Dora Kaufman: O coronavírus tira-nos das ruas, oferecendo-nos a vida virtual

“Eu tenho coronavírus, porque, embora pareça que a doença ainda não entrou no meu corpo, os entes queridos a têm; porque o coronavírus está passando por cidades pelas quais passei nas últimas semanas; porque o coronavírus mudou com um trinado de dedos como se fosse um milagre, uma catástrofe, uma tragédia sem remédio, absolutamente tudo”, assim María Galindo (p.119), ativista boliviana, inicia seu artigo publicado na coletânea “Sopa Wuhan” (2020).
Foto: Cesar Lopes/PMPA
Foto: Cesar Lopes/PMPA

“Eu tenho coronavírus, porque, embora pareça que a doença ainda não entrou no meu corpo, os entes queridos a têm; porque o coronavírus está passando por cidades pelas quais passei nas últimas semanas; porque o coronavírus mudou com um trinado de dedos como se fosse um milagre, uma catástrofe, uma tragédia sem remédio, absolutamente tudo”, assim María Galindo (p.119), ativista boliviana, inicia seu artigo publicado na coletânea “Sopa Wuhan” (2020). E prossegue ressaltando a impossibilidade no momento de agir ou pensar sem o coronavírus no meio, ao eliminar o espaço social mais vital e democrático que são as ruas e nos oferecer o domínio da vida virtual. Plenamente de acordo, não tenho como evitar o tema do COVID-19.

O vírus pegou o mundo num momento de crise – política, econômica, moral, ética – em que predomina a insegurança e a incerteza sobre o futuro; talvez isso justifique o clima (ou desejo?) de que “o mundo não será o mesmo pós COVID-19”. Os textos da coletânea “Sopa Wuham” ilustram esse sentimento: “Mas talvez outro vírus ideológico, e muito mais benéfico, se espalhe e esperançosamente nos infecte: o vírus do pensamento de uma sociedade alternativa, uma sociedade além do Estado-nação, uma sociedade que se atualiza em formas de solidariedade e cooperação global”, vaticina Slavoj Žižek (p.22); Giorgio Agamben (p.137), que cometeu um equívoco em seu artigo de fevereiro, em março,  torna-se esperançoso de que “Por esse motivo – uma vez declarada a emergência, a praga, se assim for -, não acho que, pelo menos para os que mantiveram o mínimo de clareza, será possível viver como antes”.

Em outro artigo, refletindo sobre o pânico provocado pelo COVID-19, Zizek (2020b) aventa a possibilidade de ocorrer um duro golpe no capitalismo e o surgimento de um comunismo reinventado, “um golpe do Kill Bill no sistema capitalista”; aposta contestada por Byung-Chul Han (2020): “Žižek alega que o vírus deu um golpe fatal no capitalismo e evoca um comunismo sombrio. Ele até acredita que o vírus poderia derrubar o regime chinês. Žižek está errado”.

O escritor israelense Yuval Harari (2020) adverte que “as decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos. Moldarão não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura. Devemos agir de forma rápida e decisiva. Também devemos levar em consideração as consequências a longo prazo de nossas ações. Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar”.

Numa postura mais pragmática, Bruno Latour (2020), aproveitando a suspensão das atividades ordinárias, propõe que façamos um “inventário das atividades que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas”, e endereça seis perguntas objetivas como contribuição à essa reflexão.

Parece-me precipitado apostar em mudanças radicais, mas constato que sim, há uma tomada de consciência sobre a premência da sociedade em enfrentar desafios cruciais e, a partir daí, emergem alternativas, algumas conflitantes. Sem maiores pretensões, segue um apanhado de parte do que tenho lido e debatido.

A desigualdade se tornou assustadoramente visível, dentro e entre países, impondo um novo Contrato Social entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (maior equilíbrio entre as competências). A ideia de Estado de Bem-Estar Social deve ganhar relevância (contrapondo-se às “soluções de mercado”); é da responsabilidade do Estado áreas como saúde e segurança (violência física e ataques externos) e calamidades de grandes proporções numa espécie de “mecanismo de seguro”.

Cabe aos governos a responsabilidade por políticas de proteção social aos vulneráveis, por meio de redes de proteção estruturais, e não conjunturais (barreira: grau de endividamento dos países pós-crise financeira de 2008; políticas fiscais menos restritivas com o consequente aumento da dívida pública gerará déficit que de alguma forma terá que ser financiado). Não está claro se esse novo contrato social irá enfraquecer ou fortalecer os governos iliberais (democracia parcial), autoritários e antidemocráticos (será que o poder de governar por decreto conquistado pelos governos da Hungria e Israel será temporário?).

A dimensão da crise alerta para a tradicional subestimação por parte da elite de que o bem-estar individual, a partir de um determinado ponto, passa a depender do bem-estar geral (não adianta se isolar que o resto do mundo “acaba te pegando”). Fração da elite brasileira, aparentemente, tem se mobilizado de forma inédita no sentido de contribuir socialmente (ainda muito centrado em declarações, menos em ações efetivas).

