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Luiz Carlos Azedo: Os quadrantes de 2018
Criou-se um enorme espaço vazio, o que está permitindo o avanço de Lula no quadrante da centro-esquerda e a progressão de Bolsonaro para ocupar todo o quadrante da direita
Na geometria, quadrante é qualquer das quatro partes iguais em que se pode dividir uma circunferência. Na navegação, isso corresponde a um arco de 90º, ou seja, um quarto do círculo. Num esquema tradicional de distribuição de forças políticas, teríamos uma divisão teórica do eleitorado em direita, centro-direita, centro-esquerda e esquerda. Na prática, porém, muitas vezes, essa divisão é atropelada pela polarização antecipada, digamos, esquerda versus direita, como, às vezes, acontece na Europa. Nos Estados Unidos, ela é inerente ao sistema bipartidarista, isto é, ocorre sempre entre republicanos e democratas.
No Brasil, durante o período que vai da redemocratização ao golpe de 1964, a polarização era muito pautada pela guerra fria, embora houvesse três grandes partidos se digladiando, o PSD, o PTB e a UDN, os dois primeiros aliados de Vargas e o terceiro, de oposição empedernida. A quarta força política era o Partido Comunista, que atuava na clandestinidade. Havia outros partidos menores, como o PSB e o PRP. Durante a ditadura, com a reforma partidária imposta pelos militares, tentou-se impor um sistema partidário americanizado, com a Arena, o partido governista, e o MDB, de oposição, mas no fundo o regime queria “mexicanizar” a política brasileira. Após sucessivas derrotas eleitorais da Arena, os militares aceitaram uma anistia negociada e promoveram nova reforma partidária, em 1979.
A Constituição de 1988 consagrou o atual calendário eleitoral, o presidencialismo, o sistema eleitoral proporcional uninominal e o atual sistema partidário, que foi sendo progressivamente ampliado, até chegar aos 36 partidos hoje existentes. Hoje se discute uma reforma política que altere isso. Com as eleições majoritárias em dois turnos, mais pra lá ou mais pra cá, o esquema de quadrantes acabou predominando. Mesmo com a reeleição dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT), que não completou o segundo mandato por que houve o impeachment.
Não seria nada estranho que o presidente Michel Temer se lançasse candidato à reeleição, pois teria esse direito com base na legislação atual. Não o faz, porém, por causa da sua impopularidade, que também é uma herança do governo Dilma, mas que vem se mantendo e até aumentando por causa da Operação Lava-Jato e das reformas da Previdência e trabalhista. Um presidente da República com a caneta cheia de tinta nunca é um cachorro morto, mas isso não impede que possa morrer. Foi o que aconteceu com Dilma. Não ocorre com Temer por causa de dois fatores: a política econômica, radicalmente oposta à da desastrada e infortunada antecessora, o que lhe garante maciço apoio do mercado, e a ampla maioria parlamentar no Congresso. Isso não basta, porém, para que Temer seja protagonista da própria sucessão se não for candidato.
Ocupar o centro
É aí que voltamos ao esquema dos quadrantes. Apesar da Lava-Jato e da emergência de setores de esquerda mais radical como PSol, o ex-presidente Lula nunca perdeu o controle de um dos quadrantes da política brasileira, o campo da esquerda. Isso manteve sua candidatura competitiva mesmo nos piores momentos das crises política, ética e econômica. No outro lado do círculo, o quadrante da direita está sendo progressivamente ocupado pela candidatura de Jair Bolsonaro (PRB). Os demais quadrantes, após a reeleição de Dilma, eram ocupados por Marina Silva (centro-esquerda) e Aécio Neves (centro-direita). Em circunstâncias normais, com o impeachment, os dois disputariam a sucessão de Temer.
Mas não foi isso que aconteceu. Marina Silva (Rede) eclipsou-se durante a crise tríplice (ética, política e econômica), como quem aparentemente não deseja ser identificada com o espectro político que está aí (uma tática de risco). Aécio Neves (PSDB) foi volatilizado pela Operação Lava-Jato, o que poderia servir para consolidar a candidatura do governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB), mas ele está sendo eclipsado pela sua criatura, o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB). Criou-se um enorme espaço vazio, o que está permitindo o avanço de Lula no quadrante da centro-esquerda e a progressão de Bolsonaro para ocupar todo o quadrante da direita. Com isso, o espaço para uma candidatura de centro-esquerda, como a de Marina Silva, diminui; em contrapartida, o de centro-direita se mantém e abre espaço para uma candidatura se consolidar e crescer.
Luiz Carlos Azedo é jornalista
Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-quadrantes-de-2018/
Carlos Alberto Torres: A greve geral do estertor do sindicalismo pelego
Precisamos, os democratas de todos os matizes, de objetivos claros
A greve geral convocada para hoje (28/04/17) é um equívoco. O seu objetivo fundamental não é resistir às mudanças em andamento nas reformas trabalhista e previdenciária; este é apenas um objetivo de agitação, como “surfar” numa boa onda. É preciso que se diga, o seu objetivo estratégico é viabilizar a candidatura de Lula em 2018, impedindo que ele seja condenado e pague por seus crimes.
Mas, é preciso que se diga, existem no governo Temer elementos de ruptura com o passado: (1) para chegar em 2018, dentro das premissas do Estado Democrático de Direito, não existe melhor alternativa para os brasileiros, incluídos trabalhadores, empresários e aposentados; (2) As medidas severas no plano fiscal, já encaminhadas, são a base para a recuperação da economia; (3) as complexas reformas trabalhista e previdenciária em votação tornaram-se uma necessidade inadiável, e vêm sendo defendidas desde os governos do PT como indispensáveis.
Mas, por complexas, todas essas reformas, quem não tem dúvidas sobre as suas consequências?
Quanto à trabalhista, de alta sensibilidade, ela vem sendo feita, já, a conta-gotas desde os governos Lula e Dilma. Embora estes não tenham tido a coragem de assumi-la às claras, exatamente para não confrontar sua base sindical. Mas, se se for observar com atenção, desde os governos Lula se intensificou uma nova relação com o mundo empresarial, infelizmente promíscua, de um capitalismo de laços, para estabelecer novas relações de trabalho.
Entretanto, muito além da esperteza, o que está em jogo é a necessidade de que surjam novas relações sociais de trabalho que correspondam aos avanços tecnológicos e ao objetivo de dinamizar a economia privada no campo e nas cidades. O fim da contribuição sindical obrigatória, p.ex., sempre foi uma proposta dos setores mais avançados da esquerda, e do sindicalismo, para torná-lo menos corporativista, pelego e corrupto. Agora, a própria CUT, majoritariamente petista, é a que mais resiste ao seu fim, e tem o desplante, para isso, em busca de aliados, de transformar Renan Calheiros em “guerreiro do povo brasileiro".
Quanto à reforma previdenciária, também Lula e Dilma já a vinham intentando. A sua questão central é a idade mínima de aposentadoria em suas diversas fórmulas. Esta não é apenas uma questão de qualidade de gestão, como a cobrança eficaz dos inadimplentes, ou os vazamentos provocados pela corrupção. Trata-se de como financiar a previdência em uma sociedade majoritariamente urbana onde as pessoas passaram a ter cada vez maior expectativa de vida.
