marco aurelio nogueira

Marco Aurélio Nogueira: Pacto pelo futuro

O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos

É preciso compreender a dificuldade das oposições democráticas de se contraporem ao governo Bolsonaro.

Elas hoje preenchem um espaço amplo, vão da direita à esquerda, passando pelo imenso centro, cada pedaço com suas legítimas pretensões e seus problemas. Nas que se inclinam para o centro, o déficit passa pela ausência de lideranças incontestes, de um programa claro e de uma identidade substantiva.

As esquerdas não estão em melhor condição, embora estejam a comemorar a volta de Lula, que as magnetiza e seduz, agora com o adicional da absolvição conquistada e da incorporação de um papel de injustiçado perseguido político. Roda-se em torno de Lula como se dele emanasse a luz.

O que há de consenso cívico de repúdio e desejo de mudança não se traduz em consenso político e plataforma de atuação. Há ensaios unificadores e um esforço dedicado para que as oposições baixem o tom e conversem olho no olho. Manifestos, debates e proclamações indicam isso com clareza, o que é um alento. Mas não foram dados os passos decisivos, aqueles que fazem uma equipe vencedora. O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos.

As oposições ainda estão a lamber as feridas da derrota de 2018. São feridas que tardam a cicatrizar, manuseadas nem sempre com habilidade. Enquanto permanecerem abertas, dificultarão aproximações e convergências, com o passado recente cobrando seu preço e embaçando o futuro. Além disso, há elementos que complicaram demais as interações, a começar da pandemia.

A pandemia tem lógica própria, deve ser enfrentada com toda a energia. Está expondo nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, a capacidade de resposta da ciência. Além dos estragos que provoca em termos de vidas e de pressão sobre o sistema sanitário, ela se mistura com os desdobramentos da revolução tecnológica do nosso tempo. A economia está desafiada, assim como o mundo do trabalho. Não há como fazer funcionar o que ficou para trás, em termos de arranjos sistêmicos, padrões organizacionais, práticas e leis. Tudo terá de ser repensado, seja para conter a disseminação da covid, seja para desenhar as políticas que serão necessárias para reforçar a saúde e proteger os desassistidos. Será preciso, além disso, reconfigurar o modo de organizar atividades produtivas, trabalhar, consumir, estudar. Estamos às portas de um começar de novo, tamanhas são as transformações com que temos de lidar.

Assistimos ao processamento de uma espécie de metamorfose, que da vida material atinge todas as esferas existenciais. Em termos políticos, centro-direita, centro-esquerda e esquerdas deveriam suspender temporariamente suas particularidades doutrinárias e ideológicas para promover a formação de um polo democrático encorpado, flexível e plural, que proponha uma política e uma governação com a marca da inovação. O momento pede que os democratas calcem as botinas da humildade e amassem barro no Brasil profundo. Não cabem jogos de cena, reiteração de projetos pessoais e checagens da força relativa de cada um.

Na política, diferenças, disputas e antagonismos não devem ser temidos. Funcionam como motores de organização e esclarecimento, na medida em que dialogam com o conjunto da sociedade e interpelam o imaginário social. Não são, porém, definitivos, compõem-se e se recompõem de múltiplas formas ao longo do tempo, criando novas exigências. Polarizações que remontam ao passado não ajudarão a que se pavimente o futuro. Se todos os democratas vencerem, haverá espaços para antagonismos mais profícuos e substantivos.

Não é fácil encontrar o ponto ótimo a partir do qual possa ocorrer tal convergência. A unidade política não exclui a diversidade, antes se alimenta dela. Constrói-se mediante muitos esforços, tensões e concessões, requerendo retomadas continuadas.

A definição desse pacto político se beneficiará da afirmação, pelos protagonistas, de alguns princípios básicos. Uma sociedade socialmente justa em termos de renda, oportunidades, etnia e gênero. Uma ideia de governo como operação cooperativa, que funcione como um colégio de líderes e especialistas, com um Executivo democratizado. A recuperação dos grandes sistemas públicos, a saúde, a educação, a assistência, o meio ambiente, a cultura, as relações exteriores, a segurança. O reconhecimento de que não deve haver tolerância com a corrupção, seja qual for a forma que assuma. Um reformismo de longo prazo, constante e progressivo, a ser definido por consultas constantes aos cidadãos. Uma ideia sustentável de desenvolvimento, que valorize e respeite o meio ambiente, o trabalho e o consumo consciente.

São pontos genéricos. Mas se forem proclamados firmemente pelos que se dispõem a governar o País, poderão mostrar que a política tem dignidade e mobilizar os cidadãos em prol da recuperação do Estado, com sua institucionalidade e seus deveres, da valorização da República (do bem público) e da reconstrução da solidariedade, que são a cada dia mais indispensáveis.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Descoordenação geral

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente.

Enquanto o presidente da República exibe seu peculiar estilo de criar caso e agredir, afundando seu governo no desgoverno, a crise segue corroendo as esperanças brasileiras, sem sinal de superação.

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente. A crise sanitária e a crise econômica são grandes, terríveis, têm pinta de que se estenderão. A crise da educação mistura-se com  elas, e vai ceifando a inteligência nacional a partir de baixo, dos mais jovens, o que sugere a criação de um legado arrasador, que se espalhará pelo tempo. Pode-se dizer o mesmo da crise do saneamento, cujos déficits são escandalosos.

Somente elas são suficientes para explicar por que o País não está dando certo. São crises que se enraízam no chão profundo da história nacional, como se tivessem a ser criadas intencionalmente por mãos humanas. Servindo de base para todas elas, a desigualdade social obscena, chaga exposta a céu aberto, da qual muito se fala mas que segue se reproduzindo.

Nesse tronco principal enroscam-se outras crises, que eventualmente são mais fáceis de serem contornadas. Por comodidade vou chamá-las de “média intensidade”: a crise da federação e a crise dos poderes de Estado. As tensões que estão a ser reprisadas dia após dia têm a ver com isso. Há defeitos de formatação sistêmica no presidencialismo federativo, mas o que mais chama atenção é a ausência de um centro gestor eficiente, com um governante central interessado em defender o País mediante a harmonização de poderes e entes federativos. Nos últimos dias, o Judiciário entrou em rota de colisão com o Senado. O Senado reagiu à altura e assimilou o problema, mas não mostrou saber como processá-lo. Confusão à vista. O Executivo fez questão de deixar suas digitais. Com aquele jeito Bolsonaro de ser, resolveu conspirar com um senador (o inacreditável Kajuru) para pressionar os senadores e o STF simultaneamente. Para além da demonstração de desrespeito à Constituição, à ética pública, à decência e às boas maneiras, a iniciativa presidencial se dedicou, na verdade, a soprar as brasas de uma fogueira que libera gases tóxicos sem cessar. Uma fogueira que lhe queima as penas e o isola, mas que também cria um alvoroço que a todos confunde. Serviu, ao meno

Chamo essas crises de “média intensidade” porque podem ser enfrentadas com os recursos da política prática: a inteligência, a responsabilidade, a seriedade, a disposição ao diálogo, o jogo democrático. Se continuam a latejar é porque tais recursos não estão sendo empregados. Ressentimo-nos da falta deles, da falta de elites políticas dotadas de capacidade de iniciativa e proposição. Talvez não haja uma cultura política (um ethos, um conjunto de valores e convicções) que dê sustentação a boas elites, talvez os partidos não estejam sendo a “escola de formação” de que se necessita, talvez a classe política seja covarde de mais e lúcida de menos. Pode ser tudo isso. O fato é que as instituições democráticas, que se supõe fortes e estáveis, não estão produzindo respostas que amenizem crises e dificuldades, que avancem pactos e soluções positivas. Donde a sensação crescente de descontrole, descoordenação, desgoverno.

O País está sem diretrizes, sem políticas. O meio ambiente é uma tragédia, o Itamaraty marchou para trás, não há política externa, a Cultura foi jogada na sarjeta, o desarranjo atinge todos os segmentos da gestão pública. Carecemos de muitas coisas.

Até onde um País assim conseguirá chegar é uma incógnita. Não há futuros predeterminados. Há muitos caminhos abertos na encruzilhada da História. O fato é que os motores estão engasgando e não se vislumbra no horizonte próximo quem poderá voltar a fazê-los funcionar.


Marco Aurélio Nogueira: Pessimismo e imaginação democrática

É hora de pegar o touro à unha e criar condições para que a população não esmoreça

O pessimismo anda de braços dados com o cansaço, um ano depois do início da pandemia. Há motivos de sobra para isso. Quarentenas, confinamentos e lockdowns estressam, especialmente quando são o principal recurso para que as pessoas não sejam infectadas. E o pessimismo cresce ao se constatar que parte dos problemas não podem ser solucionados somente com intervenção política e outra parte foi causada por erros cometidos lá atrás, que não podem mais ser corrigidos.

Falo da pandemia, mas poderia ir além, incluindo, por exemplo, o estrago ambiental e a economia.

Quando lemos que não há como acelerar a vacinação por falta de doses de imunizantes, que abril será um mês ainda mais trágico do que março, que só em setembro os grupos prioritários da população conseguirão ser vacinados, vemos com clareza o tamanho da nossa desgraça. O vírus se espraia e assume novos formatos — porque não foram tomadas as medidas corretas antes –, não há vacinas disponíveis no mundo, está sendo amargo o preço que os brasileiros estão pagando pela incúria desastrosa de seu governo.

A própria gestão Bolsonaro vem do passado, dos erros cometidos em 2018, da incapacidade demonstrada pelos democratas de chegarem a um ponto mínimo de entendimento, fruto de uma leitura errada da situação. Desde então o País está sem rumo, carente de alguém que proponha algo plausível para modificar as circunstâncias e injetar ânimo na população. Sua substituição não é garantia de que a situação se modificará de imediato. O Congresso está mais ativo, mas teme colocar o guizo no gato, que, de resto, tem seus apoiadores, mais fanáticos ou menos.

Achar que encontraremos o rumo por meros atos de vontade ou pela mudança do estilo bolsonarista de ser é sonhar acordado.

É hora de pegar o touro à unha., Como estão a fazer diversos governadores, que se articulam para elaborar uma estratégia própria contra a pandemia. Como fazem Butantan e Fiocruz com a dedicação integral à produção de vacinas. Como fazem milhares de voluntários que colaboram nos postos de vacinação, com doações de alimentos, com ajuda financeira aos desassistidos. Como fizeram alguns “presidenciáveis” com o manifesto em defesa da democracia.

Precisamos avaliar bem o quadro político. A imaginação democrática pode frutificar com mais vigor, contagiar os cidadãos a partir de proposições políticas claras. Não podemos esmorecer. O País não é uma divisão simples entre bolsonaristas e lulistas, essa polarização que virou o bicho-papão da política nacional. Há muito mais coisas no meio. Uma “terceira via” é uma possibilidade legítima e factível, pela qual vale se empenhar, mas ela não cairá do céu se o diagnóstico ficar enviesado. O ideal é que se consiga chegar a uma ampla aliança entre o centro e o campo progressista, como tem falado o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), dentre outros. Dar um passo além do meio termo entre Lula e Bolsonaro. Sem extremismos, com inteligência, generosidade, em nome da moderação reformadora. Não há outra saída segura.

Não é inevitável que Lula encabece essa aliança. O campo progressista tem outros nomes em condições de compensar o desgaste do ex-presidente e Lula, com o prestígio e o talento que tem, pode vir a atuar como um decisivo fator de união. Depende dele, mas também depende do PT e dos demais partidos de esquerda, do mesmo modo que das forças de centro. Os democratas precisam suspender os vetos cruzados. Errar menos, romper com seus fantasmas e temores.

Estacionamos no terreno das conjecturas. Tal sinalização precisa encontrar força material, pessoas dispostas a fazer sacrifícios e a levar em conta o conjunto dos interesses nacionais, não seus caprichos pessoais ou seus cálculos eleitorais. A imaginação democrática precisa atuar aqui com toda sua efetividade. É o único modo de derrotar o pessimismo que nos paralisa e deprime.


Marco Aurélio Nogueira: Pazuello saiu, mas o problema ficou

A troca do ministro da Saúde não foi uma resposta aos sensatos, mas uma tentativa de reduzir a tensão

O general foi sendo fritado aos poucos. Leal e submisso ao extremo, talvez não tenha percebido o óleo que esquentava. Talvez tenha participado da operação, cansado da guerra e ciente de que sua saída poderia ser uma saída para o presidente. O pior momento da pandemia também é o pior momento para Bolsonaro. Lula à parte.

A folha de serviços de Pazuello tem sua assinatura, e um dia, quem sabe, ele responderá por ela. Mas o endosso presidencial lhe deu condições de agir como agiu, fazendo o que seu dono mandava. O resultado está aí, nas mortes que se acumulam, nas vacinas que não chegam, na terra arrasada promovida no Ministério da Saúde. A falta de coordenação nacional, a despreocupação com a gravidade da pandemia, a insensibilidade, a ignorância em relação ao SUS, o desapreço pela vida, seria cansativo ficar enumerando os dados do desastre.

Pazuello saiu, mas o problema não. Ele tem nome e endereço. Não dá indícios de que mudará, por mais que possa haver assessores e aliados querendo isso. Até a opinião pública, que já não lhe é mais favorável, torce por uma mudança de rota. Os democratas, a população, a esquerda, não há quem deseje a piora da situação. Mas o presidente não está à altura das expectativas nacionais, na verdade demonstra não ter qualquer interesse em propor medidas para solucionar a crise, fechado que vive em um círculo de obsessões, ativistas ensandecidos, milicianos, filhos venenosos. Nem o Centrão consegue afastá-lo desse espaço tóxico, impregnado de violência.

Marcelo Queiroga, o novo ministro, não é um personagem conhecido fora da área cardiológica. Chega ao governo porque é amigo da família e sempre foi apoiador do chefe. Dizem que tem capacidade de articulação e bons contatos. Não é íntimo do SUS, nada sabe de Saúde Pública, mas falam que é bom gestor. Há uma compreensível excitação em saber o que ele pensa e o que acredita que fará, além de executar a “política do governo”, que de resto todos sabem não existir. Os jornais publicaram que ele já se manifestou a favor do isolamento social e contra “tratamentos precoces”. Pode ser. Mas isso não quer dizer absolutamente nada quando se fala de política no Brasil atual.

Terá Queiroga condições de imprimir outra direção, traçar uma política sanitária, recuperar a coordenação nacional, acelerar a compra de vacinas, organizar uma arena de reflexão e ação consistente para frear o vírus? Terá coragem de enfrentar os desatinos presidenciais, confrontá-los com firmeza, abrindo-se para os núcleos de inteligência médica, científica, e para suas recomendações?

Pelos dados que se têm, não dá para acreditar nisso.

Na verdade, não estamos perante uma oportunidade perdida. Não despontou nenhuma oportunidade. A defenestração de Pazuello não foi uma resposta aos mais sensatos, que pediam sua cabeça, mas sim uma tentativa de esfriar a temperatura e reduzir a tensão. Se não funcionar, como tudo indica, o óleo poderá queimar em outra frigideira.


Marco Aurélio Nogueira: Virando a página para trás

Lula, de novo elegível, não tem um mar aberto a sua frente. Não joga o jogo sozinho

É difícil avaliar a repercussão e os desdobramentos da decisão de Edson Fachin que, de uma só vez, monocraticamente, considerou sem validade todas as condenações de Lula. O ministro considerou que a Vara Federal de Curitiba não era o foro adequado para julgar os processos do ex-presidente, remetendo-os à justiça do Distrito Federal.

É mais fácil pensar no que a motivou. Fachin sabia que seria derrotado na Segunda Turma, antecipou-se a ela e deve ter tentado esvaziar a provável suspeição de Sergio Moro, artífice das condenações. Se terá êxito nisso não se sabe. Depois que se decidiu liberar os áudios da Vaza-Jato a Lula, era só questão de tempo soltar as amarras do ex-presidente, fazendo com que os processos voltassem à estaca zero.

Tudo isso tem um preço: como fica a imagem do STF, órgão supremo que precisou de cinco anos para descobrir que tudo que havia sido endossado pelos tribunais inferiores não passava de erro, de farsa, de injustiça? Há um quê de desmoralização que não passa despercebido. Pior para a vida institucional do País, que fica sem retaguarda.

Também é fácil vislumbrar a espuma de ódio que esguichará da boca dos bolsonaristas. Não por medo ou raiva, mas sim porque verão no fato um instrumento de campanha eleitoral, que agora está definitivamente aberta. Sentir-se-ão turbinados, revitalizados. Vira-se uma página para trás, de volta a 2018, ao antipetismo e ao antilulismo que tanta força deu à eleição do capitão.

É uma boa notícia para Bolsonaro, pois agora, quando o governo se mostra mais perdido e atarantado do que nunca, com nuvens carregadas pela pandemia, pelas mortes, pelo desemprego, pelas dificuldades fiscais, foi jogada na mesa uma carta que pode justificar as seguidas omissões presidenciais: ele agora dirá que o velho “inimigo” de antes voltou ao ringue e precisa ser combatido. O mesmo trololó de antes, de sempre, com direito a um pouco mais de fúria contra o STF.

Do lado de lá, não dá para cravar que a notícia fará com que Lula se proclame imediatamente candidato. O ex-presidente poderá voltar a ser penalizado no médio prazo, a depender da velocidade com que trabalharem a Justiça do Distrito Federal e o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF-1).

De certo mesmo é que a decisão de Fachin espirrará em outras eventuais candidaturas potenciais, tipo Ciro Gomes e Flávio Dino, que ficarão paralisados, na expectativa dos próximos lances.

Lula, porém, não tem um mar aberto a sua frente. Não joga o jogo sozinho. Volta ao jogo com a bandeira do “injustiçado” tremulando mais alto, o que é um trunfo importante. Mas sabe que não vencerá a eleição sem um vínculo com o centro, com o mercado, os bancos. Poderá subir o tom contra Bolsonaro, lançar feromônios para seduzir o povo que o adora, mas também precisará suavizar o discurso para atrair os moderados e oferecer a eles alguma perspectiva de poder.

Até mesmo algo diferente poderá acontecer: uma coalizão de centro-esquerda que faça direito as contas, avalie politicamente a correlação de forças e convença o ex-presidente a aderir a um tertius e a um programa que salve o País. Tudo está, afinal, para ser jogado e no tabuleiro não há peças irremovíveis, nem vitoriosos por antecipação.

*Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: A pandemia, o futuro, a vida que flui

A época atual é de perplexidade, que ofusca o futuro e idealiza o passado. Com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida, incrementando ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. A pandemia do coronavírus agravou um quadro que já era dramático. Partindo desse pressuposto, o artigo procura refletir sobre algumas vias alternativas, que recuperem o diálogo, a cooperação e a solidariedade em escala global, valorizando ao mesmo tempo a democracia e o reformismo incremental

Decifrar o futuro sempre assustou e excitou os humanos. Da mítica Esfinge de Tebas, com seu enigma que exigia um esforço de autoconhecimento e de reflexão sobre os passos da humanidade (a criança, o adulto, o idoso), ao Iluminismo, com sua aposta no racionalismo como motor do progresso, o futuro fixou-se como imagem de desafio, promessa e possibilidade. Prevalecendo a razão, decifrado o enigma, o passado seria ultrapassado inapelavelmente, levando consigo um cortejo de perversidades acumuladas, sofrimentos ingentes e vidas desperdiçadas.

Utópicos variados floresceram, idealizando construções que conteriam em si a felicidade e a harmonia futura. Mas tarde, com o predomínio crescente da ciência e da técnica, defensores do progresso técnico e econômico inexorável e futurólogos se multiplicaram, convictos da capacidade que teriam de antecipar o que se teria pela frente. Com os avanços obtidos após a Segunda Guerra Mundial -- o Estado de Bem-Estar, o aumento de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento da ciência aplicada nas áreas decisivas da saúde e do saneamento, os direitos sociais --, anunciou-se uma era de confiança no futuro.

Chegamos assim às últimas décadas do século XX, quando o aparato institucional, sociopolítico e cultural erguido no pós-guerra começou a ser abalado por uma combinação de fatores explosivos: crescimento das demandas dos cidadãos, aumento do custo das operações estatais, crise fiscal, mercado todo-poderoso, rápida evolução tecnológica, problemas de governabilidade, passagem de uma estrutura produtiva assentada na indústria metalomecânica para uma estrutura fundada na “economia da informação”, desemprego estrutural, expansão das redes de comunicação.

Deu-se então uma reversão das expectativas. Foram postas em xeque as promessas da modernização e do progresso. As ciências humanas e a filosofia ingressaram em uma fase dedicada ao mapeamento das modificações sofridas pelo moderno. Pós-modernidade, modernidade líquida, segunda modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade tornaram-se expressões de uso generalizado, sobre uma base consensual de que a realidade se tornara muito mais difícil de ser conhecida. Formou-se assim um paradoxo: quando tudo parecia estar sob controle -- da natureza e do tempo à sociedade, dos corpos às mentes -- eis que uma névoa espessa desaba sobre o mundo, vedando-o ao conhecimento crítico e travando a imaginação sobre o futuro. As utopias cederam lugar às distopias e às “retrotopias”, utopias regressistas, que olham para trás e celebram a nostalgia dos tempos passados.

Leio em Bauman: “O caminho do futuro assemelha-se estranhamente a um percurso de corrupção e degeneração. O caminho reverso, direcionado para o passado, transforma-se assim em um itinerário de purificação dos danos que o futuro produziu toda vez que se fez presente”. As esperanças de melhoramento fogem de um futuro que assusta, buscam refúgio em um passado idealizado em que se confiaria. “Tal reviravolta transforma o futuro, de um habitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em uma casa de pesadelos”. (Bauman, 2017: 16).

Na base dessa inflexão repousa o fato de que, com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida. Incrementou ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. O mundo enveredou por uma etapa que realiza in totum aquilo que em seus primórdios foi utilizado para definir a condição moderna: “estar em movimento”, mudar compulsivamente, agir para confrontar e transformar o mundo, tornando-o diferente.

Aceleração

Como enfatizou Hartmut Rosa, as sociedades tornam-se modernas quando ganham “estabilização dinâmica”, ou seja, quando ficam “sistematicamente dispostas ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (Rosa, 2019: XI). Além de se racionalizarem, ganharem diversificação e se individualizarem, as sociedades modernas são atravessadas pela aceleração de processos, sensações e acontecimentos. Tal vetor torna-se sempre mais um princípio

básico da vida moderna, que comprime o tempo e suspende os momentos de fruição, nos quais deveria ocorrer alguma possibilidade de “desaceleração” e de repouso do guerreiro.

Hartmut Rosa explorou como esse processo ativado pela compulsão produtivista implica perdas existenciais, mal-estares e aflições (estresse, exaustão, burnout, falta de tempo, pressa permanente, depressão). A sensação de que o progresso técnico (a informatização) dilataria o tempo livre e agregaria mais horas de fruição à vida cotidiana é questionada em termos práticos pela constatação de que o tempo se tornou uma variável fora de controle.

Rosa segue uma trilha também frequentada por outros autores. Byung-Chul Han, por exemplo, constata que “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho”. Seus habitantes não são mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos”. Inerente a ela é a produção recorrente de transtornos e paralisias hiperativas. “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, de certo modo seres de “almas consumidas”. Os transtornos que nela se reproduzem expressam “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. Refletem uma “humanidade que está em guerra consigo mesma”, que vive sob o império do cansaço, do esgotamento, do excesso (de estímulos, informações, impulsos), que fragmenta e destrói a atenção. (Han, 2015).

A aceleração produz efeitos nos distintos planos da vida. Afeta o modo como se pensa, se estuda, se ensina e se aprende. O modo como se trabalha e se descansa, o lazer e a fruição cultural, os relacionamentos e os afetos. Põe em xeque os sistemas, o Estado, a família, a escola e as organizações da sociedade civil. Dificulta a compreensão da realidade e a ação sobre ela. Mundializa o mundo, mas provoca separações e desigualdades que freiam a formação de uma comunidade de destino internacional. Suspende, assim, a elaboração de visões sistemáticas do futuro e de projetos de sociedade.

Essa alteração do ritmo existencial combina-se com o fato de que, na modernidade tardia, os indivíduos desejam “dispor do mundo” livremente, tratá-lo como inesgotável, pronto para ser explorado e submetido. Essa tendência está inscrita desde sempre em nossa relação com o mundo, mas alcança nova radicalidade no século XXI, graças às possibilidades técnicas oferecidas pela digitalização e pelas restrições político-econômicas da extensão e da otimização do capitalismo financeiro e da competição desenfreada. Os humanos deparam-se, assim, com um mundo que se lhes aparece como uma sucessão de “pontos de agressão”, objetos que precisam ser conhecidos, conquistados, dominados, utilizados. A “vida”, portanto, torna-se uma luta que jamais pode ser interrompida. Turbinada pelos mecanismos do mercado e pelas ofertas várias do processo sociocultural, a

dinâmica vital termina por gerar frustrações seriais, raiva, medo e insatisfação, assim como comportamentos políticos fundados na violência e na agressão.

Na modernidade tardia, observa Hartmut Rosa, o “mundo da vida” torna-se cada vez mais indisponível, opaco e incerto. “Em consequência, a indisponibilidade retorna à vida concreta, mas modificada e angustiante, como uma espécie de monstro que teria se criado a si mesmo”. (Rosa, 2020). O programa moderno de extensão do acesso ao mundo, que transformou o mundo em um amontoado de “pontos de agressão”, produz assim, de duas formas concomitantes, “o medo do mutismo do mundo e da perda do mundo”. Se "tudo está disponível", o mundo não tem mais nada a nos dizer e “onde ele se tornou indisponível de uma nova maneira, não podemos mais entendê-lo porque ele não é mais alcançável”.

Com a “estabilização dinâmica” das sociedades modernas e os problemas dela derivados, processa-se uma mudança na percepção cultural. Crescer passa a significa mais risco e ameaça, às pessoas, às sociedades, ao Estado, à natureza. Ao futuro. Deixa de ser um valor inquestionável, ainda que não seja abandonado como vetor econômico. Estreitam-se as margens de manobra dos governos e dos sistemas políticos, que deixam de produzir resultados satisfatórios.

Grupos e indivíduos defrontam-se com a realidade estrutural da modernidade atual: “o que sustenta o jogo do crescimento não é a vontade de obter ainda mais, mas o medo de ter cada vez menos”. Grupos e indivíduos sentem-se “estruturalmente constrangidos (a partir de fora) e culturalmente empurrados (a partir de dentro) para fazer do mundo o ponto de agressão”, para converter o mundo em algo a ser conhecido, explorado, consumido, dominado. Não é difícil imaginar a repercussão explosiva e perturbadora desse processo quando ele atinge seu ápice. A sensação de um mundo indisponível invade o plano político, onde é processada de modo discursivo e reforçada pela dinâmica incontrolável da mídia e das redes sociais, “que desencadeiam em pouquíssimo tempo ondas de indignação - ou de entusiasmo -- insuspeitáveis e com consequências gigantescas, ondas cujos fluxos e refluxos são tão imprevisíveis e incontroláveis quanto suas interações”. (Rosa, 2020)

Basta girar o periscópio para constatar que não há lugar na Terra que esteja a exibir coesão, harmonia e satisfação. A fragmentação, o sentimento de impotência, a frustração, a raiva, os estados depressivos espalham-se como fogo pelas mais diferentes sociedades. A “crise” torna-se assim abrangente: põe em xeque o modo de vida moderno, o padrão de desenvolvimento, o modo como se dispõe do mundo, como ele é ocupado, utilizado, explorado. Edgar Morin fala em “megacrise” e em “poli-crises” para acentuar precisamente essa dimensão complexa e universal, em um processo que aproxima e afasta, unifica e separa: “A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, emaranhadas, entre as quais estão a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais, que são, elas mesmas, produtoras da crise da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue chegar à humanidade”. (Morin, 2011).

Faltam lideranças que se disponham a pensar o futuro, praticando uma política inovadora e de civilidade, voltada para a solidariedade e a qualidade de vida, que ficam na dependência de “resistências colaborativas” e “oásis de fraternidade” (Morin) de pequena escala. A política sofre para falar com os cidadãos, deixa-se enredar nos mecanismos do poder e nas manobrar eleitorais. Afasta-se quando deveria se aproximar. “A nossa é uma era de crise permanente dos instrumentos para resolver problemas”, escreveu Bauman. O poder se separou da política, ficando solto e fora de controle. Em decorrência, as instituições ficam mais impotentes e mais submetidas aos técnicos. Os governos querem se agarrar ao terreno nacional, mas são pressionados pelo supranacional. A condição cosmopolita (a interdependência, as interações) não conta com uma consciência cosmopolita que a direcione e regule. O mundo global não conta com uma política global. Sem política, não se completa a formação de uma opinião pública global e de uma consciência de que os problemas são globais. (Bauman, 2017: 262).

Já estamos em processo de metamorfose: uma metamorfose “abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas, está acontecendo de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”. Ela “ocorre em segundos, com uma velocidade verdadeiramente inconcebível; em consequência, está ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas também instituições”. É por isso que ela escapa da conceituação vigente da teoria social e leva as pessoas a terem a impressão de que o mundo está louco. (Beck, 2018, p. 79).

O tempo veloz e a política

Quem governa e exerce poder vale-se da lentidão: precisa dela para respirar, fazer cálculos e decidir. Em boa medida, o governante poderoso pretende prolongar o passado, aquilo que existe. As oposições e os cidadãos têm pressa: desejam para hoje tudo o que tem sido postergado e tudo a que aspiram. Querem antecipar o futuro. A lentidão precisa ser modulada com sabedoria e capacidade de comunicação persuasiva. Se for excessiva, pode fazer com que oportunidades de avanço se percam e apoios sejam desperdiçados, levando a que não se consiga governar os ambientes. A antecipação apressada do futuro, por sua vez, pode ser feita de forma voluntarista, em nome da vontade de mudar, perdendo de vista as determinações fundamentais e as possibilidades concretas de mudança.

Hoje, a velocidade dos fatos aumenta na mesma proporção em que cresce a complexidade social (a diferenciação, a individualização, a fragmentação, o desentendimento) e acelera-se a inovação tecnológica, sobretudo a que afeta a comunicação e a informação, internet à frente. Quanto mais tribos, nichos e redes, maior é o volume de fatos e mais veloz é a sucessão deles. Dadas as interações e as trocas amplificadas, fatos passam a significar também versões e interpretações. Narrativas proliferam.

O resultado é um agregado que se movimenta sozinho, sem que encontre um centro gerador claro e preciso. O bólido gira em alta velocidade, como slides que deslizam rapidamente em um carrossel, sem que os espectadores tenham tempo de assimilá-los. Como decorrência, verdade e mentira se misturam, palpites e opiniões caem sobre a população como uma tempestade de raios, a mídia é onipresente. Forma-se uma névoa densa, que ajuda a rebaixar a qualidade das “narrativas” individuais, coletivas, governamentais ou patrocinadas por organizações. Vozes se espalham em tom de “verdade categórica”, impulsionadas por postagens e boatos espalhados por aplicativos, bots ou empresas especializadas.

Fatos se sucedem com rapidez inusitada, movidos por expectativas inflacionadas, ódios e ressentimentos à flor da pele, notícias e informações multiplicadas, discursos, debates e falas incessantes, uma cacofonia inesgotável. Há movimentos de luta, reivindicação e protesto os mais variados, condizentes com uma época que fez dos direitos humanos e das postulações identitárias um de seus signos mais fortes. Mas os avanços por eles obtidos tardam para socializar seus efeitos. A desigualdade se reproduz e chega a se expandir, misturada com discriminações várias e preconceitos que se repõem. A vida cotidiana, como sempre, mostra-se dura e pouco flexível, sobretudo para os marginalizados, os que se deparam com empregos que escasseiam e salários que declinam. Para os jovens, que sofrem para encontrar seu lugar no mundo.

Tudo incide sobre o espaço em que atuam os políticos, com seus partidos e suas agendas, e no qual se organizam as escolhas dos eleitores e as decisões dos governantes. A política, em si mesma, é revolvida de cima a baixo, com a crise despontando em cada curva do caminho, ora sob a forma do questionamento da representação, ora sob a colocação em xeque da ideia mesma de democracia, ora problematizando a figura dos políticos, ora fomentando versões de populismo. A esquerda enfrenta dificuldades para se renovar e se repor, a extrema-direita ressurge com virulência e agressividade.

No plano do pensamento, o cenário célere e mutante desafia os analistas, obrigando-os a checar mais fontes, a incluir mais ângulos de observação e a atravessar uma muralha de interpretações que complicam a relação “normal” entre essência e aparência. As análises tornam-se mais tentativas, refugiam-se no academicismo típico da hipermodernidade, movido a citações e referências e pouco atento à dimensão pública do

trabalho reflexivo. Exige-se sempre mais a incorporação de formas de pensar próximas da dialética e da teoria da complexidade, capazes de considerar que espaços dispostos em redes costumam gerar modalidades permanentes de “caos estável” (Beck), que se reproduzem e se refazem, até mesmo quando se estabilizam.

Sobredeterminando tudo isso, há a ação da época histórica. O capitalismo globalizado ganhou alento e seguiu seu curso, alheio a controles, crises e regulações. A turbulência econômica passou a ser personagem usual no mundo. O fundamentalismo foi reforçado, ganhando agora a companhia de nacionalistas xenófobos e demagogos, a democracia representativa tornou-se sensível demais às transformações que sacodem a vida cotidiana, a cultura de esquerda não conheceu o necessário revigoramento, o mundo do trabalho se desorganizou, a robótica, a inteligência artificial movida a algoritmos, os celulares e a informatização generalizada redesenharam o modo com os humanos vivem, pensam e fazem coisas.

O cenário não se fixa, parece sempre em movimento, mesmo quando se repõe. O analista que se proponha a interagir com tal cenário deve tentar captar o essencial do slide disposto pelo carrossel enlouquecido, sem perder de vista aquilo que vem em seguida e se projeta no horizonte. Precisa ser rápido sem ser apressado.

A velocidade está intimamente associada ao ritmo das mudanças. Há mudanças rápidas, outras precisam de tempos longos para amadurecer. Há épocas velozes e épocas em que a vida nem parece mudar, sociedades que navegam com as ondas e outras que mal conseguem sair do lugar. Em nossa época, muda-se tanto que a mudança ficou fora de controle. Sabemos que ela já está aí, mas não podemos dosá-la, nem direcioná-la. Mesmo assim, vivemos todos querendo mudar mais e no menor intervalo de tempo, somos praticamente subsumidos pela fascinação do novo, do que virá amanhã.

A velocidade com que o “novo” substituirá o “velho” intriga, até mesmo por não poder ser projetada. Há modulações e determinações a serem consideradas. A repentina subida da temperatura política e social pode tanto desencadear mudanças não previstas quanto bloquear outras já delineadas. Pode também desorganizar de tal forma o quadro existente que a complicação se torna inevitável, fazendo crescer enganos e ilusões. “Explosões” são sempre risco e surpresa: fascinam, geram temor, excitam esperanças, alteram humores, disposições e resistências.

O “novo” – um sistema, uma sociedade, um partido, uma elite política, uma cultura, um comportamento – não brota somente por causa de iniciativas políticas. Atos de vontade são importantes, mas não podem tudo. Não basta existir disposição, empenho e dedicação para que o “velho” seja deslocado. Ele está enraizado em terrenos muitas vezes arados pelo tempo secular, funciona como referência essencial para condutas, hábitos e pensamentos. Somente a ingenuidade política e o desconhecimento dos ritmos da história

podem relativizar “o peso que as gerações mortas têm sobre o cérebro dos vivos”, como escreveu Marx no 18 Brumário. A resistência à mudança, extenso e conhecido capítulo dos estudos sociais, não se apoia exclusivamente em interesses prejudicados, mas obtém a maior parte de sua força precisamente do “velho” que repousa entranhado nas bases da vida coletiva. Recusa-se a mudança por temor a ela, por não se saber direito o que fazer se aquilo que é conhecido deixar de existir, porque não se consegue visualizar o futuro.

Reformas complexas como são as da educação, da saúde e da previdência – os sistemas básicos de proteção social – requerem tempo para serem gestadas com um mínimo de consenso e executadas com sustentabilidade. Os cidadãos, porém, querem respostas imediatas. Os efeitos e os resultados do reformismo não são imediatos, fazem-se sentir ao longo de décadas. Enfrentam bloqueios e oposições, seja porque afetam interesses constituídos, seja porque se deparam com hábitos cristalizados, que não podem ser substituídos de um dia para outro.

Mudanças sistêmicas, que mexem com organizações e instituições, com modos de agir, pensar e sentir, não têm como ocorrer de chofre, abruptamente. Tentativas nesse sentido costumam dar errado. Justamente porque são complexas, tais mudanças vêm a conta-gotas: vencem quando são incrementais e economizam rupturas bruscas. São alterações moleculares, muitas vezes microscópicas e silenciosas, que, com o tempo, tendem a se acumular e a metamorfosear o organismo social como um todo.

O incrementalismo persegue a mudança segura, processual, blindada contra retrocessos. É uma perspectiva que valoriza a negociação e o acúmulo de forças, requerendo, por isso, a presença em cena de sujeitos políticos qualificados, dispostos a fazer “sacrifícios” e a se distanciar dos aplausos fáceis das multidões. Qualificados para resgatar a confiança perdida das pessoas, mobilizando-as para que assimilem as pressões mais disruptivas, reúnam-se e produzam consensos É uma perspectiva que requer maiores doses de inteligência política, sofisticação intelectual, paciência, bem como daquilo que os gregos chamavam de phrónesis, prudência. O incrementalismo só é sábio quando se ajusta ao tempo e à “alma” das sociedades, quando encontra um “organismo” que saiba dominar a arte do governo e se ponha na perspectiva de valorização do Estado democrático e republicano, aprofundando os pactos básicos de convivência e a formação de novos alinhamentos políticos e intelectuais.

Olhar para frente

Mas não há somente destroços e derrotas. Há crises por todos os lados, mas também estão postas as condições de possibilidade de um reformismo de esquerda que dignifique a igualdade e a democracia política. Não estamos retrocedendo.

A ambivalência é parte integrante dos processos atuais. Crises são simultaneamente risco e oportunidade. É o que leva Morin a afirmar que a globalização constitui ao mesmo tempo o pior e o melhor da humanidade. O pior decorre de seu ímpeto destrutivo, de sua adesão a um padrão de desenvolvimento desconectado das economias reais, de sua capacidade de produzir catástrofes em cadeia, que atiram comunidades inteiras no abismo da incerteza e da insegurança, ou seja, a possibilidade de autodestruição da humanidade.

Mas a globalização também abre espaços para o melhor da humanidade. “Pela primeira vez na história humana, as condições para que se ultrapasse uma história feita de guerras, na qual as potências de morte foram reforçadas a ponto de permitir agora um suicídio global da humanidade”. Agora, aumentou a interdependência de cada um e de todos, nações, comunidades, indivíduos, no planeta Terra, “multiplicam-se simbioses e misturas culturais em todas as áreas, as diversidades resistem apesar dos processos de homogeneização que tendem a destruí-las”. Ameaças mortais e problemas fundamentais terminam, assim, por criar uma “comunidade de destino para toda a humanidade”. Em suma, a globalização produziu a “infra-textura de uma sociedade-mundo”, a partir da qual podemos “ver a Terra como pátria sem que isso negue as pátrias existentes, mas, pelo contrário, englobando-as e protegendo-as”. (Morin, 2011).

É evidente que a consciência dos perigos ainda é fraca e dispersa, a consciência de uma comunidade de destino permanece deficiente, a própria globalização, com suas ambivalências, impede a formação da sociedade mundial cujas bases ela cria sem cessar. Há contradições de todo tipo, que opõem, por exemplo, as soberanias nacionais e a necessidade de autoridades supranacionais que consigam lidar com os problemas vitais do planeta. Mas a sorte de algum modo está lançada, os espaços estão se abrindo. Do que se necessita é de uma mudança de via, uma metamorfose.

Quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, observa Morin, ou ele se degrada e se desintegra, ou “revela-se capaz de criar um metassistema que o capacite para lidar com os problemas: ele se metamorfoseia”. Regeneram-se assim suas capacidades criadoras. “A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. Preserva sua radicalidade inovadora, mas a vincula à conservação (da vida, das culturas, dos legados do pensamento e da sabedoria da humanidade). Não há como prever suas modalidades e suas formas: toda mudança de escala leva a um surgimento criativo”. O que sabemos é que, para avançar em direção à metamorfose, é necessário mudar de via. “Mas se parece possível inverter certos caminhos, corrigir certos males, ainda assim não é possível frear a invasão técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre”.

Nada está dado de antemão. Não é simples. É preciso ir além da denúncia e das declarações de intenção. Começar a construir alternativas e formar novas consciências. Reproblematizar, repensar, recomeçar. Conectar o que está disperso e separado. Explorar o que há de “efervescência criativa” pelo mundo. Completar uma metamorfose que já está em curso.

A situação atual está assentada sobre problemas de difícil solução, que são ampliados pela disrupção tecnológica e se projetam no tempo e causam aquela “sensação de desorientação e catástrofe iminente” registrada por Harari (2018). Mas há ferramentas disponíveis, a ciência mostra sua pujança e não é de se descartar que os povos do mundo consigam conter a onda de xenofobia, isolacionismo e desconfiança que hoje varre o sistema internacional. Pelos riscos gravíssimos que produz, a desunião global é uma ameaça que tem como ser compreendida e neutralizada.

Pandemia

É evidente que esse quadro não favorece o reconhecimento do futuro como promessa e possibilidade, nem sequer como desafio ou esperança: ele simplesmente cancela o futuro, apaga-o das conjecturas. O “projeto” passa a ser administrar o presente, torná-lo maleável a ponto de permitir que todos possam continuar a se mover com celeridade para tentar alcançar alguma estabilidade pessoal ou grupal ilusória.

O ano de 2020 acrescentou nova camada à já espessa neblina que distorce a visão do presente e encobre o futuro. Em poucos meses, foi como se os povos do mundo se deparassem com a fragilidade do humano e a insuficiência dos sistemas de proteção social e de cuidados com a saúde.

Parte expressiva disso deveu-se à irrupção catastrófica do coronavírus, que estava nos cálculos mas não era esperada. A humanidade se deparou com um processo de adoecimento e de mortes sequenciais que dramatizou os meandros de seus piores pesadelos, embora estivesse delineado por pesquisadores e estudiosos há tempo. A banalização dos efeitos perversos da vida atual, a dificuldade de aceitar e compreender as transformações estruturais em curso -- o modo do capitalismo se reproduzir na era digital --, ao lado da emergência de “narrativas” anticientíficas impulsionadas por lideranças políticas e intelectuais da nova extrema-direita, fizeram com que uma onda de brutalidade e ignorância se instalasse entre os humanos, comprometendo as respostas coletivas ao Covid-19.

Não foi a primeira pandemia da história recente, como sabemos bem. A gripe espanhola (1920) dizimou em larga escala. Deu-se o mesmo com a AIDS, síndrome que se espalhou a partir de 1985 ativada pelos fluídos do amor e do sangue. Houve as epidemias de Sars (2003) e de Mers (2012), igualmente provocadas por tipos de coronavírus. O surto de ebola foi grave na África.

Em 2020, todos os filmes de horror foram reprisados, as distopias ganharam destaque na imaginação popular, combinadas com doses-extra de incerteza e insegurança, derivadas das circunstâncias em que se passou a viver: o capitalismo digital, a invasão tecnológica, a reestruturação produtiva, a desorganização das classes e grupos sociais, a individualização crescente, as novas formas de emprego, a crise do trabalho, da política, da democracia. Tudo, no fundo, foi sendo articulado de modo a formar um único pacote, que, nos primeiros momentos, não tinha como ser decodificado e traduzido em termos de vida prática. O ano transcorreu na escuridão reflexiva.

As ameaças não se restringem ao vírus, por mais que sua disseminação tenha agravado a situação e exposto as fragilidades globais. A onda autoritária-populista, de base nacionalista, manteve-se em ação, desafiando as democracias instituídas e roubando dos cidadãos parte de um imaginário composto de tolerância, respeito e defesa dos direitos humanos, confiança na ciência, solidariedade e proteção.

A brutalidade gestual, verbal, procedimental, a falta de serenidade e compostura, a grosseria e a arrogância, invadiram os ambientes em geral, indiferentes a classes, grupos, gêneros, religiões e etnias. Os esforços de cooperação internacional e de articulação entre países – como a União Europeia, o Mercosul ou o BRICS – não avançaram, com o Brexit pondo em xeque a principal delas, na Europa. Os partidos democráticos perderam propulsão e muitos cidadãos viraram as costas para a política, numa inflexão “antipolítica” que terminou por convergir com o populismo em expansão. As políticas econômicas (as políticas públicas em geral) entregaram-se a uma ideia de austeridade indiferente à necessidade de reduzir as desigualdades e de prover os serviços de que necessitam as populações. A crise climática completou um quadro de gravidade extraordinária. Incêndios florestais, aquecimento global, águas marítimas em elevação, pessoas desalojadas por enchentes e desastres ecológicos, compõem um cenário de desolação e temor.

A pandemia trouxe mais problemas consigo. Agudizou a crise econômica e, com ela, agravou o desemprego e fez com que mais 130 milhões passassem a viver em extrema pobreza. Se em 2018 a proporção da população mundial vivendo em situação de extrema pobreza (menos de US$ 1,90 por dia) era de 8,6% (cerca de 650 milhões de pessoas), entre 2020 e 2021essa proporção chegará a 8,8%. A projeção foi feita em novembro de 2020 pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujo secretário- geral, Mukhisa Kituyi, observou: “O vírus se beneficiou das interconexões e fragilidades derivadas da globalização, transformando uma crise sanitária em um choque econômico global que atingiu principalmente os mais vulneráveis”. Ele também destacou: “A covid-19 causou dor e alterou o curso da história, mas pode ser um catalisador para uma mudança necessária”, contribuindo para que se reformem as redes globais de produção e se reinicie a cooperação multilateral.

O fato é que a pandemia produziu impactos generalizados na vida prática, na política e no pensamento. O léxico se modificou, passou a dar destaque a termos que antes frequentavam os ambientes especializados: risco, incerteza, insegurança, instabilidade, turbulência, imprevisibilidade. Evidenciou-se que não há como traduzir o mundo real com abordagens fracionadas e hiperespecializadas, que brotam automaticamente das apostas cegas que a hipermodernidade faz no “prometeísmo da ciência, da razão, do racionalismo, da racionalidade, da racionalização”, fazendo com que a inteligência se afaste das determinações fundamentais e dos esforços de totalização complexa. (Carvalho, 2017: 76-77).

Particularmente nas ciências da sociedade, ganhou impulso a teoria da complexidade, seja na versão mais tradicional (a dialética da totalização), seja na versão de Edgar Morin, que trabalha com novos entendimentos da relação tempo/espaço, refuta a linearidade e valoriza a ambiguidade e a ambivalência, abrindo-se para uma compreensão mais abrangente das tensões entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, separação e reunião. Morin também insiste no valor da ciência e na necessidade de que ela se ligue aos saberes vários (mítico-imaginários) fornecidos pelas artes e ao trabalho de cooperação e solidariedade entre os próprios cientistas.

A pandemia não explica tudo, por certo. Mas fornece um excepcional posto de observação para que se compreenda melhor que as dores atuais são múltiplas e estão enraizadas nas estruturas da modernidade, hoje abaladas pela disruptiva revolução tecnológica que impõe uma nova formação social (a sociedade do conhecimento) e implode as diferentes práticas, as ideias, os modelos de organização, o Estado, as empresas, o trabalho, o ensino, a produção de conhecimentos.

A política recebe o impacto de todo esse processo. Mergulha numa crise que afeta os institutos de representação, os partidos e o próprio funcionamento da democracia. Os governos passam a governar menos e com mais dificuldades. A insatisfação social cresce e impulsiona reações variadas, que ajudam a alimentar a contestação e os movimentos de extrema-direita.

Os sinais de alerta têm sido constantes. Eles indicam com clareza que há de se retomar o empenho pela democratização, seja no plano da conduta governamental, seja em termos institucionais mais amplos, seja no plano dos relacionamentos sociais. Mais que isso: será preciso encontrar outro caminho, que consubstancie uma alternativa real ao modo como a humanidade tem vivido a vida. Não há como seguir em frente mediante a clonagem de modelos pré-existentes, o prolongamento de um padrão de desenvolvimento que produz sempre mais subdesenvolvimento, a reverberação de nacionalismos mais patrióticos ou menos, o desprezo pela ciência e pela natureza, a desconsideração de que a experiência humana é una e está radicalmente mundializada. Ou nos projetamos como integrantes de uma comunidade global de destino, ou ficaremos travados, às voltas com problemas que não conseguimos resolver.

Como acentuou Harari, “hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”. Nos últimos anos, acrescenta, “políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”. (Harari, 2020).

A saída não está em “desglobalizar” o mundo ou em fechar fronteiras: em vez de segregação, isolacionismo e medo dos “outros”, a solução passa por mais cooperação.

Vida que flui

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país como o Brasil, em que a distância social já é em si mesmo obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos dispensáveis e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento: hibernação. O vírus proliferou, mesmo assim. Faltaram políticas claras, os sistemas de saúde mostraram deficiências, a população não aceitou as recomendações com facilidade. A surpresa com a agressividade da doença somou-se à surpresa com o aparecimento insidioso de um patógeno invisível que colocou a humanidade de joelhos. A perplexidade foi inevitável: numa era de revolução tecnológica intensiva, de transformações biotecnológicas profundas, como foi possível que os humanos tenham deixado que uma crise em seus ecossistemas se instalasse e ajudasse sobremaneira a facilitar a disseminação de vírus e bactérias que simplesmente não conseguem ser controlados? Como aceitar que o coronavírus avance e mate numa época em que a ciência é fulgurante e os conhecimentos estão disseminados, de braços dados com a “inteligência artificial” e a engenharia genética?

É importante lembrar que houve respostas imediatas. Em pouco tempo, os pesquisadores conseguiram sequenciar o genoma do vírus, criaram testes confiáveis para detectar pessoas infectadas e avançaram na elaboração de vacinas. Os profissionais da saúde se desdobraram para manter ativos os sistemas sanitários. Medicamentos foram testados e aperfeiçoados. Mas o número de mortes e doentes continuou a crescer.

O mundo teve então de se fechar sobre si mesmo: tornar-se menos disponível, ser menos consumido e explorado. A vida digital se sobrepôs à vida presencial e em poucos meses a humanidade ingressou em outra etapa.

Nela, foi preciso descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver. Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia.

Valorizar-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família, das salas de cinema. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o teletrabalho, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

A situação levou a uma espécie de introspecção coletiva, na qual se alojaram os “demônios internos” de cada um, os medos e a preocupação existencial. A perplexidade se instalou de forma plena, arrastando consigo paradigmas explicativos, convicções e certezas. A pandemia exacerbou a desconexão existente entre o pensamento crítico e a realidade fática, entre o pessoal e o global.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. Não foram os chineses, nem o “globalismo”. Não se trata de “culpa”, mas do efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética. Da falta de solidariedade e fraternidade entre povos e pessoas.

Divergências, antagonismos, conflitos e contradições são parte da vida, e são também complementares às tendências de união e associação. Na rota de valorização de ambiguidades e ambivalência, sempre explorada por Morin, há que se “resistir à crueldade de tudo aquilo que é predador”, para com isso defender as “múltiplas solidariedades que são uma característica essencial da vida”. Ganhos consistentes de consciência planetária passam pelo reconhecimento dos paradoxos da mundialização, assim como requerem “o reconhecimento de nossa humanidade comum e o respeito das diferenças”. (Morin, 2019: 21, 40).

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que ainda não perdemos.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

Há impactos evidentes: questionar tudo, mudar a rota, repensar o desenvolvimento, melhorar a formulação de políticas públicas, produzir consensos. Em particular no mundo da ciência, cresce a percepção de que o avanço depende do trabalho múltiplo e articulado de vários setores da sociedade e do Estado. Cooperação, articulação, coordenação. Entre gestores, pesquisadores, formadores de opinião, jornalistas, cidadãos. A comunicação pública torna-se vital. Dentro e fora de cada sociedade nacional: fortalecer as agências multilaterais, em especial as de perfil técnico, como a OMS, que se tornam estratégicas.

Será preciso pensar, também, no processamento das informações e no debate público. Os temas que estão na agenda são controversos, causam medo, desconfiança e reações irracionais. A desinformação agrava a polarização das opiniões, até porque dificulta a compreensão do que é verdade e do que é mentira. Nesse quadro, somente o diálogo permanente entre os agentes da sociedade pode produzir algum resultado. Toda opinião conta, mas será preciso levar na devida conta as evidências científicas.

O mundo impactado pela epidemia reverbera no movimento democrático. Impõe a ele a revisão de convicções e modos de atuação, a redução da ênfase nas identidades singulares e a valorização do que aproxima. Mais unidade na diversidade, mais diálogo e respeito pelas diferenças. Mais substância, menos adjetivações. Digerir derrotas e ressentimentos políticos, partir para a construção de novos patamares de atuação, fazendo o que não foi feito quando a situação era mais favorável. Em uma palavra: buscar a união e a articulação dos democratas, recurso básico para que se possa administrar a situação corrente e planejar minimamente o futuro. O diálogo e a cooperação serão os principais antídotos contra o acirramento das polarizações e da política do pior.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios que devem ser considerados com atenção por ativistas, intelectuais, políticos e governantes. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, defesa dos direitos sociais, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável: tudo isso precisará prevalecer como diretrizes a serem seguidas. A coesão e a pressão dos democratas serão fundamentais para que as coisas caminhem nessa direção.

*Marco Aurélio Nogueira é cientista politico, professor titular da UNESP, tradutor e colaborador do jornal O Estado de São Paulo.

Referências

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CARVALHO, Edgard de Assis. Espiral de ideias. Textos de Antropologia fundamental. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam  líderes  à  humanidade. Tradução de Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MORIN, Edgar. La Voie: Pour l'avenir de l'humanité. Paris: Fayard, 2011. [Ed. Bras. A Via: para o futuro da humanidade. 2a ed. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013].

MORIN, Edgar. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Palas Athena, 2019.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Tradução Rafael H. Silveira. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

ROSA, Hartmut. Rendre le monde indisponible. Paris: La Découverte, 2020.


Marco Aurélio Nogueira: Impotência e ação democrática

Dois fatores travam a situação nacional: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Há uma sensação de impotência solta no ar. Faltam governo, coordenação, vacinação. Sobram ofensas presidenciais, mortes, medo, desolação. 

Parte da sociedade bate panelas e protesta nas redes. Outra parte, aplaude o presidente. Difícil dimensionar o peso de cada pedaço, mas a percepção é que Bolsonaro está encurralado e perdendo apoios. Precisa enfrentar a pandemia de algum modo, pois sem isso não haverá recuperação econômica, sua pedra mágica para sobreviver no cargo. Precisa também encobrir os crimes cometidos, em série, pela família. A mansão do filho mais velho, senador da República, é o problema mais recente. Mas não é o único. Há uma montanha de lixo tóxico pronta para desabar sobre o presidente que, acossado pela covid, pelas mortes assustadoras, pela crise econômica, não mostra capacidade de resposta. 

Na verdade, nunca mostrou capacidade de resposta. Com isso, facilitou o avanço da crise. O vírus se alimentou dessa incapacidade.

Daí sua recusa em assumir qualquer responsabilidade. Não é só expressão de uma ignorância fanática. É receio de ter de responder pelo que não fez quando devia e tinha condições de fazer. Joga a culpa nos outros. Até o vírus está sendo acusado de contribuir para revelar o que já se anunciava em 2018: Bolsonaro não preside, não governa, porque não tem preparo, porque se cercou de um bando de paspalhos tão despreparados quanto ele e porque tem um cálculo político voltado exclusivamente para sua sobrevivência, quer dizer, sua reeleição. 

Cada bobagem que fala, cada agressão que comete, cada mentira que conta, é parte de uma operação dedicada a ocultar sua incompetência, sua desonestidade, seu cinismo frio e criminoso. 

Analistas, pesquisadores, formadores de opinião, lideranças democráticas têm falado isso desde que a desgraça começou a tomar forma no Brasil. As coisas só foram piorando. O presidente não irá mudar: não tem como nem sabe fazer isso, está com o corpo amarrado a sua própria biografia. 

As coisas pioraram também para Bolsonaro. Hoje ele se movimenta com mais dificuldade, o ringue em que atua está menor, as cordas chegam a lhe bater no peito, as pernas pesam. A imagem é de uma fera acuada, suando, babando, adrenalina fora de controle. O sonho da reeleição está mais distante, porque o desgaste da pessoa acompanha a crise: quanto mais a desgraça avança, mais fraco fica o presidente. Ele posa de bam-bam-bam, mas está tremendo nas bases, com aquele travo amargo na boca, atarantado.

Dois fatores ainda lhe fornecem oxigênio: a impossibilidade de se ter gente protestando nas ruas e a falta de voz firme dos políticos.

Chega a constranger que não se tenha no Brasil uma reação política compatível com o tamanho do buraco em que estamos. Onde estão nossas lideranças, os chefes de partido, os políticos realistas, os que são tidos como guias geniais, os que dizem morar no coração do Brasil profundo? Por que não se manifestam, por que não se articulam, por que não conversam com a população para que ela entenda a situação, por que não se engajam numa campanha política de imunização, ou seja, em favor das vacinas e do uso crítico da razão? 

Com o avanço da vacinação, os protestos voltarão às ruas. É esperar para ver. Produzirão pressão, criarão esperança e desejo de mudar, massas se formarão. Irão se contrapor aos fanáticos que vêm no presidente o “mito” redentor. Modificarão a correlação de forças. 

Já quanto aos políticos democráticos, seu silêncio reverbera com a força de um trovão, chega a ensurdecer. Dizem que alguns são ativos nas redes, falam diariamente com seus fiéis. Outros dão entrevistas ou fazem discursos, nos quais repetem as mesmas obviedades de sempre, justas, mas inócuas. Pode ser, mas nada disso vira opinião pública, não se materializa em uma alternativa ao que existe, nem sequer no plano discursivo. Não acossa quem precisa ser acossado.  

Estarão eles estarrecidos, assustados com a ignomínia presidencial? Ou estarão cegos pelos próprios cálculos, convencidos de que o silêncio poderá dar-lhes a musculatura de que julgam necessitar para avançar em 2022? Ou se protegem nas sendas da moderação, da temperança, da prudência, certos de que o mais importante é não atrapalhar a luta contra a pandemia? 

Mas como, se a luta contra a pandemia só será vitoriosa com a remoção do entulho político que impede a gestão sanitária eficiente? 

Estamos mal parados, o tempo corre contra nós. A exigência de ação precisa nos contagiar e fazer com que os democratas se movimentem. 


Marco Aurélio Nogueira: A hora mais amarga

É quando despontam as grandes lideranças, os estadistas, os talentos emergentes

Não há por que esconder que o ano de 2021 seguirá em marcha de desastre e tragédia.

Já seria complicado se tivéssemos um bom governo e um estoque generoso de vacinas. Seria um alívio, uma injeção de ânimo. Mas o Programa Nacional de Imunizações e o SUS estão soterrados por falhas e incúria, funcionam a duras penas, sem coordenação do Ministério da Saúde e tendo muitas vezes de se contrapor a ele. O “apagão” de vacinas é parte disso.

Não temos vacinas porque os responsáveis pela aquisição simplesmente viraram as costas para a pandemia, trataram-na como coisa sem importância e não se preocuparam em agir quando os imunizantes se tornaram disponíveis. Por essa desfaçatez criminosa e pelos exemplos e atitudes que adotou desde março de 2020, o governo impulsionou a disseminação do vírus e a contaminação serial. Convidou parte da população a não seguir protocolos sanitários básicos. Continua a fazer isso, em que pesem os discursos oficiais que, agora, no auge do desespero, soam em tom apaziguador. Chegamos a 250 mil mortos e tudo indica que o número continuará crescendo.

Há um cortejo de sócios dessa tragédia. Não perdemos o controle da pandemia só porque o governo não soube e não quis agir. Houve a colaboração de médicos que endossaram (ou não condenaram) a prescrição de tratamentos ineficazes. Os militares coonestaram tudo, desonrando a farda que envergam. A ignorância geral, a desvalorização da ciência e de seus instrumentos de pesquisa, a má consciência cívica de parcela da população, a falta de condições sociais para o distanciamento formaram um circuito que foi sufocando o País.

O governo federal barbarizou, mostrou-se mais interessado em “defender a economia” e fazer campanha do que em preservar vidas. Manipulou o auxílio emergencial. Hospitais lotaram e entraram em colapso sem que a irresponsabilidade retrocedesse. As deficiências do sistema de saúde ficaram expostas. O respeito à ciência foi substituído pela agitação ideológica. Não se compreendeu que o vírus veio para ficar, que teremos de reforçar nossas defesas daqui para a frente, mudar atitudes, prioridades e valores.

Hoje, na hora mais amarga, é como se o País tivesse entregado os pontos. O governo anda de costas, seguindo a mesma rota cínica, fomentando confusão, jogando uns contra os outros. Anseia-se pela volta da “vida normal” sem que se tenha monitorado o vírus. O caos se instalou, não há liderança, não há uma política. Nenhum tema é mais importante do que este: como fazer para que a desgraça não se apodere do País, o medo, a angústia e a insegurança não corroam a sensatez e a esperança?

Há indícios de que se está a esboçar um novo “pacto” entre os Poderes: em nome da representação democrática, da legalidade e do “enquadramento” da Lava Jato, Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) se disporiam a conter a Presidência e a fazer o que ela não faz, abrindo caminho para a adoção de medidas sanitárias emergenciais e que iniciem a reativação da economia, por exemplo. O presidente manteria suas bizarrices e seu teatro nas redes. Continuaria com a caneta na mão, nomeando e demitindo segundo critérios obscuros. Protegeria a família e ficaria livre para se entregar à reeleição. Permaneceria burilando sua mente paranoica, afrontando a Constituição e atiçando sua turma.

Mas nada está dado. Com a “PEC da impunidade” a Câmara quer blindar os parlamentares, o que atrita o STF. Este, por sua vez, está em pleno realinhamento de suas vertentes. E o presidente, bem, o presidente é Bolsonaro...

Os ataques do deputado Daniel Silveira ao STF repuseram em cena a sombra do autoritarismo regressista. A Câmara agiu com rapidez, receosa de sua própria desmoralização. Mostrou que o governo pode muito, mas não pode tudo. Como observou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Casa, o bolsonarismo extremo precisa ser contido porque atrapalha o funcionamento regular dos Poderes constituídos e impede que haja governo no País. Se a Câmara seguirá essa pauta é uma incógnita.

Numa democracia, não há cooperação sem conflito e competição. É de crer que os principais partidos democráticos desejem colaborar para resguardar a democracia e forçar o governo a governar. Mas não é por isso que deixarão de brigar pelas próprias causas e ideias. Ganham quando cooperam entre si e também ganham quando demarcam suas diferenças. Para eles, há mais coisas em jogo do que a formação de uma “frente” contra o governo.

Pontes que facilitem a adoção de uma “competitividade cooperativa” passam pela formulação de programas com consensos mínimos consistentes, que dialoguem com o desastre em que estamos. Passam, também, por uma “fulanização” bem compreendida: em torno de quem, afinal, o programa acordado poderá ganhar materialização?

É na hora mais amarga que despontam as grandes lideranças, os estadistas, os talentos emergentes. É nela que as zonas de conforto são substituídas pela entrega à comunidade política, com suas causas e suas exigências.

Que assim seja.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Dilúvios à vista

Há muitos 'presidenciáveis' em cogitação, mas não há o fundamental: nem uma boa articulação democrática, nem um programa mínimo com que tirar o país do buraco em que se encontra.

O açodamento, em política, é inimigo do protagonismo inteligente. Hoje, faltando quase dois anos para as próximas eleições, andam todos em busca do candidato “campeão”, aquele que será capaz de bater nas urnas o capitão cloroquina, hoje tido como adversário de respeito e o mais forte no ringue.

Pelo centro e pela esquerda a especulação campeia, juntamente com balões de ensaio em profusão e muito movimento de ocupação de espaço. Há quem busque se cacifar com antecedência, caso de João Dória, que põe em curso uma operação desenhada para fracassar, seja pela falta de carisma do personagem, seja por sua baixa densidade nacional, seja pela incapacidade de ser um ponto de convergência consistente do centro liberal-democrático. 

Há os que procuram um nome de “fora da política”, capaz de fornecer ao eleitorado uma perspectiva de renovação, derivada da ideia de que o eleitor médio está cansado dos mesmos de sempre. Chega-se mesmo a ventilar o nome da empresária Luiza Trajano, nome digno mas que está anos-luz distante de uma briga eleitoral mais profissional. Passa-se o mesmo com Luciano Huck, cuja juventude e cujo dinamismo podem estar sendo desperdiçados por falta de definições e bases sólidas de sustentação. Lula, por sua vez, incapaz de agir em articulação com os vários pedaços da esquerda, diz para Fernando Haddad “por o bloco na rua” e o ex-prefeito de São Paulo obedece, sem levar em conta os humores do próprio partido. Ciro Gomes mexe-se o tempo todo, mesmo que em silêncio e sem sair do lugar.

E isso para não falar dos que se aproveitam da conjuntura para atiçar a luta interna nos partidos.

Há nomes sendo cogitados, mas não há o fundamental: nem uma boa articulação entre as correntes democráticas, nem um programa mínimo com que tirar o país do buraco em que se encontra. Sem isso, nomes ficarão a flutuar, sem agarrar coisa alguma. E aquele que está mais assentado (no caso, o presidente da República) vai não só mantendo posição como pondo em curso o projeto de dividir e impulsionar a “implosão” dos partidos institucionalmente mais fortes (DEM, PSDB) do centro democrático. Até agora, ele está nadando de braçada.

Muitas águas vão rolar, com certeza, ao longo de 2021. Mas só promoverão dilúvios desagregadores se não houver esforços tenazes para construir diques democráticos de sustentação, que agreguem o que está sendo atacado pelo vírus demoníaco da divisão e do açodamento.

*Marco Aurélio Nogueira, professor titular, Teoria Política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: O momento pede ação democrática firme e inteligente

A espetacular vitória de Arthur Lira na Câmara dos Deputados deixará marcas profundas na vida política brasileira, que terão de ser digeridas pela oposição democrática. Pode não ser uma novidade, dadas as características do nosso presidencialismo, que impulsiona o governo federal a se compor com o que se pode ter de “maiorias” no plenário da Câmara. Todo governo age para ganhar o Congresso, valendo-se de recursos mais decentes ou menos. Mas a vitória de Lira teve um diferencial: materializa uma ampla coalizão direitista e fisiológica e expressa com clareza a nova estética política que prevalece no País, na qual o que conta é jogar para a plateia (no caso, o plenário), abusar da demagogia, explorar mágoas e ressentimentos, deixar de lado qualquer protocolo ou manual de boas maneiras. Como no Executivo, a grosseria e a rusticidade predominam, sem qualquer prurido.

A festa com que Arthur Lira e seus apoiadores comemoraram a vitória, em Brasília, foi o suprassumo da estética dominante. Todos sem máscara, bebida solta, abraços e beijos, um festival de breguice e exibicionismo. Dançaram e cantaram como se estivessem a debochar da população enclausurada ou que rala nas ruas para trabalhar.

Há questões que passam pela lógica dos partidos brasileiros: a tendência inerente a eles de serem sugados pelo poder, com suas prebendas e vantagens. DEM, PSDB, MDB, PT, para falar de alguns “grandes”, se estraçalharam com isso. Mostraram pouca coerência e nenhuma lealdade. Deixaram Simone Tebet e Baleia Rossi na mão. Provavelmente não se beneficiaram com cotas orçamentárias, mas deixaram patente a disposição de ficar bem com a “maioria” que controla a Câmara, quem sabe aspirando fazê-la girar em dada direção, e não em outra. O que pesou mesmo foram interesses pessoais, grupais, regionais, muito mais do que princípios ou alinhamentos políticos. Deixaram no ar uma interrogação sobre quem é oposição, por quais razões e com quais intenções.

DEM e PSDB, em particular, que se consideravam líderes de uma espécie de “centro democrático”, saíram desmoralizados, cortados de cima a baixo por desavenças e desentendimentos. Mostraram ser compósitos de correntes que não se entendem: vão pela estrada carregando bagagens em que abundam pequenos interesses e faltam ideias, firmeza, compromissos.

No Senado, o estrago foi menor, o que converteu a instituição em um fator de equilíbrio e no novo locus da articulação democrática. Afinal, a candidatura do vitorioso Rodrigo Pacheco funcionou como um estuário de forças de centro e de esquerda, desenho que não se viabilizou na Câmara. O MDB “cristianizou” Tebet, mas não rompeu com a coalizão que terminou por prevalecer. No Senado, Bolsonaro não nadará à vontade. A Casa poderá fazer um contraponto ao que se antevê como recrudescimento direitista na Câmara, com um Arthur Lira se entregando a um plenário fragmentado e desorganizado, à agressividade típica de um “cabra da peste”, cego para o País, concentrado em seus interesses e modus operandi.

Lira fez questão de insistir na tese da Câmara independente, mas enfatizou também a ideia de que ela precisa agir em “harmonia”. Com quem? Ele mencionou a direita, a esquerda e o centro, mas seus olhos brilham mesmo para o Palácio do Planalto: as pautas que interessem a Bolsonaro e não o desafiem. Se conseguirá fazer isso, é algo a ser visto mais à frente. O fato, porém, é que tentará, o que já é suficiente para mudar o eixo de atuação da Casa. Irá se valer do estilo que tem feito sua fama, e que já foi associado à figura do “rato de plenário”, que circula sem parar, ouve conversas e confidências, abraça quem encontra pelo caminho.

Na sessão de abertura do ano legislativo, Lira comprometeu-me a “não medir esforços para que a harmonia se traduza numa pauta comum em prol de toda a sociedade”. Para ele, “a hora é de superarmos antagonismos, deixarmos para trás eventuais mágoas e mal-entendidos e unirmos forças para que saiamos maiores desta crise, para que o povo brasileiro sinta-se bem representado por cada um de nós, sinta-se protegido e atendido nas suas necessidades prementes”. A Câmara precisaria sair da “paralisia interna provocada por problemas políticos passageiros que a História sequer irá registrar”.

Lira nem sequer considerou o País que se espalha para além da Câmara. Sua briga era para ganhar o “baixo clero” e os trânsfugas, e foi para eles que discursou. Falou também para Bolsonaro, mostrando um espírito de colaboração que terá de ser posto à prova dia após dia.

Para celebrar tamanha disposição colaborativa, o governo acenou com diversos projetos na área econômica e de costumes, embrulhando tudo num pacote com o selo de “reformismo”, mas que não passa de um cozido mal temperado. Como escreveu Carlos Melo no Estadão, “ter mais de uma prioridade é não ter prioridade alguma”. Haverá, portanto, muita negociação, afora as surpresas, os erros, os humores sociais. A pauta reacionária dos costumes e dos direitos humanos, que o bolsonarismo quer privilegiar, não será digerida automaticamente e terá de ser negociada caso a caso.

Para Bolsonaro, descortina-se um cenário inédito. Ele ganhou, mas não necessariamente se beneficiará disso. Terá maior presença no Congresso, mas perderá um de seus ativos eleitorais, o de que não faria o “toma-lá-dá-cá” da “velha política”. Por extensão, estará impossibilitado de reclamar que suas pautas estão bloqueadas pelos parlamentares. Sua incompetência e sua falta de ideias ficarão ainda mais evidentes, assim como a falta de bons articuladores, que terão de ser terceirizados. Abrirá um flanco que, se bem explorado pelas oposições, poderá leva-lo a chegar enfraquecido a 2022. A incapacidade de governar, o descaso com que trata a crise sanitária, a miséria programática da política econômica e social são coisas que precisam ser denunciadas de forma clara, objetiva, sem maiores firulas analíticas.

Virar a página

No episódio da eleição dos presidentes da Câmara e do Congresso houve também algumas camadas de cálculo estratégico: afirmou-se a opção de esfriar o clima, desgastar eventuais lideranças que despontavam para 2022, caso de Rodrigo Maia. Ele mostrou habilidade nos quatro anos em que presidiu a Câmara, mas morreu na praia. Quando mais se necessitava de um coordenador, perdeu força. Foi queimado por seu próprio partido, que expôs as vísceras do que se tinha como alto poder de articulação. Maia tentou formar uma “frente ampla” que antecipasse 2022, mas não conseguiu. Sai chamuscado, e terá de correr atrás do prejuízo, que foi enorme.

O ambiente congressual esfriará o tema do impeachment, empolgações à parte. A batalha agora será no tempo regulamentar, onde a sabedoria terá de prevalecer, mais que a agitação.

É hora de virar a página. Ficou evidente que Bolsonaro ganhou fôlego e não será politicamente diminuído se continuar a ser tratado como a besta-fera genocida que só tem olhos para os seus. Atacá-lo por ser um ogro fascista que fala coisas estúpidas e reacionárias não machucará sua carcaça. O jogo ficou mais complexo e complicado: exigirá linguagem programática e capacidade de bater onde a dor seja mais forte, aqueles pontos em que a fragilidade fique escancarada. As oposições terão de se esforçar mais e aperfeiçoar seu modus operandi, em termos práticos e discursivos. Antes de tudo, precisarão definir se desejam caminhar juntas e articuladas. A ressaca talvez as ajude a apurar o foco e ganhar musculatura para uma disputa de mais longo prazo.

Trata-se, em suma, de por em movimento uma operação política que mostre à população a tragédia que vem sendo alimentada sistematicamente pelo governo Bolsonaro. A começar da deliberada ação para menosprezar o vírus, os cuidados e as vacinas, o que desagregou o País e conteve qualquer impulso de recuperação. Mas também a incompetência governamental generalizada. Não há um ministério que se salve, que tenha realizações a apresentar, que possa dizer que fez algo para o bem dos brasileiros. Há desemprego e inflação, a miséria cresce, sem que o auxílio emergencial (o de ontem e o futuro) sirva para outra coisa que não o aumento da popularidade do presidente.

As oposições democráticas, se decidirem agir de fato, precisam ir onde o povo está. Saber se comunicar, engavetar personalismos e querelas partidárias, falar o que a sociedade precisa ouvir, tendo em vista seus interesses, suas expectativas e sua indignação. Precisam mostrar que os problemas são enormes e que, para enfrentá-los, serão necessários governos ativos e competentes.

Para serem de fato uma alternativa, as oposições devem tratar o Palácio do Planalto como um adversário que requer inteligência e pertinácia para ser derrotado, num trabalho de construção cotidiana, sem arroubos retóricos infrutíferos. Que se deixe a bandeira do impeachment tremular, como ameaça e imã de agregação, mas que se compreenda que o impeachment não é um ato de vontade unilateral, a ser imposto sem uma adequada correlação de forças na sociedade e no Congresso. O importante, agora, é reagrupar o que está disperso e definir, o quanto antes, com quem é que se irá a 2022.

*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP. Doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado na Universidade de Roma (1984-1985)


Marco Aurélio Nogueira: O presidente caricato

Democratas precisam evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo

Surpreende que o mundo político, em sentido estrito – Congresso, parlamentares, partidos –, somente agora comece a cogitar de um possível impeachment presidencial por crimes de responsabilidade.

Quando o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ativo militante do moderantismo, veio a público declarar (15/1) que o afastamento de Bolsonaro do cargo de presidente da República “será debatido de forma inevitável no futuro”, ele deu o tom de uma inflexão que se poderá consolidar nos próximos meses. Aproveitou para chamar às falas o Congresso, que inexplicavelmente se mantém em recesso enquanto o País pega fogo.

Bolsonaro não havia sido, até agora, atingido por uma ameaça desse tipo. A primeira etapa de seu mandato foi um período de desgoverno e tragédia, em que ele pintou e bordou, agindo com uma mistura patética de tiranete, chefe de gangue e godfather tropical. O escárnio diante do vírus, do povo, da vacina e dos cientistas foi constante, mastigado com indiferença e como prova de “autenticidade” por uma população em grande parte anestesiada. Com a pandemia, sua personalidade desequilibrada e narcisista ganhou plena manifestação. Os meses foram se passando e os estragos, aumentando. Seu prontuário engordou.

O presidente fez política contra a política, empenhado em criar confusão para camuflar sua incompetência e atiçar seus seguidores. Em nenhum momento, porém, pôde proclamar-se vitorioso.

O padrão oposicionista seguiu roteiro conciliador, que travou os planos maléficos do presidente. Fez o rei ficar nu. Meio que em silêncio, com muito jogo de bastidores, possibilitou que houvesse alguma governação no Brasil, paralisando a Presidência da República.

Bolsonaro foi reduzido a uma caricatura de presidente, que fala compulsivamente, de modo agressivo, com cálculo de malandro, boca cheia de impropérios e grosserias, mas é inepto e pouco faz de positivo. Age como um animal encurralado, que ameaça sem morder. Continua a atacar as instituições, a instigar as Forças Armadas, a ameaçar retrocessos. Com os venenos que produz na cozinha do Palácio constrói um imaginário negativo, polarizador, que confunde e corrói. Suas orientações esvaziam e destroem setores estratégicos das políticas sociais, dos direitos humanos, da economia, da proteção ambiental. Sua indigência diplomática comprometeu até mesmo a produção das vacinas e a campanha de vacinação.

A oposição teve sucesso nessa que a mente afiada do cientista político baiano Paulo Fábio Dantas Neto chamou de “estratégia maricas”: o bolsonarismo foi forçado a negociar.

Os humores mudaram, porém. Quanto mais a pandemia se agravou, quanto mais os ministros de Bolsonaro mostraram sua desqualificação, quanto mais o País se foi marginalizando no sistema internacional e fracassando no comércio bilateral, mais aumentou a pressão para o encontro de uma solução.

Abriu-se assim uma nova etapa da luta política. Ainda que a “estratégia maricas” consiga continuar arrancando a fórceps decisões do governo federal, ela precisa ser complementada por uma estratégia mais contundente, que aperte o cerco, mas saiba evitar tentações polarizadoras, escolhos e armadilhas.

A nova fase transcorrerá em algumas frentes principais.

A primeira é a afirmação de um campo oposicionista democrático consistente, que consiga soldar os diferentes partidos e forças políticas numa unidade programática mínima, forjada sem vetos ideológicos, firulas acadêmicas e cálculos políticos sofisticados.

A segunda é a organização do clamor popular, com a invenção de formas de protesto que aumentem o som das panelas e contornem a dificuldade de se ter gente nas ruas.

A terceira é o processamento político das denúncias de crime de responsabilidade contra Bolsonaro. Disso dependerá a abertura ou não do impedimento constitucional do presidente. Por mais que esse seja um passo delicado, sobretudo quando se considera que o presidente tem apoio popular e parlamentar, há no Congresso lideranças com inteligência política e dignidade cívica para impedir que as labaredas da crise institucional incendeiem o País.

No curto prazo, uma quarta frente passa pelo desfecho da disputa pelas presidências da Câmara e do Senado. Muitos parlamentares estão em flutuação, marcando posição, sem compreender a importância de um evento que poderá definir muito do ritmo político daqui para a frente. Mas é o que se tem. Os operadores democráticos precisarão trabalhar dobrado, sensibilizar setores do Centrão e da esquerda para evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo.

O recurso ao impeachment poderá catalisar o mal-estar que hoje, impregnado de horror, medo e repulsa, se espalha pela sociedade. Como está não pode ficar. A perspectiva conciliadora, vitoriosa em nossa História recente, só tem a ganhar se adquirir corpo e poder de direcionamento, contrapondo ao negativismo radical do presidente o ar renovado da política positiva. Sem o qual, aliás, nenhum vírus será derrotado.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Impeachment Já

A crise está exposta, inflamada pelo Palácio do Planalto. E quanto antes ela for efetivamente enfrentada, melhor

A situação nacional chegou a tal ponto de absurdo e incompetência governamental que deveria estar pondo em alerta todas as forças responsáveis do País, dos partidos e movimentos às instituições, das Forças Armadas ao Poder Judiciário e ao Congresso. Ultrapassamos as barreiras do razoável, do suportável, e não há qualquer indício de que o atual governo vá mudar de orientação e de qualificação: continuará a agir com os olhos nos seus, de costas para a sociedade como um todo, seja ela entendida pela ótica dos interesses mais poderosos, seja a dos setores mais desfavorecidos, que formam a maioria do povo.

A opção pelo impeachment não é uma opção pelo confronto ou pela ruptura, mas pela salvação nacional, pela convergência política das maiorias, pela serenidade, pelo bom-senso. É algo para evitar que caiamos de vez no precipício. O País não aguentará mais dois anos de desgoverno. Se nada for feito, chegará ao fim de 2022 em pandarecos, perdendo quase tudo de positivo que conseguiu acumular nas últimas décadas. Falo das políticas sociais, dos direitos, da política educacional e ambiental, mas também da pujança econômica e do posicionamento no cenário internacional como potência média.

Tudo isso está sendo destroçado, dia após dia. Manaus é a ponte do iceberg. Um horror, que provoca espanto e incredulidade: como conseguimos chegar a esse ponto? Estamos nos afogando em uma chuva de lágrimas.

É impossível projetar o que acontecerá se houver uma troca de presidente. Mesmo que uma coalizão bem ajustada viabilize o impeachment, é difícil saber quanto tempo será necessário para que se recupere o País. Tudo dependerá da composição técnico-política do novo governo e da capacidade de sustentação que conseguir obter, na sociedade e no Congresso. Ele precisará contar com boa vontade e desprendimento, recursos difíceis de encontrar numa classe política viciada em cálculos eleitorais, cheia de ressentimentos e desejos de vingança.

Basta olhar o modo como estão sendo conduzidos os entendimentos em torno das presidências da Câmara e do Senado para ver incoerências e mesquinharia saltando por todos os poros. O apoio do PT e do PDT ao candidato do DEM no Senado é luminoso: partidos tidos como de esquerda renegam a combativa senadora Simone Tebet, do MDB, para ficar com a candidatura governista sem que se consiga conhecer as razões de uma opção tão estapafúrdia. Dizem que é para demarcar distância das posições pró- Lava Jato da senadora, dizem que é para não fortalecer demais o MDB. E daí que Rodrigo Pacheco é apoiado pelo bolsonarismo? Constrangedor, para dizer o mínimo.

É uma situação que indica as dificuldades que surgirão quando se pensar em articular uma candidatura competitiva para 2022.

Até por isso, a proposta de impeachment pode funcionar como um bálsamo para nossas oposições sem alma e sem direção. Pode ajudá-las a encontrar um rumo, energizá-las e reaproximá-las da população. Se não foram até agora competentes para confrontar um governo flagrantemente regressista e relapso, quem sabe não acordam?

Esse é o ponto secundário, mas não pouco importante. Chega a intrigar que ninguém tenha ameaçado iniciar um impeachment. Por muito menos Dilma e Collor receberam o impedimento. A explicação pode passar pelo “medo à crise”, pelo “foco na pandemia”, mas no fundo só se explica pela falta de coragem e maturidade democrática.

O principal argumento em favor do impeachment é mais que político: é resgatar a saúde da Nação. No sentido literal e no figurado. A pandemia aumentou e a vacinação exibe tamanha taxa de desencontros e incúria que não consegue nem sequer piscar como uma luz no fim do túnel. A Saúde Pública precisa ser salva. E o País precisa de medidas urgentes para recuperar minimamente suas forças, seu vigor e sua sanidade.

Estamos a assistir um ciclo de desmandos e incompetência jamais visto em nossa história. Não é razoável achar que isso deva prosseguir para que se evite o espocar de uma crise institucional. Quem tem olhos para ver não terá dificuldade alguma para constatar que a crise está aí, inflamada pelo Palácio do Planalto. E quanto antes ela for efetivamente enfrentada, melhor.

Para que se ponha na mesa um processo de impeachment alguém precisa colocar o guiso no gato. Começar uma campanha, cujo mote é simples: “Basta!”