Merval Pereira

Merval Pereira: O pleno se pronuncia

O resultado de 9 a 2 no julgamento de ontem, confirmando que o plenário do Supremo Tribunal Federal pode julgar a decisão do ministro Edson Fachin de enviar à Justiça do Distrito Federal os processos contra o ex-presidente Lula não relativos à Petrobras, não reflete necessariamente a posição da maioria quanto à suspeição do ex-ministro Sergio Moro, decidida pela Segunda Turma. Embora possa indicar que a mudança de foro de Curitiba para o Distrito Federal será aprovada.

A figura política do ex-presidente Lula pairou sobre os votos de ontem, embora muitas vezes não tenha sido citado. O ministro Ricardo Lewandowski, que mencionou o ex-presidente diversas vezes em seu voto e em suas intervenções, chegou a afirmar que o tema só estava sendo discutido no plenário porque se tratava de Lula. Foi rebatido pelo presidente Luiz Fux, que lembrou que é inegável que o julgamento é importante porque diz respeito à Operação Lava-Jato e ao combate à corrupção no país.

Lewandowski foi o que mais politizou o tema, chegando a dizer que julgamentos do Supremo levaram a que Lula não pudesse concorrer à disputa em 2018, o que, segundo ele, poderia ter mudado para melhor o futuro do país.

O resultado de ontem foi uma derrota dos advogados da defesa do ex-presidente Lula, que queriam que o recurso da Procuradoria-Geral da República fosse tratado na mesma Segunda Turma. No plenário, a possibilidade de derrota é maior, embora possa não se confirmar.

A mudança de foro dos processos de Lula, de Curitiba para o Distrito Federal, decretada pelo ministro Edson Fachin, deve ser mantida pela vasta maioria do plenário, mas suas consequências em relação ao ex-juiz Moro ainda dependem do tamanho da divisão do plenário.

Os três ministros que votaram pela suspeição de Moro na Segunda Turma — Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Lewandowski — já reafirmaram seus votos no julgamento de ontem, em comentários paralelos. A discussão de hoje será em torno de um paradoxo jurídico: um juiz pode ser considerado incompetente para julgar um caso e, ao mesmo tempo, suspeito?

A decisão da maioria de admitir julgar o caso no plenário pode significar que, aprovando a tese de Fachin, o julgamento da isenção de Moro fica prejudicado. No entanto, para explicitar que seu voto não significa a análise do mérito, a ministra Cármen Lúcia reiterou que o plenário do Supremo não é órgão revisor da decisão das turmas e, portanto, não tem poderes para alterá-la.

Essa tese parece ter boa aceitação, sem que seja possível, no entanto, definir qual será a decisão final. Relator da Lava-Jato no Supremo, Fachin considera que o julgamento da suspeição perdeu sentido com a mudança de foro, e tem adeptos dessa tese.

O que estará sendo julgado, subjacente à suspeição, é o destino dos processos da Operação Lava-Jato. Caso Moro seja considerado suspeito no caso do triplex do Guarujá, todas as operações e investigações já ocorridas durante a tramitação desse processo em Curitiba serão anuladas, e ele terá que ser iniciado da estaca zero, o que poderá garantir sua prescrição.

A derrubada da suspeição manterá a elegibilidade do ex-presidente Lula, mas dará ensejo a que os novos juízes utilizem, em parte ou no todo, o material colhido pela força-tarefa de Curitiba em todos os processos, o que, em tese, faria com que Lula ficasse com uma espada de Dâmocles sobre sua candidatura à Presidência da República.

O ministro Marco Aurélio, ontem um dos dois votos contrários a que o plenário examinasse o recurso da Procuradoria-Geral da República, ironizou o fato de o ex-juiz Moro ter passado de herói nacional a bandido, indicando talvez que vote contra a decisão de suspeição tomada na Segunda Turma. Mas a tese de Cármen de que a decisão da Turma não pode ser revista tem seu peso. A grande questão é que a suspeição de um processo pode levar a que outros julgados por Moro venham a ser considerados nulos também pela Turma, o que prejudicaria toda a operação Lava-Jato e proporcionaria a revisão de todos os julgamentos do ex-juiz Moro.


Merval Pereira: Supremo sob pressão

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem amanhã em sua pauta dois julgamentos com implicações políticas relevantes, e, por isso, seus ministros estão sob intensa pressão dos extremos, de lulistas e bolsonaristas. O próprio presidente Bolsonaro tratou de explicitar essa pressão ao sugerir a um senador que impulsione um processo de impeachment de ministro do STF, afirmando que, fazendo isso, conseguiriam barrar a CPI da Covid que o ministro Luís Roberto Barroso autorizou o Senado a instalar, cumprindo o que manda a Constituição.

O outro tema a ser julgado, a suspeição do ex-ministro Sergio Moro, está sob intenso tiroteio de um grupo de advogados criminalistas chamado “Prerrogativas”, que soltaram suas baterias contra o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo. Coadjuvantes do PT, que também ameaça o plenário do Supremo por meio de seu site oficial, colocando como pontos intocáveis “tanto a anulação das sentenças quanto o julgamento da suspeição de Moro”. E advertem: “Não toquem nos direitos de @LulaOficial”.

O diálogo do senador Kajuru com o presidente Bolsonaro, gravado pelo primeiro, que o divulgou, é uma prova evidente de uma conspiração de interferência do Executivo no Legislativo, embora a intenção do senador ao divulgar a conversa não tenha sido denunciar Bolsonaro, muito ao contrário. Bolsonaro acha que caiu numa armadilha, e Kajuru garante que o avisou de que divulgaria. Seja como for, o diálogo revela o baixo nível em que são tratados os assuntos mais importantes do país.

A CPI da Covid é fundamental para que sejam punidos os responsáveis por essa crise humanitária sem precedentes por que estamos passando, com a culpa claramente exposta do presidente da República, devido a sua intransigência quanto às orientações científicas de proteção da população que governa. Sua teimosia em rejeitar atitudes como distanciamento social ou uso de máscara tem fundamentos políticos rasteiros. Não compreende que o que permitirá a retomada econômica é a vacinação em massa, não o morticínio em busca de uma imunidade coletiva que não acontecerá.

O outro tema da tarde de amanhã, que deve entrar por quinta-feira, é a analise, pelo plenário do Supremo, da decisão do ministro Fachin de tirar de Curitiba os processos contra o ex-presidente Lula, enviando-os à Justiça Federal em Brasília. Com isso, as condenações foram anuladas, e Lula tornou-se elegível. Mas o PT e os membros do “Prerrogativas” não admitem que os 11 ministros votem com suas consciências e passaram a pressioná-los por meio de artigos em jornais, manifestos e declarações nas redes sociais.