O caminho mais concreto, neste momento, dado que essas reformas são indispensáveis para superar a crise, é usarem o legítimo e indispensável poder de pressão sindical para melhorar e emendar os projetos que estão em vias de serem aprovados. Mas, não, preferem queimar pneus e impedir que os trabalhadores mais simples e mais necessitados cheguem ao seu trabalho. Essa greve geral, condenada ao fracasso, apenas servirá para o maior isolamento político e social dos que a organizam e apoiam!
E não é surpresa que, enquanto a grande maioria dos brasileiros apoia a Lava-Jato, os organizadores da greve geral engrossam e tentam fortalecer a "santa aliança" dos que a temem e combatem. Preferem comprometer-se com objetivos inconfessáveis, que em nada contribuem para a superação da crise.
*Carlos Alberto Torres é professor aposentado. Durante 40 anos foi professor no Departamento de Administração da Universidade de Brasilia (UNB)
Fonte: http://www.decisoesinterativas.com.br/2017/04/a-greve-geral-do-estertor-do.html?m=1
Lúcio Flávio Pinto: Menos grito e mais trabalho
A mais importante e mais grave notícia do dia não se originou nas manifestações de protesto realizadas hoje [sexta-feira, 28 de abril] em todo o país contra as reformas trabalhista e da previdência social. Foi o crescimento do desemprego no Brasil, medido pelos órgãos oficiais.
A fila dos excluídos da economia chegou a 14,2 milhões de cidadãos, taxa de 13,7%. A uma média simples de três dependentes per capita, seriam quase 50 milhões de pessoas (um quarto de toda a população) atiradas à rua da amargura. É o maior volume de desempregados da história nacional.
A combinação dos dois fatores devia produzir um resultado explosivo: drenar para os protestos coletivos o combustível do desemprego, numa mistura de raiva, indignação e revolta. Mas as manifestações ficaram aquém do que seus organizadores esperavam. Talvez não tenham os resultados pretendidos: de sustar a tramitação e a aprovação das duas iniciativas do governo Michel Temer.
Quem sabe essa frustração se deva a que a reação é o componente de futuro da condição trabalhista: pensão, aposentadoria, regulação jurídica da relação entre o capital e o trabalho — e do que o brasileiro mais precise neste momento é ter onde trabalhar para conseguir seu sustento e o dos seus dependentes.
O efeito mais evidente das manifestações de hoje foi impedir que cidadãos com emprego ativo chegassem aos seus locais de trabalho. O empenho demonstrado é comovente. Só os dogmáticos e fanáticos não conseguirão perceber o esforço de milhões de homens e mulheres comuns de chegar de qualquer maneira ao ponto da realização dos seus compromissos e tarefas cotidianos.
Impedidos de seguir, eles se expõem a ter o ponto cortado, a não obter os ganhos extras que só o exercício dos seus cargos permite ou deixar de realizar alguma tarefa que deveria ter sido cumprida ontem. A conjunção dos dramas pessoais com os seus efeitos coletivos resulta em um dia de déficit numa economia que precisa trabalhar cada vez mais para encontrar, pela via de criação de riquezas através do trabalho, a solução mais positiva e saudável para a crise brasileira.
Se a já complicada luta pela sobrevivência não estivesse delimitada, sujeita ou condicionada por esse monstro chamado disputa política pelo poder, busca da hegemonia e exploração do patrimônio público, seria menos difícil encontrar uma maneira de conduzir o país para longe do precipício do qual se avizinha. Mas até a racionalidade na busca por respostas está sendo bloqueada por pressupostos políticos ou ideológicos.
Se as manifestações de hoje fossem concebidas e programadas considerando a situação real do país, os manifestantes podiam se concentrar em pontos estratégicos da cidade, preparar o ambiente adequado para um enorme comício, selecionando pessoas capazes de orientar os participantes do ato para tomar as decisões mais bem informados.
Produziriam melhor impacto político do que bloqueando ruas, estradas, pontos de embarque e equivalentes, cujo resultado é parar as cidades, interromper a circulação, impedir as pessoas de cumprir suas obrigações. Aquele que deveria ser o destinatário da iniciativa se torna o maior prejudicado por ela.
A principal restrição à reforma da previdência social tem um tamanho homérico. Enquanto o governo se alarma por sangrias no erário de dezenas de bilhões de reais para cobrir o déficit previdenciário crescente, que vai exaurir o caixa nos próximos anos, os críticos dizem que, se a receita destinada à previdência não fosse desviada para outros fins, o saldo atual seria de R$ 28 bilhões.
Logo, a reforma proposta para estancar a hemorragia e tirar o governo de um déficit fiscal crônico, voragem que tritura a riqueza nacional, é balela, conversa para boi dormir, mistificação. Há a questão real do envelhecimento acelerado da população brasileira, que conspira contra o equilíbrio nas contas de dever e haver da previdência, mas o governo Temer é ilegítimo — sustentam os que o negam.
Por que não deixar momentaneamente de lado essa questão jurídico-política, sem esquecê-la jamais, e partir para uma discussão técnica mais ampla? O legislativo poderia até contratar, através de projeto de lei e concorrência pública, uma auditagem internacional independente para definir em números os impasses elementares dessa polêmica.
A definição sobre legitimidade viria em seguida. Os petistas podem ter razão de colocar acima de tudo o afastamento de Temer da presidência e a preservação de Lula para 2018. Mas eles não podem impedir que se propaguem os dados sobre os governos, os do PT, que mais desviaram recursos de fundos de pensão, do tesouro nacional e de outras fontes com outra serventia para criar bilionários e multinacionais brasileiras, resultando no maior esquema de corrupção já revelado em toda história, daqui e de qualquer outro lugar do planeta.
Como as mais recentes manifestações públicas, pró ou contra, a de hoje seguiu-lhes a tendência declinante, apesar de convocada por todas as centrais sindicais, um olho no cliente e outro na preservação desse nojento imposto sindical, de inspiração fascista, travestida de democrática, para atrelar ao Estado a direção sindical.
Se faltou gente nos atos de protesto de hoje para que a voz das ruas soasse soberana e impressionante, restou um murmúrio uníssono nos pontos de ônibus, nas estações de trem, nas ruas desertas. O povo brasileiro quer trabalhar. Só pelo trabalho o país irá se recuperar. E o que mais falta a cada dia é ele: o trabalho.
*Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e do blog Amazônia hoje – a nova colônia mundial. Entre outros, é autor de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).
Fonte: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2129
Denis Lerrer Rosenfield: O impasse
Analisando o cenário político, torna- se inevitável utilizar conceitos militares: a elite da classe política está sendo dizimada. Os mais importantes partidos estão envolvidos nas delações agora vazadas e tornadas públicas. PT, PMDB, PSDB, PRB, PP e outros foram delatados, em depoimentos bastante verossímeis, cujas provas serão logo apresentadas.
Ex-presidentes entraram também na lista, com grande destaque para Lula e Dilma Rousseff. O primeiro terá pouquíssimas chances de ser candidato novamente, apesar de sua demagogia e da estridente defesa de seus advogados, diretos ou indiretos. Oito ministros do presidente Michel Temer foram acusados, levantando uma pesada sombra sobre seu governo. Seu afastamento da sociedade tende a aumentar se mantiver o status quo. Um terço do Senado foi acusado, bem como expressivo número de deputados, embora proporcionalmente menor.