As gigantes de tecnologia do ocidente (plataformas tecnológicas), com conhecimento e imensa base de dados, até agora desempenharam um papel relativamente tímido; diferente da China onde, por exemplo, a varejista de comércio eletrônico Alibaba é parceira estratégica no esforço do governo em enfrentar a epidemia. O aplicativo “Código de Saúde Alipay”, por exemplo, tem sido fundamental no afrouxamento do isolamento social; obrigatório nos smartphone dos chineses, identifica quem deve ou não ser colocado em quarentena ou liberado para o transporte público (após o usuário preencher um formulário na Alipay com detalhes pessoais, o software gera um código QR em uma das três cores: verde,  liberado;  amarelo, em casa por sete dias; e vermelho, quarentena de duas semanas).

Convivem discursos e iniciativas de cooperação entre países com discursos e iniciativas nacionalistas; convive a percepção de que a desigualdade entre países é um problema global (construir muros isolando os países não é uma opção) com o foco no local como dinâmica defensiva (oposto a cooperação internacional). Questões a serem observadas: teremos um retrocesso da globalização a favor do local, inclusive na produção industrial? a percepção de vulnerabilidade (dependência da cadeia global de suprimentos) terá efeito de internalizar a produção? os países vão “fechar” suas fronteiras ou vão fortalecer a globalização?

A China produz cerca de 90% dos produtos e equipamentos médicos necessários para enfrentar a epidemia, por conta disso já firmou acordos de fornecimento com 30 países, com destaque para os EUA. Existe uma campanha atual na China a favor de ajudar o resto do mundo, visto como uma oportunidade de melhorar sua imagem e ocupar um espaço maior na geopolítica mundial (sem desprezar o interesse puramente econômico: o país depende da demanda externa para manter suas taxas históricas de crescimento). A China irá liderar a recuperação econômica pós-COVID-19, aproveitando-se da relativa “fragilização” dos EUA?

Observa-se uma falta de protagonismo dos organismos multilaterais, exceto o OMS (Organização Mundial da Saúde). Instituições como FMI, Banco Mundial, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), fóruns regionais, poderiam/deveriam estar liderando o esforço de cooperação entre os países. Aparentemente, esses organismos não estão preparados para enfrentar uma crise global dessa dimensão, mantendo o formato tradicional de atuação como a do FMI, por exemplo, empenhado em mobilizar US$ 1 trilhão para conceder empréstimos aos países necessitados.

Valorização da ciência e a consequente premência de alocar recursos significativos na geração de conhecimento, reconhecendo a interdependência entre desenvolvimento científico e apoio governamental. Fortalecimento da percepção, quase generalizada, da estreita associação entre credibilidade e competência.

Impactos no trabalho. Em geral, em situação de crise observa-se uma aceleração de tendências tecnológicas, a COVID-19 tem o potencial de acelerar o processo de automação nas empresas (redução de custo, aumento de eficiência), agravando a já em curso substituição homem-máquina com aumento significativo do desemprego, o que impacta os menos favorecidos e, indiretamente, a recuperação econômica (redução de consumo, que alimenta o desemprego num ciclo vicioso).

Na educação. Há quase consenso de que a educação é a única atividade humana que não sofreu alternações significativas nas últimas décadas. O lockdown impôs uma experiência forçada com as novas tecnologias digitais de comunicação; os educadores (instituições e professores) e os alunos, foram obrigada a aprender e a incorporar essas tecnologias em tempo recorde. Provavelmente, impactarão positivamente as metodologias de ensino.

A mídia, particularmente os grandes veículos de comunicação, têm desempenhado papel central na crise, com amplo reconhecimento como fonte confiável de informação. O comportamento, em geral, tem sido se atualizar pelos jornais e menos pelas redes sociais (aparentemente, aumentou a re-publicação de matérias dos grandes jornais pelos usuários das plataformas sociais).

A recuperação econômica deverá ser mais lenta, em parte, pelo efeito devastador nas pequenas e mico empresas, particularmente no Brasil onde elas representam cerca de 30% do PIB e 52% dos empregos com carteira assinada (Fonte: Sebrae). Em geral, as grandes empresas têm “colchão de liquidez”, ou seja, caixa para atravessar a crise (além de acesso mais fácil e mais barato ao mercado de capitais e bancário). O mercado aposta numa “limpeza” Darwiniana, em que muitas empresas vão desaparecer e as empresas de setores protegidos vão sair mais fortalecidas. Muda a percepção de risco, com um novo olhar sobre a resiliência de negócios e de empresas.

