Memória

Luiz Carlos Azedo: Delações perigosas

Às vésperas de encerrar seu mandato, Janot está na berlinda e acusa Miller de auxiliar o grupo J&F — controlador do frigorífico JBS — enquanto ainda atuava no Ministério Público Federal (MPF)

No fim de julho de 2015, a advogada Beatriz Catta Preta, numa entrevista bombástica, anunciou que estava abandonando os casos dos clientes que defendia na Operação Lava-Jato porque se sentia ameaçada e intimidada por integrantes da CPI da Petrobras. Ela disse que, devido às supostas ameaças, fechara o escritório e decidira abandonar a carreira. Havia sido convocada para depor pela tropa de choque do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que hoje está sem mandato e preso.

A advogada atuou em nove das 18 delações premiadas que deram início à utilização desse recurso jurídico pela força-tarefa da Operação Lava-Jato, beneficiando os executivos Júlio Camargo e Augusto Mendonça (Toyo Setal); o ex-gerente de Serviços da Petrobras Pedro Barusco; e o ex-diretor de Abastecimento da estatal Paulo Roberto Costa, a esposa dele, as duas filhas e dois genros. Quando jogou a toalha, era responsável pela defesa de Barusco, Camargo e Mendonça.

Catta Preta era uma rara especialista na matéria e transformou um instrumento novo, que até então era assunto dos meios acadêmicos, num tsunami jurídico. Até então, as grandes bancas de advocacia do país tinham o monopólio da defesa dos crimes de colarinho branco envolvendo grandes empresários e executivos. O script era conhecido: uma grande falcatrua virava escândalo na mídia; políticos instalavam comissões parlamentares de inquérito que acabavam em pizza, como a da Petrobras; e advogados famosos empurravam com a barriga o “devido processo legal” até que os crimes prescrevessem, tudo sob sigilo de Justiça, por envolver autoridades constituídas.

A advogada ganhou um bom dinheiro com os seus clientes, mas não tanto quanto se dizia nas bancas concorrentes. À época, Barusco espantou seus colegas da Petrobras ao devolver US$ 100 milhões de livre e espontânea vontade e revelar tudo o que sabia sobre a Sete Brasil, a empresa criada para fabricar sondas de petróleo. Surgia ali um “mercado” que, no primeiro momento, deixou as bancas de advocacia perplexas. Os clientes eram abandonados com estardalhaço quando decidiam fazer “delação premiada”. Advogados de Curitiba, da noite para o dia, passaram a rivalizar com seus colegas famosos de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A delação premiada era o novo filão a ser explorado.

É nesse contexto que o caso de Marcelo Paranhos Miller deve ser examinado. Ele foi contratado por um dos maiores escritórios de advocacia do Brasil, o Trench Rossi Watanabve e Associados, fundado em 1959, que mantém mais de 250 advogados em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre, para atender, sobretudo, grandes empresas com negócios no exterior.

Jogo duplo

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, planejava um desfecho glorioso para o seu mandato à frente da instituição. Com as delações premiadas da Odebrecht e da JBS, havia colocado o Congresso de joelhos. Toda a elite política brasileira estava no canto da parede; por muito pouco, não havia conseguido afastar Michel Temer do cargo ao denunciá-lo com base na gravação de uma conversa do presidente da República com Joesley. Essa possibilidade ainda não estaria descartada por causa da delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, sua flecha de prata. Eis que pousa na sua mesa a gravação da “conversa de bêbado” entre Joesley Batista e o executivo da J&F Ricardo Saud, com revelações espantosas sobre as negociações de sua delação premiada e do acordo de leniência do grupo que controla a JBS. Incrivelmente, a fita fora entregue pela defesa, o escritório Watanabe e Associados.

Agora, às vésperas de encerrar seu mandato, Janot está na berlinda e acusa Miller de auxiliar o grupo J&F, enquanto ainda atuava no Ministério Público Federal (MPF). Com base em documentos apresentados pelo escritório Trench, Rossi, Watanabe — que contratou Miller, em março, para trabalhar no acordo de leniência da J&F —, identificou trocas de e-mails entre o então procurador da República e uma advogada da banca de advocacia para “marcações de voos para reuniões, referências a orientações à empresa J&F e inícios de tratativas em benefício à mencionada empresa”. As operações de busca e apreensão determinadas por Fachin nas residências e escritórios dos envolvidos poderão corroborar ou não as suspeitas de que teria ajudado Joesley a “filtrar informações, escamotear fatos e provas e ajustar depoimentos e declarações em benefício de terceiros que poderiam estar inseridos no grupo criminoso”. Miller deixou o antigo chefe no sal.


Luiz Carlos Azedo: Violência e desemprego

Grosso modo, os indicadores de violência estão associados ao desemprego e à educação. Por isso, a política de segurança pública não dá conta do problema sozinha

O referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil, rejeitada por quase dois terços dos eleitores, em 23 de outubro de 2005, é um dos fenômenos mal estudados da política nacional. A derrota da proibição do comércio de armas e munições foi resultado de uma reviravolta na opinião pública, ocorrida num prazo de 20 dias. No começo, 80% dos cidadãos apoiavam a proibição; quando foram apurados os votos, 63% (59,1 milhões de eleitores) votaram não; 36,6% (33 milhões de eleitores), sim. A frente parlamentar vitoriosa foi coordenada pelo ex-governador de São Paulo Luiz Antônio Fleury (PTB), um político em decadência, e pelo polêmico deputado Alberto Fraga (então PFL-DF), coronel reformado da Polícia Militar.

A chamada “bancada da bala” derrotou toda a elite política do país, ou seja, os líderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, o alto clero e os mais importantes representantes da sociedade civil, como a OAB, por exemplo, sem falar nos artistas e intelectuais que aderiram à campanha. O “não” venceu em todos os estados, com destaque para Rio Grande do Sul, Acre e Roraima, onde a opção recebeu cerca de 87% dos votos. O melhor desempenho do “sim” foi em Pernambuco e no Ceará, com pouco mais de 45% dos votos.

De acordo com o TSE, a abstenção foi de pouco mais de 21% dos 123 milhões de eleitores registrados. Os números se mostraram semelhantes ao resultado do segundo turno das eleições presidenciais de 2002, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos derrotados na consulta popular, se elegeu pela primeira vez. Somente 20,45% dos eleitores deixaram de votar. O direito à autodefesa e a fragilidade da segurança pública fizeram a cabeça dos cidadãos, num país em que eram assassinadas a tiros 108 pessoas por dia.

