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Miguel Reale Júnior: O desafio de 2020

Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos de confronto

Em 14 de maio de 1989 publiquei artigo na Folha de S.Paulo em que ponderava ser o momento propício a seduções inconsistentes, como se via no sucesso de Fernando Collor nas pesquisas eleitorais, sobressaindo a postura impetuosa do candidato como caçador de marajás. Lembrava então que conteúdo, passado político e compromisso com a liberdade eram desprezados, valendo mais buscar um salvador sem maiores avaliações ou perquirições. E indagava se seria Collor moralizador da administração, pois quando prefeito biônico de Maceió nomeara mais de 4.500 funcionários, a maioria apaniguados.

Seria consolidador da democracia o jovem deputado federal Collor, que votara contra a emenda da eleição direta para presidente? Seria instrumento de justiça social o deputado que apoiou os decretos de arrocho salarial? Seria Collor o construtor do futuro, pois preferira votar em Paulo Maluf, e não Tancredo Neves, para presidente? E concluía que o momento requeria muito mais que impensadas saídas milagrosas. Mas pouco valiam tais considerações!

Já em maio de 2018, igualmente ano de eleições, disse em artigo publicado nesta página: “Assusta que o pré-candidato Bolsonaro arregimente adeptos quando suas ideias são manifestamente elogiosas à violência na política”. Trazia para aumentar esse espanto exemplos de suas manifestações, pois aplaudia a tortura como meio de obtenção de prova; a seu ver, “o erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Pinochet devia ter matado mais gente”; “não poderia amar um filho homossexual”. Terminava o artigo considerando que aceitar essa candidatura presidencial, alimentada por tais ideias, seria a volta piorada da ditadura pela via do voto. Mas pouco valiam tais considerações!

Ambos, Collor e Bolsonaro, terminaram o primeiro ano de mandato, conforme indica o “monitor-popularidade” do Estadão, com reduzidas taxas de satisfação, abaixo de 30%, tendo os dois iniciado o governo com mais de 50%. Vê-se, portanto, que a impensada busca de um salvador, tratado como mito, se decompõe facilmente, mesmo porque a decepção não decorre apenas das exageradas expectativas positivas, mas da realidade negativa não visualizada pela emoção dominante durante o processo eleitoral, que disfarça a face verdadeira do preferido nas urnas.

As circunstâncias de ambos em seguida ao primeiro ano do mandato têm aspectos parecidos e diversos. Após o fracasso do Plano Collor, a inflação reincidia e se instalara um processo recessivo. Collor envolveu-se nas tramas corruptas de seu auxiliar predileto, PC Farias, e a cada dia perdia força no Congresso Nacional, estando sem partido. Decrescia o respeito da sociedade civil.

Com Bolsonaro, a inflação está contida e há melhora da economia, mas não tanto quanto desejam alguns agentes econômicos. Mas há uma grande pedra no sapato, relativa à possível corrupção familiar no que tange ao emprego dos membros da família da ex-mulher do presidente no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, com participação nos salários auferidos, além das investigações sobre as relações do clã com milícias fluminenses. Bolsonaro não tem articulação política no Congresso, está sem partido e não terá tão cedo. A sociedade civil o deplora.

Mas há um fator fundamental existente à época da debacle de Collor e inexistente hoje: a presença de líderes capazes de construir uma conciliação, um ponderado centro político garantidor de harmonia social, representado por homens como Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Franco Montoro, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel.

Exemplo da importância dessa circunstância está no seguinte episódio: como um dos redatores do impeachment de Collor, fui procurado por chefes militares em vista também de minhas relações com Ulysses e com os líderes do PSDB. Esses militares desejavam saber se essas lideranças apoiariam o governo Itamar Franco, pois a única preocupação do setor fardado era com a governabilidade. A resposta, como não podia deixar de ser, foi positiva. E esses líderes conduziram o País em conjunto com Itamar, tornando-se viável o Plano Real.

Fácil é pretender exercer o poder com radicalismos e demagogia. Difícil é ter autoridade na conciliação, buscando impor harmonia e acatamento por via de compromisso que reúna os diversos atores, com a escolha consentida e refletida de prioridades e pela negociação tolerante, que ameniza o conflito sem eliminá-lo, supera os impasses e se prepara para os próximos, evitando desbordar na violência.

Os conflitos são perenes, mas com ponderação e persuasão se formulam caminhos temporariamente redutores de embates. Numa época de tanta paixão, de comunicação impensada e rápida pelas redes sociais, é ainda mais necessária uma autoridade que se afirme por gerar confiança sopesada e consistente.

Para tanto há de se ter lideranças que tenham por alicerce a coragem de reconhecer no antagonismo não o desastre fatal, a fraqueza, mas a própria força da democracia. Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos escuros de confrontos à flor da pele.

Esse o grande desafio para 2020. Pouco se pode esperar de Bolsonaro como mediador de controvérsias. Ao contrário. De outra parte, o governo não tem no Congresso líderes que possam falar por ele, estabelecer prioridades e conseguir compor propostas negociadas para superar divergências nas reformas tributária, administrativa e política e no combate à desigualdade social.

Assim, com presidente tosco e na falta de chefias partidárias capazes de assumir a condução da grande política, a sensação é de um país em busca sôfrega de recuperação econômica que supra as deficiências da ausência de comando, antes que o descontentamento e a descrença nos Poderes constituídos venham a materializar-se nas ruas. Nosso futuro é opaco, sem perspectivas claras.

* Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Aliança com o passado

Para Bolsonaro e os ‘pensadores’ que o cercam importa explorar o radicalismo

Manifesta a postura retrógrada do programa do pretenso partido Aliança pelo Brasil. Apontam-se como suas principais linhas a segurança do cidadão graças ao direito de andar armado; o louvor a Deus, que revela caminhos e direitos inalienáveis; os valores tradicionais proclamados pelos nossos pais fundadores; a consagração da família tradicional; o confronto com a ideologia do garantismo; a liberdade do mercado como solução única para nossa economia; a destruição do socialismo. Deus, pátria e família, especialmente a própria.

Escolho alguns pontos para análise. Na introdução, desenha-se quadro irreal de estar o País calado, sofrendo a dominação do crime violento, do narcotráfico e do crime organizado. Dramatiza-se o passado, como se tivesse havido condescendência com a alta criminalidade como consequência da promessa de paz, por entregarem os brasileiros suas armas em pacto suicida para a abdicação do direito à legítima defesa.

Ao ver dos aliancistas, houve desrespeito ao referendo de 2005, impondo-se o controle das armas. Duas inverdades: o controle da criminalidade não se realiza pela população armada, situação cujos resultados comprovados são nocivos. A menor repressão ao crime que amedronta, o assalto à mão armada, depende da baixíssima apuração de autoria pelos órgãos de segurança dos governos estaduais. A criminalidade não será estancada dando um revólver a cada cidadão.

O referendo de 2005 não concedeu posse e porte de arma aos brasileiros. Nessa consulta popular se indagava se deveria prevalecer o disposto no artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, sobre comercialização ou não de arma de fogo. Perguntou-se, então: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Não se tratava de garantir a todos, sem critérios e limites, posse ou porte de armas, mas de saber se a comercialização de armas deveria ser totalmente proibida.