A questão deles é temer que, derrubada a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no plenário do Supremo, as provas e investigações contra Lula possam ser aproveitadas pelo novo juiz, já que não foram produzidas por um juiz suspeito, como definiu a Segunda Turma contra a decisão de Fachin, que considerou que o julgamento não deveria começar por ter perdido o objeto com a mudança de foro.

Três advogados membros do “Prerrogativas” escreveram um manifesto onde, depois de divagar filosófica e profundamente sobre o paradoxo do biscoito Tostines, que “vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais”?, dizem que nunca pressionaram o STF, mas advertem ao final, na mesma linha da postagem oficial do PT, que o grupo “Não se furtará, evidentemente, a denunciar estratégias processuais e interpretações regimentais heterodoxas para que determinado e especifico objetivo seja atingido”. Ou seja, não mudem nenhuma decisão que favoreça o ex-presidente Lula.

Um dos autores do texto, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do “Prerrogativas”, já havia dito que o ministro Fachin estava arquitetando “uma manobra com objetivos políticos”. A advogada Carol Proner, também do grupo, afirmou numa entrevista no YouTube que o ministro Fachin, ao afirmar que o plenário do STF pode reverter a decisão da Segunda Turma, anulando a condenação por suspeição do ex-ministro Moro, está defendendo “um verdadeiro golpe jurídico”. Se isso não é pressão de uma parte interessada, por motivos diversos, em um determinado veredito, não sei o que é.


Merval Pereira: Reserva de mercado

O ministro Edson Fachin, relator dos processos da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), levou à luz uma discussão jurídica que os criminalistas que defendem condenados na operação não gostariam de reabrir. O “Prerrogativas”, ou “Prerro” para os íntimos, formado por advogados criminalistas que se julgam proprietários da verdade jurídica, reagiu com rispidez a uma entrevista que Fachin deu à revista Veja, como se ele anunciasse “uma manobra com objetivos políticos”.

O que disse Fachin na entrevista? “O caso ainda não terminou”, referindo-se ao julgamento da próxima quarta-feira sobre sua decisão de enviar para a Justiça Federal em Brasília os processos do ex-presidente Lula. A medida cancelou as condenações já havidas, mas manteve íntegras as investigações e as provas coletadas na 13ª Vara de Curitiba.

Para ele, o plenário do Supremo pode rever a decisão da 2ª Turma que aprovou a suspeição de Moro por 3 a 2. Como relator, Fachin havia determinado que o processo de suspeição perdera o objeto, mas o ministro Gilmar Mendes, presidente da Turma, decidiu dar prosseguimento, com o apoio de 4 dos 5 ministros que a compõem. Diz Fachin: “Não seria inusual o plenário derrubar a suspeição da Turma”.
Ele lembra que vinha sendo constantemente derrotado, e que nos últimos anos “consolidou-se uma relatoria mais restrita da Lava-Jato no Supremo”. Por isso, levando em conta a maioria já fixada, considerou que deveria dar ao ex-presidente Lula o mesmo tratamento dado pela maioria a outros acusados em situação análoga.

A possibilidade de que o ex-juiz Sérgio Moro venha a ser reconhecido insuspeito pela maioria do plenário do Supremo parece assustar esses advogados, mas o coordenador do grupo acrescenta um comentário estranho: “Eleições devem ser disputadas nas urnas”. A que estaria se referindo? Já que o caso nada tem a ver com Lula, pois mesmo que Moro seja insuspeito, ele continuará elegível, quer impedir que Moro venha a ser candidato à presidência? Nesse caso, quem estaria pressionando o relator da Lava-Jato com fins políticos seria o próprio grupo “Prerrô”.

Outro dia escrevi uma coluna com o título “11 cabeças, uma sentença” na qual explorava algumas possibilidades da decisão do plenário, sobretudo sobre a de a maioria reverter a decisão de Fachin, levando de volta para a 13ª Vara de Curitiba os processos. O ministro Fachin pensa de outra maneira, de acordo com sua entrevista, e considera possível que a suspeição seja anulada se a maioria concordar com ele e decidir que Moro era incompetente para julgar os processos. Incompetente porque o foro natural seria o Distrito Federal, não Curitiba, mas não suspeito, como decidiu a 2ª Turma.

Na sequência da coluna, especulei sobre a possibilidade de o próprio Fachin votar contra seu relatório, já que disse na sua decisão que a tomava para obedecer à maioria, mas que divergia pessoalmente. Não sabia, como não sei, o que o ministro Fachin fará, apenas tratei de uma possibilidade. Foi o bastante para que os mesmos criminalistas vissem ridiculamente nessa especulação uma tentativa de pressionar ministros do STF, especialmente Fachin.

Ao aventarem tal possibilidade, estavam, eles sim, tentando pressionar ministros para que não mudem de posição, o que é mais comum do que fazem supor na sua falsa indignação. O que temem é perder a reserva de mercado, e que seus clientes, especialmente o ex-presidente Lula, percam vantagens que podem ter se o ex-juiz Sérgio Moro for considerado suspeito. Todos entrarão com recursos querendo anular suas condenações com a mesma base de suspeição de Moro. E prescrições de penas acontecerão.

Relembrarei um caso emblemático. A ministra Rosa Weber votou sempre contra a possibilidade de prisão em segunda instância mas, derrotada, passou a adotar a decisão da maioria em suas sentenças.

Quando houve novo julgamento no pleno do Supremo sobre o mesmo tema, ela voltou à posição anterior, explicando que acompanhara a maioria até ali, mas que sua posição pessoal sempre foi a favor da prisão apenas após o trânsito em julgado.

Com sua mudança, o Supremo Tribunal Federal (STF) alterou a jurisprudência, e o ex-presidente Lula foi solto. Não vi esses criminalistas protestarem.


Merval Pereira: LSN, incompatível com a democracia

Assim como chegou a vez de extinguir a Lei de Imprensa promulgada na ditadura militar, graças à ação, em 2009, do então deputado federal Miro Teixeira, jornalista e advogado, parece ter chegado ao fim a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer colocar em votação um pedido de urgência para a análise de um projeto de lei que revisa integralmente a LSN. As mesmas razões se impõem hoje. Conforme argumentou na ocasião Miro Teixeira, a Lei de Imprensa imposta pela ditadura militar continha dispositivos incompatíveis com o Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988, como a prisão de jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.

Com sua revogação, as questões envolvendo notícias ou comentários têm nos Códigos Civil e Penal sua resolução. Também a Lei de Segurança Nacional (LSN) tem servido de base para diversas ações do atual governo contra seus opositores, jornalistas e cidadãos em geral. Dados oficiais mostram que, nos últimos 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, mais do que em qualquer período dos últimos 20 anos, quando foi usada 155 vezes.

