ministro da cultura

Manifestação cultural - Shutterstock/Elysangela Freitas

Revista online | O desafio de um país que trata cultura com descontinuidade política

Especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio/2022) 

Em 1986, o economista Celso Furtado, o terceiro a ocupar o Ministério da Cultura em menos de um ano de criação da pasta no governo Sarney, já era conhecido por dizer que o papel do Estado não era produzir cultura, mas apoiar iniciativas autônomas da sociedade, que, à época, mantiveram-se mesmo com parcos recursos e ausência de amparo institucional. A mensagem pretendia superar o pesadelo da censura e dos desmandos da ditadura militar.

“Em uma sociedade democrática, as funções do Estado no campo da cultura são de natureza supletiva”, afirmou o então ministro, durante cerimônia de apresentação da Lei Sarney, que criou o primeiro programa de incentivo à cultura por meio de renúncia fiscal do país. Ela foi extinta, em 1990, cinco anos após a criação da pasta, no início do mandato de Fernando Collor de Mello. Celso Furtado saiu do governo dois anos antes, junto a outros ministros ligados à Ulysses Guimarães.

Pressionado, Collor recuou. Em 1991, sancionou a Lei Rouanet, que ficou assim conhecida depois de ser proposta pelo então ministro da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet. Ela instituiu novos mecanismos de operacionalização dos investimentos, com análise técnica prévia dos projetos e prestação de contas mais rigorosa. No entanto, passados 31 anos, agora é atacada como “teta gorda” pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que atua contra o fomento à cultura, na esteira de seus eleitores: a direita mais radical.

Em plena campanha à reeleição, Bolsonaro, que reduziu o ministério a uma secretária, continua a buscar caminhos para atingir o setor cultural, assim como fez ao oficializar, em fevereiro, instrução normativa que provocou uma série de mudanças na Lei Rouanet. A diminuição de 50% no teto, inclusão da "arte sacra" e queda de cachês em 93% foram algumas das alterações feitas na legislação. (Veja arte abaixo)

Lei Rouanet: principais pontos | Arte: FAP
Lei Rouanet: principais pontos | Arte: FAP

Último ministro da Cultura do governo de Michel Temer – que chegou a colocar a Cultura no status de secretária, mas, logo depois de pressão do setor, recriou o ministério –, Sérgio Sá Leitão critica Bolsonaro e afirma que “a cultura é um dos principais ativos econômicos e sociais do Brasil, com uma incrível capacidade de geração de renda, emprego, inclusão e desenvolvimento”. As atividades do setor representam, conforme destaca, 2,64 % do PIB brasileiro, quase 5 milhões de postos de trabalho em todo país. 

“A situação antes do governo Bolsonaro era muito melhor do que a atual. O Ministério da Cultura existia. Tivemos boas gestões no governo FHC e no primeiro mandato de Lula, com Gilberto Gil. A gestão de Marta Suplicy foi positiva. Após a crise inicial, também no governo Temer houve avanços relevantes. São contextos em que a política cultural evoluiu. Agora, está involuindo”, diz Leitão, que é secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

Veja, a baixo, galeria de fotos

Manifestation cultural Salvador - Foto: shutterstock/Joa Souza
Presidente - Foto: Shutterstock/BW Press
Culture manifestation - Foto: Shutterstock/Melanie Lemahieu
Bolsonaro - Foto: Shutterstock/Salty View
Manifestação cultural - Shutterstock/Elysangela Freitas
Jair Bolsonaro - Foto: Shutterstock/Marcelo Chello
Manifestação - Shutterstock/Dan Rentea
Rouanet Law - Foto: Shutterstock/OpturaDesign
RAP -Foto: Shutterstock/Alexandre Laprise
Cultural manifestação - Foto: Shutterstock/Alexandre Laprise
Manifestation cultural Salvador
Presidente
Culture manifestation
Bolsonaro
Cultural
Jair Bolsonaro
Manifestação
Rouanet Law
RAP
Cultural manifestação
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Manifestation cultural Salvador
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Jair Bolsonaro
Manifestação
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“Raiz do problema”