Outro aspecto ligado à segurança pública está no ataque ao inimigo imaginário, a ideologia do garantismo, doutrina formulada pelo jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli, acusada de ser a raiz do problema da impunidade no Brasil, um “garantismo socialista”, favorecedor do narcotráfico.

Santa ignorância. Dos princípios básicos do garantismo penal, destaco o da legalidade (não haverá crime ou pena sem lei anterior); o da lesividade (não há crime sem que haja violação de um bem relevante à sociedade); o da culpabilidade (não há responsabilidade objetiva em matéria penal sendo o crime doloso ou culposo); o acusatório (garantindo ao réu ampla defesa e direito ao contraditório). Denominar tal doutrina de socialista e em favor do narcotráfico é demais!!!

O caráter religioso do partido é patente. Segundo o programa, a providência divina indica o caminho do partido, que toma como seus os valores fundantes do Evangelho. Transforma-se, apesar de se tentar negar, o exercício do poder político em missão confessional, de vez que, sendo a relação entre a Nação e Cristo intrínseca e inseparável, é o povo brasileiro religioso e igualmente devem ser seus representantes, tendo Deus em sua vida.

Depois, em culto às tradições, o programa exalta os brasileiros ilustres do passado, que deixa de indicar, os quais denomina de fundadores e formadores do Brasil, em pura imitação da figura dos pais fundadores da nação norte-americana.

Posso lembrar duas figuras de nossa República, Rui Barbosa e Campos Sales. Rui há um século, na campanha presidencial de 1919, proferiu importante discurso sobre a questão social. Dizia o mestre: “Estou, senhores, com a democracia social (...) que quer assentar a felicidade da classe obreira não na ruína das outras classes, mas na reparação dos agravos a que ela até agora tem curtido. Aplaudo no socialismo o que tem de são, de benévolo, de confraternal, de pacificador”.

Campos Sales, por sua vez, ensinava não ser importante “saber o que é popular, mas sim o que é razoável e justo, sendo um dos deveres do homem de Estado combater as ilusões populares, mesmo à custa do poder e das posições”. Não parece que o bolsonarismo siga as lições desses importantes personagens do passado.

O programa, portanto, de ideias retrógradas, desconhece as mudanças significativas do pensamento político, ignora até mesmo a lição de Rui de cem anos atrás, para fazer do socialismo um bicho-papão, explorando ilusões populares e ignorando deliberadamente toda a evolução do socialismo, que, como bem acentua Antônio Paim (O Socialismo Brasileiro, vol. II, pág. 18), teve papel notável na História do Ocidente por seu substrato moral.

Doutra parte, no plano econômico, o programa adota como única solução a liberdade do mercado, que se autorregula, pois “a liberdade econômica não se contrapõe à existência da moral”. Todavia sem diretrizes de cunho social, num país pobre e desigual como o nosso, a receita neoliberal só aumentará o desnível das classes sociais.

Por fim, cabe destacar que o programa volta aos anos 30 do século passado ao se referir ao homem e ao desenvolvimento integral. Meu pai, integralista na juventude, posteriormente, em diversas obras, como Pluralismo e Liberdade, adotou o pensamento liberal-social, por via do qual se respeita o mercado como agente de produção de riquezas, reservando, contudo, ao Estado, em especial à União, o papel de articulador e promotor de políticas sociais fundamentais em áreas como saúde e educação, criando rede de saneamento básico e valorização dos docentes, promovendo políticas de inclusão social nas periferias das grandes cidades.

Mas para Bolsonaro e os “pensadores” que o cercam importa antes explorar o radicalismo imperante, açular as ilusões, gritar sua fé em Deus que abrirá os caminhos para a destruição de perigosos inimigos. Em defesa da razão, resta apenas conclamar: iluministas do Brasil, uni-vos.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Como ousa?

Risco de a Amazônia ter apenas vegetação de cerrado é iminente, e com secas no Sudeste

A fuga da realidade no discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU causou apreensão. Como o chefe de Estado brasileiro é capaz de produzir, perante representantes de 192 países, um pot-pourri cujos assuntos desconexos têm um elemento comum: a fantasia?

Por sua fala, vive-se uma cruzada em defesa dos cristãos contra os invasores de almas para sequestrar Deus e destruir a família, carregados de ideologias. Além da convocação para a guerra santa, o presidente disse sobre a Amazônia: “Ela não está? sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora”.

Não pretendo alistar-me no exército de Bolsoleone na luta contra os imaginários destruidores dos valores ocidentais cristãos, mas aceito o desafio de saber o que acontece na Amazônia. Os relatos de órgãos oficiais e de ONGs, há décadas monitorando a região, preocupam.

Já em 1981 o geógrafo Antonio Giacomini Ribeiro (Acta Amaz. vol.11 n.º 2 Manaus Apr./Ju, www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid) observava que o envio de umidade para a atmosfera decorria principalmente da evapotranspiração, antes da chuva, por intensa atividade de fotossíntese e na chuva antes de a água atingir o solo. E alertava o geógrafo que a criação das nuvens tipo “u cumulus esfarrapadus”, propícias para chuvas, ocorre na floresta densa e nem sequer se dá em áreas de campo e desmatamentos.

Esse fato é importante, pois se constatou, ao longo do tempo, que a Amazônia produz metade de suas próprias chuvas, formando um ciclo hidrológico fechado, cabendo a pergunta de Elton Alisson, da Fapesp: qual seria o nível de desmatamento a partir do qual o ciclo hidrológico amazônico se degradaria (http://agencia.fapesp.br/print/desmatamento-na-amazonia-esta-prestes-a-atingir-limite-irreversivel)?

Respondem a essa pergunta os renomados professores Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, na revista Science Advance(http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat234) e no site de notícias Virtù. Explicam que a Floresta Amazônica depende do ciclo hidrológico que ela mesma produz, havendo dessarte um nível de desmatamento além do qual esse ciclo perde força a ponto de não mais produzir a chuva necessária para a vida dos ecossistemas da floresta tropical.

Lovejoy, então, esclarece que ele e Carlos Nobre, diante de circunstâncias naturais e de intervenção humana, reavaliaram para baixo a porcentagem de desmatamento a partir da qual o ecossistema amazônico passaria do ponto de não retorno, sendo o tipping point entre 20% e 25%. E o pior: “O ponto de não retorno está sendo atingido. Esta situação uma vez instalada não pode mais ser revertida. Uma vez quebrado o ciclo hidrológico, o ecossistema amazônico entra em colapso e não mais pode ser recuperado por medidas de preservação”, havendo o perigo iminente de a Amazônia vir a ter apenas vegetação típica do cerrado e, por ricochete, causando seca no Sudeste.

Com a participação de cientistas brasileiros e estrangeiros, coordenado pelo climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência e Tecnologia, pesquisa sobre o clima na Amazônia e o que pode acontecer pelo desmatamento em grande escala (Frontiers in Earth Science, com o título Changes in Climate and Land Use Over the Amazon Region) concluiu: “Os efeitos combinados da seca e do desmatamento, juntamente com o fogo, podem ampliar os impactos e causar o colapso do ecossistema da floresta tropical” (http://www.cemaden.gov.br/impactos-na-amazonia).