Dilemas éticos

Tensão entre privacidade e liberdade individual versus uso de dados pessoais no combate à epidemia. Os instrumentos de vigilância são úteis no controle da epidemia; vários países (não apenas a China) estão usando dados para rastrear seus cidadãos. A Assembléia Global de Privacidade – (GPA-Global Privacy Assembly) identificou mudanças relacionadas à privacidade de dados em pelo menos 27 países, o risco é que as medidas de emergência se tornem permanentes.  Como observou Michel Foucault (2001), analisando os efeitos de epidemias no século XVIII, “a peste traz consigo também o sonho político de um poder exaustivo, de um poder sem obstáculos, de um poder inteiramente transparente a seu objeto, de um poder que se exerce plenamente” (p.59). Estamos dispostos a abrir mão desses pilares da nossa cultura aderindo à um novo pacto social? Qual o ponto de equilíbrio (break-event) entre sermos “livres” e sermos cuidados?

Valorização da solidariedade diante da constatação da fragilidade humana versus auto proteção (países, cidades, comunidades, famílias). O sentimento de solidariedade é real ou aparente como parece acreditar Byung-Chul Han (“o vírus nos isola e nos individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte”)? Qual será o vetor resultante entre a tomada de consciência de que somos interdependentes e a exacerbação do sentimento nacionalista (vide discurso do Presidente Emmanuel Macron, 04/04/2020).

As grandes crises moldam a história. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, estimulou a criação de serviços nacionais de saúde mundo afora, inclusive no Brasil: entre 1919-20, o Congresso Nacional aprovou a reforma na estrutura federal de saúde, posteriormente sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa, considerada a origem do SUS (1988). O Estado do Bem-Estar Social decorre, em parte, da Grande Depressão de 1929 e da Segunda Guerra Mundial. A crise financeira de 2008 limitou a capacidade dos governos de proverem serviços públicos pressionados pelo endividamento para “salvar” o sistema financeiro, o que deteriorou os sistemas de saúde. A epidemia do COVID-19 ainda está em seus primórdios, o tempo do isolamento social e da suspensão do “estado de normalidade” determinará o grau e a extensão dos impactos na economia, na sociedade e na vida dos indivíduos. Transitaremos pelos espaços públicos com a mesma desenvoltura anterior a epidemia, ou como especula Žižek (2020a) “não sermos tão felizes nos parques, não entraremos com confiança em banheiros públicos”?

“Não projeto o futuro. Não há futuro imaginável. E há um certo mistério nessa vida sem planos, nesses dias que não são mais do que dias. […] Continuo na esperança de que esse horror una o planeta, fortaleça o valor da ciência, da imprensa, da razão, da boa política e da compaixão, enquanto aguardo um milagre que combata tanto a peste, quanto a funesta cultura do ódio” (Fernanda Torres, Folha de SP, 05/04).

Referências

Sopa de Wuhan: Pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio). Disponível em:  http://iips.usac.edu.gt/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Foucault, Michel. Aula de 15 de janeiro de 1975. In: FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.39 – 68.

Han, byung-chul. La emergencia viral el mundo de mañana. El País, 22/03/2020. Disponível em: https://elpais.com/ideas/2020-03-21/la-emergencia-viral-y-el-mundo-de-manana-byung-chul-han-el-filosofo-surcoreano-que-piensa-desde-berlin.html. Acesso em: 05/04/2020.

Harari, Yuval Noah. The world after coronavirus. Jornal Financial Times, março, 2020. Desponível em: https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75. Acesso em: 05/04/2020.

Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Kroeber, Arthur. A China e o Coronavírus, Webinar, Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: https://www.facebook.com/fundacaoFHC/videos/501289844086377/. Acesso em: 05/04/2020.

Raghuram Rajan, ex-presidente do BC da Índia, diz que a hora é de salvar vidas, entrevista de Robinson Borges, jornal Valor  Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/03/raghuram-rajan-ex-presidente-do-bc-da-india-diz-que-a-hora-e-de-salvar-vidas.ghtml. Acesso em: 05/04/2020.

República do Amanhã, associação sem fins lucrativos voltada para promover discussões sobre os grandes desafios da sociedade. Coordenação: Otávio de Barros (http://republicadoamanha.org). Debate via zoom com 29 participantes de distintas área de conhecimento e experiências profissionais, 04/04/2020.

Torres, Fernanda. Sigo na esperança de que esse horror nos una, mas aguardo um milagre. Jornal Folha de São Paulo, 05/04/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandatorres/2020/04/sigo-na-esperanca-de-que-esse-horror-nos-una-mas-aguardo-um-milagre.shtml. Acesso em: 05/04/2020.

Žižek, Slavoj. Sobre el coronavirus y el capitalismo // Debate Žižek – Byung-Chul Han. 2020a. Disponível em: http://lobosuelto.com/sobre-el-coronavirus-y-el-capitalismo-debate-zizek-byung-chul-han/. Acesso em: 05/04/2020.

_______________. PANDEMIC! COVID-19 SHAKES THE WORLD. OR Books, 2020b. Disponível em: https://www.orbooks.com/faq/. Acesso em: 05/04/2020.

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