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Sérgio C. Buarque: A milícia do presidente

O presidente Jair Bolsonaro parece inspirar-se no seu grande desafeto ideológico, o populista autoritário presidente Nicolás Maduro (que sucedeu o falecido coronel Hugo Chavez) na missão muito bem sucedida de destruição da Venezuela. Os dois decretos assinados por Bolsonaro, facilitando a posse de armas de fogo pela população, é um instrumento a mais de formação de grupos armados, que pode levar à escalada de violência e intimidação na política brasileira.

A simplificação do acesso a volumes mais amplos de armas, fora do controle das Forças Armadas, facilita o armamentismo dos grupos criminosos que atuam e controlam amplas áreas das cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro (narcotraficantes e milicianos), e permite a formação das milícias bolsonaristas com os fanáticos seguidores do presidente. Esta é a intenção de Bolsonaro. “Eu quero todo mundo armado!”, disse ele mais de uma vez. Quando diz isso, Bolsonaro sabe quem vai comprar armas e organizar pequenos arsenais: os caçadores e atiradores (autorizados a comprar até 60 armas sem necessidade de autorização do Exército), numa fachada para todo tipo de criminoso e fanatismo político.

O governo autoritário da Venezuela, segundo declaração recente de Maduro, já conta com “3,3 milhões de milicianos organizados, treinados, armados e dispostos a defender a união da Venezuela”. O dado é exagerado, segundo especialistas, mas esta Milicia Nacional Bolivariana supera em muito os 123 mil homens do contingente das Forças Armadas. Este é o povo armado dos sonhos de Bolsonaro, milicianos bolsonaristas, para copiar, no Brasil, o modelo bolivariano de intimidação e violência política contra os adversários, que mantém o governo no poder, apesar da devastadora crise econômica, social e política.

Mas o presidente brasileiro diz que pretende armar o povo brasileiro porque não quer uma ditadura. Logo ele, que não cansa de defender e louvar a ditadura militar brasileira, e que afirmou, lá atrás (1999), que o Brasil só iria mudar “quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!”

Raul Jungmann tem razão quando adverte, em carta aberta aos ministros do STF-Supremo Tribunal Federal, que os decretos de Bolsonaro que facilitam o acesso a armas estimulam uma guerra civil no país. “Ao longo da história, diz ele, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”.

O povo armado nunca serviu à democracia. Muito pelo contrário, empurra a política para o terreno pantanoso da violência, substitui os argumentos e a negociação política pela disputa armada, quebra o monopólio da força pelo Estado, e permite a formação de milícias e exércitos partidarizados. Tem sido assim na Venezuela de Chavez e Maduro.  Pode vir a ser assim também no Brasil, se Bolsonaro continuar com seu projeto de armar o “seu” povo para o enfrentamento político que se avizinha com as eleições de 2022, lembrando que, seguindo o exemplo de Donald Trump, ele já antecipou que podem vir a ser fraudadas, se ele não for reeleito.

O mais absurdo e chocante desta iniciativa armamentista de Bolsonaro é o seu lançamento num momento em que morrem cerca de mil brasileiros por dia por Covid-19, em grande parte por conta de sua irresponsabilidade na condução (ou ausência de condução) da política sanitária do Brasil. Já são mais de 250 mil mortos, que se somam às 60 mil vítimas anuais de homicídios, quase sempre por arma de fogo. O presidente Jair Bolsonaro é o senhor das armas, e parece ter um desprezo especial pela vida dos brasileiros.

*Economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.


Marco Aurélio Nogueira: A hora mais amarga

É quando despontam as grandes lideranças, os estadistas, os talentos emergentes

Não há por que esconder que o ano de 2021 seguirá em marcha de desastre e tragédia.

Já seria complicado se tivéssemos um bom governo e um estoque generoso de vacinas. Seria um alívio, uma injeção de ânimo. Mas o Programa Nacional de Imunizações e o SUS estão soterrados por falhas e incúria, funcionam a duras penas, sem coordenação do Ministério da Saúde e tendo muitas vezes de se contrapor a ele. O “apagão” de vacinas é parte disso.

Não temos vacinas porque os responsáveis pela aquisição simplesmente viraram as costas para a pandemia, trataram-na como coisa sem importância e não se preocuparam em agir quando os imunizantes se tornaram disponíveis. Por essa desfaçatez criminosa e pelos exemplos e atitudes que adotou desde março de 2020, o governo impulsionou a disseminação do vírus e a contaminação serial. Convidou parte da população a não seguir protocolos sanitários básicos. Continua a fazer isso, em que pesem os discursos oficiais que, agora, no auge do desespero, soam em tom apaziguador. Chegamos a 250 mil mortos e tudo indica que o número continuará crescendo.