Como pode um país seguir adiante com tal falta de representatividade de sua classe política? A sociedade não se reconhece em seu governo nem em seus parlamentares. Na verdade, nem os considera “seus”, mas deles mesmos, por estarem envolvidos na corrupção, agindo de costas e à revelia do conjunto da Nação. Desconhecem o significado de bem coletivo, do que é a coisa pública.
É bem verdade que estamos na etapa de abertura de inquéritos, ainda vai ser decidido quem é culpado ou inocente. Não se pode prejulgar juridicamente o desenlace das denúncias e dos posteriores julgamentos. Todavia a defesa dos envolvidos é por demais precária, todos repetem o mesmo mantra de que são inocentes ou ainda não foram julgados… Poucos se voltam para o real esclarecimento dos fatos que os incriminam.
Um olhar desavisado levaria a acreditar que todos são santos e os delatores, mentirosos, como se estes não corressem o risco de perder os benefícios da colaboração premiada se não respeitarem a verdade. Os políticos só aumentam a sua falta de credibilidade. Não transmitem confiança à sociedade. E assim propiciam um julgamento político, irreversível, de que são culpados. Seriam péssimos atores. A sociedade clama por mudanças e reafirma com força a moralidade pública, valor que ela percebe como inexistente em nossos governantes e representantes.
Acontece que o País não pode parar. Se o fizer, acoplar-se-á a essa enorme crise política, agravando a crise econômica e social, isso quando começamos a observar certas tendências que estão revertendo a curva no que diz respeito a inflação, PIB, investimento e desemprego. Tudo é ainda muito incipiente, continuando tributário das turbulências políticas. Em pouco tempo o novo governo muito fez na área socioeconômica, embora pouco tenha apresentado no quesito da moralidade pública. Vivemos um impasse que se pode traduzir tanto num avanço quanto numa reversão das expectativas.
As reformas aprovadas pelo governo Temer, como as do teto do gasto público e da terceirização, são estruturantes no que diz respeito ao presente e ao futuro do País. Devem ser necessariamente complementadas pelas da Previdência e da modernização da legislação trabalhista. Se estas não forem feitas por causa da crise política, não só o governo se fragiliza, como o País terá sérios problemas, ainda mais agudos, nos próximos anos. E qualquer que seja o próximo presidente, de “esquerda” ou de “direita”, terá inevitavelmente de enfrentar essas questões. Melhor fazê-lo agora, pois seu custo será menor; caso contrário vai aumentando com o correr do tempo e com a inércia governamental, política e partidária. O resto é mera encenação demagógica.
Dentre os sérios problemas do atual governo está o seu déficit de comunicação, pois não tem conseguido transmitir à sociedade a necessidade dessas mudanças. Termina se consolidando na opinião pública a ideia de que elas ferem “direitos” e seriam de natureza “neoliberal”. Os eleitores, capturados pela desinformação, exigem de seus parlamentares, por exemplo, que votem contra a reforma da Previdência. Tal discurso acaba por disseminar essa percepção, como se tudo dependesse de vontade política na distribuição dos recursos públicos.
Na perspectiva da esquerda e de uma direita irresponsável, toda a discussão passa a ser focada na estrita esfera distributiva, não levando em conta a produtiva. Discute-se a ampliação dos benefícios sociais, os ditos “direitos” das corporações, a criação de novos privilégios, e assim por diante, como se os recursos do Tesouro fossem inesgotáveis. Daí, pode vir a tornar-se encarniçada a luta entre as corporações incrustadas no Estado e o restante da população, que não goza os mesmos benefícios. Assim sendo, os dispêndios do Estado logo se tornarão muito superiores às suas receitas, levando a uma situação de insolvência que, por sua vez, aguça ainda mais os conflitos sociais.
As políticas públicas, e os partidos, deveriam estar mais voltados para as condições de produção de riquezas, de tal modo que os recursos à disposição do Estado possam também aumentar. Quanto mais rica for a sociedade, maior será a sua capacidade distributiva. Quanto mais insistir num distributivismo social sem amparo produtivo, menor será a sua própria capacidade distributiva, além de hipotecar a riqueza presente e a futura. Criam-se, dessa forma, condições de asfixia da capacidade produtiva, que seriam concretizadas por aumentos de impostos e contribuições voltadas para financiar os déficits previdenciários.
O Estado de bem-estar, também dito previdenciário, deve enfrentar o problema de financiamento da sua Previdência, uma vez que o seu crescimento exponencial não cabe mais dentro de suas disponibilidades de financiamento. Não se trata, como se alardeia, de um problema de “direitos”, mas de como o Estado é capaz de gerir os seus recursos. O bolo é limitado. Uma fatia maior para a Previdência significa fatias menores para saúde, saneamento, educação e habitação.
Fonte: O Estado de S. Paulo – 17/04/2017
Foto: Antonio Cruz/EBC
Luiz Carlos Azedo: Verdades e mentiras
A veracidade expressiva dos indivíduos é mais importante do que a veracidade dos fatos, principalmente nas campanhas eleitorais
Mago do cinema, Orson Welles nos mostrou que uma mentira pode parecer uma verdade forjada e materializada a ponto de o espectador ser incapaz de distingui-la. Não é à toa que paradigmas do cinema — a recriação do real, a reimaginação, o drama, o épico, mistério, o suspense, a investigação, a contemplação, o real e o imaginário — foram cada vez mais usados nas campanhas eleitorais. No filme Verdades e mentiras (Vérités et mensonges, 1973), um clássico do cinema, Welles utiliza a linguagem do documentário para questionar a verdade e mostrar como a mentira pode se parecer com a realidade.
O perseguido falsificador de quadros Elmir de Horry é retratado como um artista tão talentoso quanto aqueles que reproduz. O biógrafo Clifford Irving inventa uma biografia do excêntrico magnata norte-americano Howard Hughes. O próprio Welles é o cicerone das histórias, como uma espécie de arquétipo de ilusionista. O que é a verdade? Quais os limites entre a verdade e a mentira? O que é a realidade?
Na verdade, a fotografia e o cinema revolucionaram a arte e a percepção da humanidade. Vivemos a era do virtual, que contaminou irremediavelmente a política, primeiro com os programas de televisão no horário eleitoral; agora, com as redes sociais. A veracidade expressiva dos indivíduos é mais importante do que a veracidade dos fatos, principalmente nas campanhas eleitorais. Mas mentiras serão sempre mentiras.
Ontem, Mônica Moura, a mulher e sócia do marqueteiro João Santana, responsável pelas campanhas de Lula (2006) e Dilma (2010 e 2014), confirmou o uso de caixa dois pelo PT para pagar os serviços do casal. Em 2010, uma parte foi paga pelo partido e outra pela Odebrecht. Em 2014, todo o caixa dois foi pago pela Odebrecht. O ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, segundo o depoimento de Mônica Moura, responsável pelas finanças do casal, acertou os pagamentos das campanhas do PT.
Era Palocci que a mandava pegar o dinheiro na Odebrecht. A empresa também teria financiado as campanhas do ex-presidente Lula (2006), Fernando Haddad (2012) e de Dilma (2010 e 2014). No exterior, Mônica Moura disse que a empreiteira também pagou por campanhas no Panamá, na Venezuela, em Angola e em El Salvador, mas isso nada teve a ver com Palocci e o PT. Somente em El Salvador foi a pedido de Lula, com pagamento acertado com Palocci.
