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Marcos Lisboa: Tudo vai ser diferente?

Nossa tentativa de plano Biden não deu certo

Os EUA de Joe Biden pretendem investir US$ 2,3 trilhões em oito anos, sobretudo em infraestrutura. O programa custará, anualmente, 1,3% do PIB americano. Para equilibrar as contas, o governo propôs elevar impostos por 15 anos, como tributar o lucro das empresas em 28%.

Essa ousadia pode ser comparada com algumas políticas da nossa história recente. Deve-se ressaltar que os EUA são 6,5 vezes mais ricos do que o Brasil. Além disso, empresas aqui já têm alíquota nominal de 34% sobre o lucro.

O custo anual do plano Biden equivale, no Brasil, a cerca de R$ 100 bilhões, menos de três vezes o valor das emendas parlamentares em 2021. O Orçamento federal é de R$ 1,5 trilhão.

Entre 2009 e 2015, o Tesouro brasileiro concedeu, por meio do Programa de Sustentação do Investimento, subsídios de R$ 323 bilhões, ou 5,5% do PIB anual médio no período.

Ajustado pelo PIB americano, o programa equivaleu a 50% do plano Biden. E essa foi só uma das políticas públicas utilizadas naquele período para estimular investimentos. Cabe mencionar que o custo para Tesouro americano está perto de 0,5% ao ano e o nosso, na época, era quase 6% acima da inflação, 12 vezes maior.

De 1998 a 2007, a nossa carga tributária cresceu cerca de 6 pontos percentuais mais do que o PIB, o que significou uma arrecadação adicional de R$ 2,33 trilhões no período.

O aumento do gasto público, contudo, foi-nos de pouca valia. Os EUA cresceram mais do que o Brasil entre 1995 e 2016, e os países emergentes fora da América Latina, cerca de sete vezes mais.

A razão é simples. Parte dos recursos se perde nos interesses que capturam o Estado brasileiro, com menos benefícios para a população do que em outros países, ou poucos investimentos eficientes.

Desenvolvimento e combate à desigualdade são utilizados, em parte, como cortina de fumaça para garantir subsídios para o setor privado e reajustes para corporações.

Nos EUA, servidores deixam de receber seus salários caso o Orçamento não seja aprovado. A maioria não tem estabilidade, muito menos aposentadorias integrais.

Por aqui, a burocracia, com estabilidade e aposentadoria integral, garante seu quinhão. Semana passada, por exemplo, o Congresso decidiu que técnicos da Previdência devem receber como analistas tributários.

Segundo deputados, a medida privilegiou 1.800 servidores, que vão receber salários de até R$ 18 mil por função para a qual não prestaram concurso. A conta chega a R$ 2,7 bilhões.

No mundo desenvolvido, o Estado está a serviço da sociedade. No Brasil, a sociedade trabalha para sustentar o Estado e seus alcaides.

Já passou da hora de tratar a nossa disfuncional economia política.


Marcos Lisboa: A falência do Estado

Descoordenação e oportunismo empurram o país para o desastre

O país está cansado e doído. Alguns perderam parentes em razão da pandemia. Outros têm alguém próximo contaminado pelo vírus, sendo alguns casos graves e preocupantes.

Todos sabemos de pessoas que sofrem com a falta de renda e de emprego ou que estejam assistindo à destruição do trabalho de uma vida. Está difícil manter a serenidade nestes tempos tão difíceis.

Os governos, federal e locais, tornam-se os maiores advogados involuntários em favor de uma reforma urgente do Estado brasileiro. A sua incompetência em administrar a crise não para de surpreender.

Não sabemos quais os protocolos a serem adotados. Não sabemos que conselhos seguir. A sociedade assiste atônita à ineficiência do poder público, disfuncional e oportunista.

Servidores, com salário garantido e estabilidade no emprego, pedem para não pagar suas dívidas. Esquecem-se de comentar que a crise afeta o país, mas não o seu contracheque.

Tribunais de Justiça concedem novos auxílios para aumentar a remuneração dos juízes. Alguns estados aprovam licença-prêmio indenizável para magistrados, com efeito retroativo para mais de uma década.

O auxílio aos governos locais deveria ter tido como contrapartida a aprovação de reformas da previdência dos servidores para reduzir o descontrole do gasto com pessoal, que inviabiliza as contas públicas.

Alguns acharam que a crise seria curta e que a política pública deveria apenas garantir a travessia. Estavam errados.

Trata-se de desastre. Muitos negócios irão desaparecer; empregos serão perdidos. O Estado deveria cuidar das pessoas, porém se perde ao atender os oportunistas usuais. Medidas de saúde e da economia são tomadas de forma atabalhoada.

Para piorar, parte do Legislativo e do Judiciário sucumbe ao populismo à custa de quem trabalha. Pagamentos são interrompidos por liminares arbitrárias, prejudicando empresas ainda em atividade.

As medidas para o mercado de crédito em discussão no Senado conseguem ser tecnicamente ainda mais desastrosas do que a intervenção no setor elétrico realizada pelo governo Dilma.

Quem mesmo vai investir no Brasil após tanto desatino? Há crescente resistência em emprestar para um país com políticas públicas frequentemente tão incompetentes e erráticas.

Enquanto isso, tenta-se saber a quantidade de disparates gravados em reunião ministerial. Não há dúvida de que as polêmicas do Executivo apenas revelam seu despreparo, mas a imprensa poderia colaborar esclarecendo também os difíceis dilemas que estamos enfrentando e as implicações do que estamos fazendo.

Muitos irão sucumbir em meio à trágica constatação de que haverá mais mortos do que caixões.

*Marcos Lisboa, Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.


Marcos Lisboa: Moby Dick

Canibalizada por novos setores, indústria baleeira deixou uma obra-prima

Os Estados Unidos já assistiram muitas vezes à morte de setores que se tornaram obsoletos pelo surgimento de novas tecnologias. Para sua sorte, ao menos até recentemente, a política americana foi pouco sensível às demandas protecionistas dos setores decadentes.

O primeiro grande exemplo talvez tenha sido a indústria baleeira no século 19, cuja história surpreende tanto pela sua relevância esquecida quanto pela combinação de cultura e tecnologia que permitiu o seu crescimento.

Desde o século 17, o óleo obtido com a queima da gordura de baleia começara a ser utilizado para iluminar as principais cidades. O centro dessa indústria foi a pequena ilha de Nantucket, no atual estado de Massachusetts.

A cultura protestante enfatizava a parcimônia e o reinvestimento na própria produção. No caso de Nantucket, predominantemente quaker, o resultado foi o fortalecimento do setor baleeiro mesmo durante a guerra com a Inglaterra em 1812.

A caça às baleias contava com a experiência dos índios locais, os wampanoags. A mão de obra, porém, era insuficiente, o que incentivou a contratação de imigrantes.

A descoberta do maior potencial energético das baleias cachalotes, que habitavam mares distantes, levou a introdução de técnicas que permitiram a queima da gordura em alto mar nos barcos de madeira, permitindo viagens que chegavam a durar três anos.

No século 19, porém, o uso crescente do petróleo e da energia elétrica levou ao abandono do óleo de baleia e à decadência de Nantucket. Fosse nos tempos atuais, talvez estivéssemos assistindo à mobilização de lobbies contrários às novas tecnologias para preservar os baleeiros.

A concorrência induz o desenvolvimento de técnicas mais eficientes de produção, o que permite o aumento da renda e foi fundamental para a melhoria da qualidade de vida nos últimos 200 anos.

A tentativa de proteger setores obsoletos, por mais bem-intencionada que seja, termina por prejudicar o restante da sociedade. O exemplo de Nantucket ilustra a história dos EUA, inclusive na aceitação da decadência da indústria baleeira, canibalizada por novos setores.

A indústria esquecida deixou uma obra-prima, Moby Dick, de Herman Melville, recheada de personagens notáveis e conturbadas, em meio a passagens surpreendentes.

No capítulo três, Ishmael fica assustado ao saber que dividiria a cama com um jovem canibal na hospedaria lotada.

Após parágrafos angustiados, a sua empatia recheada de bom senso leva-o a concluir: “Que confusão é essa que estou fazendo... ele tem a mesma razão para me temer que tenho para ter medo dele. Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão bêbado”.
Marcos Lisboa

* Marcos Lisboa é presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.