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Merval Pereira: Abin sob controle

O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a assumir o papel de defensor das liberdades civis ao exigir que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), reformulada para atender ao desejo do presidente Bolsonaro de obter informações, muitas vezes além dos limites legais, precisará de autorização judicial sempre que quiser dados específicos de uma pessoa ou entidade.

A tônica dos votos foi a desconfiança de que o novo órgão seja usado para obter dados de todos os setores de inteligência do governo sem que o “interesse público” esteja em jogo. O futuro presidente do Supremo, ministro Luis Fux, foi direto: “Há justo receio” porque “recentemente se disse que a Abin deveria saber mais do que sabe”, referindo-se à famosa reunião ministerial onde Bolsonaro queixou-se dos órgãos de informação do governo.

A ministra Carmem Lucia, relatora da ação que deu o tom do julgamento, frisou inicialmente que “arapongagem, pra usar uma expressão vulgar, mas no dicionário, essa atividade não é direito, é crime. Praticado pelo estado, é ilícito gravíssimo”. Para ela, “qualquer fornecimento de informação, mesmo entre órgãos públicos, que não cumpra rigores formais do direito e nem atenda ao interesse público configura abuso de direito e contraria a finalidade legítima posta na lei da Abin. (…) Não é possível ter como automática a requisição sem que se saiba por que e para quê”.

O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) abrange 42 órgãos como Banco Central, Receita Federal, Polícia Federal, Coaf, Anatel, ICMbio, e a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça, que recentemente esteve envolvida na confecção de um relatório de inteligência sobre mais de 500 servidores públicos considerados opositores do governo. A própria ministra Carmem Lucia pediu explicações sobre o caso, e a primeira reação do ministro André Mendonça foi negar formalmente a existência de tal dossiê.

Depois, apertado por uma comissão da Câmara, acabou admitindo que havia um levantamento “rotineiro” sobre essas pessoas, e teve que enviar a relação para a Câmara e para o próprio STF. Alegou que não enviou primeiramente à ministra Carmem Lucia “porque ela não pediu”.

Esse episódio, que escancarou a ânsia do governo por usar serviços de inteligência para bisbilhotar a vida de oposicionistas, foi citado no julgamento, tendo o ministro Edson Fachin destacado: “(…) a ausência de protocolos claros de proteção e tratamento de dados, somada à possibilidade, narrada na inicial e amplamente divulgada na imprensa, de construção de dossiês investigativos contra servidores públicos e cidadãos pertencentes à oposição política, deve gerar preocupações quanto à limitação constitucional do serviço de inteligência”.

A Abin nasceu com a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura militar, justamente para que o trabalho de inteligência do governo fosse institucionalizado, como lembrou Fachin em seu voto: “Como bem mostrou o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o modelo adotado, ao longo do regime militar pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) como órgão da Presidência da República, não pode, sob nenhuma hipótese ser o mesmo da Abin”.

Também o ministro Luis Roberto Barroso se referiu ao SNI: “Há uma imensa desconfiança em relação à atividade de inteligência por obra do SNI. O passado condena. (…) Temos um passado que condena de utilização indevida de agências de inteligência para a proteção de interesses por vezes inconfessáveis de lideranças políticas autoritárias”.

Advogados e ministros falaram muito, durante o julgamento, na função das agências de inteligência na corrosão da democracia, e por isso a ministra Carmem Lucia salientou a diferença entre esse trabalho, necessário à defesa nacional e a “arapongagem”, que atende a objetivos políticos de governos autoritários.

O dossiê da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do ministério da Justiça será analisado pelo plenário do Supremo na próxima semana, e pelo visto na votação de ontem e por outras manifestações dos ministros, será criticado e considerado ilegal.


Merval Pereira: Por conta própria

‘Houve uma aproximação, até inadvertidamente, pois não tinha autorização do PT', diz Haddad sobre possível chapa com Ciro

O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, candidato derrotado do PT à presidência em 2018, está preocupado com a repercussão que teve a afirmação do ex-ministro Delfim Netto de que o PT traiu Ciro Gomes, viabilizando a vitória de Bolsonaro. “Me dou bem com o Delfim, é um interlocutor antigo, mas ele usou uma palavra que não faz o menor sentido. Nunca houve nenhum acordo com o Ciro para ser traído”.