O artigo 26, que considera crime “caluniar o Presidente da República, o do Senado federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, é o mais usado para coagir os críticos do governo. O projeto de lei na Câmara pretende alterá-lo para considerar crime apenas atentados contra a integridade física de autoridades, cuja pena pode chegar a 30 anos em caso de morte.

Uma dificuldade, ou um constrangimento, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a LSN é que ele a vem utilizando em inquéritos sobre os ataques desferidos contra o próprio Supremo, nas manifestações antidemocráticas acontecidas e na prisão do deputado Daniel Silveira.

Existe, porém, uma explicação jurídica para isso: a lei está em vigor até que seja extinta. Também a Lei de Imprensa era usada para processar jornalistas ou exigir direito de resposta, até ser revogada. Por isso mesmo, deve ser extinta. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de ações no Supremo que pedem que a LSN seja revogada, deu cinco dias para que o Ministério da Justiça justifique o uso da lei contra os que supostamente ofenderam o presidente da República.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional precisa de uma revisão, ou mesmo revogação completa, para sanar as “inconstitucionalidades variadas”. Ele falou em seminário virtual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, considerando a LSN “uma obsessão mais com a segurança do Estado do que com a institucionalização da democracia e com o exercício pleno da cidadania”.

Ao afirmar que a LSN não se coaduna com a atualidade da sociedade brasileira, o ministro Barroso está entrando numa questão jurídica que vem sendo debatida desde a promulgação da Constituição de 1988: a recepção das leis anteriores. O jurista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal e advogado de presos políticos, que atuou na Constituinte como assessor, defende desde sua tese de 1994, com que foi aprovado como professor titular da Universidade Federal Fluminense, que, como definiu o jurista austríaco Hans Kelsen, as leis incompatíveis com o espírito de uma nova Constituição não são “recepcionadas”por ela, e considera que a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma delas e deveria ser tratada não apenas como inconstitucional, mas “ilegal”.

Para ele, “há um direito novo que o pacto político alargou e que a Constituição refletiu. Os novos preceitos constitucionais permitem uma outra leitura do direito, um novo impulso em que as regras velhas se vestem com novas roupagens para ser aceitas na festa da democracia”.


Merval Pereira: Homens pequenos

Quem atentar para o número de vezes em que a defesa da liberdade está sendo utilizada para a consumação de atos nocivos à sociedade dará razão ao Marquês de Maricá (Rio, 1773-1848): “Quando em um povo só se escutam vivas à liberdade, a anarquia está à porta e a tirania pouco distante”. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques de liberar os cultos religiosos presenciais no auge da pandemia — certamente para agradar ao presidente Bolsonaro — foi errada em todos os sentidos, mesmo que a liberdade religiosa seja usada para a defesa da tese.

O “novato”, como o qualificou o decano do Supremo, ministro Marco Aurélio Mello, foi contra a deliberação do próprio STF, que já decidira que prefeitos e governadores têm a prerrogativa para decidir sobre as restrições durante a pandemia. No afã de atender aos evangélicos, foi além do pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que estava preocupada com decretos estaduais e municipais que proibiram a realização de cultos evangélicos até mesmo para transmissão pela internet, o que é um absurdo.

Nunes Marques liberou completamente os cultos presenciais, com algumas restrições, como distanciamento entre os fiéis e uso de máscara. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de duas ações no Supremo sobre o tema, rejeitou ontem o pedido do PSD de São Paulo contra a decisão do governo de São Paulo de proibir os cultos presenciais. Para o ministro, “em cenário tão devastador, é patente reconhecer que as medidas de restrição de cultos coletivos, por mais duras que sejam, são não apenas adequadas, mas necessárias ao objetivo maior de realização de proteção da vida e do sistema de saúde”.

O plenário do Supremo julgará o caso amanhã, e deverá manter a proibição, deixando claro que os atos pela internet podem ser realizados. Para dar um toque patético ao caso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo que tire a relatoria do ministro Gilmar Mendes e a passe ao ministro Nunes Marques, autor da autorização mais realista que o rei. O que uma disputa de vaga do Supremo, que pode ser decidida a favor de um candidato “terrivelmente evangélico”, não faz? Decisões monocráticas estão transformando o STF em 11 Supremos. Cada ministro tem uma ideia na cabeça e exerce seu direito de liminar, fazendo vista grossa para decisões do colegiado.

Outro uso cinicamente ampliado do que seja liberdade individual está na insistência do presidente Bolsonaro na defesa de “tratamento precoce” no combate ao coronavírus da pandemia. Ele ontem voltou a dizer que a “liberdade dos médicos deve ser total” na prescrição de remédios que possam minorar os efeitos da Covid-19. Só que não existe esse remédio, segundo orientação da Organização Mundial da Saúde. Já há decisão formal de que a cloroquina não deve ser usada, pelo alto risco, inclusive de morte. A Anvisa já detectou nove mortes devido ao uso da cloroquina ou hidroxicloroquina.

Também o novo ministro da Defesa, general Braga Netto, excedeu-se no uso da palavra “liberdade” quando disse em discurso: “As Forças são fiéis às suas missões constitucionais, de defender a pátria, garantir os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”. Já a Constituição, em seu artigo 142, diz que as Forças Armadas destinam-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa de qualquer destes, a lei e a ordem”.

Portanto, nenhuma referência na Constituição ao papel das Forças Armadas na defesa “das liberdades democráticas”. Basta que cumpram suas missões constitucionais que estarão a salvo, sem que o artigo 142 seja distorcido para validar intervenções militares, como querem bolsonaristas de vários calões. Uso mais uma vez o Marquês de Maricá para terminar: “Os grandes empregos desacreditam e ridicularizam os pequenos homens”.


Merval Pereira: Quem estica a corda?

Do jeito que a coisa vai, o Exército brasileiro será colocado à prova muito em breve, quando o presidente da República resolver decretar o estado de sítio, ou estado de defesa, ou qualquer medida emergencial para calar os que o criticam e controlar as instituições. O ex-comandante do Exército e general Eduardo Villas Bôas revelou em entrevistas que a instituição foi sondada por emissários petistas para apoiar a decretação de estado de defesa durante a tramitação no Congresso do processo de impeachment que acabou tirando Dilma Rousseff da Presidência da República. O general disse que assessores militares no Congresso foram procurados, mas o Exército rechaçou a sondagem.

A ex-presidente negou ter acontecido tal episódio e desafiou Villas Bôas a revelar quem foi o emissário petista, mas não obteve resposta. De qualquer maneira, no relato do general, um ícone do Exército, autor de um famoso tuíte, às vésperas do julgamento de um habeas corpus para Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), interpretado como pressão sobre os ministros para que não soltassem o ex-presidente, o Exército brasileiro rejeitou uma tentativa de golpe, o que seria uma atitude em defesa da democracia e do estado de direito.

O que se coloca hoje é qual seria a atitude do Exército, do qual Bolsonaro é oriundo e de cujo governo diversos militares, inclusive da ativa, fazem parte, se o presidente tentasse recorrer a uma regra constitucional excepcional para impedir que seus adversários políticos se pronunciem ou que manifestações a favor do impeachment prosperassem?

O presidente Bolsonaro usa o que chama de “meu Exército” para respaldar suas sandices, como fez domingo, em frente ao Palácio da Alvorada, saudado por centenas de apoiadores. Voltou a chamar os governadores e prefeitos que estão decretando medidas de restrição social, e em alguns casos lockdown, de “tiranetes ou tiranos” que, segundo ele, “tolhem a liberdade de muitos de vocês”.

Anteriormente, ele já dissera que estava chegando o momento “de tomar medidas duras” e comparou o fechamento de comércio e outros estabelecimentos a uma medida de exceção como o estado de sítio. Mais uma vez, fazendo prognósticos sombrios sobre fome dos cidadãos, perguntou: “Será que o governo federal vai ter que tomar uma decisão antes que isso aconteça? Será que a população está preparada para uma ação do governo federal dura no tocante a isso?”.

No domingo, retomou o tema, afirmando que poderiam contar “com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”. O presidente voltou a advertir que “estão esticando a corda” e que faria qualquer coisa “pelo meu povo”. Esse discurso delirante leva novamente à discussão sobre a tendência de Bolsonaro usar o Exército como arma de ataque aos que considera seus inimigos, agora sendo a vez de governadores e prefeitos. Tendo entrado no Supremo contra medidas de isolamento social adotadas no Distrito Federal e nos estados da Bahia e do Rio Grande do Sul, o presidente Bolsonaro faz uma pegadinha com os ministros.

Ele sabe que a tendência é negarem seu pedido, ou simplesmente nem o examinarem, pois o Supremo já decidiu sobre o assunto, dando poderes aos estados e municípios para tomar as medidas necessárias, sem retirar do Executivo qualquer iniciativa que deva ser adotada. Quer simplesmente Bolsonaro reafirmar sua tese de que o STF e os governadores não o deixam governar, uma tese mentirosa e perigosa, pois pode embasar a tentativa de golpe que ameaça sempre.

O fato é que Bolsonaro, com o desastre que patrocina no combate à Covid-19, está perdendo apoio, o que demonstra a carta dos economistas divulgada na coluna de domingo, que desmascara a tese de que é a esquerda que está contra seu governo. E também apoio político, pois até mesmo o Centrão já está temeroso de continuar uma aliança acriticamente, só pensando nas benesses imediatas, sem medir as consequências de longo prazo de estar abraçado a um presidente que pode naufragar nessa travessia.


Merval Pereira: Lockdown emergencial

Centenas de economistas, entre eles quatro ex-ministros da Fazenda (Marcilio Marques Moreira, Pedro Malan, Mailson da Nóbrega e Rubem Ricupero), cinco ex-presidentes do Banco Central (Afonso Celso Pastore, Arminio Fraga, Gustavo Loyola, Ilan Goldfajn e Pérsio Arida), ex-presidentes do BNDEs (Edmar Bacha, Eleazar de Carvalho) dentre outros, abrangendo diversas gerações de economistas, pessoas da academia, do mercado financeiro, ex-membros de governos diversos, e empresários lançaram uma Carta intitulada “País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, a propósito da atual crise brasileira, com sugestões concretas do que deve ser feito para tentarmos superar a pandemia da Covid-19.

Diante de situação econômica e social “desoladora”, e de um governo que “subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”, eles sugerem até mesmo a possibilidade de adoção de um lockdown nacional. Calculam que a redução do nível da atividade nos custou menos do que o atraso na vacinação:

“Uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres”.

Segundo os economistas, “o efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social” e, além do auxílio emergencial, “não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais”.

O documento destaca que “a experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade”. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

As medidas imediatas seriam:

1 - Acelerar o ritmo da vacinação, usando a política externa para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores, seja nos que têm ou terão excedentes em breve.

2 - Incentivar o uso de máscaras, tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. O Brasil poderia distribuir máscaras à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial.

3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local, com coordenação nacional. As decisões devem ser de responsabilidade das autoridades locais. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção.

O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social.

4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas.

“O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos em que o país incorre”.

Integra da carta:

O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo

Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia

O Brasil é hoje o epicentro mundial da Covid-191, com a maior média móvel de novos casos.

Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.

A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano². A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.

A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados³.

Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.

O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.

As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.

No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.

Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.

Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.

Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.

Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.

O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.

A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de Covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia – é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.

Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.

O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.

Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.

O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.

Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.

1 - Acelerar o ritmo da vacinação. O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa – desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos – para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.

A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.

Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.

2 - Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes – máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 – como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, xplicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da Covid.

Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.

3 - Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo “distanciamento social” abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e – no limite – escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.

Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país. A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.

Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.

Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo26. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.

As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais – principalmente as mães – para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.

Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.

4 - Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional – preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores – orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social. Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertaçãoentre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.

O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao Covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.

Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.

O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.

Assinam esta carta (até às 15.30hs de sábado (20/03):

1 - Affonso Celso Pastore
2 - Alexandre Lowenkron
3 - Alexandre Rands
4 - Alexandre Schwartsman
5 - Álvaro de Souza
6 - Amanda de Albuquerque
7 - Ana Carla Abrão
8 - André de Castro Silva
9 - André Luis Squarize Chagas
10 - André Magalhães
11 - André Portela
12 - Andrea Lucchesi
13 - Angélica Maria de Queiroz
14 - Aod Cunha
15 - Armínio Fraga
16 - Beny Parnes
17 - Bernard Appy
18 - Bráulio Borges
19 - Braz Camargo
20 - Carlos Alberto Manso
21 - Carlos Ari
22 - Carlos Brunet Martins Filho
23 - Carlos Góes
24 - Carolina Grottera
25 - Cassiana Fernandez
26 - Christiano Penna
27 - Claudia Sussekind Bird
28 - Claudio Considera
29 - Cláudio Frischtak
30 - Claudio Ribeiro de Lucinda
31 - Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt
32 - Daniel Cerqueira
33 - Daniel Gleizer
34 - Danielle Carusi Machado
35 - Danilo Camargo Igliori
36 - Demósthenes Madureira de Pinho Neto
37 - Dimitri Szerman
38 - Edmar Bacha
39 - Eduardo Amaral Haddad
40 - Eduardo Augusto Guimarães
41 - Eduardo Mazzilli de Vassimon
42 - Eduardo Pontual
43 - Eduardo Souza-Rodrigues
44 - Eduardo Zilberman
45 - Eduardo Zylberstajn
46 - Eleazar de Carvalho
47 - Elena Landau
48 - Fabiana Rocha
49 - Fábio Barbosa
50 - Fabio Giambiagi
51 - Felipe Salto
52 - Fernando Genta
53 - Fernando Postali
54 - Fernando Veloso
55 - Flávio Ataliba
56 - Francisco Ramos
57 - Francisco Soares de Lima
58 - Gabriella Seiler
59 - Genaro Lins
60 - Giovanna Ribeiro
61 - Guilherme Irffi
62 - Guilherme Tinoco
63 - Guilherme Valle Moura
64 - Gustavo Gonzaga
65 - Gustavo Loyola
66 - Helcio Tokeshi
67 - Helena Arruda Freire
68 - Henrique Félix
69 - Horácio Lafer Piva
70 - Humberto Moreira
71 - Ilan Goldfajn
72 - Isacson Casiuch
73 - Joana C.M. Monteiro
74 - Joana Naritomi
75 - João Mário de França
76 - José Augusto Fernandes
77 - José Monforte
78 - José Olympio Pereira
79 - José Roberto Mendonça de Barros
80 - José Tavares de Araujo
81 - Josué Alfredo Pellegrini
82 - Juliana Camargo
83 - Juliano Assunção
84 - Laísa Rachter
85 - Laura de Carvalho Schiavon
86 - Laura Karpuska
87 - Leandro Piquet Carneiro
88 - Leane Naidin
89 - Leany Barreiro Lemos
90 - Leonardo Monteiro Monasterio
91 - Leonardo Rezende
92 - Lucas M. Novaes
93 - Lucia Hauptmann
94 - Luciano Losekann
95 - Luciene Pereira
96 - Luís Meloni
97 - Luis Terepins
98 - Maílson da Nóbrega
99 - Manoel Pires
100 - Manuel Thedim
101 - Marcela Carvalho Ferreira de Mello
102 - Marcelo André Steuer
103 - Marcelo Barbará
104 - Marcelo Cunha Medeiros
105 - Marcelo de Paiva Abreu
106 - Marcelo F. L. Castro
107 - Marcelo Fernandes
108 - Marcelo Justus
109 - Marcelo Kfoury
110 - Marcelo Leite de Moura e Silva
111 - Marcelo Pereira Lopes de Medeiros
112 - Marcelo Trindade
113 - Marcílio Marques Moreira
114 - Márcio Garcia
115 - Márcio Holland
116 - Márcio Issao Nakane
117 - Marco Bonomo
118 - Marcos Lederman
119 - Marcos Ross Fernandes
120 - Maria Alice Moz-Christofoletti
121 - Maria Cristina Pinotti
122 - Maria Dolores Montoya Diaz
123 - Mário Ramos Ribeiro
124 - Marisa Moreira Salles
125 - Maurício Canêdo Pinheiro
126 - Mauro Rodrigues
127 - Miguel Nathan Foguel
128 - Mônica Viegas Andrade
129 - Naercio Menezes Filho
130 - Natália Nunes Ferreira-Batista
131 - Nilson Teixeira
132 - Octavio de Barros
133 - Otaviano Canuto
134 - Patrícia Franco Ravaioli
135 - Paula Carvalho Pereda
136 - Paula Magalhães
137 - Paulo Hartung
138 - Paulo Hermanny
139 - Paulo Ribeiro
140 - Paulo Tafner
141 - Pedro Bodin de Moraes
142 - Pedro Cavalcanti Ferreira
143 - Pedro Henrique Thibes Forquesato
144 - Pedro Malan
145 - Pedro Moreira Salles
146 - Persio Arida
147 - Priscilla Albuquerque Tavares
148 - Rafael B. Barbosa
149 - Rafael Dix-Carneiro
150 - Regina Madalozzo
151 - Renato Fragelli
152 - Renê Garcia Jr.
153 - Ricardo de Abreu Madeira
154 - Ricardo Markwald
155 - Roberto Bielawski
156 - Roberto Iglesias
157 - Roberto Olinto
158 - Rodrigo Menon S. Moita
159 - Rogério Furquim Werneck
160 - Ruben Ricupero
161 - Ruy Ribeiro
162 - Sabino da Silva Porto Júnior
163 - Samira Schatzmann
164 - Samuel Pessoa
165 - Sandra Rios
166 - Sérgio Besserman Vianna
167 - Sergio Margulis
168 - Silvia Matos
169 - Solange Srour
170 - Stephanie Kestelman
171 - Synthia Santana
172 - Thomas Conti
173 - Tiago Cavalcanti
174 - Tomás Urani
175 - Vagner Ardeo
176 - Vilma da Conceição Pinto
177 - Vinicius Carrasco
178 - Vinícius de Oliveira Botelho
179 - Vitor Pereira
180 - Walter Novaes
181 - Wilfredo Leiva Maldonado


Merval Pereira: Rejeição em alta

Todas pesquisas recentes revelam queda na popularidade do presidente Bolsonaro, que mantém ainda cerca de 25% a 30% de apoio, mas seu núcleo duro gira em torno dos 15%, segundo revela a mais recente pesquisa do Datafolha. São esses seguidores fanáticos, que o apoiam, faça o que fizer, que garantem um patamar mínimo para a manutenção de sua popularidade em níveis competitivos.

Esse grupo seria a base barulhenta que sustentou a candidatura de Bolsonaro em 2018 e ainda hoje é arregimentada para trabalhos sujos, como os ataques contra a médica Ludhmila Hajjar comandados pelos integrantes do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto. Os ataques diretos ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) foram controlados pela reação rápida e até mesmo temerária do STF, que abriu inquéritos para investigar as ações desses grupos nas redes sociais.

Classifico de temerária porque o Supremo é investigador e juiz de casos de fake news que configuram ataques contra a própria instituição, sem a interferência do Ministério Público. Essa anomalia, no entanto, foi superada pelos fatos subsequentes, quando ataques à própria democracia foram realizados, com o apoio tácito do presidente Bolsonaro.

O Ministério Público pediu a abertura de inquérito, que também está sob o comando do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, e a vinculação entre as duas investigações ficou evidente, revelando uma organização criminosa com financiamento até mesmo do exterior.

A prisão do deputado Daniel Silveira foi exemplar no sentido de tentar erradicar esses abusos da liberdade de expressão. Vários artigos da Constituição foram afrontados pelo deputado, como propagar ideias contrárias à ordem constitucional e ao estado de direito, além de crimes contra a honra dos ministros do STF, segundo a Lei de Segurança Nacional.

O uso abusivo desse entulho da ditadura militar pelo ministro da Justiça, André Mendonça, que aciona a Polícia Federal para perseguir qualquer pessoa que critique o presidente Bolsonaro, cria um ambiente de intimidação incompatível com a democracia. São perseguidos especialmente jornalistas e artistas, como o comediante Danilo Gentili, que, a pedido do Congresso, está sendo processado por ter dito que gostaria de dar um soco em deputados federais, apesar de ter se desculpado. Também o youtuber Felipe Neto, por ter chamado Bolsonaro de “genocida”, quando existem processos, já sendo analisados no Tribunal Penal Internacional de Haia, devido a acusações de grupos de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Arns, que o acusam de “incitar o genocídio”.

Até mesmo um advogado, Marcelo Feller, foi enquadrado na LSN por ter criticado o presidente Bolsonaro durante o combate à pandemia da Covid-19. Também professores da Universidade Federal de Pelotas foram obrigados pela Controladoria-Geral da União a assinar um termo de ajustamento de conduta por ter criticado o presidente. A reação foi tão grande que o governo desistiu da sandice. A Faculdade de Direito da UNB soltou uma nota em que informa “à sociedade brasileira e em especial a todos os professores e alunos brasileiros que seguirá respeitando e garantindo a liberdade de ensino, sem ceder um único milímetro a quaisquer pressões de natureza despótica e inconstitucional”.

O caso mais ridículo é o de cartazes com críticas a Bolsonaro, considerados “crime contra a honra”, em Palmas (TO). Um diz que Bolsonaro “vale menos que um pequi roído”, gíria local para pessoas que não valem nada. O outro, que o presidente “mente”. Essas reações, além do espírito autoritário do governo, mostram como a imagem do presidente está desgastada.

O último Datafolha revela clara rejeição ao governo. É uma tendência inexorável, que não dá para recuperar, a não ser que faça mea culpa e mude de atitude. Caso contrário, Bolsonaro sairá da pandemia muito mais desgastado, e o país mais tarde do que poderia. Bolsonaro fez uma jogada política arriscada, pensando na reeleição. O governo deveria ter dado o auxílio emergencial mais rapidamente, mas não teve visão imediata dos problemas sociais que poderiam acontecer. Tentou minimizar a gravidade da crise sanitária e perdeu, fazendo com que perdêssemos todos.


Merval Pereira: Catch-22

A escolha do substituto do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde é uma situação típica de Catch-22, expressão muito usada nos países de língua inglesa, especialmente nos Estados Unidos, oriunda de uma lei militar. Dá nome a um livro de Joseph Heller, “Ardil-22” na versão brasileira, que se passa no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o dicionário, caracteriza um problema cuja solução é negada por uma circunstância inerente ao próprio problema. No livro, o piloto que pede uma avaliação psicológica para escapar de missões perigosas de bombardeios estará mostrando sua sensatez e será considerado apto às mesmas missões perigosas.

É preciso mudar a política sanitária devido à repulsa provocada na população, fazendo cair a popularidade do presidente Bolsonaro. Mas como mudar a política sanitária, se o responsável por ela, o próprio presidente, não mudou a maneira de pensar em relação ao distanciamento social, ao uso da máscara ou à vacinação?

Se Bolsonaro escolhesse uma médica como Ludhmila Hajjar, estaria admitindo uma mudança de comportamento. Como não é esse o caso, a indicada pelo Centrão desistiu, incentivada por uma brutal guerrilha digital bolsonarista. O presidente Bolsonaro sempre alega que seus seguidores nas redes sociais são autônomos, não obedecem às suas ordens, o que é meia verdade. Veja-se a atuação do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto.

A solução seria escolher uma pessoa ligada a ele, que pensasse como ele, como o novo ministro escolhido, Marcelo Queiroga. Mas, para isso, por que demitir o general Pazuello, que já se humilhou publicamente afirmando, sem que lhe perguntassem, que “um manda, e o outro obedece”? O Centrão, por sua vez, também se encontra numa situação de Catch-22.

Indicou a médica rejeitada pelos bolsonaristas, tendo a demonstração clara de que seu peso político não decide tudo no governo Bolsonaro. Mas como continuar apoiando um presidente que os leva para o precipício da impopularidade, ainda mais agora que outro candidato forte se apresenta, o ex-presidente Lula, a quem já serviram com grandes vantagens? Mas, também, abrir mão das benesses do governo assim, de graça?

Típica situação de Catch-22 é a do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que, vendo que seria derrotado na Segunda Turma no julgamento da suspeição do então juiz Sergio Moro, resolveu chutar o pau da barraca e anulou quatro processos contra o ex-presidente Lula, mandando-os para a Justiça Federal de Brasília.

Como a solução de um problema Catch-22 será sempre negada pelo próprio problema, num conflito mútuo, Fachin pode perder tudo, não salvar a Lava-Jato, que parece ter sido sua motivação para ir para tudo ou nada. Salvar a Lava-Jato anulando as condenações do ex-presidente Lula é uma contradição em termos, pois ele era um símbolo do sucesso da operação de combate à corrupção.

Claro que anular os processos não significa dá-lo por inocente, mas, para efeitos políticos, Lula livre dá no mesmo. Fachin só poderá se livrar desse efeito Catch-22 se o Supremo, mais uma vez, decidir não decidir. O ministro Nunes Marques, que pediu vista do processo, pode ficar eternamente com ele, como o próprio presidente da Segunda Turma, ministro Gilmar Mendes, ficou dois anos até anunciá-lo na reunião da semana passada.

Se fizer isso, é sinal de que tem as costas quentes. Quem lhe esquenta as costas, o presidente Bolsonaro, também nesse caso se encontra numa situação de Catch-22. Para se vingar de Moro, seu inimigo mortal e talvez competidor em 2022, tem que aceitar a liberação de Lula, outro forte candidato contra Bolsonaro. Para se livrar de Lula, precisa que o plenário vote contra Fachin e que Nunes Marques segure o processo de suspeição até que o prazo para registrar candidaturas se esgote. Agindo assim, estará fortalecendo Moro. Difícil combinação, como é difícil, se não impossível, escapar do Catch-22.

Como todo brasileiro, terá que escolher a opção menos ruim para ele. Não foi assim que chegou à Presidência da República, nos colocando, a nós, brasileiros, numa situação de Catch-22? Para melhorar o país, só trocando o presidente. Mas trocar o presidente pode nos levar a uma convulsão social. Melhor deixá-lo sangrar até 2022. Lembram-se de Lula no mensalão?


Merval Pereira: A suprema guerra

O debate político desde a divulgação pelo “Intercept Brasil” das conversas entre os procuradores de Curitiba e deles com o então juiz Sergio Moro, fruto da invasão por hackers de aplicativos de mensagem de autoridades em Brasília, desenvolveu-se entre os favoráveis ou contrários à Operação Lava-Jato, no meio político e também no Supremo Tribunal Federal (STF).

Embora as conversas não possam servir como prova, pois conseguidas de maneira ilegal, elas foram divulgadas amplamente, mesmo com a autorização do Supremo, e certamente influenciaram a mudança do ambiente político. Essa guerra de narrativas encontrou na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) sua representação nas pessoas dos ministros Gilmar Mendes, contrário, e Edson Fachin, favorável.

O que aconteceu ontem foi apenas mais uma etapa dessa disputa, que pode ter hoje, na reunião da Segunda Turma, seu prosseguimento. O ministro Gilmar Mendes estaria disposto a levar para o plenário da Turma a questão da parcialidade de Sergio Moro e provavelmente ganharia, pois, com a chegada do ministro Nunes Marques, a maioria contra a Lava-Jato ficou fixada antes mesmo de qualquer julgamento.

Daí o movimento brusco de Fachin de encaminhar os processos contra Lula para a Justiça Federal de Brasília, preservando os atos de investigação e acusação, mas anulando as decisões. Os movimentos de Gilmar Mendes e Edson Fachin têm pouco a ver com o ex-presidente, que acabou se beneficiando desse embate. Gilmar quer acabar com a Lava-Jato, que já apoiou enfaticamente, e Fachin quer preservá-la, mesmo abrindo mão dos processos contra Lula.

Se a votação da parcialidade de Moro fosse referendada pela Segunda Turma, todos os processos da Lava-Jato estariam em xeque. Nada é mais importante do que analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos tempos no país para definirmos seu papel neste momento político. A suprema guerra se desenvolve às claras, nas reuniões plenárias, e sobretudo nos bastidores.

Fachin tentou uma manobra, colocando no plenário virtual uma ação da defesa de Lula pela parcialidade de dois ministros do Tribunal Regional Federal (TRF-4) que avalizaram a condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia. Como as razões aventadas eram muito frágeis, provavelmente a defesa do ex-presidente perderia, o que levaria Fachin a argumentar que, como o TRF-4 havia julgado Lula, e inclusive aumentado sua pena, não poderiam ser anuladas as decisões de Moro.

O risco era grande, e a defesa de Lula retirou o caso do plenário virtual “para aperfeiçoá-lo”. O movimento de Fachin ontem talvez não impeça a decisão de Gilmar Mendes de levar à reunião de hoje a questão da parcialidade de Moro. Ele estaria disposto a arrostar a decisão de Fachin, e a disputa pode ter que ser resolvida pelo presidente Luiz Fux, adepto da Lava-Jato.

A pressão política para que o ex-juiz Moro seja julgado é grande, mesmo com a decisão do relator da Lava-Jato de considerar extinta a causa, por falta de objeto. Fachin alegou na sua decisão que, embora a questão da competência já tivesse sido suscitada indiretamente, “esta é a a primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal”.

Ele se refere à jurisprudência que teria sido alterada nos últimos meses, restringindo o alcance da competência da 13ª Vara Federal e enviando para Varas de todo o país, e para Tribunais Eleitorais (TREs), os processos iniciados pela Lava-Jato, contra seu voto. Se a Justiça do DF confirmar as condenações e Lula for novamente condenado na segunda instância, voltaria a ser inelegível, mas isso dificilmente acontecerá, pois os crimes já devem estar prescritos, ou quase, e ninguém vai assumir o mesmo desgaste de conduzir essa batalha da Lava-Jato.

Nada que saiu de Curitiba, fora os processos do Rio de Janeiro, avançou. Os processos que não tenham vínculos claros com a Petrobras serão anulados. E Lula provavelmente será o candidato do PT em 2022. A não ser que o inesperado volte a fazer uma surpresa, como sói acontecer no Brasil.

Edson Fachin, que era ligado ao PT antes de ser indicado para o STF, beneficiou Lula, mas esse não era seu objetivo principal. Gilmar Mendes, que estava rompido com Lula, que fora seu amigo, também ajudou a libertar o ex-presidente. A suprema guerra escreve política por linhas tortas.


Merval Pereira: Guerra é guerra

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se mostrado competente na análise prospectiva de nossa economia, embora de nada isso lhe valha para evitar os fracassos que prenuncia. Disse que se fizéssemos muita besteira, o dólar chegaria a R$ 5,00. Chegamos a R$ 5,53 no fim de semana sem que o ministro tenha evitado. Recentemente, disse que poderíamos virar uma Argentina, ou quem sabe uma Venezuela, em poucos anos, se caminharmos para “o lado errado”.

Mais uma vez está certo, e nada indica que consiga frear essa caminhada célere para o abismo que o presidente Bolsonaro lidera. Bolsonaro sabe o que eu penso, eu sei o que ele pensa, disse Guedes durante a crise gerada pela intervenção presidencial nos preços da Petrobras. Só nós não sabemos por que Guedes não sai do governo se não consegue conter os ímpetos intervencionistas do chefe.

Por que, então, não nos transformamos em um Paraguai pelo menos por alguns dias, meses, e não saímos nas ruas até tirarmos Bolsonaro da presidência da República, cargo que ele não merece exercer pela falta de compostura, a incapacidade administrativa, e, sobretudo, a impossibilidade de enfrentar a pior pandemia em um século no Brasil e no mundo?  

“Estamos em guerra”, anunciou o Secretário de Saúde de São Paulo Jean Gorinchteyn. E se estivéssemos em guerra contra outro país, e não contra um vírus, como nos comportaríamos tendo à frente um líder como Bolsonaro, incapaz de oferecer a seus compatriotas “sangue, suor e lágrimas”?

Logo ele, sujeito de maus bofes, que vive procurando briga, irritadiço, violento, agressivo. Uma guerra de ocupação, de conquista ou defensiva, talvez encontrasse em Bolsonaro um comandante aguerrido, mas trapalhão, é o que se depreende de ele ter ameaçado pateticamente os Estados Unidos “com pólvora” numa imaginária guerra para proteger a Amazônia.

Capaz, mesmo tecnicamente sóbrio, de bravatas desastradas como a do General Leopoldo Galtieri, ditador argentino que, bêbado, declarou guerra à Inglaterra por causa das Ilhas Malvinas. Assim como não está preparado para comandar um Exército, pois falta-lhe bom-senso e não concluiu o curso de comando do Estado-Maior, Bolsonaro também não está preparado para exercer a presidência da República, mas foi eleito e tem sob seu comando vários oficiais superiores, que não lhe deixariam comandar pelotões em uma guerra, mas acham que podem ser comandados por um político medíocre, que já demonstrou o mal que pode fazer ao país.

Os militares que se subordinam ao capitão o fazem mais por uma hierarquia militar, que coloca o presidente como Comandante em Chefe das Forças Armadas, do que por amor à democracia.  Pois o amor à democracia os obrigaria a abandonar um presidente  tresloucado, que está levando a morte à população brasileira por caprichos, ignorância e cálculo político.

Em uma guerra, a morte é a regra, e, mesmo assim, o oficial que encaminha seus comandados a atos manifestamente criminosos, ou a excessos, pode ser condenado, mesmo em tempo de paz. Galtieri foi condenado por negligência na guerra das Malvinas, tendo sido anistiado depois por lei especial. A guerra contra a Covid-19, assim como na guerra tradicional, leva a morrer pela pátria, como no caso do pessoal da linha de frente médica, que se arrisca a morrer para salvar vidas. Desde o início da pandemia, segundo dados oficiais, quase mil mortes de profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, técnicos - foram registradas.

Defender a saúde pública é dever das autoridades do país, e nenhuma delas, por mais elevado que seja seu cargo ou posto, pode desconhecer o perigo de morte, se omitir ou dificultar o seu combate, segundo juristas. Qualquer autoridade que não lute pela  preservação da vida ameaçada por uma crise de saúde pública comete  “crime de responsabilidade”, e seus atos devem ser apreciados e julgados. Sobretudo quando mais de 260 mil pessoas já morreram, grande parte por negligência governamental.

“Todo mundo vai morrer um dia”, disse o presidente Bolsonaro ao comentar o número de mortes pela pandemia. Mas apressar a morte em uma pandemia por falta de oxigênio, de leitos de UTI, ou de vacinas, é crime.


Merval Pereira: O futuro não chega

A aposta parecia factível em 2003. Se o Brasil crescesse em média 3,6% ao ano, chegaria em 2050 a ser a quinta economia do mundo, ultrapassando a Itália em 2025, a França em 2031, Inglaterra e Alemanha em 2036. Ela constava de estudo da Goldman Sachs que lançou ao mundo a sigla Brics, países que eram vistos como o futuro da economia mundial: Brasil, Índia, Rússia e China.

Mas a projeção não levou em conta peculiaridades brasileiras, como o maior escândalo de corrupção já desvendado no país, quiçá no mundo, uma crise econômica provocada por uma presidente que acabou impedida pelo Congresso de continuar governando, a chegada ao governo de um capitão tresloucado, uma pandemia que mata mais de 1.800 pessoas por dia. Resultado: a economia brasileira teve um crescimento na última década de pífio 0,3% ao ano, com o resultado de 4,1% negativos anunciado ontem pelo IBGE.

Após crescer 4,7%, em média, durante o período de 2004 a 2007 e de se expandir em 5,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2009, caiu 0,3%. De 1990 a 2003, o crescimento médio foi de 1,8%; de 80 a 2003, 2%. Essa média cresceu um pouco com o resultado dos 8 anos do governo Lula, que teve um crescimento médio de 4% ao ano, mas voltou ao nível de 2% no governo Dilma.

O país já teve também períodos de crescimento sustentado de níveis asiáticos: de 1950 a 1980, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; de 1970 a 1979, de 8,78%. O problema é que já tivemos crescimento médio de 5,3% durante 50 anos, mas ele caiu nos últimos 40 anos, crescendo menos que o PIB mundial. Entre 1981 e 1990, o PIB brasileiro cresceu a mísero 1,55% ao ano. Daí até 2000, o crescimento médio foi de 2,65% ao ano, até 2010 chegou a 3,7%, retomando a performance prevista pela Goldman Sachs.

De um país que era visto como o futuro da economia mundial, junto com Rússia, Índia e China (Brics), o Brasil perdeu quase metade de sua participação no PIB do mundo nos últimos anos. Em 1980, representava 4,3% e, nesta década, passará a menos de 2,5%. O estudo da Goldman Sachs, coordenado pelo economista Jim O’Neill, lançado em 2003, mas com a medição a partir de 2000, mostra que o Brasil manteve-se no trilho da projeção até 2014, quando a crise do segundo governo Dilma jogou o número para baixo.

O economista Robinson Moraes, coordenador de pesquisa econômica do jornal “Valor”, fez uma projeção para o crescimento do Brasil nas duas últimas décadas, comparando com o previsto pelo estudo americano: deveríamos ter crescido 101,7% nos últimos 20 anos e crescemos apenas 43,6%. O Brasil, que no começo da década era a sétima economia do mundo, passou a cair de posição a partir de 2014, chegou a oitava economia em 2017, a nona até 2019 e hoje encontra-se na 12ª posição entre as maiores economias, ultrapassado por Canadá, Coreia do Sul e Rússia.

O ministro Paulo Guedes, numa espécie de recado metafórico, disse que, se o país tomar o rumo errado, dentro em pouco seremos uma Argentina, ou talvez até Venezuela. Isso na semana em que se debatia a intervenção do presidente Bolsonaro na Petrobras, para controlar o reajuste de preços da gasolina (“o cidadão tem que encher o tanque do carro”, disse o futuro presidente da Petrobras, general Joaquim Luna e Silva) e do diesel, por causa dos caminhoneiros.

A desmoralização que vem sofrendo com as seguidas intervenções do presidente na área econômica — também o Banco do Brasil vai trocar seu presidente, que pediu para sair depois que Bolsonaro estranhou o fechamento de agências — parece ter colocado Guedes em posição de aguardo. Está tentando a última cartada, apostando no compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira, de levar adiante as reformas.

Mas, se ficar aguardando essa boa vontade dos parlamentares e o engajamento de Bolsonaro, pode ficar sem tempo de reagir. A partir do segundo semestre, não haverá mais espaço para discussão de reformas, ainda mais as impopulares, como a administrativa, e as difíceis, como a tributária. Guedes também alertou que, se quisermos ser igual à França ou à Alemanha, teremos que fazer um esforço para o outro lado, durante bons 20 a 30 anos. Em 2050, onde estaremos?