Na verdade, o cotidiano violento da população falou mais alto, num país no qual se estimava a existência de 17 milhões de armas em poder de civis. Estatísticas do governo de São Paulo, no ano anterior, revelaram que 5% das vítimas de homicídios ocorridos no estado foram casos de latrocínio (morte seguida de roubo); os demais, execuções. Uma década depois do plebiscito, a violência aumentou: o Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 homicídios em 2014, uma alta de 21,9% em comparação aos 48.909 óbitos registrados em 2003.

A média de 29,1 para cada grupo de 100 mil habitantes também é das maiores já registradas na história do país, e representava uma alta de 10% em comparação à média de 26,5 de 2004. Os números são do Atlas da Violência 2016, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP). A pesquisa confirmou que jovens negros e com baixa escolaridade são as principais vítimas. Os homicídios representam cerca de 10% de todas as mortes no mundo, e, em números absolutos, o Brasil lidera a lista desse tipo de crime, mesmo considerando países em guerra civil, como Afeganistão, Iraque e Síria.

Humores

Grosso modo, os indicadores de violência estão associados ao desemprego e à educação. Por isso, a política de segurança pública não dá conta do problema sozinha, embora seja fundamental para reduzir os indicadores de violência, haja vista, por exemplo, a situação da crise de segurança no Rio de Janeiro, onde os indicadores vinham melhorando (redução de 33,3% de mortes por homicídio, de 48,1 para 32,1 por mil habitantes), até que o governo fluminense entrou em colapso.

O país tem 13,3 milhões de desempregados, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, divulgada ontem pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A redução foi de 0,8 ponto percentual em comparação ao trimestre de fevereiro a abril (13,6%), mas é irrisória, diante do fato de que a melhora foi proporcionada pela informalidade e não pela criação de vagas de carteira assinada, como era esperado. Ao comparar com o mesmo trimestre de 2016, 1,5 milhão de trabalhadores ficaram desempregados.O número de trabalhadores com carteira assinada manteve-se estável em 33,3 milhões frente ao trimestre anterior. Na comparação com o mesmo trimestre de 2016, a queda foi de 1 milhão de pessoas (2,9%).

O volume de empregados na informalidade, ou seja, sem carteira assinada, cresceu 4,6%, para 10,7 milhões de pessoas. Isso significa que 468 mil pessoas ingressaram no mercado de trabalho na informalidade (em um ano, a alta ficou em 5,6%, com 566 mil pessoas inseridas). O contingente de trabalhadores por conta própria aumentou em 351 mil, para 22,6 milhões de pessoas (1,6%), na comparação trimestral.

Há uma correlação entre os índices de desemprego e os indicadores de violência, embora não seja a única. Há que se considerar, por exemplo, o fator educação; sem falar na questão da legalização do aborto, cujo impacto nos indicadores de violência são comprovados. Desemprego e violência mexem com os humores do eleitor. Nesse aspecto, é bom lembrar o que houve no referendo das armas.


Luiz Carlos Azedo: Caixeiro viajante

A China, hoje, é o maior parceiro comercial do Brasil e trava uma disputa pelo controle do comércio mundial com os Estados Unidos, o nosso principal aliado na política internacional

O presidente Michel Temer viajou à China, onde participa de uma visita de Estado ao presidente Xi Jinping e do encontro da cúpula dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), como um caixeiro-viajante, o popular “mascate”, levando nas malas um pacote de 57 projetos de privatizações para oferecer a chineses, russos, indianos e sul-africanos. No Brasil, o vocábulo está associado à imigração árabe, devido ao grande contingente de libaneses e sírios que migraram para nosso país do antigo Império Otomano. A origem do termo “mascate” vem do árabe El-Matrac, usado para designar os portugueses que, auxiliados pelos libaneses cristãos, tomaram a cidade de Mascate (Omã), em 1507. Na escala em Lisboa, Temer se reuniu com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.

Fazem parte do pacote 14 aeroportos, 15 terminais portuários, 11 linhas de transmissão de energia elétrica e 2 rodovias, que podem alavancar investimentos privados da ordem de R$ 44 bilhões. Além da Eletrobras e da Casa da Moeda, estão no programa de privatizações Congonhas e outros 13 aeroportos, a serem leiloados até setembro de 2018, no valor estimado de R$ 19,4 bilhões. Do valor total, R$ 6,4 bilhões serão pagos à vista. Congonhas será licitado separadamente e deve responder por R$ 5,6 bilhões, pagos no ato de compra. Os demais foram agrupados em três grupos: Nordeste (Recife, Maceió, João Pessoa, Aracaju, Campina Grande e Juazeiro do Norte), Mato Grosso (Cuiabá, Alta Floresta, Sinop, Barra dos Garças e Rondonópolis) e Sudeste (Vitória e Macaé). Além disso, a Infraero venderá 49% de participação em Guarulhos (SP) Galeão (RJ), Brasília e Confins (MG). A estatal está quebrada, com um rombo no orçamento de R$ 3 bilhões.

Também estão no pacote as rodovias BR-153 (GO/TO) e BR-364 (RO/MT), os terminais de GLP de Miramar e de granéis líquidos do Porto de Belém; os terminais de granéis líquidos em Vila Conde, no Pará; os três terminais de grãos de Paranaguá (PR), os terminais de granéis líquidos de Vitória; a Codesa; a hidrelétrica de Jaguará, em Minas; 11 lotes de instalações de linhas de transmissão; a 3ª rodada sob regime de partilha de produção do pré-sal; a 15ª rodada de blocos para exploração e produção de petróleo; a 5ª rodada de licitações de campos terrestres maduros; a 4ª rodada de blocos sob regime de partilha de produção; a Casem, a Ceasa Minas, a PP da rede de Comunicações Integradas do Comaer; e a Lotex. A dúvida é a Cemig, que os políticos de Minas não querem privatizar. E a polêmica Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), leia-se também: de ferro, manganês, nióbio, níquel, ouro e petróleo.

Rota do Pacífico
Não custa nada reiterar que a modelagem dessas privatizações ainda é uma incógnita para os investidores e a sociedade brasileira, mas esse problema pode ser bem resolvido tecnicamente se houver disposição política. A grande questão subjacente à viagem de Temer é geopolítica. A China, hoje, é o maior parceiro comercial do Brasil e trava uma disputa pelo controle do comércio mundial com os Estados Unidos, o nosso principal aliado na política internacional. Nossa infraestrutura foi toda montada para o comércio no Atlântico, mas o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico, o que contribuiu para tornar nossa infraestrutura ainda mais obsoleta, sob forte impacto da necessidade de novos corredores de exportação para o agronegócio, principalmente no Centro-Oeste e no Norte do país.

