Miguel Caballero

Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid

Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.

Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.

Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.

A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.

É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.

Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.

O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.

No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.

Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.

Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.


Miguel Caballero: Tour de Bolsonaro humilha Mandetta e confunde população

O ministro Luiz Henrique Mandetta passou a semana constrangido, tentando equilibrar-se entre as recomendações dos técnicos de sua pasta e a posição do presidente Jair Bolsonaro pelo fim do isolamento, expressada em rede nacional na terça-feira. Já o chefe não viu problemas em desautorizar o subordinado.

Mandetta declarou novamente no sábado ser a favor do distanciamento social e de medidas restritivas, e no domingo Bolsonaro fez um passeio pelo comércio de rua em cidades-satélites de Brasília. As imagens pesam bem mais que palavras lidas no teleprompter em pronunciamentos em cadeia de rádio e TV.

O tour presidencial fará recrudescer especulações sobre uma demissão do ministro. O descompasso entre o presidente e Mandetta agrava um quadro em que o Bolsonaro vive às turras com os governadores. Até um dos mais próximos, Ronaldo Caiado, de Goiás, importante na indicação de Mandetta, rompeu com o presidente. A desarticulação de quem precisa organizar com urgência uma operação de contenção de uma catástrofe num país continental é alarmante, mas não é a única consequência ruim do passeio.

As imagens confundem a população. O cidadão liga a televisão e vê o mundo em quarentena, a tragédia já avançada em muitos países. O presidente pede para que saiam às ruas, mas o governador anuncia que a polícia coibirá quem descumprir o isolamento. Há contradição no próprio passeio de domingo: o “isolamento vertical” defendido por Bolsonaro faria com que ele, aos 65 anos, permanecesse em casa.

O presidente joga com a corrida entre qual tragédia terá efeitos de prazo mais imediato: a escalada da fome nos bolsões mais pobres pela interrupção da circulação de dinheiro ou a multiplicação de mortes pelo avanço do vírus.

Há um aspecto cruel nessa dinâmica. A população mais humilde é a que sofre mais a curto prazo, e de forma mais devastadora, o efeito da supressão de recursos em circulação. É, também, a que tem menos acesso à informação para identificar a irresponsabilidade do presidente.

Sair às ruas para “evitar a fome antes de evitar o vírus” é um falso dilema. O caminho possível para desatar esse nó — reconhecido pelos demais governantes e pelos economistas — é a injeção de dinheiro nas pessoas e empresas para suavizar o impacto do necessário isolamento. Possibilidade que está ao alcance apenas do governo federal.