Secretário executivo da Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, Carlos Alberto Júnior, que foi o último ouvidor do Ministério da Cultura, afirma que “Bolsonaro investe na desinformação”. “Ele e os seus eleitores acreditam no que ele diz a ponto de ter feito reforma da instrução normativa da Lei Rouanet para baixar os cachês dos artistas como se ali estivesse, de fato, a raiz do problema”, assevera.

Na avaliação do secretário executivo, em vez de atacar a Lei Rouanet, como Bolsonaro tenta estimular, o país precisa se mobilizar pela execução do Sistema Nacional de Cultura, criado em 2012 com o objetivo de reunir entes federados e a sociedade civil para fortalecer institucionalmente as políticas públicas do setor no país. 

No início da gestão Roberto Freire no Ministério da Cultura, por exemplo, houve outra reforma da instrução normativa da Lei Rouanet, em 2017, mas para democratizar o acesso aos incentivos, em vez de reduzi-los. “A preocupação foi a democratização, mas, por si só, não basta”, disse Carlos Alberto. “Quem deve incentivar isso? O governo federal, mas temos um governo federal que não incentiva nem a tomar vacina. Então, não vai incentivar a cultura também”, criticou.

Bolsonaro segue mesmo na contramão. Um dos reflexos do governo dele é a concentração de recursos da Rouanet, que, no ano passado, acabou sendo ampliada pela própria Secretaria da Cultura, com a redução no número de projetos aprovados em 35%, enquanto a captação continuou a crescer, chegando a R$ 1,9 bilhão em 2021. Os dados são do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic).

Ainda de acordo com o Salic, do total de 4.637 projetos em vigor no ano passado, apenas 611 captaram, em 2021, acima dos R$ 500 mil, novo teto instituído pelo governo Bolsonaro, sem que o patamar da maioria resultasse na descentralização dos recursos. Esses gargalos no fluxo dos projetos e as constantes mudanças no financiamento à cultura também são vistos, por especialistas, como cerceamento da expressão artística e da liberdade de expressão.

“Tentativa de desmonte”

Professor do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF) e conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), Mário Pragmácio assevera que a política cultural do atual governo passa pela “tentativa de desmonte” das políticas públicas do setor.

“A extinção da Rouanet era promessa de campanha de Bolsonaro. Ele operou uma lógica perversa de asfixiar o setor para praticar o estrangulamento de mecanismos da Rouanet. Enxergo o desmonte por essa via. Não foi só acabar com Ministério da Cultura, mas também atacar o principal ponto, que é o financiamento, um problema histórico do setor cultural”, analisa Pragmácio.

Integrante da equipe de Celso Furtado responsável por elaborar a Lei Sarney e que atuou como ministro interino, o prefeito de Ouro Preto (MG), Angelo Oswaldo, lamenta as informações falsas sobre a principal forma de fomento à cultura no país. “É uma caricatura que se faz da Lei Rouanet para desacreditá-la”, afirma. “Não podemos condenar um instrumento de grande importância para a promoção da vida cultural no Brasil”, acrescenta.

"Os museus necessitam muito da Lei Rouanet, assim como os grandes projetos de restaurações, as exposições, os eventos, as construções. São várias iniciativas que, se não tiver financiamento de maior vulto, não vão se realizar nunca”, diz Angelo Oswaldo, para continuar: “É importante que seja aprimorada, mas não submetida a caricaturas ou distorções, porque a alegação de fraude na lei não procede”.

As experiências das últimas décadas retratam a impossibilidade de falar de política cultural sem lembrar seu histórico de descontinuidade no país. Apesar de ter feito parte da agenda de pesquisa de Celso Furtado desde os tempos de Formação Econômica do Brasil, o papel da cultura no desenvolvimento econômico agora se impõe como uma questão ainda mais urgente.