No século passado, a disputa entre uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, a Inglaterra, pelo controle do comércio no Atlântico resultou em duas guerras mundiais. Agora, a disputa se instalou no Pacífico, novamente entre uma potência marítima (os EUA) e uma continental (a China), numa escala ainda maior, porém, num ambiente de cooperação mundial e regras de jogo definidas, embora existam elementos de instabilidade na península da Coreia, cuja divisão em dois países é uma herança da guerra fria.

É ingenuidade acreditar que a entrada maciça de capitais chineses no programa de privatizações de Temer seja uma miragem. Existe a possibilidade real de que isso aconteça. A vocação natural da economia brasileira na nova divisão internacional do trabalho é a de grande produtor de commodities, de alimentos e minérios. Nosso problema é a situação da indústria, que sofre as consequências de uma política equivocada de adensamento da cadeia produtiva nacional, quando a estratégia deveria ter sido a sua transnacionalização. Nada disso, porém, está sendo discutido mais profundamente. O programa de privatizações está sendo lançado sob a lógica de vender ativos para cobrir o deficit fiscal, sem reinventar o Estado brasileiro nem a nossa economia.

Calma aí
O ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro para a Procuradoria-Geral da República (PGR) por causa de uma cláusula do acordo que blindava o operador de ações de improbidade. Seguiu a jurisprudência da Corte, que decidiu recentemente que acordos firmados pelo MPF só podem ter efeito na esfera penal, não nas esferas cível e administrativa. A segunda denúncia do procurador Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer, que seria baseada na delação de Funaro, subiu no telhado.

 


Luiz Carlos Azedo: Reserva do barulho

A venda bilionária de uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), maior produtora mundial de nióbio, para companhias asiáticas, estaria por trás da extinção da reserva

O líder do PSDB na Câmara, deputado Ricardo Trípoli (SP), anunciou que apresentará à Casa Civil da Presidência da República uma solicitação para que sejam sustados os efeitos do Decreto nº 9.142, divulgado ontem, que extinguiu a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), liberando para exploração mineral área localizada entre o Pará e o Amapá. Para Trípoli, além do evidente risco ambiental, a medida foi tomada sem uma discussão adequada, não tendo recebido o aval de importantes setores relacionados ao tema. Por trás do pedido, também há uma reação dos militares contra a medida, adotada sem muita discussão dentro do governo.

Trípoli quer debater os riscos da medida com todos os atores envolvidos, inclusive os ministérios do Meio Ambiente, Minas e Energia e da Justiça. Há áreas indígenas demarcadas na região que podem sofrer com a extinção da Renca. “Ao desbloquear essa área, de 47 mil km², abre-se precedente para que outros locais sejam explorados de maneira predatória e inconsequente”, argumenta o tucano. A área estava protegida desde o governo do presidente João Figueiredo. Depois do Relatório Brundtland “Nosso Futuro Comum” e da Cúpula da Terra no Rio, que inaugurou as negociações globais para o Acordo do Clima, analistas veem a decisão como um retrocesso inexplicável, um surto a la Trump, que não tem nada a ver a como a política ambiental e os acordos internacionais assinados pelo Brasil.

A medida faz parte de um programa de privatizações lançado pelo governo sem muito planejamento nem regras claras, com propósito de sinalizar para o mercado o avanço de uma reforma liberal da economia, que ainda requer modelagem consistente para não cair no vazio e encalhar em intermináveis batalhas judiciais, além de dar munição para a oposição petista. A extinção da Reserva Nacional do Cobre (Renca) vem sendo planejada desde março, quando o ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, indeferiu os títulos protocolizados desde 1984 pleiteando ocupação de áreas dentro da reserva, mas manteve os requerimentos minerários (autorizações de pesquisa, concessões de lavra, permissões de lavra garimpeira e registros de licença) anteriores à criação da reserva.

Com isso, o governo pretende intensificar a exploração mineral numa área de pré-cambriano da Amazônia, considerada de grande potencial, utilizando técnicas modernas de pesquisa geológica. Esse período se estende da formação da Terra, há cerca de 4,6 bilhões de anos, até ao início do Período Cambriano, cerca de 440 milhões de anos atrás, quando os animais de carapaça dura apareceram pela primeira vez em abundância. Representam 88% do tempo geológico, nos quais apareceram os fósseis, os oceanos, a Lua, muitos minerais, a oxigenação, a formação de algumas vidas multicelulares e as placas tectônicas.

Cobiça

O maior defensor da reserva foi o almirante Gama e Silva, que liderou os estudos na área. Em 1969, após a descoberta de Carajás, o geólogo Décio Meyer descobriu o complexo alcalino-ultramáfico do Maraconaí, o que deu início a outras expedições de pesquisa entre os rios Jarí e Paru. Em 1981, a British Petroleum (BP) requereu direitos de exploração de cobre na região. Chefe do Grupo Executivo do Baixo Amazonas, Gama e Silva temia que Daniel Ludwig, do Projeto Jarí, dono de ações da BP, pretendesse dominar e internacionalizar a região. Conseguiu, porém, que o Conselho de Segurança Nacional vetasse a concessão dos alvarás da BP.

Hoje, as unidades de conservação e terras indígenas ocupam 80% da área, o que libera apenas 20% para exploração mineral. Há unidades federais (três) e estaduais (quatro) na Renca, mas o que impediu a pesquisa geológica na região foi a inércia do governo federal, que praticamente abandonou os estudos. Sabe-se, porém, que há na área enormes reservas de ferro, manganês, nióbio, níquel, cobre, ouro e petróleo. O assunto mais polêmico é o nióbio, que já chegou a ser relacionado até com o mensalão, após o empresário Marcos Valério afirmar na CPI dos Correios, em 2005, que o Banco Rural havia conversado com o ex-ministro José Dirceu sobre a exploração de uma mina na Amazônia.

Em 2010, um documento secreto do Departamento de Estado americano, vazado pelo site WikiLeaks, incluiu as minas brasileiras de nióbio na lista de locais cujos recursos e infraestrutura são considerados estratégicos e imprescindíveis aos EUA. A venda bilionária de uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), maior produtora mundial de nióbio, para companhias asiáticas, supostamente estaria por trás da extinção da reserva.

Em 2011, um grupo de empresas chinesas, japonesas e sul-coreanas fechou a compra de 30% do capital da mineradora com sede em Araxá (MG) por US$ 4 bilhões. O fato é que 98% das reservas conhecidas no mundo estão no Brasil, que responde atualmente por mais de 90% do volume do metal comercializado no planeta, seguido pelo Canadá e Austrália. Nossas reservas são da ordem de 842 milhões de toneladas e as maiores jazidas conhecidas se encontram nos estados de Minas Gerais (75% do total), Amazonas (21%) e em Goiás (3%).