João Santana, que também prestou depoimento, foi o grande artífice da espetacular vitória de Lula em 2006, depois de um mandato abalado pelo “mensalão”. Havia assumido o lugar de Duda Mendonça, responsável pela campanha de 2002, quando o petista derrotou José Serra. Depois da vitória, foi o grande gestor da imagem de Lula no segundo mandato e o responsável por dar asas ao “poste” Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, que virou mãe do PAC. No mandato da “presidenta”, mandou e desmandou no marketing do Palácio do Planalto e conseguiu reeleger Dilma Rousseff, cujo primeiro governo fora um desastre.
O marqueteiro também surfou o prestígio de Lula para conquistar contratos no exterior, pois as vitórias do PT eram seu cartão de visita e o ex-presidente, seu padrinho nas relações com líderes políticos aliados do petista. Por ironia, agora é um dos responsáveis pela desconstrução da imagem de Lula e, principalmente, de Dilma Rousseff, que circula pelo mundo afora como “presidenta constitucional” e se apresenta como honesta e competente. Diz que foi apeada do poder pelas forças que temiam a Operação Lava-Jato. Essa narrativa também cai por terra.
Mea culpa
Santana também fez um mea-culpa ao depor: “Eu acho que nossas contradições constroem as nossas armadilhas. (…) Eu, mesmo sendo uma pessoa organicamente a favor das coisas bem-feitas, legais e honestas, criei um escudo em minha cabeça, um duplo escudo. Um, social externo, que era essa doutrina de censo comum do caixa dois, que não se faz campanha. E outro que era pelo trabalho honesto que estou fazendo”, afirmou. E concluiu: “Eu construí esse equívoco para mim mesmo, sem perceber que, ao fazer isso, eu estava sendo cúmplice de um sistema eleitoral corrupto e negativo. Não estou aqui dizendo que eu não tinha culpa, que fui vítima disso. Não, eu fui agente disso. Mas quero alertar”, afirmou.
O que Santana não fala é que a “qualidade” do seu trabalho profissional estava diretamente associada às mentiras que ajudou a construir no imaginário popular, utilizando o poder de expressão de Lula como candidato e levando para a televisão um país imaginário, no qual muitos ainda acreditam, desde o sujeito isolado nos grotões ao professor universitário engajado no “nós contra eles”. Pode-se dizer que isso é uma exclusividade de João Santana e das campanhas do PT? Não, as fronteiras entre as verdades e as mentiras na política brasileira só agora estão sendo novamente demarcadas.
Luiz Carlos Azedo é jornalista
Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-verdades-e-mentiras/
Luiz Carlos Azedo: Os juízes
Os políticos sem mandato serão os primeiros a serem julgados, pois as investigações em primeira instância andam mais rápido
A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármem Lúcia, decidiu reforçar a equipe que assessora o ministro-relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin, para que não ocorram atrasos nas investigações e julgamentos dos políticos com direito a foro especial envolvidos no esquema de caixa dois da Odebrecht. A maior preocupação é com a prescrição dos processos, principalmente os de falsidade ideológica eleitoral, que tipifica o caixa dois.
Com isso, a responsabilidade maior no andamento dos processos caberá à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal (MPF), que precisam reunir provas materiais para corroborar as delações premiadas. A quebra do sigilo dos depoimentos dos executivos da Odebrecht, cujos vídeos estão sendo divulgados diariamente, revelou a existência uma espécie de polvo gigante, cujos tentáculos controlavam concorrências e licitações da administração direta, autarquias, fundações e estatais em vários ramos de atividade, da energia ao futebol, em níveis federal, estadual e municipal.
Somente com base nesses depoimentos, os processos nas mãos do ministro Fachin passaram de cinco para 10 ações penais, nas quais os envolvidos já estão denunciados, e as investigações saltaram de 37 para 113 inquéritos. São 195 políticos sob investigação no Supremo. Governadores, prefeitos, deputados estaduais, conselheiros de tribunais de contas serão investigados sob supervisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os primeiros, e pelos tribunais regionais federais. Não estão sendo consideradas as delações premiadas dos executivos de outras empresas do cartel de empreiteiras.
Os casos que mais desestabilizam o governo Temer são os dos ministros Eliseu Padilha (PMDB), da Casa Civil; Moreira Franco (PMDB), da Secretaria-Geral da Presidência da República; Gilberto Kassab (PSD), da Ciência e Tecnologia; Helder Barbalho (PMDB), da Integração Nacional; Aloysio Nunes (PSDB), das Relações Exteriores; Blairo Maggi (PP), da Agricultura; Bruno Araújo (PSDB), das Cidades; e Marcos Pereira (PRB), da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Todos estão sendo investigados por determinação de Fachin.
Ontem, o presidente Michel Temer reiterou que os ministros somente serão afastados se forem denunciados pelo MPF; e definitivamente, se a denúncia for aceita e o ministro virar réu. Entretanto, Temer admitiu a hipótese de que alguns peçam para sair do governo antes disso, nos casos de o desgaste político ser insuportável. Os vídeos das gravações estão tendo grande impacto na opinião pública e somente hoje se saberá a reação da base do governo no Congresso quanto às denúncias.
Temer pretende afastar o governo de polêmicas sobre a Lava-Jato e cuidar das reformas, enquanto o chamado “devido processo legal” segue o seu curso. Com exceção dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), que serão julgados pelo pleno do Supremo caso se tornem réus, os demais políticos serão julgados na Segunda Turma, presidida pelo ministro Gilmar Mendes e formada ainda pelos ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandovski, Celso de Mello e Edson Fachin. De certa forma, Fachin é bastante contingenciado pelos colegas, o que explica um pouco a reação dos investigados.
O caso Lula
Uma recente decisão dessa turma, sobre o caso do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), porém, gerou inquietação nos políticos, porque considerou como sendo caixa dois uma doação declarada à Justiça Eleitoral proveniente de recursos obtidos de forma ilegal pelo doador. Esse entendimento colocou em xeque toda a linha de defesa dos partidos em relação às doações da Odebrecht que foram declaradas à Justiça Eleitoral. Votaram com Fachin os ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandovski. Como a margem foi estreita e o mérito ainda não foi julgado, esse caso deve balizar os demais julgamentos.
Entretanto, os políticos sem mandato serão os primeiros a serem julgados, pois as investigações em primeira instância andam mais rápido, principalmente na jurisdição da força-tarefa de Curitiba, sob comando do juiz federal Sérgio Moro. O mais ilustre réu da capital paranaense é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que prestará depoimento em 3 de maio. Até lá, outros depoimentos tendem a fragilizar ainda mais o petista, que está mobilizando uma grande manifestação contra Moro, no dia do depoimento, na porta da Justiça Federal. Ocorre que o desgaste de Lula deve aumentar com os depoimentos de Mônica Moura e João Santana, no caso do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, ainda hoje, e de Léo Pinheiro, sobre o tríplex do Guarujá (SP), no próximo dia 20, ambos em Curitiba.
Luiz Carlos Azedo é jornalista
Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-juizes/
Alberto Aggio: Descobertas tardias
Nossa expectativa é de que, juntos com as novas, essas descobertas tardias inundem o espaço público, democratizando a informação e a opinião, quer seja de intelectuais ou de organizações políticas como o PPS.