Busca por novas alternativas levanta perspectivas para o setor

A necessidade de se fortalecer os mecanismos de fomento à cultura brasileira ganhou ainda mais força depois de os profissionais da cultura perderem do radar R$ 6,86 bilhões previstos para investimento no setor, por causa do veto do presidente Jair Bolsonaro (PL) às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, em exatos 30 dias. Segundo especialistas, a ideia é que a área não fique vulnerável às vontades de cada governo.

Bolsonaro disse os vetos foram recomendados pelas pastas da economia e do turismo, à qual está vinculada a Secretaria da Cultura, “por contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade”. No início deste mês, ele barrou a Lei Aldir Blanc 2, um mês depois de vetar a Lei Paulo Gustavo. Juntos, os dois projetos injetariam R$ 6,86 bilhões de reais em projetos culturais no país.

Para que o setor não fique refém do governo, o último ministro da Cultura da gestão de Michel Temer, Sérgio Sá Leitão, diz ser preciso “diversificar, ampliar e descentralizar os mecanismos de fomento à cultura”. “O fomento indireto via Lei Rouanet é ótimo, mas não pode ser o único caminho. É vital criar um programa de fomento direto potente e permanente, além de um programa de crédito consistente para pequenas, médias e grandes empresas do setor”, afirma.

Segundo Leitão, para cada real investido em musicais no Estado de São Paulo, de onde ele é secretário de Cultura e Economia Criativa, há R$16 de retorno econômico. “Tenho procurado fazer esses estudos de impacto econômico e social com a FGV Projetos e entidades. O efeito multiplicador da Lei Rouanet, da Lei Aldir Blanc e dos programas de fomento à cultura do Governo do Estado de São Paulo também é ótimo. O cálculo leva em conta as cadeias de valor movimentadas e as diversas receitas geradas, com os ganhos diretos e indiretos”, diz.

O secretário executivo da Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, Carlos Alberto Júnior, observa que a Lei Rouanet se tornou “a principal entrega do Ministério da Cultura” ao longo dos anos, apesar de defender que o setor precisa explorar alternativas e não deve ficar dependente dela. “É um mecanismo de fomento. A política cultural tem que ser atendida em sua plenitude, mas deixou praticamente tudo nas mãos da Rouanet”, analisa.

No caso do Distrito Federal, por exemplo, Carlos Alberto cita que a lei de incentivo à cultura local trabalha com ISS e ICMS, além de ter fixado teto de R$ 22 milhões para utilização de incentivo fiscal. “O teto nunca é atingido porque falta sensibilização por parte dos empresários para investirem nessa linha”, ressalta ele, acrescentando que tem se reunido com empresas para sensibilizá-las sobre a importância desse tipo de investimento.

Assim como ocorre com a Lei Rouanet, a Lei Paulo Gustavo também está suscetível a sofrer ataques, de acordo com o professor do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF) e conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), Mário Pragmácio.  “É possível que aconteça campanha difamatória em relação à Lei Paulo Gustavo”, alerta.

No entanto, Pragmácio acredita que “o contexto da Lei Aldir Blanc e da Lei Paulo Gustavo vai reativar a discussão, que estava adormecida, de uma lógica de construção de um sistema com formas de financiamento republicanas, com critérios mais bem definidos pela própria política cultural contemporânea”.

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Carlos Alberto Torres: Roberto Freire, ministro da cultura

Freire, e o seu partido, o PPS, representa no governo Temer uma vertente da esquerda para a qual a democracia é um valor fundamental. Isto implica afirmar ser impossível existir um sistema social justo sem democracia, que deve realizar-se nos planos político, econômico e social.