Entre 1o de janeiro e 29 de agosto de 2019 o Inpe detectou 45.256 focos de calor no bioma Amazônia, o maior já registrado desde 2010. Esse aumento expressivo de focos, comparado a anos anteriores, se verificou em praticamente todas as categorias fundiárias; e apesar da proteção ambiental as unidades de conservação em 2019 mostraram aumento surpreendente, com o dobro dos focos registrados em relação à média dos últimos oito anos, com concentração em determinadas unidades, como a Floresta Nacional do Jamanxim.

Conforme noticia a WWF Brasil (http://www.wwf.org.br/?72843/amazonia-um-em-tres-queimadas-tem-relacao-com-desmatamento), na Amazônia 31% dos focos de queimadas registrados até agosto deste ano localizavam-se em áreas que eram floresta até julho de 2018, conclusão essa fruto da análise feita sobre focos de queimadas no bioma, com base em séries históricas de imagens de satélite e em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Outro dado trazido pela WWF Brasil é significativo: a área com alertas de desmatamento em agosto foi de 1.394 km2, um valor 120% maior que o do mesmo mês em 2018. Somente nos oito primeiros meses de 2019 a área total com alertas de desmatamento foi de 6 mil km2, 62% mais do que o observado no mesmo período em 2018.

Conforme matéria do site G1 (https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/21/aumento-das-queimadas-no-brasil-veja-12-perguntas-e-respostas-sobre-o-tema.ghtml), Ane Alencar, uma das maiores especialistas em incêndios na Floresta Amazônia, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, diz: as queimadas aumentaram por causa do desmatamento, “é uma relação direta”, pois, quando se desmata uma área para pastagem ou agricultura, cabe se livrar daquela biomassa. Essa ligação entre desmatamento e queimada é acentuada em outra entrevista, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/o-governo-nao-pode-espalhar-o-fogo-na-amazonia/.

Em setembro, com atuação do Exército, reduziu-se um pouco a queimada, mas o desmate, ação ilegal que antecede o fogo, persiste elevado.

Estes dados impõem recorrer à expressão de Greta Thunberg: como ousa, presidente?

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Ilegítima agressão

Pretendidas alterações na legítima defesa surgem para proteção de maus policiais

Por via do projeto denominado anticrime, o governo pretende ampliar a legítima defesa. Para tanto contempla seu reconhecimento na hipótese de perigo em face de possível conflito armado. Também sob a escusa de se agir em estado de medo ou surpresa, justifica a ação desmedida de defesa, que se transforma em agressão.

Com essas propostas se desfigura a excludente da legítima defesa. Cabe, por isso, recordar em que consiste a situação de legítima defesa. Como está no artigo 25 do Código Penal, ela se dá quando há injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro, à qual se reage usando os meios necessários de forma moderada.

A agressão deve ser real e efetiva, exceto no caso – excepcionalíssimo – de quem julga justificadamente existente uma agressão inexistente. Ademais, a agressão há de ser iminente ou atual, criando um perigo que não se baliza pelo temor do pretenso agredido, mas, sim, pelo que objetivamente é constatável como causador de dano.

A agressão é atual se já iniciada e iminente se está em via de ocorrer. Há uma situação de perigo quando se verifica a possibilidade concreta de lesão à integridade física, a provocar consciência do perigo fundado na realidade. Porém a constatação do perigo não pode decorrer apenas da impressão subjetiva, fruto do medo ou da violenta emoção daquele que é supostamente agredido. Do contrário seria entregar o reconhecimento do direito de matar, por exemplo, à aberta impressão subjetiva do agente.

Compõe também a situação de legítima defesa a exigência de que a reação à agressão seja moderada, ou seja, proporcional ao ataque sofrido, não indo além do necessário para a devida repulsa. Requer-se, ademais, que os meios necessários também sejam usados com moderação, ou seja, de modo suficiente para fazer cessar a agressão.

Quando esse uso é imoderado, é dizer, desmedido em face do perigo decorrente da agressão, surge o excesso no exercício da legítima defesa. Este pode ser doloso ou culposo. Será doloso quando o agente, atuando em situação de legítima defesa, passa a agir não para se defender (pois a agressão já fora controlada), mas, sim, para atingir desnecessariamente o agressor. E será culposo se, nas circunstâncias, houver uma descuidada avaliação que conduza a uma atitude desproporcional à necessária.

O projeto do ministro Sérgio Moro desconhece os elementos componentes da legítima defesa; abre a porta à subjetividade, oferecendo licença para matar ao acrescentar parágrafo 2.º ao artigo 23, assim redigido: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Quebra-se com essa proposta o eixo central da figura da legítima defesa, consistente em agir para fazer cessar uma agressão, com ânimo de se defender. Na hipótese apresentada por Moro, acolhe-se como legítima defesa uma agressão desnecessária, fazendo dessa excludente um escudo protetor da violência policial, tendo por desculpa o medo, a surpresa ou a violenta emoção, da parte daquele que é especificamente treinado para enfrentar riscos, aliás, naturais ao seu mister. Mas é inaceitável que pretenda escusar o excesso doloso, consistente em prolongar desnecessariamente uma reação com intenção direta de agredir, sob a escusa de se agir com medo ou surpresa.

De outra parte, amplia-se especificadamente para os policiais a situação de legítima defesa, ao prever que o agente de segurança pública age licitamente em face de risco iminente de conflito armado, para prevenir injusta e iminente agressão. Redundante a figura: risco iminente de conflito armado para prevenir iminente agressão.

Ora, se existe um risco iminente de conflito armado, há agressão que está em via de acontecer, devendo o perigo imediato ser impedido de se concretizar. Ou o conflito armado iminente vem a constituir um efetivo perigo, ou não há relevância no conflito armado, o que seria, a bem ver, uma impossibilidade. A iminência de conflito armado constitui em si uma agressão altamente provável, caso contrário haveria apenas um perigo imaginário: um perigo iminente de perigo iminente.

É esse perigo imaginário que se pretende erigir em causa legitimadora da ação agressiva da polícia. Dessa maneira se criam duas legítimas defesas: uma aplicável a todos os cidadãos e outra exclusiva para os agentes de segurança pública, que podem alegar, ao agredir cidadãos inocentes, que estavam em contexto de “perigo de perigo”.

Histórias recentes de agentes da segurança matando inocentes poderiam ser lembradas. Mas basta esta: dia 7 de abril, carro que seguia no Rio de Janeiro pela Estrada do Camboatá, chegando à Avenida Brasil foi alvo de 80 disparos de fuzis de nove soldados do Exército. Estavam no carro o músico Evaldo dos Santos Rosa, sua mulher, seu filho de 7 anos, seu sogro e uma amiga da família. Iam a um chá de bebê. O Comando Militar do Leste alegou ter havido um assalto e que os assaltantes, nesse carro, fizeram disparos, provocando a reação da equipe!!! Dois inocentes morreram e outros ficaram feridos e traumatizados.

