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Carlos Pereira: Governar sai caro para Bolsonaro

O Brasil foi surpreendido com a notícia de que a Lei Orçamentária Anual, além de ter sido aprovada muito tardiamente, alocou o valor de R$ 49,3 bi em emendas dos parlamentares ao Orçamento. Políticas públicas provenientes dessas emendas são peça-chave para a sobrevivência eleitoral de parlamentares, pois, ao nutrir as suas redes locais de interesse nos municípios, elas aumentam as chances de reeleição dos legisladores.

Esse valor é substancialmente maior do que os alocados em anos anteriores. Na realidade, tanto a demanda dos parlamentares por emendas como seu gasto efetivo durante o governo Bolsonaro quase triplicaram: de R$ 19,2 bi para R$ 46,3 bi (LOA) em 2019 e de R$ 5,7 bi para R$ 16,1 bi (pagas) em 2020, respectivamente.

Para abrir espaço a essa demanda vultosa de emendas, os parlamentares subestimaram alguns dos gastos obrigatórios do governo. Diante dos riscos de que essa escolha abrisse flancos jurídicos com a Lei de Responsabilidade Fiscal e com o teto de gastos, o governo foi obrigado a vetá-las parcialmente para o montante de R$ 35,5 bi.

Por que o governo Bolsonaro tem sofrido esse expressivo aumento nos custos de governabilidade?

Os custos de governabilidade são inflacionados quando o presidente está politicamente vulnerável com a sociedade e/ou quando gerencia mal a sua coalizão. Além de pagar mais caro, o presidente também corre riscos de perder poderes outrora delegados pelos próprios legisladores.

No governo FHC, por exemplo, a perda em 2001 da prerrogativa de reeditar indefinidamente medidas provisórias decorreu da quebra da sua coalizão, com saída do PFL, e da queda de sua popularidade. Em 2015, Dilma perdeu o direito de executar de forma discricionária as emendas individuais ao Orçamento, após ver sua popularidade despencar e enfrentar vários problemas na sua coalizão. Temer também foi compelido a executar de forma impositiva emendas dos parlamentares para barrar as denúncias de corrupção da PGR. Já Bolsonaro viu o Congresso promulgar o Orçamento impositivo também para as emendas coletivas das bancadas estaduais ao Orçamento quando perdeu suporte entre os eleitores sem ter uma coalizão majoritária.

Os parlamentares perceberam que as emendas impositivas não mais exigiriam apoio ao governo para que fossem executadas. Com isso, o governo tem precisado encontrar outras moedas de troca, como é o caso das “transferências especiais”, conhecidas como emendas “cheque em branco”, pois não requerem informação sobre a destinação de recursos nem prestação de contas aos órgãos federais de controle.

Os custos que o presidente tem enfrentado não são apenas financeiros. O Executivo nutria a esperança de que a sua vida viesse a ficar mais segura e tranquila com a eleição dos seus candidatos a presidente da Câmara e do Senado. Mas o perfil minoritário de sua coalizão não foi suficiente para que a CPI da Covid deixasse de ser instalada e em condições de minoria.

Se as organizações de controle “externas” à política (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Tribunais de Contas etc.) têm apresentado um certo arrefecimento diante das iniciativas de interferência do governo Bolsonaro, os parlamentares conseguiram, por meio da CPI da Covid, ressuscitar um dos objetivos precípuos e constitutivos do Legislativo. Qual seja, exercer o controle direto do Executivo.

Parece existir no Brasil uma espécie de efeito substitutivo entre mecanismos de controle externos e internos ao Executivo. Quando os primeiros estão presentes e ativos, o Legislativo prefere não arcar com os custos de controlar diretamente o presidente. Mas, quando percebe fragilidades nos controles externos, assume esse papel abertamente.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governar-sai-caro-para-bolsonaro,70003701856


Ana Carla Abrão: (Des) construção

Zelar pela Constituição também significa zelar pela justiça social e pela equidade

Instituições fiscais são de difícil construção. Mas, mostra a nossa história, de fácil desconstrução. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que neste ano completou exatos 20 anos, foi um dos grandes avanços institucionais que o Brasil viveu. Era um momento de grandes reformas e grandes conquistas, a maior delas a estabilidade monetária. O pilar fiscal era parte da consolidação dessa conquista. A LRF foi a sua tradução.

A elaboração do projeto de lei complementar veio na esteira da renegociação de dívidas de Estados e municípios pela União. Quebrados após anos de irresponsabilidade fiscal, com crescimento descontrolado do endividamento subnacional, o seu maior objetivo era o de aperfeiçoar a gestão fiscal do País nos três níveis da Federação. Além disso, o projeto de lei resgatava conceitos básicos da gestão orçamentária, como planejamento, transparência e equilíbrio das contas públicas, definindo diretrizes de execução fiscal e delimitando competências e responsabilidades dos agentes públicos.

Há nela o lado da receita, forçando a previsibilidade e o monitoramento da arrecadação própria e de transferências e a compatibilização com o arcabouço orçamentário público já constituído, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei do Orçamento Anual (LOA).

Há também os limites e critérios de endividamento, com uma clara conexão com os anos de descontrole dos subnacionais, amarrando Estados e municípios numa camisa de força que funcionou pelos dez anos subsequentes – até o governo Dilma sorrateiramente ir desatando os fechos, abrindo brechas nos critérios e limites, o que se traduziu no colapso de vários Estados como, por exemplo, o Rio de Janeiro. Houve aí uma primeira grande desconstrução, que deu origem a várias outras que a equipe do governo Temer tentou (e em boa parte conseguiu) reconstruir.

Mas é no lado da despesa pública, consequência de décadas de descontrole, que a LRF mais se detém. Com o objetivo de conter o aumento constante do gasto público, a LRF determina limites e define conceitos com o objetivo de garantir o equilíbrio fiscal e, consequentemente, a boa gestão pública. Há conceitos gerais, como a condicionante de apontamento de fonte de financiamento para a criação de nova despesa, e há limites objetivos, como aqueles relacionados à despesa de pessoal ou aos serviços de dívida (pagamento de juros e amortizações) em relação à receita corrente.

Mas é na dimensão das despesas de pessoal que a LRF se viu lenta e continuamente desconstruída ao longo dos anos. A lei define limites de comprometimento da receita corrente líquida com despesas de pessoal de 50%, 60% e 60% para a União, Estados e municípios, respectivamente. As sanções pelo descumprimento desse limite abrangem desde o impedimento de contratação, proibição de criação de novos cargos ou pagamento de horas extras para funcionários, até a interrupção de recebimento de transferências intergovernamentais.

Além dessas sanções, os chefes do Executivo que não cumprirem os limites da lei respondem por crime de responsabilidade fiscal e podem ficar inelegíveis. Medidas de correção devem ser tomadas para retornar aos limites em até dois quadrimestres após o descumprimento. Os instrumentos para isso são a demissão dos servidores comissionados e, sequencialmente, daqueles estáveis contratados a menos tempo. A redução de jornada de trabalho com proporcional redução de salários é também uma saída prevista na LRF. Certamente menos traumática que as anteriores, mas suspensa por liminar aguardando o julgamento que finalmente ocorreu. Infelizmente.

Na decisão da semana passada, o STF decidiu pela inconstitucionalidade de dois dispositivos da LRF e feriu de morte os conceitos de justiça social e de controle de gastos. Além de eliminar a possibilidade de uso da redução de jornada como forma de cortar despesas de pessoal, o STF também proibiu a redução dos orçamentos dos Poderes autônomos em caso de frustração de receita.

Na prática, as decisões da Suprema Corte conseguiram não só desconstruir – agora formalmente – a LRF, mas também o feito de aprofundar ainda mais nossa desigualdade social, consagrando a divisão do Brasil em castas. Há a casta de servidores públicos, que têm seus salários protegidos da crise econômica, enquanto a maioria agoniza. Mas há ainda, dentro dessa casta, um subconjunto mais protegido contra intempéries e mazelas econômicas e sociais do Brasil, que são os servidores dos Poderes autônomos.

As duas decisões são cruéis e injustas, em particular neste momento. Blindam-se alguns em detrimento de tantos e mantém-se Judiciário, Legislativo e Ministério Público com seus orçamentos – e consequentes penduricalhos – intactos.

Ao Executivo cabe agonizar e cortar na carne gastos que atingem orçamentos prioritários, como os de educação e de segurança pública.

Zelar pela Constituição – missão primeira e imprescindível do STF – também significa zelar pela justiça social e pela equidade. Ao desconstruir a LRF, os ministros preteriram essa importante missão em favor do corporativismo.

*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.


Benito Salomão: Lei de Responsabilidade Fiscal 20 anos, o que nós aprendemos?

“Isto poderia ser claro que nenhuma instituição iria (ou poderia, talvez) prevenir um governo ou uma legislatura executar déficits, se isto é o que eles estão realmente determinados a fazer”. (Alesina e Perotti, 1996).

No dia 04/05, comemoramos 20 anos desde a implantação da Lei Complementar 101/2000 ou Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O destino e suas ironias quis que comemorássemos seu 20º aniversário em meio a uma aguda crise fiscal, iniciada em meados desta década a partir de contabilidades criativas (Gobetti e Orair, 2017), e que será inevitavelmente ampliada durante a pandemia.

Os cálculos do Professor Josué Pellegrine estimam uma necessidade de financiamento (NFSP) de aproximadamente R$980 bilhões em 2020, sendo R$267 bi referentes ao déficit primário já previsto para este ano mais o socorro aos Estados e municípios em trâmite no Congresso, mais R$454,4 referentes a medidas de enfrentamento ao COVID-19, chegando a um resultado primário de -R$721 bi. Some-se a isto um provisionamento de despesas nominais (serviços da dívida) estimadas na casa de R$380 bi, chegaríamos aos R$980 (ou 14% do PIB). Parte disto está sendo suavizado pela venda de reservas cambiais, cujo impacto, porém, é limitado, Pellegrine trabalha com um saldo líquido de 10% do PIB de NFSP em 2020. Nada impede, que estes cálculos sejam revistos para cima se: 1° os efeitos da pandemia durarem mais tempo do que o previsto e demandarem mais socorro do governo e, 2° se o custo de rolagem da dívida pública aumentar como aliás já está sinalizado.

A pandemia fez com que os objetivos de curto e longo prazo da política fiscal no Brasil, se descolassem. A PEC 10/2020 de autoria da Câmara, deu ao governo Federal as condições legais necessárias para que o governo financiasse todas as despesas de curto prazo da Pandemia através da emissão de títulos do Tesouro, que excepcionalmente podem ser comprados pelo Banco Central (prática vedada pelo art. 34 da LRF). No longo prazo, no entanto, o objetivo inevitavelmente será conter a trajetória de expansão da dívida. O fato é que a crise fiscal era um dado da realidade antes da pandemia, fruto de erros evitáveis da política econômica e não totalmente corrigidos nos anos recentes. Mas como lidar com ela? No Brasil, diferentemente do resto do mundo, o primeiro passo para lidar com um problema fiscal é considerar que ele existe, parece uma obviedade, no entanto, existem grupos de economistas que estão convencidos que uma dívida de 90% ou 95% do PIB não é um problema. Eu, evidentemente discordo e vejo que existem três formas de lidar: 1° elevar tributos, 2° cortar gastos públicos e, 3° privatizações.

Se após a Pandemia, o estoque de dívida for, por exemplo 90% do PIB e o PIB brasileiro crescer a uma média de 1% ano, tendo um custo de rolagem da dívida constante e próximo a 4% ano, o esforço fiscal para manter a relação dívida/PIB é de um superávit primário da ordem de 3% ano (próximo de R$180 bilhões). Se levarmos em consideração que o Brasil sem Pandemia já apresentava um déficit fiscal previsto para 2020 de R$124 bi, estaremos falando de um esforço da ordem de R$304 bilhões no primeiro ano do ajuste. Um esforço desta magnitude certamente exigirá uma combinação de aumento de impostos e corte de gastos.

Pelo lado dos gastos, a reforma da previdência aprovada deve começar a ser sentida no caixa. Se estimou um potencial de economia total de R$900 bilhões em 10 anos, porém, dado que as novas regras incidem sobre trabalhadores que irão se aposentar, a maior parte desta economia ficará concentrada nos anos finais da estimativa. O gasto com pessoal do governo federal em 2019 foi da ordem de R$313 bilhões, esta rubrica estará congelada pelos próximos 2 anos, considerando que seriam gastos a simples reposição da inflação para tais salários, o efeito orçamentário disto é simbólico, próximo a R$22 bilhões em 2 anos. A margem para cortar despesas discricionárias, dentre elas, o investimento público foi praticamente exaurida nos anos anteriores e, talvez, teremos um congelamento real do salário mínimo em 2021 que pode criar uma folga de mais uns R$15 bi no orçamento.

Pelo lado dos gastos a situação está no limite, pelo lado das receitas, é preciso ser realista e dizer que novos impostos serão criados. Não que eu goste da ideia, mas a recriação da CPMF parece inevitável neste novo cenário. A estimativa do Ministério da Economia é de uma arrecadação próxima de R$150 bilhões. Recriar um imposto em períodos recessivos é sempre perigoso, por isto seriam necessárias duas ações adicionais: 1° aprovação da reforma tributária nos moldes do projeto da Câmara e, 2° sinalizar ao país que este seria um imposto temporário, com validade de no máximo 5 anos, para que a sociedade entenda este movimento como um esforço de ajuste e não como um aumento perene do tamanho do Estado.

Há ainda outras medidas como privatizações e revisões de incentivos fiscais a setores empresariais que podem ter grande impacto fiscal neste momento. Sobre isto, dissertarei em artigo futuro. Por hora, saliento que qualquer estratégia de ajuste, deve considerar a permanência das regras fiscais como a LRF e o Teto de Gastos, que têm um efeito disciplinador e distributivo sobre o Estado e um papel fundamental na credibilidade da política macroeconômica e na ancoragem de expectativas.

*Benito Salomão – Doutorando em Economia PPGE-UFU, Visiting Research VSE-UBC.

Referências
ALESINA, A. PEROTTI, R. Fiscal Discipline and the Budget Process. American Economic Review. 1996.