Haddad admite que tentou uma aproximação com o PDT, e até que propôs que Ciro aceitasse ser vice de Lula para, sendo o ex-presidente impedido de se candidatar pela Justiça eleitoral, assumir a cabeça de chapa. Mas tudo em nome pessoal, sem o aval do PT.

“Houve uma aproximação, até inadvertidamente, pois não tinha autorização do PT, me reuni com o Ciro na casa do Chalita (Gabriel Chalita, ex-secretário de educação de Haddad em São Paulo) para conversar, para saber o que ele estava pensando”. No jantar, segundo relato de Haddad, Ciro dava como certo que o Lula não teria alternativa, e falou, inclusive, que o PT teria que fazer acordo com ele.

A certa altura, diz Haddad, o pedetista chegou a dizer: tenho tanto respeito por você, que, numa chapa nossa, nem importa quem vai estar na cabeça. “Claro que ele falou isso por diplomacia. Eu não sou bobo. O Chalita depois me chamou atenção para o gesto que o Ciro havia feito”. Haddad disse na ocasião que respeitava muito Ciro, e que ia tentar fazer essa aproximação com o PDT.

“Tentei manter as pontes. Tentei aproximá-lo e o Lupi (Carlos Lupi, presidente do PDT) do Lula, eles estavam muito distantes naquela ocasião”, recorda-se Haddad. Quando aconteceu a condenação do Lula, pouco depois desse encontro, Haddad diz que ligou para Lupi dizendo que Lula estava ressentido, pois não dera nenhuma ligação para ele. A meu pedido, relata Haddad, ele foi fazer uma visita pessoal ao Lula no Instituto.

A reunião com Ciro no escritório do ex-ministro Delfim Netto “não era para ser uma reunião política, mas para discutir projetos de desenvolvimento”, alega Haddad, que disse ter aceitado o convite de Bresser porque era o coordenador da área econômica do PT. “ Tanto que de petista só estava eu”.

"Apesar dos gestos que eu pessoalmente tinha feito de aproximação", argumenta Haddad, "não houve nenhuma tentativa de acordo para valer". Segundo relato do jornalista Mario Sérgio Conti na Folha de S. Paulo, que estava presente na reunião, tanto Haddad quanto Ciro Gomes “acham possível que o PDT e o PT formem uma chapa conjunta já para o primeiro turno, com Haddad como vice”.

Ele admite que teve uma conversa com Mangabeira Unger, professor de Harvard e ex-ministro dos governos Lula e Dilma, na presença de Carlos Sadi, professor da UFF e principal assessor do Mangabeira no Brasil, que fez uma tese sobre ele que foi orientado por Haddad. “Expliquei ao Mangabeira que seria muito difícil convencer Lula a desistir da candidatura, porque ele tinha a expectativa de que a ONU se manifestasse, e os advogados dele insistiam que havia possibilidades jurídicas, e ele estava com essa ideia fixa de que conseguiria viabilizar sua candidatura”.

"Mangabeira argumentou que a esquerda corria um risco enorme de perder, e eu fiz a proposta", alega Haddad, avisando que era a título pessoal: “O Ciro aceitaria ser vice na chapa do Lula para, em caso de impedimento, aí sim assumir a cabeça de chapa?”. Mangabeira disse que não aceitaria, nem ele achava que deveria aceitar.

Fernando Haddad diz que não desistiu de manter as pontes, e quando Lula estava para ser preso, ligou para seus amigos do PDT e falou: "Não vem ninguém do PDT aqui em São Bernardo?". (No Sindicato dos Metalúrgicos, onde Lula ficou até ser levado para a cadeia pela Polícia Federal). Haddad explica que estava pedindo “um gesto para aplainar o terreno, para ver se a gente conformava uma situação de campo (da esquerda), que defendo desde 2016”. Ele diz que desde a vitória de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos estava convencido de que a extrema-direita poderia estar no segundo turno no Brasil, e que era preciso que o “campo progressista” se unisse.