Essa barbárie se enquadrará em uma ou outra hipótese sugerida por Moro: legítima defesa em vista de possível iminente conflito armado com possível perigo iminente, ou excesso doloso justificável pelo medo dos nove soldados ante uma família a caminho de chá de bebê.

A letalidade da polícia brasileira é imensa. Cresce sob a cultura da violência estatal, aplaudida por Bolsonaro ao erigir torturador como herói nacional e ao querer indultar policiais assassinos, como os envolvidos no massacre do Carandiru. As pretendidas alterações da sedimentada e incontroversa figura da legítima defesa apenas surgem para proteção de maus policiais, hoje reverenciados pelo Estado, com riscos para a segurança do cidadão comum.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: BolsoNero

Estamos, talvez, diante de um simplório plano de dominação, para o qual se deve estar alerta

O grande desafio político consistiu, a partir do último quartel do século 20, na superação das fragilidades da democracia representativa numa sociedade de massas inertes e manipuláveis, na qual a relação entre a sociedade civil e a política fica limitada ao processo eleitoral.

A crise da democracia representativa cresceu vertiginosamente com o compartilhamento em rede: pessoas que se juntam em torno de preconceitos e subjetividades, um rol imenso de desconhecidos que retroalimentam suas idiossincrasias, seus ressentimentos e crenças inabaláveis.

Mas há outro lado, o das forças atuantes da sociedade civil. Profissionais e voluntários vêm a constituir polos de produção de opiniões e sugestões, fruto da experiência e do estudo. São muitas manifestações (espontâneas ou programadas) por associações, órgãos de classe, organizações não governamentais, voltadas para influir no processo decisório, trazendo valiosa contribuição, própria de um consistente pluralismo social.

Reconhecendo-se a valia desse pluralismo, criaram-se ao longo do tempo muitos órgãos de cunho consultivo para assessorar a administração pública. Houve, sem dúvida, exageros, com focos de mera reivindicação leviana ou assembleísmo; certo é, porém, que a participação da sociedade oxigena, instrui e amplia a ação estatal, em suma, democratiza.

De fato, para a legitimidade da democracia de massas num mundo em rede é essencial a atuação e a presença efetiva da sociedade, fazendo mais pessoas participarem, racionalmente, da criação do destino coletivo.

Pois Bolsonaro fez exatamente o contrário no primeiro dia de governo, afirmando que governaria em ligação direta com o povo, sem nem mesmo partidos políticos, num neopopulismo virtual. Ilegalmente decretou o fim dos conselhos. Semana passada, suprimiu a participação de médicos no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).

Fui, em 1988, presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), antecessor do Conad, então órgão do Ministério da Justiça, com um quadro de médicos estupendo: Elisaldo Carlini, autoridade mundial em pesquisas de drogas, lente emérito da Unifesp; Miguel Roberto Jorge, professor associado de Psiquiatria da Unifesp, foi eleito presidente da Associação Médica Mundial; Sérgio de Paula Ramos, presidente da Associação Brasileira de Álcool e outras Drogas (Abead). Essa valiosa participação permitiu trabalho inovador na área de prevenção, em convênio com a ONU.

O desprezo de Bolsonaro pela inteligência manifesta-se no ataque ao Inpe, acusado de “estar a serviço de alguma ONG”, sendo seu presidente Ricardo Galvão, professor titular da USP, merecedor de prêmio do Centro Internacional de Física Teórica de Trieste, na Itália. A desfeita ao Inpe coincide com a outorga pela Organização Meteorológica Mundial (WMO), das Nações Unidas, de seu mais importante prêmio ao instituto, na pessoa do cientista Divino Moura.

Em sua trajetória de exterminador cultural, Bolsonaro entende ser de sua competência definir roteiros a serem patrocinados pela Ancine, no mesmo instante em que o cinema brasileiro, com as fitas Bacurau e Vida Invisível de Eurídice Gusmão, ganhou prêmios no Festival de Cannes.

Sob a orientação do ministro da Economia, Bolsonaro propôs emenda constitucional visando, na prática, à eliminação dos órgãos de classe: “artigo 174 – A lei não estabelecerá limites ao exercício de atividades profissional ou obrigação de inscrição em conselho profissional sem que a ausência de regulação caracterize risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social”.

Assim, para advogar não será mais necessário estar inscrito na OAB e esta, se perdurar, não poderá exigir dos milhares de bacharéis que se formam a cada ano prova mínima de suficiência para o exercício da profissão. Os profissionais em geral não estarão sujeitos a regras uniformes de ética, seja o médico, o economista, o contador. Com isto se banalizam as profissões, das quais se retira a respeitabilidade, num desfazimento do tecido de credibilidade da parcela pensante e crítica de nossa sociedade.

Seria anacronismo fazer paralelo entre Nero, imperador romano entre 54 e 68 de nossa era, e o Bolsonaro de hoje, mesmo porque Nero mostrou virtudes no início seu reinado graças a Sêneca, seu sábio preceptor, para quem cabia viver em harmonia com a natureza, com retidão compassada pela razão à espera serena da morte.

Mas há três dados que em Bolsonaro lembram a figura de Nero: o fascínio pela popularidade, com desprezo pelas classes médias e pelo Senado; o intenso envolvimento nas intrigas familiares; e o possível incêndio de Roma para refazê-la a seu feitio.

Discutem os cronistas se efetivamente Nero teria mandado pôr fogo em Roma (Croiselle, Néro n a-t-il Brulê Rome?, Histoire, n.º 234 – jul/agosto de 1999, pág. 26). Suetônio e Plínio, o Velho, afirmavam categoricamente, porém outros, como Tácito, tinham dúvidas. Todavia passou para a História ter Nero, alucinado, incendiado Roma.

Entre Nero e Bolsonaro remanesce a coincidência do vezo autoritário no exercício do poder com a volúpia por popularidade, que se casa com o desejo de reconstruir Roma a seu modo. Hoje Bolsonaro atua para tornar terra arrasada a democracia participativa, essencial ao nosso mundo plural, pretendendo impor modos de ser em face de múltiplos aspectos da vida como direito fruto da eleição. Incentiva antagonismos com o passado para perenizar o confronto e ditar comportamentos, com descaso pelo que não coincida com sua rasa compreensão e baixa sensibilidade, como a revelada ao falar sobre o desaparecido político pai do presidente da OAB.

Estabelece-se o fascismo cultural, por via do qual é proibido pensar, mas permitido obedecer. Estamos, talvez, diante de um simplório plano de dominação, para o qual se deve estar bastante alerta.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Mais Messias do que Jair

Estamos diante de novo surto sebastianista, com uma mistura de religião e política

Com impetuosidade, dom Sebastião levou tropas portuguesas sob seu comando a lutar contra os marroquinos, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, na qual grande parte da elite de Portugal morreu e o rei desapareceu. Com o vazio em sua sucessão ao trono português, impôs-se o domínio espanhol. Logo surgiu o imaginário de que dom Sebastião estava vivo, “encoberto”, e apareceria para salvar a nação, livrando-a do despotismo castelhano.

