrário, Bolsonaro é fruto do total desmantelamento institucional que o País vem atravessando nos últimos cinco anos. Começou com os protestos de 2013 que não tiveram resposta política para os anseios difusos da população que foi às ruas. Se intensificou com a má gestão econômica do governo de Dilma Rousseff e com a explosão da Lava Jato e suas revelações avassaladoras. Ganhou ainda mais impulso quando o PSDB decidiu se juntar ao abjeto PMDB para pedir o impeachment de Dilma, o impeachment de coalizão que tentou abortar uma crise econômica anunciada e desacelerar a Lava Jato, simultaneamente.

Dilma manteve seus direitos políticos, ao contrário do que manda nossa balzaquiana Constituição, e deve se eleger senadora por Minas Gerais. Se isso não desmascara a farsa que nos trouxe à convulsão institucional em sua plenitude, difícil é saber o que o faria.

Por fim, a candidatura de Bolsonaro, do homem que defende a tortura, a morte, e que acha a democracia espécie de brincadeira de mau gosto, foi selada pela ânsia de Lula e do PT. A ânsia de voltar ao poder como espécie de revanche, de vingança histórica. Não tivesse o PSDB participado do impeachment e do desde sempre moribundo governo Temer, hoje teria chances de eleger um candidato. Não tivesse o PT lançado uma candidatura nessas eleições, não haveria Bolsonaro.

Bolsonaro é o sintoma da indignação profunda, da raiva, da traição do PT que, prometera entregar prosperidade, mas se rendeu com facilidade às engrenagens da corrupção brasileira, assim alcançando patamares jamais vistos. Haddad até seria um bom candidato, não estivesse ele concorrendo pelo PT. Mas está. E, desse modo, viabilizou Bolsonaro.

Em meio ao abismo que se anuncia, ninguém haverá de comemorar a conquista de 30 anos de Constituição. Afinal, quem se importa ante a cegueira que acometeu o País?

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Monica De Bolle: O dilema do prisioneiro

Vença Haddad ou Bolsonaro, o mais provável é que o Brasil fique ingovernável, dada a profunda rejeição a ambos

Apesar do título, esse artigo não é sobre o prisioneiro mais famoso do País, aquele que está enclausurado em Curitiba. Quem conhece um pouquinho de teoria dos jogos, ou quem assistiu ao filme sobre a vida do matemático John Nash (“Uma Mente Brilhante”), talvez se lembre do também famoso dilema dos prisioneiros.

Imaginem a situação: dois suspeitos de um crime são presos e colocados em celas separadas. A cada um é dada a seguinte opção: caso um confesse e o outro não, aquele que escolher cooperar com a polícia receberá pena de apenas 1 ano de prisão, enquanto o companheiro silencioso cumprirá 5 anos de cadeia. Portanto, se ambos confessarem, ficarão presos por 1 ano. Se ambos escolherem manter o silêncio, os dois podem ser soltos. Contudo, como não podem se falar, não há como coordenarem o silêncio. Cada um tem de tomar a decisão sobre cooperar com a polícia ou não de forma independente. O silêncio é, portanto, a mais arriscada das opções, pois se o parceiro decidir confessar, são 5 anos de cana. A estratégia dominante – o chamado equilíbrio de Nash desse jogo – é cada preso confessar o crime, ambos recebendo, portanto, pena de 1 ano na cadeia.

O dilema dos prisioneiros mostra que na ausência da possibilidade de cooperação, as escolhas individuais acabam determinando resultado pior do que o alcançado fosse a colaboração dos presos possível: em vez de serem soltos, ambos são encarcerados por um ano. O que isso tem a ver com as escolhas que se apresentam para os eleitores brasileiros? Consideremos os votos anti-Bolsonaro e anti-Haddad.

Para os anti-Bolsonaro, o pior dos mundos é Bolsonaro ganhar, de modo que estão dispostos a votar em Haddad – ainda que somente em última instância, ainda que não declarem esse voto abertamente. Com o perdão pela ligeira digressão, creio que já estamos em território onde as pesquisas de opinião não captam os votos ocultos em Haddad, enquanto o voto pró-Bolsonaro entre moderados – isto é, entre aqueles para quem Bolsonaro não é a primeira opção de voto – parece sair do armário em números cada vez maiores.

Voltando ao raciocínio: o mesmo ocorre com os votos anti-Haddad/anti-PT. Para esses, o pior dos mundos é Haddad vencer, portanto estão dispostos a dar seu voto ao capitão. Essas estratégias, lembram, portanto, o resultado do dilema dos prisioneiros: cada um votando individualmente para evitar o seu pior cenário acaba por levar a um resultado pior do que se pudessem coordenar. Evitar esse quadro perverso necessitaria que as pessoas escolhessem de forma coordenada uma terceira via, outro candidato ou candidata com chances de tirar do páreo um ou outro dos candidatos de repúdio. Tal coordenação seria facilitada se os candidatos de centro se unissem em torno de um único nome.

Como Bolsonaro parece ter se consolidado no primeiro lugar, o voto que cumpriria tal papel seria a escolha do candidato melhor posicionado para tirar o PT da disputa. Caso tal candidato conseguisse vencer no primeiro turno, estaria esvaziado o voto anti-PT que hoje arregimenta tanta gente, possivelmente evitando a vitória de Bolsonaro e, portanto, o pior dos mundos para os anti-Bolsonaro.

Contudo, a política funciona como o dilema dos prisioneiros, sem mecanismos de coordenação. Que fique claro: com o voto de repúdio, eleja-se Haddad ou Bolsonaro, o mais provável é que o Brasil fique ingovernável, dada a profunda rejeição a ambos. Dificilmente sairiam do papel reformas para controlar o déficit público e nossa dívida galopante. Provavelmente teremos, mais brevemente do que muitos gostariam de imaginar, intensas turbulências financeiras, fuga de investidores, e resultados econômicos desastrosos em situação na qual a economia já está bastante debilitada. A inflação deve subir, com ela o desemprego – a chance de que aumente o mal-estar da população brasileira no ano que vem sobe com cada nova pesquisa de opinião.

Caminhamos, tontos e confusos, de olhos fechados e narizes tapados, para o cadafalso. Trata-se disso que estamos a escolher. Desse modo, tornamo-nos prisioneiros de nós mesmos por termos nos rendido com tanta facilidade aos extremismos, aos argumentos rasteiros, e à histeria coletiva. É com esse dilema que teremos de conviver, ganhe quem ganhar – Haddad ou Bolsonaro, pouco importa.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economicse professora da Sais/Johnshopkins University