Há um cortejo de sócios dessa tragédia. Não perdemos o controle da pandemia só porque o governo não soube e não quis agir. Houve a colaboração de médicos que endossaram (ou não condenaram) a prescrição de tratamentos ineficazes. Os militares coonestaram tudo, desonrando a farda que envergam. A ignorância geral, a desvalorização da ciência e de seus instrumentos de pesquisa, a má consciência cívica de parcela da população, a falta de condições sociais para o distanciamento formaram um circuito que foi sufocando o País.

O governo federal barbarizou, mostrou-se mais interessado em “defender a economia” e fazer campanha do que em preservar vidas. Manipulou o auxílio emergencial. Hospitais lotaram e entraram em colapso sem que a irresponsabilidade retrocedesse. As deficiências do sistema de saúde ficaram expostas. O respeito à ciência foi substituído pela agitação ideológica. Não se compreendeu que o vírus veio para ficar, que teremos de reforçar nossas defesas daqui para a frente, mudar atitudes, prioridades e valores.

Hoje, na hora mais amarga, é como se o País tivesse entregado os pontos. O governo anda de costas, seguindo a mesma rota cínica, fomentando confusão, jogando uns contra os outros. Anseia-se pela volta da “vida normal” sem que se tenha monitorado o vírus. O caos se instalou, não há liderança, não há uma política. Nenhum tema é mais importante do que este: como fazer para que a desgraça não se apodere do País, o medo, a angústia e a insegurança não corroam a sensatez e a esperança?

Há indícios de que se está a esboçar um novo “pacto” entre os Poderes: em nome da representação democrática, da legalidade e do “enquadramento” da Lava Jato, Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) se disporiam a conter a Presidência e a fazer o que ela não faz, abrindo caminho para a adoção de medidas sanitárias emergenciais e que iniciem a reativação da economia, por exemplo. O presidente manteria suas bizarrices e seu teatro nas redes. Continuaria com a caneta na mão, nomeando e demitindo segundo critérios obscuros. Protegeria a família e ficaria livre para se entregar à reeleição. Permaneceria burilando sua mente paranoica, afrontando a Constituição e atiçando sua turma.

Mas nada está dado. Com a “PEC da impunidade” a Câmara quer blindar os parlamentares, o que atrita o STF. Este, por sua vez, está em pleno realinhamento de suas vertentes. E o presidente, bem, o presidente é Bolsonaro...

Os ataques do deputado Daniel Silveira ao STF repuseram em cena a sombra do autoritarismo regressista. A Câmara agiu com rapidez, receosa de sua própria desmoralização. Mostrou que o governo pode muito, mas não pode tudo. Como observou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Casa, o bolsonarismo extremo precisa ser contido porque atrapalha o funcionamento regular dos Poderes constituídos e impede que haja governo no País. Se a Câmara seguirá essa pauta é uma incógnita.

Numa democracia, não há cooperação sem conflito e competição. É de crer que os principais partidos democráticos desejem colaborar para resguardar a democracia e forçar o governo a governar. Mas não é por isso que deixarão de brigar pelas próprias causas e ideias. Ganham quando cooperam entre si e também ganham quando demarcam suas diferenças. Para eles, há mais coisas em jogo do que a formação de uma “frente” contra o governo.

Pontes que facilitem a adoção de uma “competitividade cooperativa” passam pela formulação de programas com consensos mínimos consistentes, que dialoguem com o desastre em que estamos. Passam, também, por uma “fulanização” bem compreendida: em torno de quem, afinal, o programa acordado poderá ganhar materialização?

É na hora mais amarga que despontam as grandes lideranças, os estadistas, os talentos emergentes. É nela que as zonas de conforto são substituídas pela entrega à comunidade política, com suas causas e suas exigências.

Que assim seja.

*Professor titular de teoria política da Unesp


Demétrio Magnolio: Uma questão de fé

Só a imunidade coletiva — e, eventualmente, a tão aguardada vacinação em massa — é capaz de derrotar o vírus

A estratégia do lockdown foi exibida como arma infalível contra o coronavírus. Seus arautos rimam lockdown com ciência, escrevendo esta última em maiúsculas, o que remete, paradoxalmente, ao pensamento religioso. As experiências de três países sugerem que, na corrida de fundo da pandemia, os contágios só encontram limites na imunidade coletiva.