O Brasil viveu ao longo do tempo fenômenos similares circunscritos, mas referenciados, ao mito de dom Sebastião. Como dizem Edna da Silva Polese e Sérgio Fernandes de Lima, o sebastianismo atravessou fronteiras temporais e espaciais com o surgimento, em momentos de infelicidade e de perdas, da crença no aparecimento de um salvador, um restaurador da ordem e da justiça (Revista Letras v. 16, n.º 19;https://periodicos.utfpr.edu.br/rl e http://daofilho.blogspot.com/p/o-sebastianismo-no-romance-pedra-bonita.html).

José Lins do Rego e Ariano Suassuna bem contam nos romances Pedra Bonita e A Pedra do Reino o episódio ocorrido em Pernambuco em 1838, na Serra Formosa, ao lado de formação rochosa. João Antônio dos Santos e depois seu sucessor, João Ferreira, alardeavam que dom Sebastião, incrustado na pedra, voltaria para trazer a bem-aventurança. Para tanto a pedra deveria ser banhada de sangue, promovendo-se grande massacre.

Igualmente no início da República Antônio Conselheiro, beato que se instalara em Canudos, na Bahia, proclamava a volta de dom Sebastião. Este retornaria dos mortos para restaurar a monarquia no Brasil e transformar males em bem, o sofrimento em alegria, o injusto no justo, numa visão imaginária delirante, bem retratada por Euclides da Cunha ao lembrar trova de Canudos: “Garantidos pela lei Aquelles malvados estão, Nós temos a lei de Deus, Elles tem a lei de cão”.

O mito do sebastianismo ilude a vinda de figura heroica que se sacrifica, com risco da própria vida, para promover uma nova era, um modo purificador de realizar as coisas com justiça em rumo ao paraíso.

Collor já indicava a adesão à figura de um “cavaleiro do bem”, o caçador de marajás que instalaria o reino da correção em face da corrupção do governo Sarney. Mas não tardou a surgirem as denúncias de sua corrupção. E desde 2005 revelaram-se o aparelhamento do Estado e a disseminação da corrupção em favor de políticos dos principais partidos, que irresponsavelmente levaram ao desemprego e à recessão.

Larga desconfiança do sistema político se instalou no espírito de parcelas consideráveis da população. Em 2016, o impeachment necessário para estourar o tumor que gangrenava a Nação trouxe um presidente impopular, logo acusado de corrupção, não afastado do cargo graças à cooptação do Congresso.

Bem fervido o caldo de cultura propício ao surgimento ilusório de um salvador, que instalaria um novo modo de ser, uma figura messiânica que – sem o carisma de Jânio, Ademar, Getúlio – iria galvanizar o povo por trazer uma boa-nova, valendo-se de poucas palavras em modo inusitado de comunicação: as redes sociais. Candidato dos indignados contra o desmando dos governantes, Bolsonaro aparece no imaginário popular como redentor.

Sem carisma, Bolsonaro, vítima de facada da qual se salva “por obra divina”, apresentou-se como quem governaria sem as intermediações próprias do regime representativo, impondo sua vontade por força da pressão popular que arregimenta pelas redes sociais. Nada disse de concreto: apenas prometeu a redenção e nova forma de exercício da “democracia”, sem diálogo com o Parlamento, a ser demonizado se não o apoiasse. Inimigos, “traíras”, seriam e são todos os que neguem sustentação absoluta àquele que aí está para – alegadamente – salvar o País e promover a justiça e o bem.

É proclamado mito e exerce influência no imaginário popular de modo irracional, comovendo parcela da população que acredita ser ele o portador de fartura e honestidade. O que dele provier se presume estar certo: o espírito crítico não tem lugar em face do mito.

No último domingo viu-se exatamente isto: não existem erros do governo, que bate cabeça desde janeiro. Para os que acorreram às ruas, o mito está sempre correto. O governo tosco tem uma pauta moralista e armamentista para dar sensação de prover a segurança. O chamado projeto anticrime de anticrime só o nome tem, pois, seguramente, dali não decorrerá nenhuma prevenção ou redução da criminalidade. Mas o que importa é a idolatria do “submito”, Moro.

Estamos diante de um novo surto sebastianista, com mistura de religião e política. Essa vertente político-religiosa vem expressa na atitude e em cartazes deste domingo: populares gritavam “mito, mito, mito, meu capitão!” e faixas estampavam: “Congressistas deixem o mito trabalhar”. Manifestantes iniciaram o ato em Brasília rezando um Pai-Nosso, com a oradora pedindo a Deus para “ajudar o presidente a dizer não a esse tal Centrão e a dizer não ao STF” e terminando com a frase: “Viva Jair Messias Bolsonaro!”. Outro orador alertava: “Estamos travando uma guerra espiritual”. Mas assegurava: “Deus está do nosso lado”. Com o monopólio do certo, dizem: “Tem de o Congresso aceitar. Não existe essa de o Congresso fazer as pautas do Executivo”. Faixas tratam os representantes dos outros Poderes como traidores da Pátria, por dificultarem a “tarefa salvadora” do presidente.

Em culto pela manhã, Bolsonaro interpretou as passeatas como um recado aos que “teimam, com velhas práticas, em não deixar que esse povo se liberte”. Como em Canudos, podem o presidente e seus asseclas entoar: “Nós temos a lei de Deus, eles têm a lei de cão”.

Bolsonaro se faz mais Messias do que Jair, a gerar nos espíritos abertos ao debate, e à força da persuasão, o receio imenso de um futuro de uma só verdade, cuja contestação vira traição.

* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: O estamento burocrático

Cumpre apoiar a redução da desigualdade previdenciária entre o setor privado e o público

A maior preocupação do dr. Ulysses Guimarães, a partir do texto produzido pela Comissão de Sistematização na Assembleia Nacional Constituinte, dizia respeito à previdência social, em vista dos benefícios concedidos ao servidor público e ao valor mínimo da aposentadoria no setor privado. Em reuniões prolongadas com técnicos em cálculo atuarial, faziam-se exames de receita e despesa para ver se a conta fechava. Havia, então, diferença em face dos dias atuais, com taxa menor de desemprego e reduzido índice de trabalho informal, sem o elevado número de hoje dos não contribuintes do INSS.

Mas a questão principal consistiu na criação de duas distintas camadas sociais. No primeiro degrau foi colocada a massa de trabalhadores do setor privado; acima, o estamento burocrático, composto pelos servidores públicos dos três Poderes das unidades da Federação: União, Estados e municípios.

Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, bem assevera que “o estamento burocrático comanda o ramo civil e militar da administração e, dessa base, com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica, política e financeira”.

Com a supremacia do estamento instala-se a forma patrimonialista de exercício do poder, que atua segundo critérios personalíssimos, confundindo o público e o privado. O importante era ter a caneta que nomeia, cimentando-se a rede de relacionamento entre os detentores do poder, na qual vige a cordialidade de que fala Sérgio Buarque de Holanda.

A prevalência do estamento burocrático, cujas origens remontam ao Brasil colônia, instaurou-se ao longo da História. Mas na Assembleia Nacional Constituinte as corporações dos diversos segmentos da administração pública se fizeram especialmente presentes. A Lava Jato constitui a primeira grande brecha aberta nesse sistema de domínio político e social.

A Constituinte foi uma passarela na qual passaram de índios a magistrados – da tanga à toga –, sendo, todavia, mais que tudo o palco da atuação dos lobbies dos setores organizados do serviço público: as equipes de ação continuada dos Ministérios Públicos estaduais e federal, dos juízes, das Polícias Militar e Civil, dos advogados públicos, dos militares das três Armas, do funcionalismo em geral.

Além dos pontos específicos que cada corporação buscava introduzir, esse desfile de grupos de pressão do estamento burocrático estabeleceu precisa divisão de dois tipos de aposentadoria: os trabalhadores do setor privado, cujos proventos têm remuneração máxima, pelo INSS, correspondente a cinco salários mínimos, com desconto da contribuição; e a dos servidores públicos de todos os Poderes e de todos os níveis, que recebiam, segundo o texto original, remuneração integral ao ganho na atividade, sem desconto da contribuição, majorados os proventos conforme o reajuste dado aos servidores em atividade.

Os presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Michel Temer tentaram, com dificuldades, modificar o sistema imposto pela Constituição, seja ao setor público como ao privado, pois, com o aumento da expectativa de vida, havia (e há) uma bomba nas contas públicas. O maior obstáculo sempre foi a força dos grupos de pressão das corporações do setor público.

Após três anos de tramitação, a emenda modificativa da Previdência no governo Fernando Henrique trouxe como principal mudança não se considerar o tempo de serviço do trabalhador, mas sim o tempo de contribuição ao INSS. Por apenas um voto, não se aprovou a exigência de idade mínima para aposentadoria. Em contrapartida, Fernando Henrique veio a impor o fator previdenciário, pela Lei n.º 9.876/99, penalizando, por exemplo, o homem que viesse a se aposentar com menos de 65 anos.

Lula estabeleceu a cobrança de contribuição dos servidores públicos aposentados, na alíquota de 11% e teto para servidores estaduais e federais. Já Temer propôs que servidores públicos, agentes políticos e trabalhadores do setor privado deveriam aposentar-se com 65 anos os homens e 62 as mulheres. Previa-se que o maior valor a ser pago no setor público correspondesse ao máximo pago pelo INSS. Contudo, às vésperas de ser votada a emenda, passível de ser aprovada com algumas alterações, o Ministério Público Federal divulgou conversa de Temer com Joesley Batista, destruindo seu capital político e enterrando a reforma.

A tarefa impostergável ficou para o presidente seguinte. A equipe de Jair Bolsonaro vem de apresentar proposta de emenda constitucional que estabelece aquela mesma idade mínima para homens e mulheres e visa também a reduzir a desigualdade entre o setor público e o privado. Não mais iguala os proventos de ambos os setores, mas aumenta significativamente o valor da contribuição, que chega a 22%, sobre as mais elevadas remunerações da área pública.

Em 7 de agosto de 2003, editorial deste jornal destacava o objetivo das reformas: “A correção de um sistema que vem provocando enormes transferências de renda dos trabalhadores do setor privado para os do setor público, além de ser o maior fator estrutural do desequilíbrio das contas públicas”. Esse é o imenso desafio, enfrentado ao longo de mais de 25 anos, com pequenas vitórias, pois o estamento burocrático tem seus tentáculos, sabe fazer lobby, conhece os corredores do Congresso Nacional e forma rede de auxílio mútuo junto a parlamentares.

Cabe opor-se às injustiças das reduções: do benefício para os idosos pobres, da pensão por morte e da aposentadoria por invalidez. Mas cumpre apoiar a minimização da desigualdade entre o setor privado e o público, este o principal responsável pelo déficit previdenciário, faltando conhecer a proposta relativa aos militares.

A tarefa não é fácil, ainda mais em face da inabilidade política do capitão presidente, cotidianamente comprovada.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Ambivalência

Dois pesos e duas medidas, essa é até agora a marca do governo Bolsonaro

O primeiro mês da gestão de Jair Bolsonaro indica as imensas dificuldades vividas pela nova equipe governamental. Essa conclusão não é novidade para quem analisou a carreira do capitão deputado federal, figura irrelevante da Câmara ao longo de 28 anos.

Tratado por mito, Bolsonaro não precisou, ainda mais como vítima de atentado à faca, dizer a que vinha, ausente de todos os debates e limitando-se às poucas palavras cabíveis em mensagens por WhatsApp. Defensor da violência policial, e até mesmo da tortura, era sua marca fazer gestos de revólver ou espingarda, figurando-se como inimigo incansável do crime.

Dois fatos importantes, ligados ao seu campo de preferência, ou seja, ao uso de armas, merecem destaque neste mês: a ligação de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, com o ex-capitão da PM do Rio de Janeiro Aureliano Nóbrega, chefe de perigosa milícia da zona oeste da cidade; e o decreto que ampliou em muito o direito de posse de revólver ou espingarda pelos brasileiros de todo o País.

O vínculo do senador Flávio Bolsonaro com o ex-capitão Aureliano da Nóbrega, líder da milícia Escritório do Crime, constitui dado grave, pois, mesmo preso preventivamente sob acusação de homicídio, Aureliano recebeu, graças a Flávio, então deputado estadual, elevada comenda do Legislativo fluminense, a Medalha Tiradentes, igualmente outorgada ao major Ronald Pereira, outro líder da milícia. A mulher e a mãe de Aureliano trabalharam por anos, até novembro passado, no gabinete de Flávio Bolsonaro. O próprio presidente Bolsonaro na Câmara dos Deputados fez a defesa de Aureliano e exaltou as milícias.

Esses fatos levaram à tergiversação, pois em entrevista à TV a cabo Bloomberg o presidente disse: “Se por acaso Flávio errou e isso ficar provado, eu lamento como pai. Se Flávio errou, ele terá de pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. Essa manifestação provocou elogios pela imparcialidade ante o erro, a ser punido mesmo que praticado por seu filho.

No entanto, logo em seguida, entrevistado pela TV Record, o presidente claudicou e no pior paternalismo disse sobre o filho: “Ele tem explicado tudo o que acontece com ele nessas acusações infundadas. Não é justo atingir um garoto para tentar me atingir... A pressão enorme em cima dele é para tentar me atingir. Ele esteve com o seu sigilo quebrado, fizeram uma arbitrariedade em cima dele”.

O senador transmuda-se em garoto, menino perseguido para atingir o pai, sofrendo “acusações infundadas”, a mostrar que era apenas breve jogo de cena a correta e digna exigência de sancionar o erro do filho, se constatada sua falta. Próprio da ambivalência do governo durante este mês, passou o presidente de postura corajosa de imparcialidade para mais do que mera defesa do filho, ao adotar o “coitadismo”, desenhando o senador como um garoto envolvido em rede de arbitrariedades e acusações infundadas.

A “luta contra o crime” já serviu para justificar homenagens aos criminosos chefes de milícia. Servirá agora como desculpa para não se investigar o novel senador da República?