Luiz Carlos Azedo: Será o fim do patrimonialismo?

Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção

A emblemática privatização da Casa da Moeda, anunciada ontem pelo governo, vai muito além da desmobilização de seu patrimônio e concessão de serviços. É a joia mais antiga da coroa do nosso velho patrimonialismo. Fundada em 1694, em Salvador, por Dom Pedro II de Portugal, foi criada para cunhar moedas de ouro de circulação exclusiva no Brasil. Desde então, é responsável pela produção do meio circulante brasileiro e de outros produtos de segurança, como passaportes com chips e selos fiscais. O complexo industrial, localizado em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, por exemplo, é um dos maiores do gênero no mundo, com três fábricas da empresa (de cédulas, de moedas e gráfica); na antiga sede no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, inaugurada em 1868, hoje funciona o Arquivo Nacional.

Dois dias depois de anunciar a privatização da Eletrobras, uma gigante estatal com receita de R$ 60,7 bilhões e 24 mil empregados — com 13 subsidiárias, 178 empresas e 223 usinas hidrelétricas —, o governo anunciou um Programa de Parcerias de Investimento (PPI) no qual 57 novos ativos foram disponibilizados, entre aeroportos, ferrovias, portos e rodovias. Segundo o ministro da secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco, o objetivo é “enfrentar a questão do emprego e da renda”. O governo não sabe ainda quanto pretende arrecadar com os novos leilões, mas estima que representarão R$ 44 bilhões em investimentos. O objetivo é elevar as receitas num momento de arrecadação fraca e deficit fiscal de R$ 159 bilhões.

Na prática, foi anunciada ontem a decisão política de se desfazer do patrimônio, sem que tenham ficado muito claras as regras do jogo. Não houve uma prévia discussão no interior da equipe econômica da modelagem das privatizações. O modelo será selvagem, como aconteceu com o programa do primeiro-ministro russo Boris Yeltsin, ou cercado de garantias institucionais, como nas privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso? As duas experiências ocorreram na década de 1990 e servem de paradigma para investidores do mundo inteiro quando se trata de lidar com os chamados países emergentes.

O programa reabre a discussão sobre o patrimonialismo no Brasil. O conceito foi criado por Max Weber, filósofo e sociólogo alemão, e adotado por alguns dos chamados intérpretes do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Victor Nunes Leal (Coronelismo: enxada e voto, 1948). Em 1978, o tema foi retomado com a reedição da obra de Raymundo Faoro Os donos do poder, a formação do patronato brasileiro (1958), que mostra as dificuldades em separar o patrimônio público dos bens privados para a construção de um Estado moderno, baseado no respeito aos preceitos legais.

Privatizações
A crise do Estado de bem-estar social na Europa e o chamado “Thatcherismo” coincidiram, no Brasil, com a crise do modelo nacional desenvolvimentista, que proporcionara o chamado “milagre brasileiro” no auge do regime militar. Após a vitória conservadora no Reino Unido, em 1979, a primeira-ministra Margaret Thatcher privatizou a maior parte do setor público, contra a opinião dos trabalhistas e a mobilização dos sindicatos, que acabaram derrotados depois de uma greve de mineiros que durou mais de um ano. Nos meios intelectuais, o debate sobre as privatizações emergiu como uma espécie de saída para a crise de financiamento do setor público e superação do patrimonialismo em meio à luta pela democratização do país. Mas morte de Tancredo Neves, em 1985, de certa forma, frustrou uma reforma liberal.

Agora, a Operação Lava-Jato repôs esse debate na ordem dia. A passagem do PT pelo poder, economicamente intervencionista e estatizante, exacerbou o fisiologismo, o clientelismo e o patrimonialismo. A presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder, mas seus aliados permaneceram no controle das estruturas de governo, a começar pelo PMDB, cujas práticas patrimonialistas dispensam apresentação. Doutrinariamente, caberia ao PSDB liderar a retomada do debate sobre as privatizações, mas o que está acontecendo é outra coisa. Foi o núcleo peemedebista ligado ao presidente Michel Temer que resolveu desatar o nó das privatizações.

Como se dará esse processo? Essa é a grande indagação no mercado, porque as regras não estão claras. Na Rússia, as privatizações selvagens de Yegor Gayder, ministro de Boris Yeltsin, transformaram burocratas comunistas em magnatas capitalistas da noite para o dia. Putin virou um novo czar da Rússia ao pôr ordem no processo, com apoio da classe média generalizada que surgiu da restauração capitalista. No Brasil, a recessão impediu a consolidação da chamada nova classe média, lançada ao desemprego e à falência, mas a retomada do crescimento pode viabilizar isso. É uma aposta para 2018 se a reforma do Estado avançar na administração direta e na Previdência e os investimentos vierem. Muitos desses investidores são africanos, árabes, russos e chineses, que gostam de jogo bruto. Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção e o mau uso do patrimônio do Estado. Ele pode ser abortado por privatizações a toque de caixa.


Luiz Carlos Azedo: A memética da Lava-Jato

Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos

Para quem gosta de analogias para explicar o que está acontecendo no mundo da política, o livro Sapiens, uma breve história da humanidade, do israelense Yuval Noah Harari (L&PM), é um prato cheio. Uma das pérolas do livro é a referência à tese neodarwiniana de que, além dos genes replicadores das espécies responsáveis pela evolução orgânica da Terra, existiria um replicador responsável pela transmissão de informações culturais de uma geração para a outra: os “memes”.

Com base nela, alguns estudiosos já tratam a cultura como uma espécie de epidemia infecciosa, provocada por um parasita mental, sendo os homens seus hospedeiros voluntários. Harari entra nessa seara para explicar o que poderíamos classificar de “pós-fim da história”. Explico: quando acabou a União Soviética e o Leste europeu derivou de volta ao capitalismo, graças a um artigo de Francis Fukuyama (célebre economista e filósofo americano de origem japonesa, que foi um dos ideólogos de Ronald Reagan), que depois virou livro, a velha tese do “fim da História” de Hegel ressurgiu das cinzas. Harari vai além: defende que a História não é feita pelos e para os humanos.