A Argentina praticou o lockdown em toda a sua extensão. Foram cinco meses de “quarenterna”, termo jocoso usado no país para se referir à “quarentena eterna” aplicada rigidamente pelo governo de Alberto Fernández. O país vizinho realizou o sonho de não poucos epidemiologistas (e jornalistas) brasileiros, ganhando cataratas de elogios emocionados. No fim, em agosto, flexibilizou —pois nada na vida é eterno, exceto a morte. Daí, o vírus fez a festa.

Na primeira quinzena de setembro, a média diária de óbitos por coronavírus superou a barreira de 200. Como a Argentina tem um quinto da população brasileira, a taxa de letalidade equiparou-se à do nosso longo patamar máximo. O que fazer, se um novo lockdown tornou-se social e economicamente impossível?

A África do Sul também recorreu ao lockdown, mas por tempo menor, e deflagrou a flexibilização no pico dos contágios. Há uma semana, finalmente começou a registrar queda significativa de infecções. Na hora da desaceleração da epidemia, cerca de um quinto da população já havia tido contato com o vírus. Aparentemente, o país chegou ao umbral da imunidade coletiva, uma faixa ainda um tanto misteriosa que gira em torno de 20% a 40% da população total.

A fim de minimizar os impactos indiretos da epidemia na vida social, a Suécia nunca utilizou quarentenas. Foi, por isso, errônea e perversamente acusada de permitir a difusão de contágios para alcançar a imunidade coletiva. De fato, o governo sueco adotou diversas medidas voluntárias de distanciamento social, destinadas a proteger seu sistema de saúde. Formulada para o horizonte de longo prazo, a estratégia funcionou: hoje o país exibe taxas de novos casos inferiores às da Espanha, da França e do Reino Unido, que implementaram lockdowns.

As taxas acumuladas de mortalidade na Suécia situam-se em patamar semelhante ao dos outros países europeus fortemente atingidos no estágio inicial da pandemia, quando o vírus circulava oculto. A diferença é que a população sueca foi mais extensamente exposta à doença e, agora, percorre um estágio mais avançado de imunidade coletiva. Graças a isso, o espectro de novos lockdowns, que atormenta espanhóis, franceses e britânicos, não assombra os suecos.

Não faz sentido falar num “modelo sueco”. No país escandinavo, uma elevada parcela da população reside em habitações individuais ou de casal, quase inexistem espaços urbanos superpovoados, a pobreza é residual, e há forte confiança nas orientações sanitárias oficiais. África do Sul, Argentina, Brasil ou mesmo Espanha não poderiam replicar sua estratégia. Contudo, no plano epidemiológico, as experiências sueca, argentina e sul-africana evidenciam o equívoco dos arautos de “quarenternas”.

Lockdowns tornam-se inevitáveis quando uma onda devastadora de infecções e hospitalizações ameaça provocar o colapso dos sistemas de saúde. Mas, ao contrário do que assegurava o fundamentalismo epidemiológico, não servem para estancar a epidemia. Só a imunidade coletiva — via extensão de contágios e, eventualmente, a tão aguardada vacinação em massa — é capaz de derrotar o vírus.

No caso dos lockdowns, a fé tomou o lugar da ciência, fantasiando-se com seus trajes. Atrás do fenômeno, espreita a ideologia. Num ambiente de forte polarização política, a bandeira das “quarenternas” foi a resposta dos bem pensantes ao negacionismo místico da extrema-direita, que enxerga no “vírus chinês” uma conspiração de “globalistas” e comunistas.

Há, porém, uma diferença decisiva entre uns e outros: os bem pensantes juram imorredoura lealdade à ciência. Se esse juramento tem algum valor, já passa da hora de revisarem sua fé irracional em lockdowns. A ciência, afinal, curva-se sempre às lições da experiência.


Dora Kaufman: O coronavírus tira-nos das ruas, oferecendo-nos a vida virtual

“Eu tenho coronavírus, porque, embora pareça que a doença ainda não entrou no meu corpo, os entes queridos a têm; porque o coronavírus está passando por cidades pelas quais passei nas últimas semanas; porque o coronavírus mudou com um trinado de dedos como se fosse um milagre, uma catástrofe, uma tragédia sem remédio, absolutamente tudo”, assim María Galindo (p.119), ativista boliviana, inicia seu artigo publicado na coletânea “Sopa Wuhan” (2020). E prossegue ressaltando a impossibilidade no momento de agir ou pensar sem o coronavírus no meio, ao eliminar o espaço social mais vital e democrático que são as ruas e nos oferecer o domínio da vida virtual. Plenamente de acordo, não tenho como evitar o tema do COVID-19.

O vírus pegou o mundo num momento de crise – política, econômica, moral, ética – em que predomina a insegurança e a incerteza sobre o futuro; talvez isso justifique o clima (ou desejo?) de que “o mundo não será o mesmo pós COVID-19”. Os textos da coletânea “Sopa Wuham” ilustram esse sentimento: “Mas talvez outro vírus ideológico, e muito mais benéfico, se espalhe e esperançosamente nos infecte: o vírus do pensamento de uma sociedade alternativa, uma sociedade além do Estado-nação, uma sociedade que se atualiza em formas de solidariedade e cooperação global”, vaticina Slavoj Žižek (p.22); Giorgio Agamben (p.137), que cometeu um equívoco em seu artigo de fevereiro, em março,  torna-se esperançoso de que “Por esse motivo – uma vez declarada a emergência, a praga, se assim for -, não acho que, pelo menos para os que mantiveram o mínimo de clareza, será possível viver como antes”.

Em outro artigo, refletindo sobre o pânico provocado pelo COVID-19, Zizek (2020b) aventa a possibilidade de ocorrer um duro golpe no capitalismo e o surgimento de um comunismo reinventado, “um golpe do Kill Bill no sistema capitalista”; aposta contestada por Byung-Chul Han (2020): “Žižek alega que o vírus deu um golpe fatal no capitalismo e evoca um comunismo sombrio. Ele até acredita que o vírus poderia derrubar o regime chinês. Žižek está errado”.

O escritor israelense Yuval Harari (2020) adverte que “as decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos. Moldarão não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura. Devemos agir de forma rápida e decisiva. Também devemos levar em consideração as consequências a longo prazo de nossas ações. Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar”.

Numa postura mais pragmática, Bruno Latour (2020), aproveitando a suspensão das atividades ordinárias, propõe que façamos um “inventário das atividades que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas”, e endereça seis perguntas objetivas como contribuição à essa reflexão.

Parece-me precipitado apostar em mudanças radicais, mas constato que sim, há uma tomada de consciência sobre a premência da sociedade em enfrentar desafios cruciais e, a partir daí, emergem alternativas, algumas conflitantes. Sem maiores pretensões, segue um apanhado de parte do que tenho lido e debatido.

A desigualdade se tornou assustadoramente visível, dentro e entre países, impondo um novo Contrato Social entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (maior equilíbrio entre as competências). A ideia de Estado de Bem-Estar Social deve ganhar relevância (contrapondo-se às “soluções de mercado”); é da responsabilidade do Estado áreas como saúde e segurança (violência física e ataques externos) e calamidades de grandes proporções numa espécie de “mecanismo de seguro”.

Cabe aos governos a responsabilidade por políticas de proteção social aos vulneráveis, por meio de redes de proteção estruturais, e não conjunturais (barreira: grau de endividamento dos países pós-crise financeira de 2008; políticas fiscais menos restritivas com o consequente aumento da dívida pública gerará déficit que de alguma forma terá que ser financiado). Não está claro se esse novo contrato social irá enfraquecer ou fortalecer os governos iliberais (democracia parcial), autoritários e antidemocráticos (será que o poder de governar por decreto conquistado pelos governos da Hungria e Israel será temporário?).

A dimensão da crise alerta para a tradicional subestimação por parte da elite de que o bem-estar individual, a partir de um determinado ponto, passa a depender do bem-estar geral (não adianta se isolar que o resto do mundo “acaba te pegando”). Fração da elite brasileira, aparentemente, tem se mobilizado de forma inédita no sentido de contribuir socialmente (ainda muito centrado em declarações, menos em ações efetivas).

As gigantes de tecnologia do ocidente (plataformas tecnológicas), com conhecimento e imensa base de dados, até agora desempenharam um papel relativamente tímido; diferente da China onde, por exemplo, a varejista de comércio eletrônico Alibaba é parceira estratégica no esforço do governo em enfrentar a epidemia. O aplicativo “Código de Saúde Alipay”, por exemplo, tem sido fundamental no afrouxamento do isolamento social; obrigatório nos smartphone dos chineses, identifica quem deve ou não ser colocado em quarentena ou liberado para o transporte público (após o usuário preencher um formulário na Alipay com detalhes pessoais, o software gera um código QR em uma das três cores: verde,  liberado;  amarelo, em casa por sete dias; e vermelho, quarentena de duas semanas).

Convivem discursos e iniciativas de cooperação entre países com discursos e iniciativas nacionalistas; convive a percepção de que a desigualdade entre países é um problema global (construir muros isolando os países não é uma opção) com o foco no local como dinâmica defensiva (oposto a cooperação internacional). Questões a serem observadas: teremos um retrocesso da globalização a favor do local, inclusive na produção industrial? a percepção de vulnerabilidade (dependência da cadeia global de suprimentos) terá efeito de internalizar a produção? os países vão “fechar” suas fronteiras ou vão fortalecer a globalização?

A China produz cerca de 90% dos produtos e equipamentos médicos necessários para enfrentar a epidemia, por conta disso já firmou acordos de fornecimento com 30 países, com destaque para os EUA. Existe uma campanha atual na China a favor de ajudar o resto do mundo, visto como uma oportunidade de melhorar sua imagem e ocupar um espaço maior na geopolítica mundial (sem desprezar o interesse puramente econômico: o país depende da demanda externa para manter suas taxas históricas de crescimento). A China irá liderar a recuperação econômica pós-COVID-19, aproveitando-se da relativa “fragilização” dos EUA?

Observa-se uma falta de protagonismo dos organismos multilaterais, exceto o OMS (Organização Mundial da Saúde). Instituições como FMI, Banco Mundial, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), fóruns regionais, poderiam/deveriam estar liderando o esforço de cooperação entre os países. Aparentemente, esses organismos não estão preparados para enfrentar uma crise global dessa dimensão, mantendo o formato tradicional de atuação como a do FMI, por exemplo, empenhado em mobilizar US$ 1 trilhão para conceder empréstimos aos países necessitados.

Valorização da ciência e a consequente premência de alocar recursos significativos na geração de conhecimento, reconhecendo a interdependência entre desenvolvimento científico e apoio governamental. Fortalecimento da percepção, quase generalizada, da estreita associação entre credibilidade e competência.

Impactos no trabalho. Em geral, em situação de crise observa-se uma aceleração de tendências tecnológicas, a COVID-19 tem o potencial de acelerar o processo de automação nas empresas (redução de custo, aumento de eficiência), agravando a já em curso substituição homem-máquina com aumento significativo do desemprego, o que impacta os menos favorecidos e, indiretamente, a recuperação econômica (redução de consumo, que alimenta o desemprego num ciclo vicioso).

Na educação. Há quase consenso de que a educação é a única atividade humana que não sofreu alternações significativas nas últimas décadas. O lockdown impôs uma experiência forçada com as novas tecnologias digitais de comunicação; os educadores (instituições e professores) e os alunos, foram obrigada a aprender e a incorporar essas tecnologias em tempo recorde. Provavelmente, impactarão positivamente as metodologias de ensino.

A mídia, particularmente os grandes veículos de comunicação, têm desempenhado papel central na crise, com amplo reconhecimento como fonte confiável de informação. O comportamento, em geral, tem sido se atualizar pelos jornais e menos pelas redes sociais (aparentemente, aumentou a re-publicação de matérias dos grandes jornais pelos usuários das plataformas sociais).

A recuperação econômica deverá ser mais lenta, em parte, pelo efeito devastador nas pequenas e mico empresas, particularmente no Brasil onde elas representam cerca de 30% do PIB e 52% dos empregos com carteira assinada (Fonte: Sebrae). Em geral, as grandes empresas têm “colchão de liquidez”, ou seja, caixa para atravessar a crise (além de acesso mais fácil e mais barato ao mercado de capitais e bancário). O mercado aposta numa “limpeza” Darwiniana, em que muitas empresas vão desaparecer e as empresas de setores protegidos vão sair mais fortalecidas. Muda a percepção de risco, com um novo olhar sobre a resiliência de negócios e de empresas.

Dilemas éticos

Tensão entre privacidade e liberdade individual versus uso de dados pessoais no combate à epidemia. Os instrumentos de vigilância são úteis no controle da epidemia; vários países (não apenas a China) estão usando dados para rastrear seus cidadãos. A Assembléia Global de Privacidade – (GPA-Global Privacy Assembly) identificou mudanças relacionadas à privacidade de dados em pelo menos 27 países, o risco é que as medidas de emergência se tornem permanentes.  Como observou Michel Foucault (2001), analisando os efeitos de epidemias no século XVIII, “a peste traz consigo também o sonho político de um poder exaustivo, de um poder sem obstáculos, de um poder inteiramente transparente a seu objeto, de um poder que se exerce plenamente” (p.59). Estamos dispostos a abrir mão desses pilares da nossa cultura aderindo à um novo pacto social? Qual o ponto de equilíbrio (break-event) entre sermos “livres” e sermos cuidados?