Quando perguntado se ele considerava na ocasião que uma chapa Ciro-Haddad poderia derrotar Bolsonaro, o ex-prefeito de São Paulo hesita: “Não sei. A onda da extrema-direita era muito forte”.


Merval Pereira: Bolsonaro contra todos

O presidente Bolsonaro, insistindo em politizar o combate à Covid-19, continua defendendo a retomada da economia sem base em dados reais, e admite candidamente que se a situação piorar ele será responsabilizado: “É um risco que corro”, disse, como se fosse um herói correndo riscos para salvar o emprego dos mais pobres.

Mas o risco não é dele, não, o risco é nosso, de todo o povo brasileiro, especialmente daqueles mais pobres que supostamente estaria defendendo. Na sua cruzada contra os governadores e os demais poderes da República, Bolsonaro acusa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de querer derrubá-lo em conluio com o Supremo Tribunal Federal.

Já havia se lamentado publicamente pelo fato de o STF ter dado aos governadores e prefeitos autonomia para definir regras de defesa sanitária em seus estados e municípios. Num populismo descarado, critica as medidas repressivas dos governos, para fazer com que os recalcitrantes cumpram o isolamento social ficando em casa.

As autoridades têm o poder, dado pela Constituição, de tomar medidas legais contra aqueles que põem em risco a vida da coletividade, tanto que o Código Penal considera crime “infringir determinação do poder publico destinada a impedir a introdução ou propagação de doenças contagiosas”.

Embora ressalvasse que não estava querendo incentivar a desobediência civil, incentivou na prática ao dizer que “prisões ilegais devem ser rechaçadas”. Talvez tenha sido um mero erro de português, mas não há maneira de rechaçar uma ação repressora sem um enfrentamento.

Bolsonaro posa de defensor dos direitos individuais, logo ele, que defende a tortura e a ditadura, vem agora falar em direito de ir e vir, em liberdades individuais. Não passa de uma jogada política arriscadíssima dele, que resolveu acelerar o processo de confronto com os outros poderes da República.

Claramente, sente a necessidade de se impor diante dos outros poderes, e não se conforma com a ideia de que existem limites numa democracia. A briga com o Congresso já é muito longa, mas na quinta-feira, em entrevista à CNN, sugeriu que o deputado Rodrigo Maia queria uma negociação na base da corrupção, e que o Congresso só o deixa trabalhar se fizer concessões não republicanas.

Com isso, joga o povo contra o Congresso e os governadores, numa disputa política que pode nos levar a um beco sem saída. Na democracia, não há como governar contra todas as instituições e todos os poderes. Creio que o espírito reformista continuará prevalecendo, mas o caminho que Bolsonaro está escolhendo para negociar com o Congresso indica mais um erro de estratégia.

Ele está chamando ao Planalto líderes do centrão, oferecendo cargos em troca de apoio parlamentar. Dificilmente conseguirá montar uma maioria estável dessa maneira, e talvez já seja tarde demais para isso. A previsão de que o pico da pandemia ainda está por vir fragiliza sua tentativa de abrir a economia em curto prazo, pois esse gesto temerário poderá deteriorar ainda mais sua imagem pública.

A perspectiva de crescimento do número de infectados e de mortes isolará o país se oficializarmos uma política sanitária contrária às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). O presidente Bolsonaro falou em abrir as fronteiras do país, mas do jeito que as coisas vão, temo que os países fronteiriços é que controlarão a entrada e saída pelo Brasil, com receio da medidas de relaxamento sanitário.

Uma coisa é preparar um planejamento para a volta gradativa à normalidade, outra é decidir esse passo sem cumprir as exigências mínimas da própria OMS, que prevê capacidade do sistema de saúde de testagem para controle da transmissão; minimizar surtos em asilos de idosos; administrar a importação dos casos; engajamento da sociedade e prevenção no trabalho e escolas.

Caso aconteça uma saída da quarentena não negociada com toda a sociedade, e apoiada pela maioria, estaremos diante de um impasse constitucional, pois nem o Congresso nem o Supremo aprovarão. Impasse fomentado por Bolsonaro com segundas intenções – de ganhar cada vez mais poderes.