No âmbito de pretensa defesa contra o crime, surgiu o decreto presidencial que ampliou a posse de armas, podendo cada brasileiro sem antecedentes deter até quatro armas, constando como condição para aquisição de revólver que o cidadão resida em unidade da Federação cujo índice de violência apresente mais de dez homicídios por 100 mil habitantes no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018.

Valeram-se o presidente e sua equipe do Atlas da Violência produzido pela Ipea, mas se ignorou esse mesmo atlas no tocante ao capítulo relativo ao uso de armas, que enfatiza o papel central exercido pelo controle responsável de armas de fogo para a segurança de todos. Tanto é assim que destaca o atlas o aumento vertiginoso do número de homicídios nas Regiões Norte e Nordeste, tendo por uma das causas a não aplicação do Estatuto do Desarmamento.

Em 2016, manifesto de 57 especialistas, dentre os quais se pode lembrar Alba Zaluar, Cláudio Beato e Daniel Cerqueira, Sérgio Adorno, assevera: “Estudos levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo. E fazem um alerta: a miséria da política de segurança no Brasil nasce quando leis são formuladas sem levar em conta o conhecimento científico acumulado em anos de pesquisa”.

Valiosa síntese dos mais importantes estudos sobre a posse de armas como indutora de crimes, e não como redutora da violência, é apresentada por Thomas Conti: “A literatura empírica disponível é amplamente favorável à conclusão que a quantidade de armas tem efeito positivo sobre os homicídios, sobre a violência letal e sobre alguns outros tipos de crime”. Examina Conti trabalho de Donohue e outros, reputado como a mais relevante pesquisa sobre posse de armas nos Estados Unidos, cuja conclusão é de que a liberação do uso de armas está associada a maiores taxas de crimes violentos.

Em momento constrangedor, o ministro da Justiça, Sergio Moro, ao ser entrevistado na GloboNews, disse serem não confiáveis as pesquisas indicativas do risco da posse de armas. O estudo do Ipea serviu como base para autorizar a posse de armas para brasileiros de todos os Estados, mas nega-se valor a esse mesmo estudo na parte relativa ao efeito da posse de armas.
Dois pesos e duas medidas: primeiro, o senador, se errado, deve ser punido; depois, o senador passa a ser um garoto perseguido. O Atlas de Violência dá o critério para posse de armas; depois é inconsistente ao destacar o malefício da posse de armas. Ambivalência: por ora, a marca do governo.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça.


Foto: Beto Barata\PR

Miguel Reale Júnior: No alto das redes sociais

É preciso abrir frentes de interlocução com a sociedade, para não ser um presidente solitário

Na primeira eleição direta depois da ditadura, em 1989, os candidatos dos principais partidos – Ulysses Guimarães, Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas – naufragaram. O povo queria o novo. Foram para o segundo turno Collor e Lula. Collor, candidato pelo pequeno PRN, apresentou-se como o caçador de marajás, em luta contra a corrupção do governo Sarney. O populismo prevaleceu sobre a força dos partidos políticos.

De similar com aquela eleição, na deste ano busca-se o novo e há ilusão de que as dificuldades serão superadas pela figura mítica do ungido, sem nenhuma avaliação racional, como crença a pairar longe de qualquer motivo objetivo.

O sentimento antissistema e anti-PT, ao simbolizar esse partido o aparelhamento do Estado, foi um dos fatores determinantes do processo eleitoral deste ano, principalmente nos municípios mais populosos e de maior índice de desenvolvimento humano (IDHs). Entre os mil municípios com maior IDH, Bolsonaro ganhou em 967; nos mil de menor índice, Haddad venceu em 975.

A população que se sentia mais independente da tutela estatal tendeu a votar em favor do novo, ou seja, contra o sistema. Isso repercutiu na eleição de governadores novéis na política, concorrendo por partidos sem expressão. Destaque-se o inexperiente Romeu Zema, na tradicional Minas Gerais, candidato pelo Novo, vencendo o ex-governador Anastasia. Novatos, sem vivência na administração pública, surpreenderam em Estados importantes como Rio de Janeiro e Santa Catarina e no Distrito Federal, bem como em Roraima e Rondônia. Ao lado disso, velhas raposas foram derrotadas: Romero Jucá, Eunício Oliveira, Roberto Requião.

Mas esses resultados não decorreram apenas dos sentimentos de rejeição ao velho e de desejo do novo. Há outro fator essencial para esse processo ter ocorrido e a ser pensado em seus surpreendentes efeitos.

Já se sentira a força das redes sociais no processo político por via das quais se destituíram governos ditatoriais no norte da África. Se no Egito se depusera Mubarak, os movimentos democráticos não conseguiram organizar um governo. A final, fundamentalistas e militares entraram em cena.

No Brasil, as redes sociais mobilizaram imensamente a população em favor do impeachment. Depois, virtualmente, reuniram-se milhões na noite de 29 de novembro de 2016, quando se urdia votar no Congresso o projeto de lei de anistia ao caixa 1 e 2. Em reação, viralizou na internet a hashtag #MaiaNovoCunha, que se tornou trending topic, conseguindo-se impedir a vitória da impunidade.

O presidente da Câmara, ao saber da repercussão nas redes sociais, suspendeu a sessão por falta de quórum. Temer, no domingo seguinte, convocou, com imprensa presente, Maia e Renan para declarar que não haveria projeto de anistia. Em artigo nesta página, escrevi: “Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representativa deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp”.

Agora, foi-se mais adiante: a força das redes sociais se fez presente, e contundentemente, numa eleição para presidente e governador. É uma nova democracia, sobre a qual restam ainda muitas perguntas.

Se já não tínhamos partidos políticos, substituídos por frentes parlamentares ou bancadas, com seus líderes processados por corrupção, agora, sim, surgiu um golpe fatal, com uma forma de democracia direta pela via virtual.

Os órgãos intermediários fundamentais numa democracia representativa não mais exercem algum papel. Bolsonaro ganhou a eleição sem partido, sem tempo de televisão, sem deputados, sem Fundo Partidário, sem governadores do seu partido, sem programa de governo discutido com a sociedade. Apenas pregou monossilabicamente alguns princípios conservadores. Por outro lado, sindicatos, órgãos de classe, entidades associativas, igrejas exercem menos influência do que os grupos de WhatsApp, acessados a cada instante.

Cada qual se sente potente ao opinar na rede social. Todos são iguais perante a internet: esse o novo direito fundamental. O excesso de mensagem contrasta com a escassez de reflexão, pois o que importa é ter opinião, sentir-se participante.

Como diz o cientista político da Universidade de Cambridge, David Runciman, em entrevista à revista Época, edição de 29/10, a crise de confiança na democracia atinge o pacote democrático composto por eleições, partidos políticos profissionais, sindicatos, programas de políticas nacionais e escolha entre direita e esquerda.

Na falha de corpos intermediários a mediar as reivindicações, cada qual não busca meios de ser representado, apresenta-se diretamente pelas redes sociais. Como sobreviverá a democracia sem partidos, cujos resultados brotam da árvore frondosa das redes sociais? Esse é o grande desafio.