 Freire é um político, não um artista ou um acadêmico; mas é um intelectual orgânico do pensar e agir sobre como construir um mundo melhor na perspectiva da esquerda democrática. Ele faz parte da longa tradição dos intelectuais do PCB, como Astrojildo Pereira, Oscar Niemayer, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Mário Schenberg, Caio Prado Júnior, Mário Lago, Vianinha, Dias Gomes, Ferreira Gullar, e tantos outros. As tarefas que enfrentará não serão nada fáceis nesta conjuntura conflituosa, mas, com essa herança, ele se sentirá pleno de legitimidade no mundo da cultura. E não lhe faltará quem o apoie para que tenha sucesso.

Freire é um conhecido de todos os que participaram do enfrentamento à ditadura militar. Sabem que o seu partido, o PCB - o velho "partidão" -, adotou a estratégia de apoiar uma ampla frente democrática para unir todos os que se opunham ao autoritarismo. Esta política o levou a apostar no fortalecimento das instituições de caráter democrático, como o Legislativo e o processo eleitoral, as entidades sindicais e as instituições representativas da sociedade civil. Isto resultou em um movimento cívico, de massas, nos espaços institucionais, e nas ruas, que permitiu acumular as forças necessárias para reconquistar a democracia, o que culminou com a Assembleia Nacional Constituinte e na Constituição cidadã de 1988.

Quem for fiel à história, reconhece a importante contribuição do PCB, embora essa estratégia de enfrentamento à ditadura tenha sido muito criticada à época - como "reformista" - pelos partidos que adotaram a luta armada como estratégia. Os que a defendiam, depois de terem sido derrotados, embora a contragosto, tiveram que aderir à essa visão, caso contrário ficariam fora do processo de redemocratização. Mesmo o PT, que votara contra a aprovação da Constituição no dia de sua promulgação, integrou-se ao processo democrático e chegou, pelo voto, ao poder.

Mas, a correção dessa política custou caro ao PCB! Em 1974, já desbaratadas e derrotadas as várias organizações de resistência armada, os órgãos de repressão da ditadura voltaram-se exclusivamente contra o PCB. Era necessário, então, liquidar o único partido de esquerda que permanecera organizado e funcionando nacionalmente. Abateu-se, então, sobre as suas direção central e estruturas estaduais a mais bárbara ação de repressão, e dentre os centenas de presos, torturados e sequestrados, dez permanecem desaparecidos e insepultos!

Com o fim da União Soviética e da guerra fria, o velho partidão, por decisão do seu X Congresso, em 1992, transformou-se em PPS. Com isso, buscou proclamar com força duas características de sua identidade singular, que já o distinguiam dos demais partidos de esquerda: primeiro, desde 1958, quando rompeu com o estalinismo e apontou a democracia como caminho para o socialismo; segundo, a política assumida em seu VI Congresso, em 1966, após o golpe, quando adotou a estratégia da frente democrática e da via pacífica para enfrentar a ditadura. Aos que acompanham essa digna trajetória, entretanto, o PPS parece ter ficado aquém do que merecia ter alcançado com sua nova perspectiva para ajudar a construir um Brasil mais justo e democrático. Razões, certamente, existem, e devem ser buscadas em suas deficiências e no momento de perplexidade porque passa a esquerda em todo o mundo!

Mas, o mundo dá voltas. Embora o PPS não tenha participado dos governos Lula e Dilma, por suas divergências, agora está no governo Temer, com Freire na Cultura, e com Jungmann na Defesa.

Quanto a Freire, presidente nacional do partido, os que o conhecem se lembram do brilhante e combativo deputado federal constituinte, do candidato a presidente da república que qualificou o debate na eleição de 1989, e do líder do governo Itamar na Câmara após o impeachment de Collor. Sua marca é a combatividade, a capacidade de diálogo e negociação, e a tolerância com as posições divergentes. É tudo, menos uma “Maria vai com as outras”. Suas características, creio, justificam expectativas positivas para a Cultura, e o próprio elogio de Temer ao lhe dar posse como ministro (*).