Segundo ele, não há provas disso. O fio condutor do seu livro é a saga de uma das seis espécies de humanos que habitavam a Terra há 100 mil anos, os sapiens, que exterminaram os neandertais. Mas, entretanto, a História não atuaria em prol dos humanos. Ela não seria fruto de decisões de seus governantes e líderes, mas dos tais “memes”: “Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando. Contanto que os hospedeiros vivam o bastante para transmitir o parasita, este pouco se importa com a condição em que o seu hospedeiro se encontra”. Da mesma forma, as ideias culturais viveriam dentro da mente dos humanos. “Elas se multiplicam e se disseminam de um hospedeiro a outro, às vezes enfraquecendo os hospedeiros e até mesmo os matando.”

A tese exposta por Harari é perturbadora e nos remete aos conflitos religiosos e raciais e à crise humanitária do Mediterrâneo, berço da nossa civilização. Desde o fatídico 11 de setembro de 2001, dia do atentado às Torres Gêmeas de Nova York, as cidades mais cosmopolitas do mundo deixaram de ser lugares seguros para morar, trabalhar e visitar. “Uma ideia cultural — tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra — pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como preço. O humano morre, mas a ideia se espalha.”

Narrativas
A memética é uma polêmica abordagem antropológica: “Culturas bem-sucedidas são aquelas que se sobressaem ao reproduzir seus memes, independentemente dos custos e benefícios aos hospedeiros humanos. Essa forma de abordagem é tratada como um amadorismo pela academia, que considera essa analogia muito tacanha. Mas, com a mais fina ironia, Harari situa o pós-modernismo acadêmico como uma espécie de irmão gêmeo da memética, pois seus defensores falam que os discursos, como os blocos construtores de cultura, também se propagam sozinhos. O nacionalismo e a guerra seriam frutos desse fenômeno. A pós-verdade estaria ainda mais associada aos “memes” com suas “narrativas”.

Mas o que isso tem a ver com a crise ética, política e econômica que estamos vivendo? Ora, muita coisa. Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos. Além da reprodução biológica facilmente constatável pelos velhos sobrenomes de batismo das oligarquias — a genealogia começa no Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre —, a cultura do desvio de dinheiro público e do caixa dois tornou-se tão dominante na política que os investigados na Operação Lava-Jato, mesmo sabendo das quebras de sigilo bancário, das escutas telefônicas, das buscas e apreensões e prisões, não conseguem viver sem maços de dinheiro vivo guardados nos armários, caixas de joias, viagens de jatinho e contas bancárias milionárias.

A Operação Lava-Jato desencadeou uma espécie de guerra de “memes” entre políticos, magistrados, promotores, delegados, auditores e advogados, no qual duas grandes correntes se digladiam, uma quer nos livrar dos “memes” da corrupção, outra tenta nos salvar dos “memes” do autoritarismo. E bilhões de reais deixam de ser gastos em saúde e educação. Outra vez, a tese do Harari: a História não leva em conta a vida dos indivíduos. Bom domingo!


Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos

Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.

Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.

No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.

De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.

A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.

Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.

Depois do golpe

Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.

Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.

O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.

Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.

 


O julgamento é político

Para uma parte da oposição, como é o caso do PT, alongar a crise e desgastar o governo pode ser melhor até do que afastar Temer

A votação de hoje na Câmara dos Deputados sobre a admissibilidade da denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente Michel Temer é um julgamento político. Não tem nada a ver com a consistência ou não das acusações, uma atribuição do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgará Temer se a denúncia for aceita ou congelará o processo até que seu mandato acabe.

Essa é a regra do jogo, estabelecida pela Constituição de 1988, para garantir o equilíbrio entre os poderes e o Estado de direito democrático. Ou seja, para evitar que um poder não eleito, no caso o Judiciário, provocado pelo Ministério Público Federal, afaste um governante eleito com apoio de uma maioria eventual no Congresso. Pela mesma razão, todo presidente da República é blindado pela Constituição: não pode ser investigado por atos cometidos antes do exercício do mandato.

Essa blindagem, porém, foi rompida quando Temer recebeu o empresário Joesley Batista em sua residência oficial, o Palácio do Jaburu, e por este foi gravado em conversa privada e nebulosa, supostamente para acertar propina, segundo a denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot. Com a delação premiada do dono da JBS, Temer ficou na berlinda. Caso a denúncia seja rejeitada, como tudo indica, uma pedra será colocada temporariamente sobre o assunto, apesar do burburinho das ruas. A blindagem estará restabelecida.

É bem verdade que outra denúncia está sendo preparada por Janot, mas nada indica que isso modificará a situação no Congresso. É bom lembrar que a Constituição de 1988 foi elaborada durante o governo Sarney, que amargou grande impopularidade depois do fracasso do Plano Cruzado, até concluir seu mandato em 1989. Ou seja, foi concebida para evitar crises políticas que levem a rupturas institucionais. É preciso a total falta de governabilidade para que o afastamento do cargo ocorra, como aconteceu nos impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Basta o apoio de 172 deputados para barrar qualquer intenção de destituição do presidente da República.

Nos bastidores do Congresso, consta que Temer somente não renunciou ao mandato porque foi aconselhado a resistir pelo ex-presidente José Sarney, o político mais longevo em atividade no país, cuja influência no governo se mantém, mesmo já estando sem o mandato de senador. Sarney viveu todas as crises políticas desde 1955. Temer foi incentivado a usar todo o poder de que dispõe na Presidência para barrar a denúncia. E não está vacilando nisso.

Maioria
Hoje, 11 dos 12 ministros que são deputados devem voltar à Câmara para votar a favor de Temer (a exceção é o da Defesa, Raul Jungmann, que é suplente). É uma sinalização de que o jogo está mesmo pesado e aqueles que não conseguirem mobilizar suas bancadas ficarão lá mesmo, na Câmara, não voltarão aos seus cargos. O partido que ficou na maior saia justa foi o PSDB, cuja bancada federal é majoritariamente a favor da denúncia. A cúpula da legenda, porém, trabalha para rejeitá-la , inclusive o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.

Não interessa ao governo adiar a votação; somente à oposição. Para uma parte da oposição, como é o caso do PT, alongar a crise e desgastar o governo pode ser melhor até do que afastar Temer. Mas o Palácio do Planalto tem interesse em encerrar o assunto ainda hoje, com a maior demonstração de força possível. Mesmo com a certeza de que a denúncia será barrada, um resultado no qual o governo não mostre músculos poderosos pode ser o começo do fim. Outra denúncia será apresentada por Janot, antes de completar seu mandato, em setembro, e há muitas medidas provisórias que precisam ser aprovadas no Congresso.