No Brasil, a questão é ainda mais angustiante: a imensa participação nas redes sociais e a desmedida expectativa de resolução das dificuldades, quase que por um passe de mágica, apenas por nos livrarmos do PT, levam ao risco imenso de uma breve desilusão.

Bem ao contrário de solução imediata e fácil, as decisões políticas e técnicas, em vista de nossa realidade complexa e complicada, exigem massa crítica no exercício da reflexão, sabedoria e traquejo políticos, escolha bem pensada de prioridades, limites de campos de combate, virtudes por ora não reveladas no front do presidente eleito.

Ao estilo de pessoa do ex-capitão, ora presidente eleito, sugere-se que é preciso, como fazia o sábio dr. Ulysses, ter a paciência de ouvir e ouvir, para só bem mais tarde decidir. Além do respeito à liberdade, é preciso abrir frentes de interlocução consistentes com a sociedade, para deixar de ser um presidente solitário no alto das redes sociais.

*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Miguel Reale Júnior: Homem incomum

 

Ele se julga acima da lei. As comparações com Tiradentes, Mandela e Jesus ajudam a entender

Em 10 de agosto de 2016, editorial deste jornal intitulado O que resta a Lula já denunciava a estratégia por ele adotada de transformar “a vitimização em sua principal – se não única – linha de defesa”. Anotava-se que o ex-presidente não se importava em achincalhar a imagem da Justiça brasileira no exterior, pois seu interesse estava em inventar argumentos que transformassem os agentes da lei, dedicados a investigá-lo, em algozes “a soldo das elites interessadas em alijá-lo da eleição presidencial de 2018”.

Essa desonesta e simplista explicação assomou a grau mais elevado diante da confirmação da condenação por unanimidade no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região. Na noite da decisão, na Praça da República, em São Paulo, Lula voltou com a cantilena ao dizer, com absoluta irresponsabilidade, ter havido um pacto entre o Poder Judiciário e a imprensa: “Resolveram que era hora de acabar com o PT e com a nossa governança no País. Eles já não admitiam mais a ascensão social das pessoas mais pobres desse país e dos trabalhadores”.

O PT, por sua vez, em nota acusa “o engajamento político-partidário de setores do sistema judicial, orquestrado pela Rede Globo, com o objetivo de tirar Lula do processo eleitoral”.

O confronto com o Judiciário, acusado de fazer parte de plano das elites para impedir a candidatura de Lula, permitiu que mal informado deputado do Bloco de Esquerda de Portugal, em artigo no jornal O Público, chegasse à desfaçatez de afirmar que o juiz Sergio Moro é “um homem do PSDB”.

A vitimização torna-se mais eficaz quando se cria um inimigo imaginário, que encarna o mal e persegue quem faz o bem apenas por maldade e egoísmo. Assim o PT e Lula decretaram o monopólio da sensibilidade moral de se preocupar e implementar soluções para a imensa desigualdade social existente no Brasil. Inventa-se um mal-estar da elite, incomodada com a melhoria de condições de vida da população pobre, como se a riqueza geral e o desenvolvimento de todos não fossem, até por motivos de lucro – se não por busca de justiça social – um objetivo da denominada “elite”.

Lula e seus acólitos relativizam a moralidade administrativa, transformando, sem nenhuma vergonha, fatos concretos de flagrante desonestidade em mera perseguição, adotando o ataque a monstros imaginários (complô do Judiciário, imprensa e elite incomodada) como expediente de defesa, na falta de argumentos jurídicos.

Mas se há um governante que se aliou às forças mais retrógradas deste país foi Lula. Tornou-se amigo dos donos e diretores das principais empreiteiras e uniu-se a políticos, homens da ditadura, representativos do que há de pior como atraso e amoralidade na nossa política: José Sarney e Paulo Maluf.

Ao Maluf foi beijar a mão em sua casa no Jardim América. De Sarney tornou-se grande amigo. Assim, em 2009, quando Sarney, presidente do Senado, era acusado de autorizar nomeações secretas, Lula disse o absurdo próprio de tratamento entre membros da elite: “Penso que ele tem história no Brasil, suficiente para que não seja tratado como uma pessoa comum. O MP deveria prestar a atenção na biografia do presidente Sarney. Sarney não roubou, não matou. Nem todo desvio administrativo é crime”.

Em 2010, ao ser perguntado, em visita ao Maranhão, se lá estava “para agradecer o apoio da oligarquia Sarney”, Lula, enraivecido, acusou o repórter de ser preconceituoso, aconselhando-o a se tratar: “Quem sabe fazer uma psicanálise para diminuir o preconceito”. Nessa entrevista, mostrou a pior mentalidade da elite atrasada ao arrematar: “Uma pessoa, na medida em que toma posse, ela passa a ser uma instituição e tem de ser respeitada”.

Na eleição de 2010, Lula apoiou Roseana Sarney como candidata ao governo do Maranhão. Agora Sarney afirma em nota: “Lula é um grande líder do Brasil. Sua condenação gera uma grande frustração a expressiva parcela do povo brasileiro. Seu amigo pessoal, sempre testemunhei sua preocupação com a coisa pública. Lamento a decisão”.

Lula considera-se alguém, tal como ajuíza Sarney, a não ser tratado como pessoa comum. Além da vitimização, apenas é possível explicar suas atitudes, após a decisão do TRF-4, como fruto de se achar também incomum, uma instituição da elite intocável pela lei; esta é para pessoas comuns. Tanto assim que bravateou, dizendo dispor-se a ficar com os três juízes um dia inteiro, televisionado ao vivo, para que lhe “mostrem qual o crime que o Lula cometeu”. Réu VIP, a merecer dos julgadores tratamento especial: passar um dia inteiro discutindo o processo com o condenado!

No dia seguinte, ungido candidato à Presidência, Lula pôs-se como juiz dos juízes, acima da lei, ao dizer não haver razão para respeitar a decisão que o condenou. As comparações com Tiradentes, Mandela e até Jesus Cristo ajudam a entender.

Quanto ao processo, Lula e seus sequazes repetem à exaustão não haver provas, acentuando o fato de não constar como dono do apartamento. Provas há, basta prestar atenção aos votos proferidos. O argumento de o imóvel não estar em seu nome é confessar o crime de lavagem de dinheiro, disfarçando a propriedade, cuja titularidade seria depois decidida, ocultando o bem recebido.

Inverte-se, com má-fé, o raciocínio: o Lula deixa de ser candidato porque foi condenado diante de fatos concretos de corrupção e lavagem de dinheiro, e não condenado para não ser candidato. Mas ser eleito presidente não deixa de ser um modo de tentar escapar dessa e de outras possíveis condenações.

Lula fala tanto de medidas em favor dos pobres, mas a herança deixada por Dilma e pelo PT foi uma imensa recessão, com PIB negativo na ordem de 3,7% e mais de 12 milhões de desempregados, além da inflação de dois dígitos. Nada foi pior para os pobres do que a errática política econômica e o populismo fiscal eleitoral do PT. Mas, isso Lula tenta esconder.

* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça