Merval Pereira
Merval Pereira: A política na economia por conta dos precatórios
Solução avalizada pelo Judiciário, no sentido de tirar os precatórios do limite do teto de gastos, não é constitucional
Merval Pereira / O Globo
O pagamento de precatórios por parte do governo federal está virando uma questão política que só poderá ser resolvida pelo Congresso. A intenção de encontrar uma solução que fosse avalizada pelo Judiciário, por meio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para evitar que a confusão avançasse no sentido de tirar os precatórios do limite do teto de gastos, parecia boa, mas não é constitucional.
O Tribunal de Contas da União (TCU) entrou na negociação com o Ministério da Economia para encontrar uma fórmula que fosse adequada economicamente e viável juridicamente, pois o TCU considerava que parcelar precatórios, como o governo chegou a propor ao Congresso por uma emenda constitucional, traria um grande dano à imagem do país. O ministro Bruno Dantas, vice-presidente do TCU e especialista em finanças públicas, disse ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que o melhor a fazer seria reforçar o teto, aplicando-o inclusive aos precatórios mediante criação de um sublimite.
O raciocínio é que o teto de gastos congelou a despesa primária da União de 2016 e a corrigiu pelo IPCA dos anos seguintes. Como, conceitualmente, os precatórios são despesa primária, explica Dantas, não faz sentido congelar tudo e deixar os precatórios sem uma trava, para crescer fora do ritmo das outras despesas, que só crescem pelo IPCA, contribuindo para comprimir o teto e impactando em gastos discricionários indispensáveis, como manutenção de estradas.
Qual o sentido de permitir que os pagamentos para essa despesa subam além do que a emenda constitucional do teto de gastos permitiu? — pergunta o ministro Bruno Dantas. Para ele, essa regra seria mais transparente, porque o precatório que chegar depois de ultrapassado o teto será remanejado e quitado no ano seguinte. Isso daria previsibilidade e transparência.
Procurado, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luiz Fux, se colocou à disposição para ajudar, mas não há maneira de o CNJ, que acompanha o pagamento dos precatórios, que são dívidas judiciais, entrar na questão sem uma autorização do Congresso. Fux, consultando os demais ministros do Supremo, decidiu esperar o pronunciamento do Congresso. O caminho agora é negociar com a base governista para aprovar uma PEC que permita esse mecanismo de limitar o pagamento dos precatórios dentro do teto de gastos, transferindo para o ano seguinte o que faltar.
A posição do ministro da Economia, Paulo Guedes, também foi criticada. Ao mesmo tempo que ficou entusiasmado com a solução que seria pacificada pelo Conselho Nacional de Justiça, diz que a solução deveria sair mesmo do Congresso por meio de uma mudança constitucional. A verdade é que o governo não tem como pagar os R$ 90 bilhões que deve em precatórios e não tem controle também do Congresso para garantir que a PEC a ser enviada não será usada para furar o teto de gastos.
Ou então quer que o Congresso assuma essa tarefa, o que provavelmente será feito com satisfação pelos parlamentares, que terão mais dinheiro para suas emendas se os precatórios, ou o novo Bolsa Família, forem retirados do teto de gastos. Nos dois casos, a despesa seria da mesma ordem, de R$ 90 bilhões, o que caracterizaria a quebra do equilíbrio fiscal e repercutiria negativamente no risco Brasil.
Entre os precatórios, cerca de R$ 16 bilhões são dos estados, e seria possível retirá-los da fila de pagamento para negociar em separado numa mesa de conciliação, sugestão do ministro Gilmar Mendes. O importante é encontrar uma solução que não impacte nos precatórios de pessoas físicas.
Além de todos os problemas técnicos envolvidos na questão, o ambiente político hoje está impeditivo para qualquer negociação mais delicada. Até o dia 7 de setembro, quando estão marcadas manifestações contra o Supremo em várias capitais, não há condição de achar uma solução negociada entre o Executivo e o Judiciário. O presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, fará uma declaração hoje, na abertura dos trabalhos, alertando que é preciso respeitar as decisões do Judiciário e que a democracia não pode ser atacada nas manifestações marcadas para o Dia da Independência.
Fonte: O Globo
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Merval Pereira: As coxas do ex-presidente Lula
Coxas saradas de Lula transformaram-se em objeto de desejo de homens, e principalmente, de mulheres
Merval Pereira / O Globo
Uma foto do ex-presidente Lula com sua noiva Janja, à luz do luar na praia do Pico no Ceará, bombou nas redes sociais. Um procedimento usual dos frequentadores do Instagram - ou Insta, na intimidade -, publicar seus momentos felizes, tornou-se um fenômeno político. As coxas saradas de Lula transformaram-se em objeto de desejo de homens, e principalmente, de mulheres.
Muitos elogios à sua forma física, alguma desconfiança: “Será que é montagem?”. O efeito belíssimo da lua ao fundo do casal não saiu de um iPhone qualquer, como acontece com os comuns dos mortais. Saiu da lente de Ricardo Stuckert, o excelente fotógrafo oficial de Lula, membro de uma dinastia que começou com Roberto Stuckert, o “Stukão”, que morreu dias atrás.
A partir daí começa a história política da foto. Lula estava hospedado na casa da família do governador do Ceará, Camilo Santana. Policiais cercaram o local para garantir a intimidade do casal. Como era uma bela noite na praia cearense, normalmente o casal estaria sozinho, e a selfie seria bonita, mas nem tanto. Ou algum funcionário da casa poderia ter sido convocado para fazer a foto.
Mas Ricardo Stuckert estava lá, como está sempre há anos, acompanhando Lula. Mas o que estaria fazendo naquele momento de intimidade o fotógrafo oficial de Lula ? Política, claro, para divulgar a boa forma física do ex-presidente, que aparecera em fotos anteriores com a fisionomia carregada, a cabeça branca.
Na que viralizou, um Lula sorridente escondia os cabelos cor de prata com um boné esportivo, apesar da noite avançada. E não foi só sua coxa musculosa que chamou a atenção dos fãs. Estava de sunga, e houve até quem comemorasse, sob ela, o pressentido bilau do Lula. Essa demonstração de virilidade senil claramente não foi planejada, mas a certas fãs é um detalhe fundamental do mito.
Mito? Lembro de Putin andando de cavalo com o torso nu, expondo sua virilidade, de Collor fazendo esportes radicais, mostrando sua juventude. A comparação do mito petista com o mito da direita Jair Bolsonaro também ocupou as redes, dando larga desvantagem àquele que disse que, graças ao seu “histórico de atleta”, não pegaria Covid. Aos 66 anos, quase dez anos mais novo do que Lula, o “Mito”, mesmo antes da facada, não teria condições de se comparar ao “Mito” da esquerda.
O vice-presidente Hamilton Mourão certa vez explicou bem a formação de Bolsonaro: disse que ele fez a parte de preparação física dos militares, não chegou à preparação cultural. O próprio Bolsonaro contou certa vez que o agnome tem uma origem vulgar. Como tinha as pernas finas - olha aí a diferença com Lula, mais uma vez-, chamavam-no “Palmito”.
Mas será que não vamos nos livrar desses “mitos” populistas? Quando Lula recomeça a elogiar Cuba sem pejo, quando ameaça de novo regular a mídia, dá uma sensação de desânimo, de “dejá vu”. Quando Bolsonaro faz o mesmo, elogiando Umaro Sissoco Embaló, o presidente autoritário de Guiné Bissau considerado “o Bolsonaro da África”, ou o Putin, ou o Kim Jong-un da África, dá um cansaço ao reverso.
Quando Bolsonaro ataca o Supremo Tribunal Federal (STF), inconformado com que seja ele o dono da última palavra, ou, como disse Rui Barbosa, ter o direito de “errar por último”, vejo José Dirceu, ativo na campanha de Lula para a volta ao governo em 2022, afirmando que o Judiciário nem poder é, é apenas “um órgão” e o STF deveria ser uma Corte Constitucional: “Nossa Constituição estabeleceu três poderes, mas só existem dois, os eleitos, os que têm soberania popular, o Legislativo e o Executivo”. Palavras que soam como música para Bolsonaro, que no tem mesmo as repetiu: “Só existem dois poderes, o Legislativo e o Executivo”.
Cada um deles, Bolsonaro e Lula, retornando ao governo, se sentirá fortalecido pelo voto popular e dobrará sua aposta. Teremos muito mais do mesmo. Pelas pesquisas de opinião atuais, Lula está mais perto de voltar ao Palácio do Planalto do que Bolsonaro, que está mais perto da prisão, possibilidade que ele mesmo aventou ontem, onde já esteve Lula. Enquanto isso, Diogenes, com sua lamparina, continua procurando “um homem honesto”. No Brasil, procura-se uma terceira via.
Fonte: O Globo
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Merval Pereira: Visão regressiva dificulta aprovação de Mendonça
Bolsonaro parece querer dificultar ainda mais a aprovação do ex-advogado-geral da União na sabatina do Senado
Merval Pereira / O Globo
Ao afirmar que fez um pacto com seu indicado a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), André Mendonça, de que ele abriria toda semana os trabalhos no tribunal com uma oração e de que se encontrariam toda semana para conversar, o presidente Bolsonaro parece querer dificultar ainda mais a aprovação do ex-advogado-geral da União no Senado.
Anunciar que “despachará” semanalmente com um ministro do Supremo é desmerecer o tribunal, embaralhar a separação dos Poderes, rebaixar o Judiciário a um “puxadinho” do Palácio do Planalto. Não se sabe se o outro ministro indicado por Bolsonaro, Nunes Marques, tem esse hábito de “despachar” com o presidente, mas dá para perceber a interferência dele nos votos, quase sempre favoráveis às posições do governo.
Tanto quanto dá para vislumbrar no procurador-geral da República, Augusto Aras, agora reconduzido, uma postura mais que respeitosa ao presidente da República. Basta ver que Aras, em sua sabatina no Senado, fez questão de dizer que não era o PGR da oposição, mas não fez a ressalva quanto à situação.
Quanto às orações semanais no início das sessões do Supremo, André Mendonça prometeu o que não poderá cumprir. Depende do presidente do STF, hoje o ministro Luiz Fux, abrir as sessões. Se alguém tivesse de rezar, seria ele ou outro de seus pares quando presidir as sessões, não um ministro, muito menos o mais novo.
Essa questão religiosa já foi enfrentada pelo Judiciário, na teoria e na prática. A escolha religiosa do indicado nunca foi empecilho para nomeação, ser ou não adepto de uma religião não é característica nem favorável nem contrária à nomeação de alguém com “notável saber jurídico”. O que se deve evitar é a subserviência do indicado ao presidente que o indicou.
Boa parte dos senadores considera ser esse o caso de André Mendonça. Quando presidente, Lula indicou para uma das vagas do Supremo o ministro do STJ Carlos Alberto Direito, “terrivelmente católico”. Ele morreu no exercício do cargo, tendo sido um ministro austero e competente.
Quando presidiu o Supremo, de 1971 a 1973, Aliomar Baleeiro, que era agnóstico, mandou retirar o crucifixo feito por Alfredo Ceschiatti que ficava na parede de madeira pau-brasil atrás do presidente. Só em 1978 ele voltou à parede, na presidência do ministro Thompson Flores. Muitos tribunais pelo país têm crucifixos, e já houve uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para retirar símbolos religiosos de repartições do Poder Judiciário, mas a decisão foi a favor da tradição, de um país majoritariamente cristão, sem significar uma quebra da separação da Igreja com o Estado, definida na Constituição republicana de 1891.
A influência que Bolsonaro quer ter no plenário do Supremo foi posta à prova recentemente, durante a pandemia. O ministro Nunes Marques, atendendo a uma ação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, permitiu atividades religiosas presenciais, que haviam sido proibidas em alguns estados devido à necessidade de distanciamento social.
Para complicar a situação, Nunes Marques deu como razão “por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa”. Dias depois, em outra ação, o ministro Gilmar Mendes confirmou decisão do governo de São Paulo de proibir reuniões religiosas na fase mais aguda da pandemia. Gilmar se referiu em seu voto à hipocrisia dos que falam em Deus e defendem a morte.
No julgamento em plenário sobre o tema, o então ministro da Advocacia-Geral da União André Mendonça defendeu a reabertura dos templos citando trechos da Bíblia. O advogado do PTB na sustentação oral também citou a Bíblia ao se referir aos ministros que votariam pelo fechamento dos templos: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. O presidente Luiz Fux o repreendeu: “Nossa missão, além de guardar a Constituição Federal, é lutar pela vida e pela esperança. Estamos vigilantes na defesa da vida e da Humanidade”.
A pretexto de defender “valores cristãos”, o que Bolsonaro quer, na verdade, é tentar reverter decisões do Supremo como as a favor da união homoafetiva, a permissão de aborto de feto anencéfalo e outros temas que representam uma evolução moral civilizatória oposta a sua visão regressiva.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/visao-regressiva.html
*Título do texto original foi alterado para publicação no portal da FAP
Merval Pereira: Esses tempos estranhos
Merval Pereira / O Globo
A reunião do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com os representantes de plataformas digitais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter e outras, para definir regras de pagamento a sites e plataformas durante o período eleitoral com o objetivo de evitar a propagação de fake news, deveria estabelecer critérios mais rígidos de monetização das notícias também em tempos além do eleitoral.
Me incomodou a decisão do corregedor-geral do TSE, ministro Luiz Felipe Salomão, de proibir o pagamento de qualquer notícia divulgada por canais bolsonaristas, com a intenção de cessar o financiamento dos blogs que espalham notícias falsas com objetivos políticos.
A “imprensa marrom” existe muito antes das redes digitais e deve ser combatida com a legislação existente quando calunia, difama e constrange cidadãos ou instituições, ou quando espalha boatos com a intenção de obter lucros econômicos ou políticos.
A expressão surgiu no fim do século XIX e vem do inglês “yellow press” (“jornalismo amarelo”). Os jornais New York World e The New York Journal disputavam as aventuras de Yellow Kid, a primeira história em quadrinhos. Uma disputa tão pesada que o amarelo passou a designar publicações sensacionalistas e sem ética.
A cor para identificar uma imprensa inescrupulosa passou a ser “marrom” no Brasil em 1959, na redação do jornal carioca Diário da Noite. Para noticiar um escândalo internacional da época, a manchete se referia à “imprensa amarela”, como nos jornais dos EUA, mas o editor achou que amarelo é uma cor muito alegre para classificar notícias escandalosas. Mudou para “marrom”, cor de excrementos.
Não é diferente com os meios digitais, com exceção do fato de terem alcance muito maior. O pagamento por visualizações, pelo número de seguidores, adotado por todas as plataformas, faz com que o noticiário digital perca credibilidade a cada dia, embora alcance um número altíssimo de pessoas e tenha efeito deletério nas relações sociais e políticas.
Mas punir os que espalham fake news com intervenção nas mídias sociais ou o bloqueio de financiamento não me parece o melhor caminho. A não ser que o governo subvencione canais ilegítimos. Críticas, por mais abusivas que sejam, devem ser aceitas como parte da vida democrática. Somente as ameaças físicas a cidadãos, não apenas a autoridades, como os ministros do STF, ou antidemocráticas a instituições deveriam ser interrompidas por uma intervenção fora dos processos cíveis ou criminais.
Outra coisa que é preciso rever é a análise por órgãos não especializados de questões complexas. A Polícia Federal descobriu a pólvora ao explicar que o noticiário desses blogueiros tornou-se uma máquina de ganhar dinheiro e que as notícias são replicadas inúmeras vezes para ter maior alcance e ser recompensadas devido à audiência pelas plataformas digitais. Ora, esse é o sistema adotado por esses novos meios, que realmente estimula notícias escandalosas e propagação de fake news, não apenas políticas ou econômicas.
O que seria preciso mudar é o conceito das plataformas digitais, que só buscam audiência, sem cuidar do que é divulgado. Os influenciadores que têm milhões de seguidores e recebem por isso podem ser inofensivos se tratam de assuntos de interesse geral. Mas esse sistema de pagamento para notícias políticas e econômicas precisa ser alterado.
Exemplo escandaloso de decisão jurídica inepta, sem base científica, é a da subprocuradora Lindôra Araújo sobre o não uso de máscara por parte do presidente Bolsonaro. Numa demonstração clara de que a Procuradoria-Geral da República sob Augusto Aras há muito perdeu sua função básica de defesa dos interesses da sociedade, ela não viu indícios de crime nas constantes aglomerações que Bolsonaro promove, sem máscara, pelo país inteiro. E divide a culpa com a população que acorre às aparições do presidente.
Contrariando todas as instruções médicas, nacionais e internacionais, ela diz que “há incerteza sobre o grau de eficiência do equipamento”. De maneira ridícula, alega que o presidente “não foi notificado a usar o equipamento” em suas viagens, como se fosse lícito a alguém argumentar que desconhece tal lei ao cometer uma infração. Tanto ela quanto Aras merecem ser processados.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/esses-tempos-estranhos.html
Rio de Janeiro, DF
Merval Pereira / O Globo
A volta da capital para o Rio de Janeiro tem sido apontada como solução para a crise política e econômica que por anos vem dominando a cidade que, apesar dos pesares, continua sendo símbolo da nacionalidade, dentro e fora do país, a cidade brasileira mais visitada pelos estrangeiros.
Um trabalho da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) traz uma aprofundada visão sobre nossos problemas, e uma solução criativa: transformar o Rio de Janeiro em um segundo Distrito Federal, coisa que é na prática, a cidade mais “federal” do país.
O livro, organizado por Christian Edward Cyrill Lynch, Igor Abdalla Medina de Souza e Luiz Carlos Ramiro Junior, faz a defesa da federalização, e entende que salvar o Rio já não se trata de uma questão de segurança pública, mas nacional. As organizações criminosas tomaram conta da região metropolitana e espalharam seu domínio inclusive sobre outras partes do estado fluminense, o poder público não consegue exercer domínio sobre parte significativa do território e da população.
O diagnóstico é que, sendo a 2ª maior economia do país, com grandes polos de tecnologia e educação, convive com a estranha sensação de decadência. O Brasil inteiro perde com a crise do Rio de Janeiro, que deixou de ser um lugar de atração, mesmo sendo o ícone do Brasil para si e para fora.
O país desperdiça seu grande ativo, e os autores destacam o seu "uso" como capital simbólica pelo próprio governo federal: sediou a Eco-92, o Pan 2007, a Rio+20, a Olimpíada de 2016, além de servir de sede logística e das partidas finais das Copas das Confederações e do Mundo (2014).
Do ponto de vista da cultura e da história, a capital brasileira continua sendo o Rio: Paço Imperial, Biblioteca Nacional, Centro Cultural da Justiça Federal, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico Nacional, Museu da República, Museu Nacional etc. As sedes da Academia Brasileira de Letras (ABL) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) são no Rio.
Também continua a exercer na prática o papel de um Distrito Federal oficioso. Segundo dados da Secretaria do Patrimônio, a União é proprietária de cerca de 1200 imóveis federais, parte substantiva deles subaproveitados. Triste exemplo é o prédio icônico do Ministério da Educação ( Palácio Gustavo Capanema) no centro da cidade, colocado agora num balaio de privatizações de prédios públicos. Um patrimônio histórico tombado por sua importância na arquitetura brasileira e mundial, que não tem preço.
Segundo dados do Ministério do Planejamento de 2016, o Rio sedia 1/3 dos órgãos da administração federal: Brasília é sede de 115 órgãos; o Rio, 67. O Rio de Janeiro também possui mais servidores federais civis do que o DF: são cerca de 250 mil contra de 175 mil do DF.
O Rio é a capital militar do Brasil. Segundo dados das Forças Armadas, o Estado do Rio reúne 22,4 % dos militares do Exército (o RS vem em segundo com 15,8 %); 35% da Aeronáutica (SP vem em segundo com 15,2 %); e 67,8 % dos militares da Marinha.
Dezenas de países têm duas capitais, como o Chile, a Bolívia, a Holanda, a Malásia, a Coreia do Sul. A África do Sul tem 3 capitais. Na prática, outros países têm também: Rússia (São Petersburgo, antiga capital, é uma cidade federal e sede do Tribunal Constitucional); Alemanha (Bonn sedia 1/3 dos ministérios e é também uma "cidade federal"). Na China, Xangai tem o mesmo estatuto jurídico "nacional" que Pequim. No Egito e na Indonésia estão construindo uma segunda capital.
O Rio é uma verdadeira metrópole, possuindo alta densidade demográfica, com um centro ativo de milhares de escritórios, sedes de bancos, sindicatos, universidades e associações, que lhe conferem massa crítica e o conteúdo democrático. Providências como o retorno de parte dos ministérios e, sobretudo, do Congresso Nacional, bem como a obrigação constitucional do presidente da República de aqui residir e despachar parte do ano, ajudaria a recuperar a credibilidade do Congresso Nacional e corrigir o déficit democrático de Brasília, criando condições de accountability indispensáveis à melhoria do padrão governativo e administrativo do país.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/rio-de-janeiro-df.html
Merval Pereira: Cavando o buraco
Merval Pereira / O Globo
O Auxílio Brasil lançado ontem pelo governo Bolsonaro não tem apenas a aparência de uma cópia bem-feita do Bolsa Família de Lula, que por sua vez foi uma cópia muito bem-feita dos programas sociais do governo de Fernando Henrique Cardoso. Representa, sobretudo, a irresponsabilidade fiscal a serviço da reeleição do presidente, assim como, em 2010, para eleger Dilma, o então presidente Lula forçou o PIB a ir de uma queda de 0,13% em 2009 para um crescimento de 7,53% no ano da eleição.
Esse crescimento artificial gerou uma crise financeira nos anos seguintes, que resultou em alta da inflação e do desemprego e num crescimento medíocre do PIB no primeiro mandato de Dilma. Entre 2011 e 2014, o país voltou a sofrer forte deterioração fiscal. O gasto do governo Dilma, em 2016, aumentou para 20% do PIB, gerando o maior déficit público de todo o período.
Há mais semelhanças. O crédito consignado, criado em 2003, transformou-se em forte arma eleitoral, e também agora o governo Bolsonaro pretende permitir que parte do novo Bolsa Família possa ser usado para pagamentos de dívidas pelo crédito consignado. O caráter político do Bolsa Família foi ressaltado quando ele passou a ser distribuído pelos prefeitos, ao contrário do início do programa — na concepção de Frei Betto, então assessor especial da Presidência, era distribuído por uma comissão local sem interferência de políticos.
Agora, com a necessidade de recuperar popularidade e as brigas com governadores, Bolsonaro quer passar a distribuição do Auxílio Brasil para o governo federal. Situações diversas, mas o mesmo objetivo de ganhar musculatura eleitoral com a distribuição da renda mínima. Com o Orçamento para o ano que vem já próximo de ser fechado e diante de uma série de investidas direcionadas ao aumento das despesas, já há, entre economistas, uma expectativa de que o Brasil caminha a 2022 para o nono ano consecutivo de déficit primário.
Chega, em boa hora, portanto, o livro “Tudo sobre o déficit público” — uma narrativa sobre a trajetória da organização das contas públicas do Brasil nas últimas décadas e análises sobre as consequências para o país do desequilíbrio fiscal, de autoria do economista e pesquisador associado da FGV/Ibre Fabio Giambiagi, um dos maiores conhecedores das finanças públicas brasileiras. O volume esmiúça o déficit público brasileiro e os problemas dele decorrentes — principal fonte do processo inflacionário, assim como gatilho do “calote”, implícito ou explícito, da dívida pública.
A tentativa do governo de viabilizar o parcelamento do pagamento dos precatórios para permitir encontrar espaço fiscal para dar um Auxílio Brasil entre R$ 400 e R$ 600 por mês é um exemplo típico desse movimento. “Devo, não nego, pagarei quando puder”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes. Após a aprovação da regra do teto de gastos públicos, em 2016, houve finalmente uma mudança de 180 graus em relação à política que vinha sendo conduzida até então. O cenário de lenta recuperação, contudo, foi interrompido em 2020, quando o Brasil sucumbiu novamente à forte deterioração fiscal. As contas públicas “estouraram”: o déficit alcançou proporções gigantescas, e a dívida pública teve uma escalada assustadora. “O maior problema é que o Estado é visto como tábua de salvação para todos os gastos. Esse problema — que se acentuou em 2020 — está na raiz das dificuldades enfrentadas pela economia brasileira”, conta Giambiagi.
Para ele, “derrotar” o déficit público, fazer com que ele se situe em patamares administráveis sem comprometer a trajetória da dívida pública, é a grande tarefa pendente, de que dependem, também, a recuperação do investimento e a retomada do crescimento a taxas mais vigorosas. A agenda econômica e social pós-pandemia e as eleições do próximo ano evidenciam a importância desse debate no atual momento político do país. Giambiagi afirma que o Brasil precisa atacar o déficit e fazer um ajuste fiscal em torno de 3% do PIB, o que demanda forte determinação e uma boa capacidade de articulação — atributos em falta na atual política brasileira.
Fonte: O Globo
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Nem como farsa
Merval Pereira / O Globo
O embate em processo entre o presidente Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF) é o caso exemplar de um fato histórico que aconteceu no Brasil como tragédia, e hoje se repete como farsa, para confirmar a frase famosa de Karl Marx. No dia 16 de janeiro de 1969, em decorrência do AI-5 assinado em dezembro de 1968, foram aposentados compulsoriamente os Ministros Victor Nunes Leal, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
Em solidariedade aos cassados, renunciaram em seguida o então Presidente, Ministro Gonçalves de Oliveira, e o decano da Corte, Ministro Lafayette de Andrade. Em outubro de 1965, o governo, através do AI-2, ampliara de 11 para 16 os ministros do Supremo. Após as cassações, com a nomeação de mais cinco ministros, o governo militar, garantida a maioria, fez retornar o formato original de 11 ministros, que persiste até hoje.
Aqui entre nós, na atualidade, a tentativa de Bolsonaro e seus militantes de emparedar o STF está encontrando resistências democráticas vigorosas. O advogado Flavio Carvalho Brito, que trabalhou com Victor Nunes Leal e herdou seu espólio profissional, descobriu recentemente uma carta em que, no dia 16 de junho de 1964, pouco mais de dois meses depois do golpe militar, o então ministro escreve a um amigo de nome Mario, não identificado, dizendo que o preocupou a “notícia, que você me deu, de haverem falado ao Marechal Castelo Branco de um pretenso trabalho de três ministros do Supremo Tribunal - entre os quais eu - no sentido de aqui se formar um bloco hostil ao governo. (...)”.
Quatro anos e sete meses depois, a cassação dos membros do Supremo mostrou que a preocupação de Victor Nunes não era vã. O que se segue é exemplar do seu espírito democrático, e uma lição para os dias de hoje: “Quem chega ao Supremo Tribunal tem um passado pelo qual zelar, na advocacia, na magistratura, no magistério, em funções administrativas e políticas, e está atento ao julgamento dos seus contemporâneos e da posteridade. O juiz, mormente no Supremo Tribunal, não recompensa benefícios, mas exerce uma elevada função que exige espírito público e dignidade. (...)
“Não é de se estranhar, pela incompreensão da política, que homens com esse tirocínio sejam julgados com parcialidade, porque ao longo de sua carreira , nem sempre tranquila, tiveram que contrariar interesses ou viver situações e problemas polêmicos. (...) Enquanto os outros poderes fazem as leis, imprimindo frequentemente novo rumo à coisa pública, o dever do juiz é cumpri-las, em confronto com a Constituição.
“De certo, essa delicada tarefa não é um trabalho mecânico. Valemo-nos de nossa formação profissional e da observação da realidade econômica, social e política. Mas, nessa busca, por vezes tormentosa, nossa lealdade é para com a Constituição, as leis, e o interesse coletivo, e a uma consciência, porque , sem a independência, que é ônus e prerrogativa do juiz, não se pode falar em autêntico poder judiciário. (...)
“Cada um de nós é cioso da sua responsabilidade pessoal, da sua reputação, do seu compromisso com o país, da sua autonomia de julgamento. Quando rumores de todos os lados inquietavam nosso espírito e nos perturbavam o trabalho, era natural que nos preocupássemos o destino de nossa instituição, que é fiel do equilíbrio federativo, da harmonia dos poderes, dos direitos individuais, e, portanto, chave do regime democrático-representativo em que vivemos. (...)
“Assumir posições políticas, num ou noutro sentido, seria totalmente contrário à missão constitucional do Tribunal, prestigiado por sensível tradição constitucional, que todos estamos empenhados em preservar”.
O constitucionalista Gustavo Binemboin, que me deu acesso à carta, diz que a razão principal para considerar que a repetição não se dará “nem como farsa”, é o surgimento de uma “consciência democrática, um genuíno sentimento constitucional, que impõe aos governantes os respeito às instituições republicanas. Não há maioria que apoie uma ruptura do Estado de direito e da continuidade da vida democrática. Criticar a democracia para aprimora-la, mas sem destruí-la”. (No blog o fac-símile da carta).
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/nem-como-farsa.html
Centrão toma de assalto o Planalto
Merval Pereira / O Globo
Com a possibilidade real de se tornar inelegível em consequência do inquérito aberto contra ele no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelos ataques antidemocráticos ao sistema eleitoral e pela ameaça de não realizar as eleições do ano que vem, Bolsonaro precisa reavaliar bem sua estratégia política, que claramente tem o objetivo de causar confusão e enfrentamento de autoridades, para retornar ao Bolsonaro da campanha de 2018 — que na verdade só existiu para reafirmar seu instinto vulgar, mas não corresponde ao inimigo do establishment depois que se entregou de corpo e alma ao Centrão.
Ontem, a posse do senador Ciro Nogueira como ministro da Casa Civil foi uma demonstração de força, submetendo até mesmo o general Augusto Heleno ao beija-mão dos políticos que, na campanha, chamou de ladrões. A foto da imensa fila de deputados à porta do Palácio do Planalto, com os generais Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, do GSI, olhando de cima aquela multidão de políticos que invadiram o salão nobre para festejar a tomada de assalto do grupo ao centro do poder, é reveladora.
O corregedor do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, ao pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) o compartilhamento de provas e investigações em curso por lá para anexá-las ao inquérito que investiga irregularidades na campanha eleitoral que elegeu Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, acrescentou mais lenha na fogueira da disputa política entre o presidente e o STF. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no Supremo, acolheu ontem a notícia-crime encaminhada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, e determinou a instauração imediata da investigação das condutas do presidente Bolsonaro.
A estratégia de Bolsonaro parece ser, na impossibilidade de vencer constatada no momento pelos institutos de pesquisa de opinião, tumultuar a campanha eleitoral, buscando motivo para cancelar as eleições presidenciais. Caso ele se torne inelegível, só uma revolução popular poderia efetivar essa pretensão de cancelar as eleições e mantê-lo no poder.
Não acredito que tenha apoio para isso, nem da maioria da população, nem das Forças Armadas. Só arruaceiros como ele estarão nessa aventura. Ele pode até gostar da ideia de ser declarado inelegível, para se fazer de vítima de um complô dos mesmos que tornaram Lula elegível — uma saída boa para o populismo. Os políticos que o apoiam devem estar pensando que uma ditadura não interessa, porque fecharia o Congresso, e é melhor ter eleição com um candidato forte. Se não for Bolsonaro, será Lula a ser apoiado pelo Centrão. Ou até mesmo um candidato da terceira via que porventura se viabilize. Nunca um general.
É inegável que, apesar de decadente na popularidade, o presidente Bolsonaro ainda tem capacidade de mobilizar cidadãos para campanhas tão bizarras quanto o voto impresso, para contestar as urnas eletrônicas. Logo o voto no papel, que foi, durante anos, o responsável por tantos golpes. Mas isso não significa que tenha força para golpear a democracia.
O jurista e ex-deputado federal Marcelo Cerqueira enviou ao presidente do TSE, ministro Barroso, seu testemunho. Diz ele: “Só quem não viu o pandemônio da apuração de papel: compra antecipada de votos com o comprado apresentando cópia para ser confrontada com o resultado, e aí então receber o produto do crime; ou então a Babel de centenas de ‘apuradores’ reunidos em um ‘teatro’ sem a oportunidade de os fiscais do partido verificarem a exatidão da apuração (...) Só quem viu pode testemunhar a pouca relação entre o que você vota e o que é apurado. O ‘roubo’ está na compra antecipada de votos ou na empulhação da contagem manual. O papel tem enorme serventia, mas não serve ao processo eleitoral”.
Golpe numa democracia é inaceitável. Sobretudo por motivo fútil.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/centrao-toma-de-assalto-o-planalto.html
Políticos x militares
Merval Pereira, O Globo
O presidente Bolsonaro é um capitão reformado do Exército depois de episódios de indisciplina graves, incluindo acusações de terrorismo para reivindicar melhores salários, mas hoje comanda as Forças Armadas. Em seguida, Bolsonaro elegeu-se deputado federal, cargo que ocupou por 28 anos seguidos em partidos periféricos e alguns do Centrão, grupo político que hoje controla seu governo como base parlamentar.
Era parte do baixo clero mesmo no Centrão e se contentava com migalhas do butim. É comandante em chefe das Forças Armadas com prestígio inverso à liderança que tem entre os políticos. O presidente Bolsonaro quer ser dono de um partido político para controlar os fundos partidário e eleitoral, por isso tem dificuldade de conseguir quem o receba.
Esse foi o problema com o PSL, o segundo maior partido da Câmara por causa da eleição de Bolsonaro, mas que, como todos os outros, já tinha um dono, o empresário pernambucano Luciano Bivar, e houve um desentendimento por causa do dinheiro. O controle da verba dos fundos partidário e eleitoral é a base dos líderes partidários, e esse é um dos problemas do sistema brasileiro.
Das 33 legendas que fazem parte de nossa constelação partidária, os que ganhariam menos com o fundo eleitoral proposto — PMN, DC, PCB, PCO, PMB, PRTB, PSTU e UP — teriam R$ 3,5 milhões cada um, além do fundo partidário. PT e PSL, os maiores partidos da Câmara, ganhariam cerca de R$ 600 milhões cada um. Criam-se partidos para controlar os fundos e ganhar dinheiro fácil. A maioria dos donos de partidos quer usar o dinheiro para seus interesses pessoais, além dos políticos.
Com o PP acontece a mesma coisa. Se o presidente voltar a se filiar a esse partido, em que esteve por 20 dos seus 28 anos de mandato, será o candidato natural do partido à reeleição. Só que o PP não quer tê-lo como candidato formal, prefere que se filie a um partido menor para apoiá-lo numa coligação e abandoná-lo no meio da campanha, se for necessário. Pode até perder a eleição com ele, mas fica livre para negociar com o vencedor depois.
À medida que Bolsonaro perca popularidade, o PP pode sair para apoiar Lula ou outro candidato que tenha possibilidade de vencer a eleição. E o PP tem interesses próprios regionais, e muitos setores do partido, especialmente no Nordeste, apoiam Lula. Bolsonaro pode entrar num partido pequeno e, se for bem-sucedido, poderá montar sua base no novo partido.
Quando escolheu o general Hamilton Mourão para a Vice-Presidência, uma das principais razões foi ser um militar, o que, na visão de seus articuladores, dificultaria uma tentativa de impeachment. Hoje Mourão representa uma alternativa viável a Bolsonaro, que o rejeita quase humilhantemente. Agora mesmo comparou-o a um cunhado, de quem não pode se livrar, deixando claro que não o quer como companheiro de chapa na campanha de reeleição.
Ao contrário do que pensavam, os bolsonaristas hoje veem em Mourão uma ameaça, que facilita, em vez de dificultar, uma substituição do governo. Os militares, aliás, que eram o esteio de Bolsonaro quando este tinha planos golpistas, hoje, diante da inviabilidade de um autogolpe devido à reação institucional da democracia, perderam sua validade.
O ministro da Defesa, general Braga Netto, depois de se pronunciar privadamente contra a eleição sem voto impresso, foi traído por alguém que o ouviu falar e contou para o hoje chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, que substitui outro general em decadência de prestígio, Luiz Eduardo Ramos. Ciro e o presidente da Câmara, Arthur Lira, deixaram vazar os comentários do general Braga Netto e o neutralizaram. Agora, ele terá de se explicar diversas vezes, no Congresso e diante do Supremo Tribunal Federal (STF).
Os militares que pensaram em controlar Bolsonaro foram domesticados por ele e estão sendo engolidos pelo Centrão. O general Ramos, transferido novamente para a Secretaria de Governo, se disse “atropelado por um trem” e confessou a amigos que, se tivesse de sair do Palácio do Planalto, teria pedido demissão. Ainda alimenta uma ingênua pretensão de influir num governo cada vez mais dominado pelos políticos.
Relação instável de Bolsonaro afeta busca por legenda
Merval Pereira / O Globo
A dificuldade que o presidente Bolsonaro está tendo para encontrar sua décima legenda partidária não se deve, como é óbvio, à questão programática, mas a seu egocentrismo político. Tendo sido sempre do Centrão, como admitiu recentemente, ele trocou de legenda no mesmo grupo, mas nunca teve papel relevante dentro dele. Integrante do baixo clero legislativo, Bolsonaro nunca teve importância política e quer descontar o tempo perdido.
Em vez de “rachadinhas” de gabinete, ele agora quer o controle dos fundos eleitoral e partidário e encontra dificuldades para açambarcar o dinheiro que jorra desses dutos. No entanto todos os partidos já têm donos que, no momento, não têm razões para abrir mão do controle partidário para um Bolsonaro que declina na opinião pública.
Os partidos do Centrão querem sugar o máximo que puderem do governo fragilizado, mas não uma relação estável com Bolsonaro. O PP é exemplar dessa dificuldade. Recebeu de bandeja o controle político do governo, pela nomeação do senador Ciro Nogueira para a Casa Civil, mas não quer Bolsonaro como seu candidato à Presidência. Pode até apoiá-lo numa coligação partidária, mas quer estar livre para mudar de barco no meio da campanha se isso significar sua sobrevivência política.
Até mesmo no que seriam redutos políticos seus, Bolsonaro está recebendo críticas desde que se abriu ao Centrão como tábua de salvação, com receio de um impeachment. Agora mesmo tem de, mais uma vez, fazer malabarismos para vetar o fundo eleitoral de quase R$ 6 bilhões sem deixar seus amigos de infância política na mão. Precisa vetar para manter as aparências, mas ontem garantiu pelo menos dobrar o fundo, de R$ 2 bilhões para R$ 4 bilhões, uma cifra tão indecente quanto a que saiu do Congresso.
O próprio Bolsonaro está tendo dificuldade de explicar a seus eleitores a opção fisiológica que assumiu; dificuldade, aliás, que revela como se enganaram esses eleitores que acreditaram realmente que, votando em Bolsonaro, votavam a favor do combate à corrupção. Está metendo os pés pelas mãos, dizendo que, se não pudesse contar com políticos que são réus em processos, quase não sobraria ninguém no Congresso.
Não o fez como crítica, mas como constatação. Que já fora feita por muitos eleitores, que queriam justamente mudar esse quadro e votaram nele na crença ingênua de que se imporia sobre um Congresso corrupto. Mas, como seu rabo é maior do que aparentava na campanha presidencial, a margem de manobra de Bolsonaro nunca foi muito grande.
A ponto de ter advertido ontem seus presumíveis eleitores de que, se continuarem a criticá-lo como têm feito, podem ter de escolher entre Lula e Ciro Gomes num segundo turno. A deputada bolsonarista Alê Silva também está preocupada: “Enquanto os da direita ficam batendo nos da direita, puxando o tapete dos da direita, não querendo dialogar, criando muros entre a gente, do lado de lá, os reais inimigos da nação estão se organizando, estão se unindo e podem vencer”.
A possibilidade de Bolsonaro não estar no segundo turno é um cenário cada vez mais real. A estratégia de Bolsonaro está clara, ele quer ser o único que pode derrotar a esquerda na eleição presidencial do ano que vem. Por isso, diz que não acredita em terceira via, longe dos extremos partidários, e cola Ciro em Lula. O ex-presidente também despreza a terceira via, querendo transformar-se em alternativa moderada para o eleitorado de centro e centro-direita.
Nenhum dos dois, porém, é talhado para esse papel. Bolsonaro transformou-se em alternativa ao PT em 2018 porque os candidatos de centro, como Geraldo Alckmin, João Amoêdo e outros, não tiveram postura afirmativa numa campanha radicalizada. O ex-presidente Lula também não veste mais o modelo “Lulinha Paz e Amor”, que deu certo em 2002. Uma terceira via parece cada vez mais possível, e a campanha eleitoral deverá fazer essa decantação.
A política da destruição
Merval Pereira / O Globo
Foto: Isac Nóbrega/PR
Ao admitir que sempre fez parte do Centrão nos seus anos de Congresso, o presidente Bolsonaro desnuda mais uma das muitas manobras políticas que engabelaram boa parte de seus eleitores em 2018, em busca de um salvador contra a corrupção dos hábitos políticos. Muitos outros votaram nele sabendo exatamente de quem se tratava, mas interesses pessoais de toda sorte levaram a que aderissem a uma candidatura que só poderia dar no que deu, um governo disfuncional e absolutamente sem rumo. Que tem o único objetivo de destruir o que foi construído desde a redemocratização do país, transformando-o em uma arena regressiva guiada pela incitação ao ódio.
Acontece que Bolsonaro não tem outra escolha, a não ser se entregar ao Centrão, e a partir daí, corre o risco de perder boa parte do eleitorado. Ele joga com a possibilidade de que o candidato adversário seja o ex-presidente Lula, que não será o escolhido pelo eleitor arrependido ou decepcionado, e nesse ponto tem razão. Vejo aí um caminho aberto para a terceira via, um candidato que não seja do Centrão, nem um governante que desista de combater a corrupção por causa dos apoios eleitorais e da família.
Bolsonaro pode ganhar apoio no Legislativo, mas não entre os eleitores. É verdade que os políticos do Centrão são profissionais, sabem espalhar prefeitos e vereadores pelo país, fazem uma política eficiente de clientelismo à qual Bolsonaro vai aderir, aumentando a abrangência do Bolsa Família, por exemplo. Temos que ver como o eleitorado irá se comportar diante das outras opções. Acossado pela realidade, pode ser que algum dos candidatos já apresentados, ou um nome que surja no decorrer deste ano, se transforme numa saída de emergência para esse eleitorado que está decepcionado com Bolsonaro, e não quer a volta de Lula.
O fato é que o governo Bolsonaro vem se mostrando tão profundamente regressivo, tem feito com que o país retroceda tanto em termos civilizacionais, que se mostrou mais danoso do que qualquer outra experiência na democracia brasileira. Nascido da democracia, o bolsonarismo representa a destruição da própria democracia, e a aula inaugural do Instituto de Pesquisa de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR), com um ensaio sobre a destruição na era bolsonarista, pelo cientista político Renato Lessa, se debruçou sobre esse fenômeno.
No campo da língua, ele cunha o conceito “palavra podre” para definir a linguagem como espaço de intervenção política. O indizível da véspera “passa a ser a dicção regular e quase obrigatória”. Exemplo execrável dessa intervenção destruidora na língua é a definição de uma bolsonarista nas redes sociais: “Nós não conhecemos limites”. Não é uma frase ofensiva, mas destrói uma premissa fundamental que nos conecta na sociedade. A palavra podre, define Lessa, infecta o espaço semântico, e a República passa a usar essa linguagem. A palavra, lembra Lessa, é premissa do ato.
Daí a destruição dos espaços culturais, do arcabouço da educação brasileira. Segundo Hobbes, citado por Renato Lessa, o reconhecimento da centralidade da vida é a justificativa para a existência do Estado, a vida passa a ser uma figura de direito público. “Mortes violentas e precoces são evitáveis”. O que o leva a falar da performance do governo Bolsonaro no combate à pandemia da COVID-19.
A ideia de que o indivíduo tem o direito de não usar máscara, de contaminar os outros, de se contaminar, é uma ressignificação da ideia de liberdade, denotando a impossibilidade de ver a liberdade como um direito público. “Análogo ao direito de desmatar, de expulsar as populações originárias, de tratar homossexuais, mulheres e negros da maneira “como sempre foram tratados”, naturalmente. Seria a “expressão da alma brasileira expontânea”. A mesma lógica, segundo Renato Lessa, se aplica sobre o direito de território, a possibilidade de lidar com a terra fora do direito público, o desmonte dos regramentos legais existentes. Por último, Renato Lessa destaca como um aspecto grave a desfiguração da democracia na desconstituição dos direitos básicos ao trabalho, à educação e à cultura.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/
Merval Pereira: Não há chance de dar certo
Além das mentiras já comprovadas do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que o noticiário em tempo real já explora desde ontem, e os jornais de hoje estão certamente aprofundando, os depoimentos à CPI da Covid até agora estão desvelando a maneira primitiva com que as decisões não são tomadas no governo Bolsonaro.
Juntando com a operação da Polícia Federal realizada ontem sobre a venda ilegal de madeira para os Estados Unidos, denunciada pelo próprio governo americano, temos a prova cabal de que não é apenas a questão ideológica que interfere na formação de um governo totalmente disfuncional.
O (ainda?) ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e diversos escalões do Ibama, inclusive seu presidente, foram apanhados por uma investigação sigilosa que incomodou Bolsonaro, que fez trocas no Ministério da Justiça e na Polícia Federal na tentativa de controlar as instituições do Estado brasileiro e viu-se surpreendido com a independência da PF.
Um exemplo típico, e fundamental, dessa disfuncionalidade é a crença de que as palavras de Bolsonaro nas redes sociais e nas lives fazem parte apenas do seu “etos político”, e não representam orientações do governo. Ao explicar a famosa frase “um manda, outro obedece”, Pazuello disse que era “uma frase de internet”, isto é, uma resposta para ajudar o político Bolsonaro, que estava sendo criticado por seus seguidores nas redes sociais porque o Ministério da Saúde havia anunciado a compra da CoronaVac, a “vacina chinesa” do Doria.Seria uma releitura abrutalhada de Maquiavel, que separava a ética política da ética moral, ou então de Max Weber, uma referência para os que querem ser servidores públicos conjugando a “ética da convicção”, dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que prevalece na atividade política.
Se houvesse um lado B de Bolsonaro, que para fora do governo enviasse uma mensagem, e agisse com bom senso, não teríamos tido a tragédia sanitária de que Pazuello é cúmplice. Basta assistir ao vídeo da famosa reunião ministerial que precipitou a saída do ex-ministro Sergio Moro para ver que o Bolsonaro das redes sociais é o mesmo nas entranhas do governo.
Ao mentir na CPI, tentando livrar a cara do presidente, o ex-ministro da Saúde comete um “crime continuado”, mesmo fora do governo. Os fatos o desmentem. O caso do avião oferecido pelos Estados Unidos para levar oxigênio para Manaus, na crise sanitária ocorrida dentro da pandemia no Brasil, é exemplar da incapacidade de trabalho em equipe deste governo.
O ex-chanceler Ernesto Araújo não falou com o governo da Venezuela, nem com o dos Estados Unidos, por questões ideológicas. E também não encaminhou, segundo Pazuello, um pedido formal com as características dos cilindros que seriam apanhados na Venezuela para levar a Manaus. Já havia feito isso quando recebeu a carta da Pfizer oferecendo vacinas. Não comunicou ao presidente Bolsonaro porque supôs “que o governo tinha recebido a carta”.
Pazuello soube que havia um avião dos Estados Unidos pronto para trazer oxigênio, mas não fez nada, pois não lhe perguntaram nada, só informaram. Ernesto Araújo disse que cabia ao Ministério da Saúde dar as informações técnicas para o voo. Os dois não se falaram, demonstrando que as autoridades do governo tiveram comportamentos burocráticos durante a crise humanitária em Manaus.
Pazuello reafirmou uma visão provinciana das negociações internacionais sobre as vacinas. Disse que mostrou ao representante da Pfizer o tamanho do Brasil num mapa, assim como o presidente Bolsonaro dissera anteriormente que o mercado brasileiro era tão grande que poderíamos negociar o preço das doses. Deu tudo errado, e, ao final, compramos a vacina da Pfizer pelo preço definido no início das negociações, perdendo tempo e prioridade na distribuição das doses.
É um governo completamente disfuncional. Com esses depoimentos e declarações, não há a menor chance de dar certo.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/nao-ha-chance-de-dar-certo.html