Merval Pereira: Seguro destrabalho

Tão imediato quanto o desafio da Saúde, são os desafios social e econômico, sob risco alto e crescente de convulsão

A crise do Covid-19 destampou a panela da pressão social que iria explodir em algum momento, sobretudo em países com tanta desigualdade quanto o Brasil, mas não apenas aqui. Tão premente quanto o desafio da saúde, são os desafios social e econômico, sob risco alto e crescente de convulsão e desordem pública.

Com base nesse diagnóstico, o economista José Roberto Afonso, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), um dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal e, agora, do orçamento de guerra montado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia, adverte que o Estado brasileiro tem que se adaptar às mudanças ocorridas no mercado de trabalho.

Os trabalhadores independentes, formalizados como microempreendedores (MEI) e como empresas individuais, ou até coletivas de um grupo de profissionais, se somaram ou substituíram os registrados como autônomos. Ele ressalta que no final de 2019, segundo dados do IBGE, os empregados com carteira de trabalho correspondiam a apenas 37,5% dos trabalhadores ocupados, enquanto os donos de negócios já respondem por 30,7%.

“Uma parcela enorme, crescente e majoritária dos trabalhadores já não é abrangida pela proteção social clássica – mesmo antes de se saber o que é Covid-19. Sem emprego, sem previdência, sem estado”. É preciso, inicialmente, proteger e, depois, reinserir na sociedade e na economia, os milhões que já estavam vivendo à sua margem, e que agora foram expostos ao mundo em suas dificuldades para necessidades básicas.

Para José Roberto Afonso, o desafio não é voltar para onde se estava antes, mas sim caminhar para uma nova realidade socioeconômica, um Estado inteligente, como falamos na coluna de ontem. O caminho mais fácil seria manter e fortalecer o estado do bem-estar social, mas assentado sobre outras bases de financiamento, que não apenas o salário, ou seja, buscar outras fontes de recursos para custear a política social.

O Brasil, ressalta José Roberto Afonso, dentre as grandes economias, é das que menos responde pelo gasto nacional com tal função, apesar de ter um dos maiores sistemas públicos de saúde (SUS) do mundo. De acordo com dados da OCDE, 57% do gasto com saúde no Brasil é privado, em nossa vizinha Colômbia, por exemplo, este percentual é de apenas 26%.

Como só o poder público poderá dar renda e trabalho aos que já estavam isolados, social e economicamente, Afonso acredita que esta é uma oportunidade única para se criar, em poucas semanas, o seguro-destrabalho, uma expansão inevitável e inovadora do seguro-desemprego, ao qual só acessa quem perde um emprego com carteira.

Enquanto receber o seguro-destrabalho, o trabalhador deveria receber formação e treinamento, para melhorar sua qualificação e suas chances de conseguir algum trabalho que lhe permita dispensar o benefício.

Enquanto em tempos normais o FAT financiaria o seguro-destrabalho, agora, em momento de guerra, os recursos seriam complementados a partir do aumento da dívida pública. Desde já cabe buscar alternativas para a previsível automação e digitalização que chegará de forma avassaladora para destruir postos de trabalho.

Individualmente, a integração do trabalhador isolado poderia passar por migrar do seguro-destrabalho para se tornar uma forma de MEI-Social, para o chamado terceiro setor do empreendedorismo social, e mesmo diretamente para empresas privadas. Em país de dimensão continental, as prefeituras poderiam liderar a mobilização local, inclusive com políticas de compras públicas dirigidas aos pequenos produtores e prestadores de serviços de suas redondezas.

Na era da big data não faltam recursos tecnológicos e com poucos recursos financeiros se pode integrar cadastros e criar um que seja realmente único e nacional, com um só número de identificação dos trabalhadores.

A pandemia botou em causa a ideia de concentrar a produção mundial em poucos centros. Muito do que hoje vem do outro lado do planeta poderá e deverá migrar para ser feito dentro do país ou do continente. Resolver de vez e rapidamente a absurda falta de saneamento são oportunidades para obras que impulsionam a economia.