Temer precisa do apoio de pelo menos 257 deputados para demonstrar que tem força para barrar a denúncia e também para garantir a sua governabilidade. Essa contabilidade é importante diante da sua agenda legislativa. Não se trata apenas da reforma da Previdência, que para muitos subiu no telhado. Com o estouro das contas públicas, o governo precisa aumentar impostos e mudar a meta fiscal, cujo deficit previsto é de R$ 139 bilhões, mas já estourou. Se não mudar a meta, Temer pode ser enquadrado em crime de responsabilidade. E aí a situação se complica ainda mais.

 

 


O eleitor espreita

A mais de um ano das eleições, os políticos não querem ficar no sereno. Precisam da máquina estatal para fazer política nos seus estados e municípios

Uma das características da política brasileira é o fato de que somos uma democracia de massas, do ponto de vista da escala de eleitores e do voto direto, secreto e universal; ao mesmo tempo, temos um sistema eleitoral e partidário que bloqueia o seu desenvolvimento no sentido da renovação de costumes políticos, o que nos faz presas fáceis do patrimonialismo e do clientelismo. Esse tipo de contradição já nos levou a algumas rupturas institucionais e, neste momento, submete a duro teste de resistência o regime constitucional vigente desde 1988, pois as vísceras da nossa política estão expostas pela Operação Lava-Jato.

Na verdade, é um velho dilema nacional: de um lado, a política controlada pelas elites; de outro, a sociedade civil, na qual os cidadãos têm um caminhão de direitos, mas permanecem na arquibancada. É aí que surge um fenômeno que marca o nosso desenvolvimento: a busca de espaços na estrutura do Estado para influir nos destinos do país, uma vez que os partidos políticos mantêm a sociedade à margem da política.

A crise na base do governo Temer reflete isso. Em circunstâncias normais, um governo com 5% de aprovação popular não teria a menor chance de sobreviver, mas não é o que acontece. A mais de um ano das eleições, os políticos não querem ficar no sereno. Precisam da máquina estatal para fazer política nos seus estados e municípios.

Muito provavelmente, o Palácio do Planalto conseguirá barrar a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente da República, cuja admissibilidade está na pauta do Congresso para ser votada, quiçá amanhã mesmo. Se houver quórum para votação, bastará Temer ter um de 342 votos para os governistas rejeitarem a proposta. Por essa razão, setores da oposição não pretendem dar quórum para votação enquanto não estiverem em número superior a isso, o que é improvável. Previsões conservadoras do Palácio do Planalto garantem que há pelo menos 250 deputados federais fiéis a Temer.

O imponderável
Historicamente, no Brasil, o liberalismo tem duas vertentes: uma conservadora, que evoluiu do escravagismo para o neoliberalismo; e outra radical-democrática, que evoluiu do abolicionismo republicano para o nacional-desenvolvimentismo. Mas é o positivismo castilhista que acabou levando a melhor na configuração do Estado brasileiro, graças à Revolução de 1930 e ao golpe de 1964. Por causa disso, a forte presença na máquina pública, desde a República Velha, é o principal instrumento de participação política para as camadas “mais esclarecidas” da população.

Positivistas reconhecem os direitos civis e sociais da grande massa trabalhadora, mas não valorizam e prestigiam a democracia representativa. Preferem atuar como poderosas corporações na máquina administrativa ou como “tecnocratas sem partido”. Apostam no paternalismo e na intervenção do Estado para resolver os problemas da sociedade. Há que se considerar também o fato de que o positivismo no Brasil desaguou no nacional-populismo. Sua recidiva mais recente ocorreu nos governos Lula e Dilma, nos quais o jacobinismo foi abduzido pelo “transformismo” petista.

A redemocratização do país, com a Constituição “Cidadã” de 1988, ampliou tremendamente os direitos sociais — desenhou um Estado de bem-estar social que só existe no papel —, mas não resolveu o problema do exercício democrático da cidadania. E ainda “estatizou” os partidos políticos, seja pela via dos meios de funcionamento regulados pela Justiça Eleitoral, seja pela forte presença de seus militantes e quadros na máquina do Estado, que é partidarizada.

Resultado: é muito fácil cooptar os partidos e seus quadros para o governo, mesmo impopular; e muito difícil fazer política e conseguir uma vaga no parlamento estando fora da máquina pública, seja federal, estadual ou municipal. Mesmo partidos robustos, com uma proposta política moderna, têm dificuldade para fazer política fora da estrutura do Estado.

Em contrapartida, devido ao nosso sistema eleitoral e partidário, que privilegia os grandes partidos e o controle dos seus caciques sobre as legendas, cada vez mais o chamado voto de opinião tem dificuldade para se fazer representar no Congresso. Mas isso é agora uma contradição tremenda, haja vista o peso e a influência crescente das redes sociais.

Dois momentos são significativos quanto a isso: as manifestações espontâneas de 2013 e a campanha do impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Nas eleições municipais passadas, o imponderável rondou o status quo e um tsunami varreu da cena política prefeitos candidatos à reeleição e seus candidatos; o imponderável de 2018 é um fenômeno parecido. Na verdade, o eleitor “astucia coisas” e espreita a política.


Foto: EBC

Luiz Carlos Azedo: O busílis é a política

As forças que hoje dão sustentação ao governo Temer não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral

Deve-se ao marqueteiro de Bill Clinton, James Carville, a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!”. Em 1991, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, havia vencido a Guerra do Golfo e resgatado a autoestima dos americanos após a dolorosa derrota no Vietnã. Assim, era o favorito absoluto nas eleições de 1992 ao enfrentar o então desconhecido governador de Arkansas. Clinton apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e a frase de Carville virou a cabeça do eleitor.

Desde então, virou uma espécie de varinha de condão para governantes e candidatos em apuros, que apostam tudo na economia para enfrentar seus desafios eleitorais. Foi assim nas últimas eleições, quando a oposição achava que ganharia a eleição por causa da máxima de Carville. Logo no começo do segundo turno, Aécio Neves (PSDB) estava à frente de Dilma e os dados da economia eram muito negativos. As projeções do PIB em 2014 não passavam de 0,3%, mesmo com as pedaladas. A inflação chegava a 6,75% nos últimos 12 meses, com a taxa de juros (Selic) na casa dos 11% e do congelamento dos preços administrados, principalmente o preço da gasolina. Dos 48.747 empreendimentos da segunda versão do Programa de Aceleração do Crescimento, apenas 15,8% estavam concluídos.