Em sua coluna para o jornal Folha de São Paulo (veja aqui), o jornalista Clovis Rossi faz alguns comentários sobre o PT e a “esquerda latina”, repassando à opinião pública brasileira as recentes avaliações de Noam Chomsky a respeito do fracasso do PT e do bolivarianismo venezuelano.
É positivo que isso ocorra, especialmente quando se recupera um intelectual como Chomsky, sempre colocado ao lado do petismo e do bolivarianismo, numa crítica definitiva ao que foram os governos petistas. Se Rossi é um crítico do PT há algum tempo, Chomsky sempre foi mobilizado como um aliado de corpo inteiro e de primeira hora, embora sua sensibilidade política esteja mais ligada ao pensamento tardo-anarquista. Chomsky nunca foi exímio conhecedor da América Latina ou do Brasil, não passou a entendê-los por apoiar o PT e Chávez e mesmo agora entende pouco dessa realidade, quando pula fora do barco num momento que parece ser o crepúsculo petista.
O linguista norte-americano Noam Chomsky em conferência na USP em 1996
O que veio à tona nos últimos dias jogou por terra qualquer discurso ou manifesto alinhavado de última hora por intelectuais que continuam a emprestar seu apoio a Lula e ao PT. Rossi anota que a descoberta dos descaminhos do petismo nos seus governos (economia baseada em commodities, falta de desenvolvimento sustentável interno e corrupção) é bastante tardia, mas o que “há de novo é que alguém de esquerda enfim abre os olhos e diz o rei está nu, coisa que nenhum intelectual de esquerda o fez até agora no Brasil”.
Uma injustiça do nobre colunista da Folha. Sabemos que não foram poucos os intelectuais que advertiram sobre esses descaminhos – e outros tantos mais perigosos. Basta citarmos Chico de Oliveira, Paulo Arantes e Roberto Schwarz, por exemplo. Mas deveríamos acrescentar à lista os nomes, pelo menos, de Luiz Werneck Vianna, Luiz Sérgio Henriques, Francisco Weffort, José Álvaro Moisés, Sérgio Fausto, dentre outros. Esse pequeno acréscimo indica que até mesmo na lavra de jornalistas experientes como Clovis Rossi o bloqueio exercido pelo PT em relação a quem pertence ao campo da esquerda, em especial da “esquerda democrática”, continua vigente, lamentavelmente.
Mas há que informar também ao nobre jornalista que um pequeno partido político, como é o PPS – legítimo herdeiro do PCB –, ao romper com o PT em 2004, inclusive a partir de uma formulação escrita sob o título “Sem mudança não há esperança”, o fez mencionando alguns dos aspectos que hoje são lembrados por Chomsky.
Como não poderia deixar de ser, nossa expectativa é de que, juntos com as novas, essas descobertas tardias inundem o espaço público, democratizando a informação e a opinião, quer seja de intelectuais ou de organizações políticas como o PPS.
Alberto Aggio é professor titular da Unesp, membro do Conselho Político do PPS e diretor da FAP (Fundação Astrojildo Pereira)
Fonte: http://www.pps.org.br/2017/04/17/alberto-aggio-descobertas-tardias/
Foto capa: Divulgação/Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Luiz Carlos Azedo: “É nós” de novo
Depois da narrativa do golpe, o PT quer consolidar o discurso da perda dos direitos sociais. É uma estratégia para não fazer autocrítica do próprio fracasso
O PT voltou às ruas ontem contra as reformas da Previdência e trabalhista, em manifestações organizadas pelas centrais sindicais e outros movimentos sociais. O ponto alto foi a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no palanque armado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, para onde confluíram professores em greve, bancários, metalúrgicos e integrantes do movimento dos sem-teto. No Rio de Janeiro, servidores públicos estaduais com salários em atraso e servidores federais encorparam os protestos na Avenida Presidente Vargas, próximo à Estação Central do Brasil.
As duas reformas estão sendo exploradas pela cúpula do PT como plataformas de lançamento da candidatura do ex-presidente da República às eleições de 2018, num momento em que a Operação Lava-Jato, com as delações premiadas da Odebrecht, jogam na vala comum do escândalo da Petrobras toda a elite política do país. O discurso de que todo mundo usava “caixa dois” ganha foro de verdade absoluta e Lula nada de braçada, fazendo-se de vítima. A impopularidade de Temer e a fraqueza do governo, com cinco ministros já identificados como arrolados nos pedidos de inquérito, fragilizam o Palácio do Planalto na opinião pública.
O principal artífice da reforma da Previdência é o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, que voltou ao governo, apesar de enroladíssimo na Lava-Jato. Seu “estoicismo” ao reassumir o cargo como quem vai para o sacrifício (convalescia de uma cirurgia na próstata) pode estar sendo levado em alta conta no Palácio do Planalto, mas sinaliza para a opinião pública aquilo que é verbalizado pelos sindicalistas que organizam os protestos: os trabalhadores pagarão o pato pelos desmantelos dos políticos.
Sim, é verdade, Padilha conhece o caminho das pedras das votações no Congresso e pode ser que realmente consiga manter coesa a base do governo para aprovar as reformas; ao mesmo tempo, porém, é um alvo fixo para os adversários das mudanças no regime de Previdência e nas relações trabalhistas. O que terá mais peso nas votações do Congresso: as verbas e cargos federais ou protestos sindicais? Qualquer observador atento sabe que as reformas serão mitigadas de alguma forma pelo Congresso, que haverá negociação e mudanças no projeto original, para estabelecer o teto das aposentadorias e pensões, o tempo de contribuição e a idade mínima para aposentadorias do setor público e do setor privado.
Essa é a primeira fileira de árvores da floresta, que é um emaranhado mais complexo, com muita diversidade. Em primeiro lugar, a reforma da Previdência é uma necessidade. O sistema está à beira do colapso, como aconteceu no Rio de Janeiro, por causa das desonerações fiscais, da roubalheira, da má gestão, dos privilégios e, principalmente, por causa da mudança de perfil demográfico da população (o xis da questão). Sem desonerações, roubos e má gestão, ainda que se consiga receber o que os sonegadores devem, a Previdência não suportará uma situação na qual cresce o número de aposentados e pensionistas e diminui o número dos que contribuem. Ou seja, o sistema perdeu sustentabilidade.
Narrativas
Os mesmos sindicatos que fecharam os olhos para a roubalheira na Petrobras e nos fundos de pensão (Previ, Petros, Fundef, etc) lideram as mobilizações ao lado de sindicatos de professores e servidores públicos que obtiveram sucessivos aumentos reais de salários e ajudaram a quebrar as contas públicas em vários estados. Alguns representam pequeno número de servidores com grande poder de barganha, por ocuparem posições estratégicas na administração pública. Todos voltaram às ruas para impedir as reformas, graças à montanha de dinheiro que arrecadam com o imposto sindical.
Os trabalhadores do setor privado, porém, que são a esmagadora maioria, não aderiram ao movimento. Algumas categorias estão definhando. Vivem uma realidade completamente diferente. Haja vista os metalúrgicos do setor automotivo, cujas fábricas estão sendo completamente robotizadas. O desemprego afasta qualquer possibilidade de greve; o peão não tem a mamata de ficar dias e dias parado e receber os salários sem desconto. Vive no andar de baixo e não frequentam a casa grande.
Depois da narrativa do golpe, o PT quer consolidar o discurso da perda dos direitos sociais. É uma estratégia para não fazer autocrítica ao próprio fracasso. Um grande biombo para não reconhecer a forma como se beneficiou do status quo durante 12 anos. E não fazer autocrítica do seu próprio transformismo, ao se alinhar às forças que agora são hegemônicas no poder, nas eleições de 2010 e 2014. É uma estratégia inteligente, mas falsa. Porque aposta num projeto historicamente derrotado, cujo eixo — a antiglobalização e o nacional desenvolvimentismo —, ironicamente, coincide com a política esdrúxula do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e da direita xenófoba da Europa.
O grande problema do Brasil é chegar a 2018. É o que fazer depois, quando o país precisará encontrar o caminho de desenvolvimento sustentável e da renovação política. Os protestos de ontem reproduzem dogmas e palavras de ordem dos anos 1960. Ideias mortas há mais de 50 anos.
Luiz Carlos Azedo é jornalista
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-e-nos-de-novo/
Marco Aurélio Nogueira: Morte de Teori exacerba cultura da conspiração e faz crescer o imponderável
Tem muita gente que não se esforça para entender o quadro. Alguns não entendem mesmo. Outros posam de sabichões. Há quem pegue a parte pelo todo e há quem se satisfaça em pegar uma evidência isolada para transformá-la em explicação definitiva. Todos, abraçados ou não, formam uma legião de agitadores, pescadores de águas turvas, inocentes úteis e inúteis.
Assim caminha a humanidade. No Brasil, sobretudo. Não há muito o que fazer.
Nessa turma, há quem ache que Moro está lavando a alma da República e há quem o veja como o bandido da história, aquele que faz o trabalho sujo. São pessoas que não conseguem compreender a envergadura da operação – sua objetividade, sua execução “dura”, seu apoio nos fatos – e a reduzem a uma espécie de caça seletiva ao Lula. Ou a uma faxina ética geral, contra todos os políticos.
Trata-se de gente que flutua: que aplaude quando um tucano cai na rede e vaia quando a presa é um petista. Ou vice-versa.
Pessoas assim formam a linha de frente das conspirações. Fornecem o caldo de cultura de que elas necessitam, pois sempre pensam que os conspiradores estão logo ali, na primeira curva. No fundo, torcem para que suas fantasias se convertam em realidade. Querem um pouco de emoção adicional.
Não é por outro motivo que todos os que integram essa turma vejam na morte de Teori a mão suja do atentado criminoso. Nem bem se organizaram as exéquias das vítimas e sem nem dar tempo dos familiares chorarem suas perdas, uns passam a dizer que a queda do avião foi planejada por Romero Jucá, outros porque acham que aconteceu para salvar a pele do Lula. Agiram assim quando JK morreu na Dutra, quando Jango não acordou depois de ter ido dormir, quando caíram o helicóptero de Ulysses Guimarães em 1992 e o avião de Eduardo Campos em 2014. Viram as garras do demônio até mesmo no acidente da Chapecoense. E, evidentemente, na morte de Hugo Chávez.
Dá para imaginar o que seria dito se algum acidente afetasse Lula, Temer ou Alckmin. Ou Tite. Papa Francisco, Trump ou Obama.
Lembremo-nos de Dom Quixote: “yo non creo en brujas, pero que las hay, las hay”. É um erro descartar sumariamente atentados políticos: eles existem e são praticados com frequência. Tão grave quanto, é um erro esquecer que acidentes também. Falhas humanas ou técnicas, armadilhas do destino, azares do clima.
O importante é investigar e descobrir tudo, sempre, até o osso. Mas ainda mais importante é enxergar por entre a névoa e avaliar os desdobramentos: o processo.
Nisso a morte de Teori introduz um complicado fator de imponderabilidade, que não pode ser desprezado. Perde-se o homem, perde-se o juiz competente e discreto, peça-chave da Lava Jato. Uma mola escapa, desarranja o fluxo e faz crescer a confusão.
De inocentes, ingênuos e apressados o inferno está cheio.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/morte-de-teori-exacerba-cultura-da-conspiracao-e-faz-crescer-o-imponderavel/
Luiz Werneck Vianna: O dilúvio e a arca de Noé
Aos pescadores de águas turvas a mídia empresta vocalização e amplifica a balbúrdia
Rituais estão aí para serem observados, e mesmo os céticos os reverenciam pelo sentimento imemorial de que crenças coletivas, mesmo que não se acredite nelas, não devem ser desafiadas. Neste primeiro dia de 2017 acabamos de celebrar o nascimento de um ano novo, em que se renovam as esperanças de uma vida melhor, recém-saídos de uma balbúrdia que nos aturdiu, em meio a vociferações, ódios desabridos e o alastrar da cultura do ressentimento como se vivêssemos na cena das revoluções. Ainda bafejados pela confraternização das festas natalinas, ganhamos a graça de uma trégua que nos abre espaço para a reflexão e nos distancia das agitações estéreis que têm mantido o País em constante sobressalto. Mas sem ilusões, porque alguns eixos saíram do lugar e não é tarefa fácil devolvê-los às suas operações originais.
Impeachments são processos dolorosos. Em particular se o seu objeto tiver sido o de afastar da Presidência da República uma mandatária eleita por um partido socialmente identificado como de esquerda, com expressiva representação congressual e em movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores. Quadro que se agrava pelo fato de sua principal liderança, Luiz Inácio da Silva, e outras importantes personalidades partidárias se encontrarem na situação de réus em processos criminais, alguns deles presos. Sob essa pressão, o PT e seus aliados se movem nas ruas, nas escolas e no Parlamento em encarniçada oposição às políticas com que o governo Temer – notoriamente sem poder de influir na condução da Operação Lava Jato – intenta enfrentar a pesada crise econômica que paralisa o País.
Nessa loucura há um método: trata-se de atalhar, por fás ou nefas, o mandato do governo Temer, escolher um sucessor anódino por alguns meses, convocando-se eleições gerais para outubro, em que Lula, tido como imbatível nas urnas, seria apresentado como candidato à Presidência, voltando-se a tudo como dantes no quartel de Abrantes. Com pachorra, tal plano foi explicado linha por linha por João Pedro Stédile, dirigente do MST, em programa de entrevista do canal de TV CBN, esquivando-se o jornalista da pergunta clássica, hoje incorporada à nossa fala comum, formulada por Garrincha a seu treinador: se ele havia combinado seu desenho tático com os russos, nosso adversário em jogo decisivo na Copa de 1958. Os “russos”, no caso, os parlamentares e os ministros da Suprema Corte.
Planos mirabolantes fora, é um dado incontornável da realidade a forte intervenção da chamada Operação Lava Jato, que, a esta altura tendo em mãos as delações premiadas de altos executivos envolvidos em práticas de corrupção com parlamentares e agentes públicos, promete sanear por via judicial a vida política do País. O espaço público se torna um imenso tribunal, com seus membros desfrutando o protagonismo que em tempos não tão remotos era exercido pelos generais. Egos inflados de alguns ministros, cada qual brandindo um texto da Constituição, que juram venerar, trabalham sem o saber para conduzi-la à sepultura, invadindo os demais Poderes, dos quais os mais afoitos usurpam competências sem maiores cerimônias.
O egocentrismo, essa nova peste que assola o País, se assenhoreou também da classe política, que, mesmo tendo a seus pés o precipício, flerta animadamente com o perigo, não havendo um dia em que não saia das sombras o nome de um novo candidato à Presidência, na expectativa de que o governo Temer não prospere. A mídia, ao invés de ignorar esses pescadores de águas turvas, empresta-lhes vocalização e amplifica a balbúrdia.
Marx, em texto justamente célebre sobre os processos que levaram à ruína a República francesa de 1848, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, narra com sarcasmo as peripécias do sobrinho do grande Napoleão em busca do poder absoluto, o qual construiu seu caminho em meio a uma política em frangalhos e de cisões insanáveis nas forças que se lhe opunham. No caos reinante, sequiosa de tranquilidade para seus negócios, a burguesia francesa teria abdicado de bom grado do poder político, confiando-se a um patrão que zelasse pelo destino de todos. No lugar da República, Marx anota com ironia, a Infantaria, a Cavalaria e a Artilharia.
Também nisso seria preciso combinar com os “russos”, que, escaldados em experiência recente, parecem ter tamponado os ouvidos para não se deixarem enlear pelos cantos das sereias que gostam de rondar os quartéis. Mas logo que vier a inundação de fim do mundo, com as homologações das delações feitas na Operação Lava Jato, contaremos ou não com uma arca de Noé a fim de recomeçarmos a vida quando cessar o dilúvio? Ou estaremos confiados a um governo de juízes, para desgraça deles e nossa?
Os operadores da Lava Jato não devem desconhecer as lições de Weber em sua clássica distinção entre as éticas de convicção e as de responsabilidade, que podem, longe de se confrontar, ser complementares, como nos ensina, em Paradoxos da Modernidade, Wolfgang Schluchter, notável intérprete desse autor. Certamente boa parte deles conhece e cultua Ronald Dworkin, que erigiu o modelo do juiz Hércules como seu ideal de julgador em páginas magistrais do seu Império do Direito. Hércules, para ele, é um engenheiro social que, aberto à história da sua sociedade com suas vicissitudes, preserva a integridade do Direito ao tempo em que o renova na resolução de conflitos difíceis que lhe são submetidos.
Mas tréguas devem ser respeitadas e na paz destes dias de começo de ano convém notar que temos um governo que governa, desses que sabem, como dizia Ulysses Guimarães, que a cada dia cabe sua agonia, e que se deve ter paciência, esperança e mão firme no leme, porque o tempo de bonança talvez não tarde, porque não é pouco o que se tem de salvar dessa barafunda. A começar pela Carta de 88, já na mira dos que sempre desdenharam dela.
*sociólogo da PUC-Rio
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-diluvio-e-a-arca-de-noe,10000097474
Fernando Gabeira: Para chegar a 2018
O caminho é fortalecer a economia e tentar reconciliar a política com a sociedade
Começou o fim do mundo com a delação da Odebrecht. Temer, creio, deu uma resposta adequada, pedindo celeridade nas investigações para poder tocar o barco da reconstrução econômica.
Ele pode não ter sido sincero, porque, segundo a imprensa, no Planalto se falou na anulação do depoimento do diretor da empresa. Mas a celeridade, respeitando simultaneamente direito de defesa e ritmo de uma investigação séria, é a melhor saída para libertar o processo econômico dos sobressaltos políticos. Para almejar essa celeridade, porém, é preciso primeiro responder a uma pergunta: se não existiu até agora, por que passaria a existir de uma hora para outra?
Ela é necessária também para o processo político em 2018. Muitos investigados vão querer se reeleger. Mas nem todos têm êxito em situação pós-escândalo. Lembro-me da CPI dos sanguessugas, deputados que ganhavam propina para emendas de compras de ambulâncias superfaturadas. A maioria foi derrotada nas urnas, em 2006.
Sem julgamento, contudo, o abismo entre sociedade e eleições em 2018 pode se aprofundar ainda mais. As ruas têm se manifestado, mas não se pode esperar delas a solução final do problema. No meu entender, ela está nas mãos do Supremo, que precisa fazer um extraordinário esforço de adaptação às necessidades do momento.
O Supremo parece-me perdido em suas prioridades. As duas últimas intervenções, proibição da vaquejada e descriminalização do aborto, posições com as quais posso concordar, não trilharam o bom caminho.
Existe uma diferença entre uma sentença e uma política para enfrentar os temas. No caso da vaquejada, um processo adequado seria definir o que os americanos chamam de phase out, para que todo o universo econômico que gira em torno da vaquejada se adaptasse. Pelo que vi, seu núcleo central é a criação e o comércio de cavalos de raça. No caso do aborto, o processo político se dá de outra forma. Discussão no Parlamento e referendo popular.
Embora o panorama político seja desolador, quando juízes assumem decisões que deveriam nascer no Parlamento ou nas urnas, eles são obrigados a pensar como categorias políticas. Apesar de ter desaguado no STF, na longa luta política para banir o amianto foi preciso negociar e até formular um projeto de adaptação.
O fim do mundo não é o fim de tudo. Se o Supremo, creio eu, se dedicar integralmente a julgar com rapidez e se reorganizar para a tarefa, pode se queimar menos do que buscando saída para tensões políticas.
As manifestações de rua conseguem fixar alvos. Hoje Cunha, amanhã Renan. Elas não trazem a saída: são contra a corrupção e, em alguns cartazes, pelo fim do cheque em branco dos governos, alusão ao ajuste fiscal.
Mas o nó só pode ser desatado pelas instituições. Agora, por exemplo, o Supremo vai entrar em recesso. Com a situação tão delicada, os responsáveis vão sair de cena. Creio que isso nasce do equívoco de subestimar o alcance da Lava Jato.
Gilmar Mendes, quando esteve no Senado, foi bastante explícito, as operações policiais existem todos os anos. Naquele momento, a Odebrecht fechava o maior acordo de leniência do mundo, pagando cerca de R$ 6, bilhões de multa. E a delação do fim do mundo começava.
Se o Supremo decidir trabalhar a fundo na sua tarefa específica, vai ajudar, indiretamente, a economia e também a política, na tarefa de buscar algum tipo de renovação que a aproxime da sociedade.
É uma difícil travessia. Nela o comandante Temer tem de enfrentar a tempestade e jogar alguns corpos ao mar. E evitar que ele próprio tenha de se jogar na água.
Mas são essas as circunstância e não é possível enfrentá-las suprimindo pedaços da realidade. A maior investigação da História do Brasil chega ao coração do atual governo, que era apenas a costela do governo petista. Agora, ele tem nas mãos a tarefa de conduzir a economia em frangalhos, sob suspeita e com baixa popularidade.
Temer disse que era preciso coragem para governar o Brasil e que ele teria essa coragem. Talvez seja preciso também um pouco de resignação diante do futuro pessoal.
A tarefa de conduzir a reconstrução econômica é decisiva, sobretudo, para os 12 milhões de desempregados. Temer e o mundo político não têm outro caminho exceto continuar trabalhando, enquanto a terra treme sob os seus pés.
Num mundo ideal, nem o Supremo nem os políticos entrariam em férias neste ano de 2016. Talvez todos nós precisemos de umas férias do Supremo e dos próprios políticos.
Mas assim que voltarem, a realidade pedirá respostas mais rápidas e complexas. Se houvesse um projeto de trânsito para 2018, o ritmo de julgamentos seria mais rápido, os vazamentos seriam evitados e o processo de renovação na política seria posto na agenda.
Existem forças poderosas tentando deter ou deturpar a Lava Jato. Elas se aproveitam da confusão, dos impasses. É uma tática que existe nos mínimos detalhes, como a atuação dos advogados de Lula, discursos no Parlamento, notícias inventadas.
Digam o que quiserem das ruas. Não houve violência nas manifestações contra a corrupção. Elas cumprem o seu papel. No fundo, acreditam nas instituições e na possibilidade de que encontrem uma saída.
Algumas instituições entraram em férias. Durante o recesso poderiam pensar no ano que entra. É possível fazer melhor e mais rápido.
É uma ilusão supor que o Brasil não mudou, que será governável com as mesmas práticas do passado. Hoje será menos doloroso avançar do que recuar no projeto de fortalecer a economia e dar à política uma chance de reconciliação com a sociedade. No meio de tanta confusão, na qual estou também envolvido, é assim que vejo o caminho imediato e os dois objetivos principais.
Deve haver centenas de outras visões. Seria salutar discutir como chegar a 2018, e não apenas o clássico quem comprou quem, quem é a bola da vez... A bola da vez é a ameaça de caos.
*Fernando Gabeira: Jornalista
Fonte: opiniao.estadao.com.br
Marcos Nobre: A nova geração da política
Terminada uma eleição, a primeira pergunta que se faz é pelas chances que teriam figuras já conhecidas para as eleições seguintes. As chances de Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Lula, Marina Silva, Ciro Gomes, Fernando Haddad e por aí vai. O problema desse tipo de foco é o imediatismo, limitado à próxima eleição. É um raciocínio que pensa que política é apenas eleição.
Tentar entender política envolve saber distinguir movimentos políticos de lógica partidária e de estratégia eleitoral. Quadros políticos são construídos ao longo de décadas. Não surgem nem desaparecem apenas em momentos de eleição. Nem são formados apenas dentro de partidos. Suas trajetórias de vida determinam o que são e onde estão para além da política oficial. Temos de nos perguntar como se politizaram e como tomaram a decisão por um caminho e não por outro.
É importante não reduzir a pergunta pela nova geração da política à pergunta pela geração nova da política. Para conseguir pensar o que será a política nos próximos 20 anos. E o que se quer que se ela seja. Para tentar sair da armadilha imediatista e pensar adiante, vale lembrar, por exemplo, onde estavam figuras da nova geração 20 anos atrás.
Nestas eleições, há casos clássicos de uma nova geração com formação partidária ortodoxa, como o do prefeito reeleito de Salvador, ACM Neto, do DEM. Nascido em 1979, acompanhou desde cedo um político tradicional, o avô, ACM, e conquistou seu primeiro mandato de deputado federal aos 23 anos. Mas está longe de ser paradigmático de sua geração. Basta olhar para outras figuras políticas que nasceram entre 1980 e 1984.
O procurador da República no Paraná, Deltan Dallagnol, nasceu em 1980 e formou-se em direito em 2001 na UFPR. Seu mote sobre a transformação do país pode ser enunciado assim: “Não é o envolvimento político-partidário, mas o exercício de cidadania”. Provavelmente foi sua avaliação negativa do cenário político-partidário no momento de sua decisão profissional o que o fez optar pela carreira de procurador em lugar de um engajamento na política oficial.
Liderança do MTST, Guilherme Boulos tem hoje 34 anos e aos 17 já tinha assinado uma carta de rompimento com o PCB. Como será que, durante seu curso de filosofia na USP, decidiu que o caminho partidário ou a militância em um movimento social tradicional não conseguiriam traduzir mais suas aspirações políticas? No momento em que decidiu participar de sua primeira ocupação, o PT e os movimentos sociais estavam voltados para a eleição de 2002. Não parece que era essa a sua ideia do que significa fazer política.
Áurea Carolina nasceu em 1984. Sua atuação no coletivo “Hip Hop Chama” e no movimento feminista, seu engajamento nas lutas do movimento negro nas periferias se traduziu em 2016 na maior votação para a Câmara Municipal de Belo Horizonte. Elegeu-se pelo Psol, mas seu mandato está ligado à iniciativa “Muitas | Cidade que queremos”, semelhante à que foi realizada em São Paulo pela “Bancada Ativista”.
A pergunta que se pode fazer agora é: por que recuar 20 anos se há caras da nova geração que têm 20 anos de idade, como o vereador eleito Fernando Holiday, em São Paulo? Também o caso de Holiday vai além do horizonte partidário. Negro, pobre e primeiro vereador assumidamente gay, elegeu-se pelo DEM, mas sua atuação se pauta pelo movimento do qual é uma das lideranças, o MBL.
Em Junho de 2013, Holiday era secundarista. Se optou por se lançar na política oficial desde já, não foi esse o caminho escolhido por muitos da mesma idade que saíram às ruas três anos atrás. O exemplo de Holiday leva à ideia simples de que pensar o futuro é pensar o que está acontecendo agora nas escolas ocupadas em quase metade dos Estados. Da natureza dessas iniciativas e das respostas que serão dadas a elas sairá muito do Brasil de 2036.
Para quem quer entender essa “primavera secundarista”, é indispensável ler “Escolas de luta: o movimento dos estudantes contra a ‘reorganização’ escolar”, de Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro (Veneta). É um relato generoso tanto com quem lê o livro como com quem ocupou e continua a ocupar as escolas. Reconstrói, com paciência e detalhe, o processo de “reorganização escolar” desencadeado pelo governo Alckmin em São Paulo em 2015, reunindo informações que se encontram espalhadas em fontes diversas e dispersas.
Mas não existe neutralidade quando se trata de recortar uma exuberância de dados, uma multiplicidade de vozes. Cada escola ocupada tem sua história, sua linguagem e seus temas. E nem os autores pretendem neutralidade. Se não há tomada de posição nem preferências por uma ou outra ação, é explícita sua adesão ao sentido geral das movimentações secundaristas como ações de resistência e de auto-organização.
A peculiaridade do livro é fazer com que esse conjunto de ações surja como um movimento, algo que talvez não seja claro nem para quem faz nem para quem está tentando entender o que está sendo feito. A dificuldade que o livro se colocou é dar esse caráter de movimento sem confundi-lo com homogeneidade, muito menos com partidos e com a política oficial.
Não por acaso, em lugar de “movimento”, fala-se muito desde 2011 no mundo todo em “primaveras”: árabe, feminista, secundarista. Um movimento como o de “secundas” não é um movimento no sentido que se conheceu até antes dos anos 2010. Parece que o próprio conceito de “movimento” e de “movimento social” ficou obsoleto. Nessa lógica, primavera é uma estação de germinação. As formas anteriores de organização ficaram como que com o inverno da política.
Ninguém mais tem dúvida de que o cenário partidário e a forma atual de organização do sistema político caducaram. O problema é que muitos parecem continuar a olhar apenas para a política oficial, com a expectativa de que ela se transforme de dentro e por si mesma. Essa miopia não permite ver adiante. Para olhar para frente, é preciso olhar para trás. E para um presente que não é só o da política institucionalizada. Principalmente para quem ainda acha que partidos são instituições fundamentais da institucionalização da política. (Valor Econômico – 31/10/2016)
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Escreve às segundas-feiras
E-mail: marcosnobre.valoreconomico@gmail.com
Fonte: http://www.pps.org.br/2016/10/31/marcos-nobre-a-nova-geracao-da-politica/