marco aurelio nogueira

Marco Aurélio Nogueira: Brincando com coisa séria

Não é compreensível o vaivém na questão da eficácia das vacinas. A competição é outra

A cena assemelha-se a uma competição de adolescentes para saber quem atira a pedra mais longe ou que repica mais vezes na água do lago. Só que os personagens são adultos e a brincadeira está mexendo com coisa séria, afeta diretamente a vida de milhões de pessoas.

Se você começar a vacinação no dia 25, eu começo a minha antes, no dia 20. E se você passar para dia 20, eu empurro a minha para o dia 19. E assim segue a valsa, em tom de disputa de fundo de quintal. Triste demais.

O fato é que o País está sem um plano de vacinação pronto e acabado, ao qual o sistema SUS possa se acoplar e funcionar, juntamente com coordenadores estaduais, municipais e federais, de modo a recobrir o território nacional e toda a população, em um prazo de tempo razoável.

Mais importante do que saber quando será dada a primeira dose é saber o cronograma, a disponibilidade das vacinas e a logística. Aí a mula manca. É um silêncio que machuca.

Também não é compreensível, para os leigos sobretudo, o vaivém na questão da eficácia da Coronavac, que já está em fase avançadíssima de aprovação. O governo de São Paulo diz ter passado todos os dados (10 mil páginas) para a Anvisa que, por sua vez, diz ter recebido somente parte deles. A Sinovac e o Butantan afirmam uma eficácia de 78% para casos leves e de 100% para casos graves, o que significaria que a vacina evita a morte. Mas não foram divulgados os dados globais e outras informações importantes. Faltam números do desfecho primário do imunizante, nos quais estão incluídos os recortes populacionais e as faixas etárias, sem os quais a avaliação fica imperfeita. Também não se divulgou a eficácia em idosos.

Tudo indica que a vacina do Butantan será fundamental em termos de proteção e de neutralização das formas mais severas da doença. A briga para definir se sua eficácia é de 78% ou de 65% é completamente irrelevante, mas os gestores parecem acreditar que os números são essenciais em termos de concorrência e mercado. Uma competição esdrúxula, suicida. O que a move é outra coisa. Não é ciência e pesquisa.

A secretaria estadual de Saúde informa que divulgará tudo numa entrevista coletiva convocada para amanhã, dia 12. Isso sugere que ela já tem os dados à mão. Por que então não os apresenta logo e termina com a ansiedade geral da nação? Quem está escondendo o jogo, a Sinovac, o Butantan ou o governo paulista? Ou tudo não passa de problemas com a Anvisa, e seu diretor bolsonarista?

Tudo isso pega muito mal, gera insegurança e desconfiança, mostra falta de pulso e sugere que há mais “política” e malandragem do que seria correto. Politizar nesse grau uma questão tão vital quanto vacinas e vacinação mostra bem o nível a que chegamos


Marco Aurélio Nogueira: Nojo, horror, incivilidade

Ao debochar da tortura, Bolsonaro mostra falta de grandeza e compostura. Enquanto isso, megafestas tomam conta do País

Jair Bolsonaro perdeu uma oportunidade de ouro para ficar de boca fechada. Na segunda-feira 28/12, ao debochar da tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Rousseff durante os anos da ditadura, ele não só agrediu uma mulher digna e combativa, como também fez papel de paspalho, insensível aos horrores do mundo.

O presidente mostrou ser pessoa perigosa, perversa, cruel, vazia de grandeza. Sem compostura, hostil aos ritos do cargo que ocupa, sem honradez e decência.

Pode ter desejado erguer mais uma cortina de fumaça para ocultar sua incompetência como governante, sua insensibilidade a cada dia mais ostensiva, sua incapacidade de dar atenção a qualquer coisa que diga respeito à humanidade de seus semelhantes e ultrapasse a defesa encarniçada de seus filhos enlameados na corrupção. A ideia deve ter sido desviar o foco daquilo que realmente importa, a vacinação, para a qual o governo não toma nenhuma providência. Nem seringas consegue comprar.

Pode ter desejado fazer isso, como se fosse o malandro-agulha de prontidão. Mas nada justifica suas palavras carregadas de ódio e desprezo, que ferem a decência de qualquer brasileiro em cujo peito pulse um coração.

Cometeu um crime contra o Estado democrático, contra a Constituição, a ética, a moral comum. Impossível fazer vistas grossas para tamanha prova de desfaçatez. Até quando ele seguirá desfilando pelo País esse estilo grosseiro que só faz excitar seus seguidores fanáticos e atiçar o lado mais sombrio da alma brasileira?

Nojo, asco e ojeriza definem bem o sentimento que muitos brasileiros sentiram ao presenciar aquela performance.

Incivilidade e indiferença

Enquanto isso, multiplicam-se pelo País as festas de massa. A desculpa é o réveillon, como antes foi o Natal, os feriados em ponte, a chegada do verão. Tenta-se justificar as aglomerações com a alegação de que as pessoas estão “cansadas da quarentena”. É incompreensível, injustificável, assustador.

Neymar organiza em Mangaratiba uma megafesta de 5 dias para algo em torno de 150-200 convidados. Consta que comprou um antigo haras para abrigar a multidão. Cego para as agruras do mundo, de costas para as pessoas, atrai “influencers”, artistas, youtubers,  os “parças”, a galera amiga de sempre. Um Narciso engolfado em sua egolatria, que ignora os problemas da sociedade.

Ainda no estrato de cima, milionários voam em seus jatinhos para fazer o mesmo em recantos paradisíacos do litoral.

Há bares, boates, galpões que reúnem centenas de pessoas nas grandes e médias cidades. Dançam, bebem, beijam, se abraçam, como se não houvesse amanhã. Há tentativas de interdição, a justiça e a polícia são chamadas, mas nada parece frear as festas macabras. Como escreveu o jornal londrino The Guardian. Nas periferias, a farra também corre solta, no ritmo do fluxo cotidiano.

A negação do vírus entroniza a ignorância, é um reflexo dela.

É duro admitir, mas muitos brasileiros entregaram os pontos. Não conseguem visualizar os efeitos em cadeia daquilo que fazem em público. Pouco se importam com o risco a que se submetem e a que submeterão os que os cercam. Não há neles qualquer senso de responsabilidade coletiva. Sentem-se acima dos mortais. Agem como aquele bárbaro que de repente aparece em plena civilização: apropria-se parcialmente do que há de progresso técnico e desenvolvimento sem compreender o mundo em que vive, com seus perigos e exigências.

É estarrecedor.


Marco Aurélio Nogueira: Um ano para não esquecer

2021 há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos

O ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8 milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.

A gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre lembrada como virtude dos militares.

Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?

Medo, angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo. Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.

A pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais, mas se acovarda diante de inimigos reais.

Entraremos em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira em imunizações.

Enquanto não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos da inovação tecnológica do nosso tempo.

Um ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas, das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com que gap educacional?

Os brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar. Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram bares, shoppings e restaurantes.

O tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice, pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão desorientados e confusos.

Chegamos ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos, boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um “basta” aos arroubos criminosos do presidente.

Andamos, porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está vencendo a covid.

Por certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições. Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.

Que venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.

*Professor Titular de Teoria Política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Flertando com o inimigo

Quando partidos como o PT e o PSB se omitem na eleição da Câmara, deixam claro que há algo de podre no reino das esquerdas

O sempre competente cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, da Bahia, concluiu seu mais recente artigo (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”)  com uma homenagem ao realismo político. Depois de analisar os resultados das eleições de novembro  e observar que, a partir delas, é preciso “levar o DEM a sério”, arrematou: “Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há, e olhos abertos para o que pode vir”.

Paulo Fábio tem sido um insistente defensor da tese de que o fim do trágico ciclo bolsonarista passa por uma articulação ampla dos democratas, aí incluídos liberais, conservadores democráticos e as variadas famílias de esquerda. O desgaste de Bolsonaro está dado, ainda que não se deva concluir que ele não possa vir a atuar como presidente e recuperar o terreno perdido. Seu caminho parece, a essa altura, espinhoso, seja porque não tem se mostrado à altura da gravidade da crise sanitária, à qual assiste praticamente parado e sem compaixão, seja porque há uma crise fiscal que não sabe equacionar e uma crise econômica que se prolonga no tempo. Essa combinação de crises põe em risco o próprio governo e, por extensão, qualquer projeto de reeleição.

Para além dos erros governamentais, há também seus movimentos, que não têm sido benfazejos. O atrito com São Paulo pode levar a uma crise federativa. A falta de um plano de imunização não lhe transfere popularidade, por mais que haja quem se manifeste contrário à “vacina chinesa”. E seu esforço para emplacar um presidente da Câmara que lhe seja favorável (o deputado Arthur Lira, líder do Centrão) pode não dar certo, dada a correlação de forças, o que expressa incapacidade de articulação e ausência de uma base coesa e confiável no Legislativo.

Arthur Lira pode ser derrotado. Para o bem da democracia e do futuro imediato, precisa ser derrotado. Seus seguidores fiéis não são em número suficiente e ele tem o rabo preso na prática da “rachadinha”. É uma figura complicada, para dizer o mínimo. Por mais que a articulação promovida por Rodrigo Maia esteja indefinida, e não contar com os votos necessários, tem a seu favor a disposição de fixar a bandeira da independência da Câmara.

A situação abre extraordinária oportunidade para as oposições mostrarem que sabem agir em nome de interesses maiores.

O passo mais decisivo no momento atual é derrotar Lira. Não há terceira via possível para impedir que Bolsonaro “ponha a pata” na Câmara, como disse Rodrigo Maia. A hora é de mostrar se há mesmo intenção sincera de fazer com que os democratas venham a formar uma coalizão que imponha outra dinâmica ao País.

Precisamente por isso, chama atenção a vacilação de certas áreas da esquerda (PT, PSB, PDT, PSol) que ainda não definiram o que fazer. Há os que acham que o melhor é “marcar posição”, já que os candidatos com chances de vitória pertencem ao “campo conservador”. Outros admitem conversar com Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro, porque acham que podem lucrar algumas migalhas e porque querem se vingar do grupo de Rodrigo Maia. E há os que querem endurecer para ver se conseguem algum espaço adicional nas negociações, benefícios na composição da mesa diretora da Câmara ou mesmo algum dinheiro extra para emendas parlamentares.

No final de semana, o deputado Rui Falcão (PT-SP) foi ao Twitter lavar um pouco da roupa suja que se acumula no partido. O PT, dias atrás, havia barrado uma proposta de Falcão para incluir em uma resolução o veto ao candidato de Bolsonaro. O deputado e ex-presidente da legenda foi na jugular: “Por uma candidatura de oposição para derrotar Bolsonaro na eleição da Mesa da Câmara! O PT não pode votar no candidato do Governo. Vacina para todos e todas. Impeachment já”, escreveu.

No PSB, por sua vez, houve ensaios de aproximação com Lira, o que levou o deputado Alexandre Molon a disparar, na reunião do Diretório Nacional: “Podemos não saber ainda o que fazer, mas já sabemos o que não fazer: apoiar um candidato de Bolsonaro”.

Parlamentares que se dizem de esquerda e flertam com o governo, trocando piscadelas com Arthur Lira, desonram a ideia de esquerda e de democracia, não conseguem absorver os riscos que o País corre. Alguns fazem joguinhos para exibir poder e autonomia, outros são simplesmente tontos.

Quando falam em nome próprio, são parlamentares com pouca representatividade. Mas quando as direções de partidos como o PT e o PSB se omitem, ou se posicionam mal, lançam um sinal claro de que há algo de podre no reino das esquerdas.

Os partidos de esquerda sabem que seus votos serão decisivos para a definição da disputa. Se lançarem um nome próprio, lavarão as mãos e deixarão a Câmara sob controle do governo. Os que pensam assim irão dourar a pílula, dizendo que a disputa entre os dois blocos é briga entre “iguais” e que a esquerda deve lutar contra retrocessos na área econômica e de direitos humanos.

Ainda há chão pela frente. Mas a postura dos partidos, até o momento, é a prova cabal da doença infantil das esquerdas, da dificuldade brutal que têm de andar com “pés no chão e olhos abertos”.

Uma vergonha, com todas as letras.


Marco Aurélio Nogueira: O Supremo, o Congresso, a vacina

A politização da vacinação é criminosa, porque afeta a saúde da população e compromete o futuro

Passada uma semana do encerramento das eleições municipais, quando ainda se faz o balanço dos recados das urnas, a agenda política ficou concentrada na possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A questão, devidamente “judicializada”, foi resolvido pelos ministros togados do STF, que por 6 votos a 5 mantiveram a cláusula constitucional e afastaram de si o cálice do casuísmo.

Abriu-se então, a todo vapor, as negociações congressuais para definir quem substituirá Rodrigo Maria e Davi Alcolumbre.

Este foi o cenário que flutuou na superfície, importante mas não tão decisivo. Por sobre ele, afirmou-se questão mais grave, de claro caráter estratégico e enorme dramaticidade, dado que afeta diretamente a saúde da população e terminará por envolver tanto o Supremo quanto o Congresso, além dos governos estaduais e de seu relacionamento institucional com Brasília.

A vacina e a vacinação contra o COVID-19 saiu das sombras da politização para ganhar extrema visibilidade, expondo, à luz do dia, o despreparo nacional para enfrentar a pandemia. Ao passo que muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento cuidaram de comprar doses das vacinas já aprovadas (Pfizer e Moderna), o Brasil ficou a ver navios, pendurado na cegueira do Ministério da Saúde e de seu ministro, que pouco faz além de obedecer ao presidente. O risco, agora, é que entremos em 2021 sem vacinas em tempo hábil para o conjunto da população. Há notícias, também, de que faltam insumos para a vacinação, como seringas, freezer e algodão. Ou seja, o básico.

Não há logística que possa resolver isso no curto prazo. O tempo perdido será um tempo de mais vidas perdidas. O cenário que se anuncia é da adoção plena da descentralização (federativa?): cada estado da União resolve o problema do seu jeito e conforme suas possibilidades, ou apelando para os russos da Sputnik, ou adquirindo algumas doses da produção da Coronavac em produção no Instituto Butantã, ou mesmo buscando quem a tenha para vender no mercado internacional.

O governador de São Paulo, João Doria, está atento a tudo isso. Ao mesmo tempo em que negocia politicamente o recurso de valor que detém, procura fazer o que se espera e batalha para começar a vacinação em 25 de janeiro, caso tudo seja aprovado pela ANVISA – o órgão regulador que entrou de gaiato no navio e se deixou capturar pelos conflitos políticos.

O desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 é uma batalha tecnocientífica. O circuito organizado por cientistas de vários países conseguiu a proeza de produzir alguns imunizantes que estão a indicar alto grau de eficácia e segurança. Grandes farmacêuticas disputam entre si para ver quem venderá mais e melhor seus produtos, mas todas trabalham com critério e foco na saúde pública. Seguem parâmetros médicos rigorosos, como sempre ocorreu com toda tentativa de imunização. Dada a agressividade da pandemia, a pesquisa se acelerou extraordinariamente e tudo indica que no início do próximo ano haja boa oferta de vacinas confiáveis e eficientes.

O problema é que o mundo está contaminado por negacionistas, pessoas que recusam a ciência e desconfiam da medicina. No Brasil, o próprio governo federal se mostra hostil à imunização, seja porque rejeita a gravidade da doença, seja porque a associa a planos “imperialistas” da China, seja porque não aceita que a primazia pela “vacina nacional” seja de João Doria. Manipula a dimensão sanitária do problema, gerando com isso reações em cadeia de governadores estaduais e da opinião pública.

A politização das vacinas foi posta na mesa. Vergonhosamente. Ela é criminosa, porque afeta a saúde da população e dificulta ainda mais a imunização. Uma de suas faces mais trágicas diz respeito a definir se a vacinação será ou não “obrigatória”. Os negacionistas alegam que ninguém pode ser obrigado a tomar um remédio e não consideram que, numa pandemia, cada indivíduo se converte em um vetor de transmissão viral: a imunização de um beneficia a todos. As besteiras que vem sendo espalhadas nas redes – que vão da convicção de que as vacinas são ineficazes à afirmação de que agem para modificar a estrutura genética e o DNA das pessoas – fazem corar de vergonha qualquer bom estudante do ensino médio e qualquer cidadão de bom senso.

Com tamanha falta de coordenação, duas coisas poderão acontecer. Uma é a desmoralização do presidente da República. Outra, o relaxamento ainda maior da população quando souber da disponibilidade da vacina e achar que depois dela nenhum outro cuidado sanitário precisará ser tomado.

A disputa para saber qual vacina será mais eficaz – se a “chinesa” patrocinada pelo governador de São Paulo, se a que está sendo endossada pelo Ministério da Saúde e pelos organismos federais, se alguma outra que será comprada a toque de caixa – é mesquinha e patética. Ela expressa a falta que fazem um bom planejamento, o respeito aos especialistas, a valorização do SUS, a capacidade política de articulação e comunicação do governo federal.

Não temos nada disso no País. O despreparo governamental é acachapante, desastroso. O resultado é que a população não sabe para onde caminhar e a quem seguir, se haverá ou não vacinas disponíveis, se elas serão efetivamente distribuídas e disponibilizadas, se as informações em circulação são ou não confiáveis.

Menos mal que São Paulo parece disposto a seguir em frente, convencido da eficácia e da segurança da vacina “chinesa”.

Pesquisadores do mundo todo, incluídos os brasileiros, têm insistido na ideia de que não há vacinas “nacionais”, mas vacinas que funcionam. Quanto mais variantes delas existirem, melhor.

É uma mensagem importante, que, no entanto, não chega à população brasileira com a velocidade e o rigor que seriam necessários.


Marco Aurélio Nogueira: A nova política dos jovens

Pautas identitárias e desejo de renovação põem a juventude paulistana em campanha

Vera Magalhaes acertou em cheio em sua coluna de hoje, no Estadão, quando constata que há um “degrau geracional” separando as candidaturas que disputam a Prefeitura de São Paulo.

É um problema geral, embora se manifeste de forma particular em cada parte do País. Está latejando forte na capital paulistana.

Guilherme Boulos, do PSOL, é o candidato dos jovens entre 16 e 34 anos, que formam uma massa numericamente expressiva e têm lhe dado impulso para ameaçar sobrepujar o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), na reta final.

Uma boa campanha no segundo turno explica parte da situação, mas não explica tudo. O decisivo é que Boulos está conseguindo falar com os jovens, que são sempre dispostos a contestar e buscar coisas novas, além de não gostarem de obedecer. Têm sido eles o motor de sua ascensão. Boulos não entrou nas periferias pobres da cidade, mas está bombando entre os jovens de todos os extratos de renda.

É compreensível que a campanha de Covas não empolgue a moçada mais jovem. O atual prefeito não é midiático, não se atirou nas redes, sua propaganda é fria, ele age como um executivo e, para complicar, é suscetível a muitas “lacrações”: sofre o desgaste de quem está no cargo, é ligado a Dória, o terrível, pertence a um partido considerado “velho”, tem um vice visto como problemático pelo reacionarismo. Até sua doença, um câncer em fase de remissão, é vista como fator de rejeição.

Covas vai bem entre os extratos de maior idade, mais “leais” e chegados à moderação. E seus votos estão distribuídos em todos os distritos da cidade. Mas, se os velhinhos decidirem não votar por receio da Covid, por exemplo, o prefeito poderá perder a eleição.

Os jovens querem movimento, dinamismo, novidade. Estão cansados da mesma lengalenga tucana onipresente em São Paulo. E não se preocupam muito em ligar a eleição paulistana ao futuro do País, ou seja, às urnas de 2022. Não se perguntam, por exemplo, se a vitória de um ou outro candidato ajudará em maior ou menor medida a luta contra o bolsonarismo mais adiante. São majoritariamente contrários às baixarias e ao regressismo de Bolsonaro, não ligam muito para esquerda vs. direita, aderiram para valer às pautas ditas “identitárias”, não só as de gênero e etnia, mas também as ambientais, as da sustentabilidade, da cidade com menos automóveis, da coleta seletiva do lixo, do consumo consciente. Tais pautas são o modo como agem no mundo.

É uma linguagem que não tem sido praticada pelos políticos. E que Boulos soube capturar, ao menos em parte.

Há que considerar que os jovens de hoje não são militantes como foram os seus pais. Não querem saber de comandos partidários, ordens unidas, chefes e agendas rígidas. Engajam-se de modo tópico, seletivo, espasmódico. Não sacrificam a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referenciam por líderes ou ideologias. São multifocais, abraçam várias causas simultaneamente. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.

Numa época de crise da política e da democracia, a exigência de militância, de causas a serem defendidas, permanece. Os engajamentos estão mais próximos da “política-vida” do que da “política-poder”. É uma época com mais “coração” do que “cabeça” politica. As sociedades estão fragmentadas e individualizadas. Há um desencanto com as instituições.

Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias, ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado.

Em particular os jovens (mas muitos não tão jovens também) são social e culturalmente hiperativos, movem-se pela necessidade de se autoexpressarem e não são ligados a lutas por poder em sentido estrito. Olham torto para os políticos que só se preocupam em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, que são rotineiros, previsíveis. Gosta-se mais daquilo que não se conhece.

Pouco importa que os mecanismos concebidos para a deliberação (um mutirão, um orçamento participativo, consultas populares) produzam resultados precários O importante é que sirvam para extravasar indignação, carências, desejos, opiniões.

O problema – sempre há um problema – é que o ativismo jovem pode não ser suficiente para que se consiga estabelecer equilíbrios e consensos que articulem um sistema alternativo. A nova “zona de ação política”, por ser pouco organizada e mais individualizada, estar marcada pela movimentação contínua, por pressões antissistêmicas erráticas, produz uma politicidade de outro tipo, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos.

Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém distintas ênfases e questões, também estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese politica.

O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que souber se articular com o “velho ativismo” e considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, produzirá ruído e efervescência, mas perderá em termos de efetividade.

A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências.


Intolerância e autoritarismo levam o país para trás, afirma Marco Aurélio Nogueira

Em artigo publicado para a revista Política Democrática Online de julho, cientista político diz que atual governo é misto de autoritarismo e ‘iliberalismo’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“A intolerância e o tratamento autoritário das diferenças políticas empurram o país para trás”. A avaliação é do cientista político Marco Aurélio Nogueira, e professor de teoria política da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de julho. “Não há como evitar que postulações identitárias se espalhem pela sociedade, à esquerda e à direita. Elas não podem, porém, congestionar o espaço democrático ou bloquear uma coesão política que possibilite a construção do futuro”, afirma ele.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de julho!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todas as edições, gratuitamente, em seu site, além de fazer ampla divulgação nas redes sociais. De acordo com o cientista político, diante desse cenário, a saída passa, estrategicamente, por uma articulação política que unifique os democratas e garanta a pluralidade inerente à complexidade social em que vivemos.

Segundo o professor, o clima criado pelos ‘iliberais’ não é sem consequências. “Tem favorecido a expansão de uma zona contaminada no próprio campo democrático, dificultando sua autoconsciência e sua organização”, afirma, para continuar: “Paralisados pelas dificuldades criadas pelos adversários momentaneamente ‘empoderados’, os democratas giram em torno de si próprios, muitas vezes brigando com suas sombras e autoimagens”.

Com isso, de acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, deixam de fechar o cerco ao autoritarismo e a tudo o que há de indesejável na vida atual. Dispersam-se, quando deveriam se unir.

“No Brasil, em particular, o atual governo é um misto de autoritarismo explícito e ‘iliberalismo’ inconsistente. É uma plataforma doutrinária de ocasião, rasa e desprovida de teoria”, critica Nogueira. “O ‘gabinete do ódio’ fornece sua melhor expressão. Em nome de uma ideia torta de liberdade, ele promove um ataque incansável aos princípios constitucionais básicos, os direitos humanos e os institutos voltados para a separação dos poderes e o controle social.

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Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Marco Aurélio Nogueira: Pessimismo paralisante da sociedade civil se rompeu

As ruas não são mais território exclusivo dos apoiadores do presidente. As manifestações do último domingo, puxadas por torcidas organizadas de futebol, a começar da Gaviões da Fiel, inauguraram uma nova fase na vida política nacional. Representam a ampliação da resistência ao bolsonarismo e do isolamento do presidente, que se vê cada vez mais enfurnado em Brasília.

As manifestações não tiveram densidade de massa. O isolamento social impediu. A batalha é desigual, porque os negacionistas não conhecem barreiras sanitárias e contam com o apoio simbólico do governo, recursos logísticos e mensagens do gabinete do ódio.

Paralelamente, passaram a circular manifestos endossados por centenas de milhares de cidadãos, intelectuais e artistas. Diferentes setores da sociedade civil somam sua voz à dos ministros do STF, os grandes jornais estampam diariamente sua indignação, surgem movimentos inéditos de aproximação entre partidos até há pouco separados por divergências complicadas. Tudo mostra que o diálogo e a reunião dos democratas parecem ter encontrado um desaguadouro promissor.

O quadro ainda é impreciso. Não há nele uma via de mão única. O bolsonarismo continua vivo. Bem ou mal, ocupa o poder federal, onde acamparam segmentos das Forças Armadas que lhe têm fornecido respaldo e batem continência para o capitão. O governo tem buscado erguer no Congresso Nacional uma base de sustentação, preocupado com sua sobrevivência. O apetite guloso do Centrão, com seus próceres desprovidos de maior dignidade ou respeito constitucional, alimenta o governo mas também o impede de funcionar.

Há muito combustível para a expansão do protesto cívico e o reagrupamento dos democratas.

Começou a se romper o pessimismo paralisante em que a sociedade civil se encontrava. O cerco ao autoritarismo avança. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios, ligação entre a defesa da vida, a recuperação da economia e o reforço da democracia.

*É professor titular de teoria política da Unesp