Mas a oposição perdeu. Não apenas porque houve abuso de poder econômico (eis uma discussão vencida, que ironia, porque o TSE, em julgamento inédito, absolveu a chapa dessa acusação), mas porque Dilma, Lula e o PT politizaram a eleição na base do “nós contra eles”. Acusaram a oposição de querer acabar com os programas sociais petistas para favorecer os interesses dos mais ricos. Era música para 14 milhões de beneficiários do Bolsa Família, ou seja, 56 milhões de pessoas. Além disso, havia 1,5 milhão de beneficiados no Minha Casa, Minha Vida e um exército de 97 mil ocupantes de cargos comissionados defendendo o governo com unhas e dentes, temerosos de perderem o que tinham. O tempo da política não é o da economia, a recessão só veio depois, para embalar a campanha do impeachment.

O economicismo é uma praga na análise política, cuja origem é atribuída ao determinismo econômico marxista. É uma injustiça com Marx, embora essa responsabilidade seja dos teóricos social-democratas do começo do século, principalmente do teórico alemão Eduard Bernstein, para quem o desenvolvimento das forças produtivas pelo capitalismo levaria ao socialismo. Outros teóricos marxistas criticaram essas interpretações. O economicismo sobrevaloriza os fatores considerados econômicos na evolução dos processos sociais e políticos, porém, a política é a economia concentrada.

Quem tiver oportunidade de ler o 18 Brumário, de Luís Bonaparte, que trata da restauração da monarquia na França após a revolução burguesa — na verdade, uma grande reportagem sobre os acontecimentos da época — , verá ali a centralidade da política na visão do autor d’O Capital. Na década de 1930, por exemplo, a ascensão do fascismo na Itália foi vista como uma via de industrialização de um país economicamente atrasado. Pois bem, não era um fenômeno determinado pela economia, mas pela política. Tanto que assombrou o mundo quando a Alemanha, um dos países mais desenvolvidos da Europa, sucumbiu à loucura nazista. No pós-guerra, o economicismo tornou-se uma presa fácil do nacionalismo e do populismo, que nos rondam novamente, inclusive na Europa.

Qual é a agenda?

Temos um governo que assumiu o poder e herdou o desgaste de Dilma Rousseff — até porque Michel Temer era o vice-presidente da República e o PMDB, o aliado principal do PT —, com o país em recessão e o desemprego em massa, além de ser assediado por denúncias de corrupção contra o próprio presidente da República. O governo adotou uma política de ajuste fiscal de longo prazo — a meta fiscal é um deficit de 139 bilhões — e promoveu reformas de cima para baixo, necessárias para enfrentar a crise e reorganizar a economia, mas sem apoio popular. Além disso, não cortou na própria carne como deveria: a relação dívida/PIB se aproximará de 80% no final do próximo ano.

As forças do impeachment de Dilma, que hoje dão sustentação ao governo Temer, não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral. As reformas não garantirão um crescimento espetacular, capaz de resgatar os empregos perdidos na escala necessária. Não haverá sequer um voo de galinha da economia, embora possa haver um ganho real com a redução da inflação. Além disso, espinafrar a Operação Lava-Jato não resolve o problema da crise ética, pode até agravá-la. No máximo, nivela na lama a disputa entre governo e oposição. O país precisa de um novo projeto político, que reinvente o Estado e a economia, a partir dos interesses da sociedade, e combata a corrupção, a violência e os privilégios. Esse é o desafio principal para tirar o país do atraso e garantir o futuro das novas gerações.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-busilis-e-politica/

 


Luiz Carlos Azedo: A crise do corporativismo

A alta burocracia estatal, para manter os privilégios, aliou-se à elite política e fechou os olhos para o clientelismo e o patrimonialismo, quando não incorreu nas mesmas práticas

A Era Vargas sempre foi um tema controverso na história do Brasil. Nélson Werneck Sodré e Hélio Jaguaribe, por exemplo, viram a Revolução de 1930 como um movimento de classes médias, fruto das contradições econômicas entre esses setores médios da sociedade e os grandes fazendeiros que controlavam a República Velha. Wanderley Guilherme dos Santos e Ruy Mauro, em contraponto, foram os primeiros a defender a tese de que, na verdade, resultou da cisão da burguesia nacional e da ascensão da burguesia industrial ao aparelho do Estado.

Na década de 1970, Boris Fausto publicou tese sobre a Revolução de 1930, caracterizada como o resultado do conflito intraoligárquico, no qual movimentos militares dissidentes liquidaram a hegemonia da burguesia cafeeira. Em virtude da incapacidade de as demais frações de classe assumirem o poder de maneira exclusiva, e com o colapso da burguesia do café, abriu-se um espaço vazio que possibilitou o surgimento de um “Estado de compromisso”, fruto de um grande acordo entre as várias frações de classe e “aqueles que controlam as funções do governo”, sem vínculos de representação direta.

No ambiente de radicalização política da década de 1930, que resultou na II Guerra Mundial, embora o Brasil tenha tomado o lado dos Aliados, Vargas flertou com o fascismo de Mussolini. Isso se traduziu no golpe de 1937 e na implantação do chamado Estado Novo, a forma institucional que encontrou para o tal “Estado de compromisso”, a pretexto de combater a ameaça comunista. Ao lado do patrimonialismo e do clientelismo, velhos conhecidos, emergiu no Brasil o corporativismo, consagrado pelo jurista Francisco Campos, na Constituição de 1937.

No corporativismo, o poder Legislativo é atribuído a corporações representativas dos interesses econômicos, industriais ou profissionais, por meio de representantes de sindicatos de trabalhadores e patronais, associações de comércio, indústria e agricultura, academias, universidades e etc. Conhecida como “Polaca”, a nova constituição ampliou os poderes de Vargas. A inexistência de um partido que intermediasse a relação entre o povo e o Estado não impediu o ditador de construir uma ampla rede de apoio, por meio de mecanismos de controle e da negociação política com os caciques regionais.

Além disso, a nova legislação trabalhista, inspirada na Carta Del Lavoro, garantiu o apoio dos sindicatos, até então tratados como caso de polícia. Ao conter o conflito de interesses entre trabalhadores e empresários, Vargas criou condições favoráveis ao desenvolvimento do setor industrial brasileiro. Foram criadas a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945). Entre os novos órgãos criados pelo governo, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que era responsável por controlar os meios de comunicação da época, o novo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) deu origem a uma nova burocracia, menos afeita ao tráfico de influências, às práticas nepotistas e a outras regalias.

Os privilégios
Em 1943, um documento intitulado Manifesto dos Mineiros, assinado por intelectuais e influentes figuras políticas, exigiu o fim do Estado Novo e a retomada da democracia. Vargas criou uma emenda constitucional que permitia a criação de partidos políticos e anunciava novas eleições para 1945. Em 1945, com o fim da II Guerra, a saída de Vargas tornou-se inevitável, mas não é o caso de tratar disso aqui. O que nos interessa destacar é o legado corporativista que lhe garantiu um mandato como senador, entre 1945 e 1951, e o retorno ao poder nas eleições de 1951.