Valorização da solidariedade diante da constatação da fragilidade humana versus auto proteção (países, cidades, comunidades, famílias). O sentimento de solidariedade é real ou aparente como parece acreditar Byung-Chul Han (“o vírus nos isola e nos individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte”)? Qual será o vetor resultante entre a tomada de consciência de que somos interdependentes e a exacerbação do sentimento nacionalista (vide discurso do Presidente Emmanuel Macron, 04/04/2020).

As grandes crises moldam a história. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, estimulou a criação de serviços nacionais de saúde mundo afora, inclusive no Brasil: entre 1919-20, o Congresso Nacional aprovou a reforma na estrutura federal de saúde, posteriormente sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa, considerada a origem do SUS (1988). O Estado do Bem-Estar Social decorre, em parte, da Grande Depressão de 1929 e da Segunda Guerra Mundial. A crise financeira de 2008 limitou a capacidade dos governos de proverem serviços públicos pressionados pelo endividamento para “salvar” o sistema financeiro, o que deteriorou os sistemas de saúde. A epidemia do COVID-19 ainda está em seus primórdios, o tempo do isolamento social e da suspensão do “estado de normalidade” determinará o grau e a extensão dos impactos na economia, na sociedade e na vida dos indivíduos. Transitaremos pelos espaços públicos com a mesma desenvoltura anterior a epidemia, ou como especula Žižek (2020a) “não sermos tão felizes nos parques, não entraremos com confiança em banheiros públicos”?

“Não projeto o futuro. Não há futuro imaginável. E há um certo mistério nessa vida sem planos, nesses dias que não são mais do que dias. […] Continuo na esperança de que esse horror una o planeta, fortaleça o valor da ciência, da imprensa, da razão, da boa política e da compaixão, enquanto aguardo um milagre que combata tanto a peste, quanto a funesta cultura do ódio” (Fernanda Torres, Folha de SP, 05/04).

Referências

Sopa de Wuhan: Pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio). Disponível em:  http://iips.usac.edu.gt/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Foucault, Michel. Aula de 15 de janeiro de 1975. In: FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.39 – 68.

Han, byung-chul. La emergencia viral el mundo de mañana. El País, 22/03/2020. Disponível em: https://elpais.com/ideas/2020-03-21/la-emergencia-viral-y-el-mundo-de-manana-byung-chul-han-el-filosofo-surcoreano-que-piensa-desde-berlin.html. Acesso em: 05/04/2020.

Harari, Yuval Noah. The world after coronavirus. Jornal Financial Times, março, 2020. Desponível em: https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75. Acesso em: 05/04/2020.

Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Kroeber, Arthur. A China e o Coronavírus, Webinar, Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: https://www.facebook.com/fundacaoFHC/videos/501289844086377/. Acesso em: 05/04/2020.

Raghuram Rajan, ex-presidente do BC da Índia, diz que a hora é de salvar vidas, entrevista de Robinson Borges, jornal Valor  Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/03/raghuram-rajan-ex-presidente-do-bc-da-india-diz-que-a-hora-e-de-salvar-vidas.ghtml. Acesso em: 05/04/2020.

República do Amanhã, associação sem fins lucrativos voltada para promover discussões sobre os grandes desafios da sociedade. Coordenação: Otávio de Barros (http://republicadoamanha.org). Debate via zoom com 29 participantes de distintas área de conhecimento e experiências profissionais, 04/04/2020.

Torres, Fernanda. Sigo na esperança de que esse horror nos una, mas aguardo um milagre. Jornal Folha de São Paulo, 05/04/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandatorres/2020/04/sigo-na-esperanca-de-que-esse-horror-nos-una-mas-aguardo-um-milagre.shtml. Acesso em: 05/04/2020.

Žižek, Slavoj. Sobre el coronavirus y el capitalismo // Debate Žižek – Byung-Chul Han. 2020a. Disponível em: http://lobosuelto.com/sobre-el-coronavirus-y-el-capitalismo-debate-zizek-byung-chul-han/. Acesso em: 05/04/2020.

_______________. PANDEMIC! COVID-19 SHAKES THE WORLD. OR Books, 2020b. Disponível em: https://www.orbooks.com/faq/. Acesso em: 05/04/2020.