O corporativismo sobreviveu ao suicídio de Vargas, na crise de 1954, e ao golpe ocorrido 10 anos depois. O regime militar se utilizou de sindicatos patronais e de trabalhadores, dependentes do imposto sindical criado por Vargas e da Justiça do Trabalho, e ainda ampliou a alta burocracia federal, que adotou uma ideologia tecnocrática para legitimar o apoio ao autoritarismo. O corporativismo na burocracia estatal, com a formação de núcleos de excelência em órgãos públicos e empresas estatais, ganhou ainda mais força com a democratização, graças aos Poderes e direitos adquiridos com a Constituição de 1988. Na verdade, a alta burocracia estatal, para manter os privilégios, aliou-se à elite política e fechou os olhos para o clientelismo e o patrimonialismo, quando não incorreu nas mesmas práticas.

Isso resultou na acumulação de mordomias, privilégios e altos salários por esses setores, equivalentes aos executivos das empresas privadas, ao contrário da grande massa de servidores responsáveis diretos pela prestação de serviços à população que tiveram salários aviltados. Parte da crise de financiamento do Estado brasileiro decorre desses privilégios, principalmente, na Previdência, que garante aposentadorias com vencimento integral, incorporando gratificações, muito acima do que recebem os trabalhadores que se aposentam no setor privado. Agora, com a crise fiscal, tudo isso entrou em xeque.

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Luiz Carlos Azedo: A conta do desajuste

A política de conciliação continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações contra a Lava-Jato

Não existe política de conciliação no Brasil sem uma grande dose de patrimonialismo, que é a marca registrada das práticas políticas que não distinguem os limites do público e do privado. O patrimonialismo surgiu com a decadência do Império Romano, por influência dos bárbaros germânicos, quando os governantes começaram a se apropriar privadamente dos antigos bens da República. Tornou-se uma característica do absolutismo e, assim, chegou ao Brasil, com a concessão de títulos, sesmarias e poderes quase absolutos aos senhores de terra pela Coroa portuguesa.

No clássico Coronelismo: enxada e voto, Vitor Nunes Leal descreve como o patrimonialismo sobreviveu ao Império e chegou à República Velha. Em troca dos votos dos coronéis fazendeiros, o Estado brasileiro homologou seus poderes formais e informais. Em contrapartida, os senhores de terra foram se adaptando aos novos tempos políticos, entregando os anéis para não perderem os dedos. Isso não seria possível sem a velha política de conciliação do Império, inaugurada no gabinete do Marquês de Paraná.

Entre a abdicação de Dom Pedro I e o Golpe da Maioridade de Dom Pedro II, os partidos liberal e conservador protagonizavam disputas políticas da época. Os liberais (luzias) reivindicavam a ampliação da autonomia dos governos provinciais e a reforma de alguns aspectos contidos na Constituição de 1824; os conservadores (saquaremas) eram favoráveis à manutenção da estrutura política centralizada e à preservação dos poderes reservados ao imperador.

A eclosão das rebeliões e de outros movimentos de contestação que questionavam as determinações da Regência resultou, em 1840, no Golpe da Maioridade. Dom Pedro II assumiu o governo, foi apoiado e prestigiou a presença de figuras liberais em seu ministério. Escândalos de violência e corrupção envolvendo os liberais nas eleições, porém, provocaram a dissolução do ministério, em 1853, e a convocação de Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, um político conservador que estava havia 10 anos rompido com Dom Pedro II, para compor um novo gabinete. No regime parlamentarista da época, o imperador escolhia o presidente do Conselho de Ministros, e este formava o gabinete, escolhendo os demais ministros. Carneiro Leão montou um gabinete de liberais e conservadores mais leais a Dom Pedro II do que aos seus partidos.

O Gabinete Paraná representou a consolidação de uma inédita estabilidade, que proporcionou conquistas inimagináveis em tempos de ferrenha disputa política. Como havia unidade de interesses das elites liberais e conservadoras, principalmente em defesa da escravidão, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos. Carneiro Leão, que fora nomeado presidente da província de Pernambuco após a repressão à Revolução Praieira, descobriu em primeira mão que os princípios partidários eram vistos como irrelevantes e ignorados em níveis provinciais e locais. Um gabinete poderia ganhar o apoio de chefes locais para candidatos nacionais usando apenas o clientelismo.

Quem narra muito bem esse período é Joaquim Nabuco, no livro Um Estadista no Império, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não cansou de recomendar aos tucanos inconformados com sua aliança com o PFL, como o falecido governador paulista Mário Covas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu seus passos com sinal trocado, o que resultou no transformismo petista. Dilma Rousseff, também desse ponto de vista, fez tudo errado e perdeu o apoio das velhas oligarquias e dos novos chefes políticos.

Clientelismo
Na chamada Nova República, o grande partido da conciliação vem sendo o PMDB, que soube conviver em conflito com o PT nos estados e a ele se aliar no poder central, como os saquaremas fizeram com os luzias no Império. A política de conciliação sobreviveu a duas ditaduras e continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações para salvar da Operação Lava-Jato os que foram pegos se apropriando de bens públicos.

O problema é o custo dessas alianças para os cofres públicos, como acontece agora. Ontem, o governo anunciou mais um aumento de impostos, para obter uma receita adicional de R$ 10,4 bilhões. O objetivo das medidas é cumprir a meta fiscal de 2017, um deficit (despesas maiores que receitas) de R$ 139 bilhões. A conta não inclui as despesas com pagamento de juros da dívida pública. Para compensar a tunga no bolso do contribuinte, fará um bloqueio adicional de R$ 5,9 bilhões em gastos no orçamento federal.

A tributação sobre a gasolina subirá R$ 0,41 por litro, ou seja, mais que dobrou, já que passará a 0,89 cada litro de gasolina, considerando a incidência da Cide, que é de R$ 0,10 por litro. O diesel subirá em R$ 0,21 e ficará em R$ 0,46 por litro. Segundo a Receita Federal, o crescimento de 0,77% na receita foi insuficiente para fechar as contas públicas. Na verdade, a receita com impostos e contribuições caiu 0,20% no período. O resultado positivo foi salvo pelos royalties pagos por empresas que exploram petróleo. O governo Temer não cortou na própria carne; pendurou a conta do ajuste fiscal na lei do teto de gastos. Ou seja, empurrou com a barriga.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista