lockdown

Maria Cristina Fernandes: Calamidade Pública S.A.

Bolsonaro faz escola com propostas que se desviam da covid

A publicidade da nova transação imobiliária do senador Flávio Bolsonaro não estava no roteiro com o qual o presidente Jair Bolsonaro se preparava para enfrentar o momento mais dramático da pandemia.

A ideia era não mexer em time que está ganhando, o do presidente, claro, capaz de manter inertes as instituições contra seu desgoverno na pandemia. E repetir a estratégia do ano passado, no recrudescimento da covid-19, quando jogou o verbo e a Polícia Federal pra cima dos governadores.

Desta vez, parecia óbvio que a nova travessura do primogênito dificultaria sua tentativa de demonstrar que o desespero dos governadores vem do desvio de recursos. A nova morada do senador, no entanto, não foi capaz de baixar o tom do presidente. É assim que ele desvia do assunto. Puxando uma briga ruidosa com os governadores.

Encontrou em João Doria o parceiro ideal para a encenação. Sem espaço no seu próprio partido, o governador de São Paulo investe na polarização com o presidente, mimetizando-o. Endurece o isolamento para cativar os insatisfeitos com o bolsonarismo, mas excetua os cultos religiosos para cativar a mesma plateia do presidente.

A entrada dos presidentes da Câmara e do Senado na mediação com os governadores é útil para Bolsonaro porque canaliza parte das insatisfações. Na carona da mediação, amaciou-se a resistência à fila dupla na vacinação. No mesmo projeto do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) com o qual foi reapresentada a prerrogativa de Estados e municípios de comprar vacina, abriga-se a aquisição pelo setor privado depois de esgotada a vacinação de grupos prioritários.

A mediação com os governadores também amplia os aliados com os quais o presidente da Câmara espera contar para forçar o teto de gastos para além do auxílio emergencial.

Bolsonaro faz escola. Se baixa decreto para ampliar a posse de armas, Lira cria grupo de trabalho para mudar a legislação eleitoral. Ambos têm em comum a capacidade de se valer de um país em choque pelas quase 2 mil mortes diárias para propor temas que nada têm a ver com a urgência do país.

As iniciativas de Lira obedecem a três grandes eixos: aumentar o controle parlamentar sobre o Orçamento, reduzir a competitividade eleitoral e mitigar o controle sobre a atividade parlamentar.

A investida tem método. A começar pelo próprio projeto pessoal de Lira. O deputado renovou seu mandato graças a liminar que o blindou da Lei da Ficha Limpa. Reeleito, trabalhou na adesão do seu bloco a Bolsonaro com o mesmo afinco dedicado ao desmonte do entulho lajavatista.

Avançou uma casa ao conseguir que Augusto Aras desfizesse a denúncia que o próprio procurador-geral da República havia feito. E andou mais duas com o arquivamento de uma das denúncias no STF. Mas a luta continua.

Ainda lhe resta mudar a Lei da Ficha Limpa e a da Improbidade. Para isso, ganham celeridade no Congresso tanto o grupo de trabalho que revisará a legislação eleitoral, comandado pelo PP, quanto o projeto de lei que suaviza a lei da improbidade administrativa, relatado pelo PT.

Uma das opções do deputado em 2022 é a disputa pelo governo de Alagoas. Para isso, precisa limpar seu nome. Se largar o mandato para disputar uma eleição majoritária, o foro dos crimes pelos quais hoje responde como deputado desce para a primeira instância em Brasília, onde subsistem juízes como Vallisney Oliveira.

A sorte de Lira é que ele não está só. Uma das missões do PL, por exemplo, aliado de primeira hora de Lira e partido do indefectível ex-deputado Valdemar Costa Neto, é recuperar a elegibilidade do ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, condenado em duas instâncias por esquema de distribuição de propinas, e marido da nova presidente da Comissão Mista de Orçamento, Flávia Arruda (PL-DF).

O fracasso na PEC da Impunidade não desanimou Lira. Tem à mão uma pauta ecumênica, capaz de ampliar seu apoio na Casa. Basta ver o que está em curso com as tentativas de jogar o maior número de despesas possíveis para fora do teto de gastos. Ao tirá-las do teto, sobraria espaço para aumentar os valores das emendas com as quais os parlamentares esperam se reconduzir em 2022.

Se não for bem sucedido no aumento das dotações para emendas, Lira tem uma carta na manga para aumentar a execução daquelas que o Congresso conseguir aprovar. O presidente da Câmara investe no fim da intermediação das emendas pela Caixa Econômica Federal. É uma das demandas mais ecumênicas da Casa.

Até 2019, todas as emendas tinham a intermediação da CEF. No fim daquele ano, foi aprovada uma emenda constitucional que nasceu pelas mãos da então senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) em 2015 e foi relatada pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG) na Câmara.

Por esta mudança constitucional, o parlamentar pode optar por mandar os recursos de suas emendas individuais pela Caixa ou diretamente para os municípios. Mas os parlamentares querem mais. Pretendem estender a possibilidade de mandar diretamente para a prefeitura também para as emendas de bancada e de comissão.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 foi aprovada com este dispositivo. O presidente o vetou e agora o Congresso se prepara para derrubá-lo. Os parlamentares alegam que a burocracia da CEF é gigantesca e retarda a liberação.

Como se trata do primeiro Orçamento pós-eleições municipais de 2020, os parlamentares estreitaram laços com prefeitos que ajudaram a eleger e que, agora, se arregimentarão para a renovação dos mandatos dos deputados e senadores em 2022. Por isso, quanto menos travas, melhor.

Nos cálculos da própria Associação dos Engenheiros e Arquitetos da CEF, leva seis anos entre a aprovação de uma emenda e total liberação pelo banco, o que ultrapassa o mandato parlamentar.

Quando o dinheiro vai diretamente para o município fica mais difícil mapear o destino da verba que hoje deixa rastros nas plataformas do Ministério da Economia ou do Senado. No lugar da tríade de instituições que fiscaliza a aplicação dos recursos (Tribunal de Contas da União, Ministério Público Federal e Controladoria-Geral da União) entrariam combalidos tribunais estaduais de contas.

É esse o pulo do gato da execução das emendas ao Orçamento em 2021, ano que será atravessado de cabo a rabo pela pandemia. É a sociedade anônima da calamidade pública que dá as cartas.


Bruno Boghossian: Versão original de Bolsonaro ficou mais perigosa na pandemia

Presidente continuará a fazer estragos enquanto estiver ali

No dia em que o Brasil registrou 1.840 mortes em 24 horas, o presidente da República começou a manhã com seu esporte favorito: dar de ombros para a pandemia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode viver em pânico”, disse a apoiadores, no Palácio da Alvorada.

O discurso é o mesmo do início da crise do coronavírus. Em março do ano passado, em seu primeiro pronunciamento na TV para falar da doença, Jair Bolsonaro disse que não havia “motivo para pânico”. Nas semanas seguintes, vieram a “gripezinha”, o “e daí?” e o “não sou coveiro”.

O Brasil descobriu cedo o tamanho do estrago que um presidente poderia fazer numa pandemia mortal. Desde o início, Bolsonaro incentivou aglomerações, fez campanhas de desobediência a medidas de proteção, divulgou informações falsas sobre a Covid-19, distribuiu remédios ineficazes contra a doença e atrapalhou a aquisição de vacinas.

Nada mudou no curso da tragédia. O vírus se espalhou, e o país conheceu uma nova onda de colapso dos sistemas de saúde, mas o presidente continuou o mesmo. A diferença é que a atitude desumana e a incompetência absoluta dos integrantes do governo tornaram o avanço da doença cada vez mais dramático.

O atraso na imunização e a constante sabotagem às medidas de restrição implantadas nos estados sufocaram as redes hospitalares e deixaram o ambiente livre para o surgimento de variantes que podem ser ainda mais perigosas do que a versão original do vírus.

Também ficou mais perigosa a versão primitiva de Bolsonaro, que insiste em propagar mentiras para desencorajar o uso de máscaras e investe contra governadores que tentam amenizar o desastre.

Ninguém deveria esperar outro comportamento do presidente. Por 12 meses, autoridades aceitaram suas delinquências e se limitaram a corrigir seus erros ou obrigar o governo a cumprir suas funções. Foi pouco. Enquanto estiver ali, Bolsonaro continuará a fazer estragos.


Mariliz Pereira Jorge: Impeachment ou morte

Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado.

Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado. Na terça (2), ofereceu um almoço no Palácio do Planalto a autoridades. Talvez para celebrar o recorde de óbitos em um dia pela Covid-19. "Estava alegre e descontraído", contou o deputado Fabio Ramalho (MDB-MG). Tirou foto do convescote. Só faltou soltar um "foda-se a vida", como já fez uma blogueira, e postar nas redes sociais.

O prato principal foi leitão, embora saibamos que o que Bolsonaro têm servido numa bandeja diariamente é o pescoço do brasileiro. Nesta quarta, o presidente voltou a debochar da catástrofe que vivemos. Disse a apoiadores que a imprensa o considera "o vírus", que os veículos de comunicação criaram "pânico".

O "pânico", eu digo a Bolsonaro, é este: vacinamos menos de 4% das pessoas, as filas nas UTIs, desastre no PIB, intervenção nas estatais, brasileiros mais pobres, ministros fantoches, 260 mil mortes, um país sequestrado por um delinquente.

O Brasil definha a cada dia que Bolsonaro permanece como líder. Uma bússola quebrada que nos jogou num precipício no qual não paramos de despencar. Parlamentares batem na tecla de que não há clima para o afastamento do presidente. Quantas vidas serão perdidas até que o Congresso sinta o cheiro de mortandade que assola o país?

Mudam os presidentes da Câmara e do Senado, renovam-se as notas de repúdio. Para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a conduta nefasta de Bolsonaro são "exageros retóricos", "comportamentos pessoais condenáveis". Para Arthur Lira, que comanda a Câmara, nem isso. Está mais preocupado em garantir imunidade para a classe.

Ou as instituições afastam Jair Bolsonaro da Presidência ou condenarão um país inteiro à morte: uma parte do país pela devastação que a Covid-19 deixará, mas uma parte ainda maior que herdará terra arrasada pela incompetência e arrogância de Jair Messias Bolsonaro.


Maria Hermínia Tavares: A farra do centrão

Arthur Lira deve pensar que é um bom momento para passar a sua boiada

Na hora em que a morte é mais rápida que as vacinas, o presidente da Câmara e chefe do centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), decidiu trazer a reforma política de volta à agenda do Congresso.

Talvez imaginando que este seja um bom momento para passar a sua boiada, criou duas comissões destinadas a produzir uma pretensiosa revisão da legislação eleitoral e partidária, com mudanças na forma de escolha dos representantes, na propaganda e financiamento de campanhas e no papel da Justiça Eleitoral.

Assim reassume o seu lugar à mesa de debates o fim do sistema de voto proporcional de lista aberta, que distribui as cadeiras no Legislativo entre as legendas segundo a proporção de votos recebidos por elas, uma a uma, respeitada a preferência do eleitor pelos candidatos que compõem as listas partidárias. Em seu lugar, entraria o "distritão", apelido dado ao sistema que os especialistas denominam, com uma ponta de pedantismo, "voto único não transferível". Nele, as cadeiras nas Câmaras e Assembleias iriam para os mais votados, em seus distritos eleitorais, cujos limites, aqui, coincidiriam com os estados da Federação.

Forma raramente adotada de sistema majoritário, hoje, existe apenas na Jordânia, no Afeganistão e em paragens exóticas como Vanuatu e Ilhas Pitcairn. Seus efeitos mais notórios são limitar a representação das minorias e estimular os partidos a apostar em candidatos com grande potencial de votos: pastores, celebridades de TV e formadores de opinião nas redes sociais.

Além disso, o pacote representa um robusto retrocesso nas regras recém-aprovadas para reduzir o número de partidos representados no Legislativo. Pois propõe a revogação da cláusula de desempenho, pela qual cada legenda deve obter ao menos 2% dos votos em nove estados —ou eleger 11 candidatos—, e a volta das coligações nos pleitos para a Câmara e Assembleias Legislativas. Uma e outra coisa estimulam a multiplicação de legendas, fazendo do Brasil um caso extremo de fragmentação partidária.

Finalmente, muitas propostas intentam enfraquecer a Justiça Eleitoral, guardiã eficiente e indispensável da integridade do processo, sem a qual a democracia desaba.

Propostas de reforma política foram recorrentes no país. Por discutíveis que fossem, sempre miraram a melhoria da competição eleitoral e da capacidade de governar. A iniciativa do presidente da Câmara só pretende favorecer os interesses miúdos dos partidos idem que sustentam um governo de ainda mais baixa estatura. É a farra do centrão, que debilita a ordem democrática enquanto a Covid faz a sua parte.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Ricardo Noblat: Mansão de Flávio Bolsonaro vira dor de cabeça para seu pai

Rapaz treloso

É estranho que Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) tenha comprado uma mansão em Brasília no valor de 6 milhões de reais se tem, como senador, a custo quase zero, o direito a um amplo apartamento em área nobre de Brasília e mais perto do seu local de trabalho da Praça dos Três Poderes?

Sim, seria estranho se recuarmos no tempo algo como 36 anos. Enquanto durou a ditadura militar de 64, apenas os mais destacados servidores do Estado moravam em casas luxuosas da chamada Península dos Ministros, no Lago Sul da cidade, com direito a todo tipo de mordomia. O acesso ali era controlado.

Havia quadras nas Asas Sul e Norte do Plano Piloto, como ainda há, destinadas a deputados, senadores e ministros de tribunais superiores. Mansões eram para os ricos do Distrito Federal que as construíam, ou para representantes de empresas que atuavam como lobistas, ainda poucos para os padrões atuais.

Ostentar riqueza pegaria mal para um parlamentar, era simplesmente inconcebível. A política ainda não tinha virado um grande negócio capaz de encher os bolsos dos mais ousados. A corrupção existia, embora não fosse admitida nos vastos salões, corredores e gabinetes do Congresso.

Um deputado ou senador comemorava quando conseguia emplacar um afilhado político em algum cargo de escalões inferiores do governo. No máximo, o afilhado retribuía mais adiante indicando fornecedores de serviços públicos que poderiam ajudar seu padrinho a pagar despesas das próximas eleições.

Àquela época, uma Lava Jato não teria feito o menor sucesso. O último presidente da ditadura, o general João Figueiredo, deixou o poder com alguns cavalos de raça a mais, presentes que recebeu de bom grado. E teve depois seu Sítio do Dragão, na região serrana do Rio, reformado de graça por empreiteiras.

O presidente Jair Bolsonaro conhece muito bem essas histórias, mas não as admite. Disse que criou os filhos para que comessem filé mignon, não carnes inferiores. Uma vez assim criados, com o pai a empregar na Câmara funcionários fantasmas, natural que eles queiram desfrutar das coisas boas da vida.

Nesse ramo, dos três primeiros filhos de Bolsonaro, Flávio é o que mais sabe aproveitar. Acusado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, demonstrou estar convencido de que ficará impune a ponto de comprar um dos melhores e mais caros imóveis do exclusivo Setor de Mansões de Brasília.

Além do conforto, a casa oferece discrição. Fica num condomínio onde só entram os donos e seus convidados. Nada do que acontece por lá é visto de fora. Quem chega de avião a Brasília não precisa passar por nenhum ponto da cidade se quiser se reunir com Flávio. O aeroporto fica a 15 minutos de distância.

O senador consultou o presidente sobre a transação selada em dezembro passado e ele deu seu ok. Aconselhou-o, porém, a ser discreto. Flávio teve esse cuidado. A escritura de compra e venda foi assinada em um cartório de Brazlândia, cidade a 45 quilômetros de Brasília. O vendedor é um dos devotos do seu pai.

Mas aí deu ruim. Como, com a renda mensal que ele tem, pôde comprá-la? Mais uma pergunta a juntar-se a tantas outras que incomodam o presidente. Exemplo: por que Fabrício Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle, a primeira dama?

Em 7 vídeos, como Bolsonaro sabotou a vacinação contra o vírus

O apocalipse sanitário está logo ali

Os vídeos abaixo, aqui oferecidos em ordem cronológica, são uma pequena amostra do que disse o presidente Jair Bolsonaro de outubro último para cá a respeito da vacinação em massa contra a Covid. Todos estão postados no Youtube.

Eles indicam com clareza que Bolsonaro sempre teve duas preocupações: pôr em dúvida a eficácia das vacinas e livrar-se de qualquer culpa pelo número de mortos que nas últimas 24 horas bateu um novo recorde, o terceiro em uma semana: 1.840.

1 Bolsonaro diz que vacina contra covid-19 “não será obrigatória, e ponto final” (19/10/2020)

Não seria mais fácil investir na cura do que na vacina?”, perguntou Bolsonaro (28/10/2020)

Bolsonaro diz que não vai tomar a vacina (18/12/2020)

4 Bolsonaro questiona ‘pressa’ para acessar vacina (20/12/2020)

5 Bolsonaro diz que fabricantes de vacinas contra covid-19 deveriam procurar o Brasil (28/12/2020)

6 Bolsonaro afirma que apenas 50% da população brasileira pretende tomar vacina contra a Covid-19 (7/1/2021)

7 Enquanto Mourão vê vacina como saída para crise, Bolsonaro volta a defender tratamento precoce(2/3/2021)


William Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 


Merval Pereira: O futuro não chega

A aposta parecia factível em 2003. Se o Brasil crescesse em média 3,6% ao ano, chegaria em 2050 a ser a quinta economia do mundo, ultrapassando a Itália em 2025, a França em 2031, Inglaterra e Alemanha em 2036. Ela constava de estudo da Goldman Sachs que lançou ao mundo a sigla Brics, países que eram vistos como o futuro da economia mundial: Brasil, Índia, Rússia e China.

Mas a projeção não levou em conta peculiaridades brasileiras, como o maior escândalo de corrupção já desvendado no país, quiçá no mundo, uma crise econômica provocada por uma presidente que acabou impedida pelo Congresso de continuar governando, a chegada ao governo de um capitão tresloucado, uma pandemia que mata mais de 1.800 pessoas por dia. Resultado: a economia brasileira teve um crescimento na última década de pífio 0,3% ao ano, com o resultado de 4,1% negativos anunciado ontem pelo IBGE.

Após crescer 4,7%, em média, durante o período de 2004 a 2007 e de se expandir em 5,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2009, caiu 0,3%. De 1990 a 2003, o crescimento médio foi de 1,8%; de 80 a 2003, 2%. Essa média cresceu um pouco com o resultado dos 8 anos do governo Lula, que teve um crescimento médio de 4% ao ano, mas voltou ao nível de 2% no governo Dilma.

O país já teve também períodos de crescimento sustentado de níveis asiáticos: de 1950 a 1980, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; de 1970 a 1979, de 8,78%. O problema é que já tivemos crescimento médio de 5,3% durante 50 anos, mas ele caiu nos últimos 40 anos, crescendo menos que o PIB mundial. Entre 1981 e 1990, o PIB brasileiro cresceu a mísero 1,55% ao ano. Daí até 2000, o crescimento médio foi de 2,65% ao ano, até 2010 chegou a 3,7%, retomando a performance prevista pela Goldman Sachs.

De um país que era visto como o futuro da economia mundial, junto com Rússia, Índia e China (Brics), o Brasil perdeu quase metade de sua participação no PIB do mundo nos últimos anos. Em 1980, representava 4,3% e, nesta década, passará a menos de 2,5%. O estudo da Goldman Sachs, coordenado pelo economista Jim O’Neill, lançado em 2003, mas com a medição a partir de 2000, mostra que o Brasil manteve-se no trilho da projeção até 2014, quando a crise do segundo governo Dilma jogou o número para baixo.

O economista Robinson Moraes, coordenador de pesquisa econômica do jornal “Valor”, fez uma projeção para o crescimento do Brasil nas duas últimas décadas, comparando com o previsto pelo estudo americano: deveríamos ter crescido 101,7% nos últimos 20 anos e crescemos apenas 43,6%. O Brasil, que no começo da década era a sétima economia do mundo, passou a cair de posição a partir de 2014, chegou a oitava economia em 2017, a nona até 2019 e hoje encontra-se na 12ª posição entre as maiores economias, ultrapassado por Canadá, Coreia do Sul e Rússia.

O ministro Paulo Guedes, numa espécie de recado metafórico, disse que, se o país tomar o rumo errado, dentro em pouco seremos uma Argentina, ou talvez até Venezuela. Isso na semana em que se debatia a intervenção do presidente Bolsonaro na Petrobras, para controlar o reajuste de preços da gasolina (“o cidadão tem que encher o tanque do carro”, disse o futuro presidente da Petrobras, general Joaquim Luna e Silva) e do diesel, por causa dos caminhoneiros.

A desmoralização que vem sofrendo com as seguidas intervenções do presidente na área econômica — também o Banco do Brasil vai trocar seu presidente, que pediu para sair depois que Bolsonaro estranhou o fechamento de agências — parece ter colocado Guedes em posição de aguardo. Está tentando a última cartada, apostando no compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira, de levar adiante as reformas.

Mas, se ficar aguardando essa boa vontade dos parlamentares e o engajamento de Bolsonaro, pode ficar sem tempo de reagir. A partir do segundo semestre, não haverá mais espaço para discussão de reformas, ainda mais as impopulares, como a administrativa, e as difíceis, como a tributária. Guedes também alertou que, se quisermos ser igual à França ou à Alemanha, teremos que fazer um esforço para o outro lado, durante bons 20 a 30 anos. Em 2050, onde estaremos?


Miguel Nicolelis: 'Brasil pode cruzar a marca de 3.000 óbitos diários por covid-19 nas próximas semanas'

Cientista defende um ‘lockdown’ nacional para evitar colapso sanitário. “Vamos entrar numa situação de guerra explícita. Podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”

Felipe Betim, El País

Médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis coordenou ao longo da pandemia de coronavírus o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19. Deixou o grupo no final de fevereiro após meses traçando previsões e orientando os governadores sobre quais medidas deveriam tomar para conter a curva de contágios e evitar o colapso de hospitais públicos e privados. Uma catástrofe que, afirma em entrevista ao EL PAÍS por telefone nesta quarta-feira, está prestes a ocorrer. “Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”, afirmou o médico, que também é colunista deste jornal.

Na conversa, ele afirma que, de acordo com seus cálculos, nos próximos dias o país começará a registrar 2.000 mortes diárias. Horas depois, o Ministério da Saúde registrou 1.910 mortes por covid-19, mais um recorde. “A possibilidade de cruzarmos 3.000 nas próximas semanas passou a ser real”, prevê. Ele argumenta que aumentar o número de leitos já não adianta e que a única saída é decretar um lockdown nacional pelas próximas três semanas.

Pergunta. O que esperar para as próximas semanas ou dias?

Resposta. Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos. A possibilidade de cruzar 2.000 óbitos diários nos próximos dias é absolutamente real. A possibilidade de cruzarmos 3.000 mortes diárias nas próximas semanas passou a ser real. Se você tiver 2.000 óbitos por dia em 90 dias, ou 3.000 óbitos por 90 dias, estamos falando de 180.000 a 270.000 pessoas mortas em três meses. Nós dobraríamos o número de óbitos. Isso já é um genocídio, só que ninguém ainda usou a palavra. O que são 250.000 mortes sendo que a vasta maioria poderia ter sido evitada?

P. São Paulo voltou para a fase vermelha e fechou comércios e serviços não essenciais. O que pode acontecer com o Estado?

R. Acho que São Paulo vai colapsar. Campinas já colapsou. Rio Preto colapsou. Ribeirão Preto está no mesmo caminho. A cidade de São Paulo não vai aguentar. O Hospital Emilio Ribas já está 100% e com fila de espera. O Hospital das Clínicas, que tem um dos maiores números de leitos de UTI do Brasil, está com 80% de ocupação e vai colapsar.

P. Estados têm apostado na abertura de novos leitos. Abrir novos leitos adianta?

R. Não tem mais médico, não tem mais enfermeiro. Todo mundo sabe, e os políticos sabem também, que a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI. Não tem como combater isso criando mais vagas nos hospitais. É a típica estratégia de maquiagem. Aumenta os leitos, mas os leitos às vezes nem funcionais estão, mas vão para a conta e diminui a taxa de ocupação.

P. O que fazer então? Os governadores e secretários da Saúde pressionaram nesta semana o presidente Jair Bolsonaro por medidas.

R. É precisodecretar lockdown de pelo menos 21 dias e pagar um auxílio financeiro para que as pessoas fiquem em casa. Os governadores sabem que o Governo Federal não vai fazer nada, estão querendo empurrar a responsabilidade. Estou sugerindo desde de novembro de criar uma Comissão Nacional com a sociedade civil, governadores e Supremo, que precisa decretar uma tutela judicial no Ministério da Saúde. Uma intervenção. E essa Comissão Nacional ficaria responsável por tomar decisões e supervisionar toda a logística.

P. Mas a população já não respeita as medidas de restrição. Acataria um lockdown?

R. A população nunca teve uma mensagem correta da gravidade da pandemia porque não temos nenhum estadista no país. As pessoas estão falando de sucessão presidencial em 2022 quando o país está morrendo na pandemia. Faltou decisão política e visão estratégica. Faltou as pessoas eleitas pensarem não nos lobbys econômicos e políticos que as sustentam, mas nos cidadãos como prioridade. É preciso bancar uma decisão. John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso que você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular. É preciso convencer a população de que aquilo precisa ser feito.

P. Caso não haja lockdown nacional, como tudo indica... O vírus não tem uma dinâmica própria, em que o contágio sobe muito, chega a um pico e depois começa a descer por causa da sazonalidade, entre outras questões?

R. Não quando se tem um vírus mutando fora de controle e se novas variantes são mais letais e mais contagiosas. Cada variante tem sua dinâmica própria. Como você falou, cresce, chega ao pico e cai. Mas se você tem dezenas de variantes superpostas umas nas outras... Acabaram de detectar a variante da Califórnia em Minas Gerais, porque alguém veio de avião dos Estados Unidos e trouxe ela. Nós recomendamos fechar os aeroportos em agosto. Repetimos em setembro. E evidentemente a Infraero não deu bola. Temos no Brasil a reunião de todas as variantes, inclusive as nossas próprias. Essa é a bomba relógio.

P. Sendo assim, quem teve covid-19 meses trás pode acabar se reinfectando?

R. Se você foi contaminado com a variante inicial brasileira, os anticorpos que você desenvolveu são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Por que temos que tomar a vacina contra a Influenza a cada ano? Porque as variantes surgem. Mas o que estamos tendo de número de infecctados do coronavírus é muito grave, então a chance do vírus mutar é muito maior.

P. Você mencionou em outra entrevista a possibilidade de colapso funerário. Como isso pode se dar?

R. Porto Alegre já está entrando, um hospital teve de comprar containers para estocar os corpos porque não estava dando conta de manejá-los. Isso é Manaus. A população cidade de São Paulo é nove vezes maior que a de Manaus. A Grande São Paulo é 20 vezes maior. Se a cidade São Paulo cai, todo o Estado de São Paulo cai. É como uma guerra mesmo: quando um batalhão importante cai, todas as forças armadas são comprometidas. É um efeito cascata. Minha metáfora é que somos Stalingrado, estamos cercados neste momento.


Merval Pereira: Caindo pelas tabelas

Por onde quer que se pegue, o Brasil está literalmente descendo a ladeira, caindo pelas tabelas das principais estatísticas internacionais. A começar pelo combate à pandemia da Covid-19, passando por questões internas que nos afastam assustadoramente do mundo ocidental civilizado. Em números absolutos, temos o desonroso segundo lugar no mundo, com mais de 255 mil mortes por Covid-19.

Mesmo quando colocado em termos proporcionais, o número no Brasil fica entre os 30 países mais atingidos dos 178 com mais mortes por Covid-19 para cada 100 mil habitantes. Também na comparação proporcional, houve mais mortos no Brasil do que na Argentina, Alemanha e Rússia. Com relação à vacinação em massa, a estimativa é de que só será alcançada em meados de 2022, segundo a Economist Intelligence Unit.

A plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, indica que o Brasil aplicou, até o momento, 3,97 doses para cada 100 habitantes. O país com a maior taxa de vacinação no mundo é Israel, com 93,5 vacinados para cada 100 habitantes. Não por acaso, o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, faz propaganda na televisão para estimular a vacinação, e o presidente brasileiro usa suas lives na internet para propagar o negacionismo, falar contra o uso de máscaras e sobre os pretensos perigos da vacinação.

Essa calamidade do combate à pandemia no Brasil se refletirá certamente na medição do Índice de Desenvolvimento Humano feito pelo Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud), que avalia a saúde, a educação e o padrão de vida dos países. O Brasil perdeu cinco posições no ranking mundial na última medição, passou do 79º para o 84º lugar entre 189 países. Perdemos também duas posições na América Latina, ficando atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia.

Com relação à educação, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês) registrou em 2019 ligeiro avanço dos estudantes brasileiros, que seguem, no entanto, entre os 20 piores colocados entre as 80 nações avaliadas em Ciências, Matemática e Leitura. Com todos esses resultados, ainda acrescentamos à nossa desdita um Congresso que propõe acabar com a verba obrigatória no Orçamento para Educação e Saúde, e um governo que, ao mesmo tempo que tenta ser admitido na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), desdenha medidas de boa governança exigidas de seus membros, como valorização da democracia e dos direitos humanos, até regras de proteção ao meio ambiente e no combate à corrupção.

Na questão ambiental, retrocedemos 20 anos em dois no governo Bolsonaro. O Brasil, que já sediou congressos fundamentais e teve protagonismo internacional na discussão da proteção ambiental, hoje tornou-se um pária. A batalha contra a corrupção vai sendo gradualmente perdida por decisões jurídicas e parlamentares. Já não há pudor em debater mudanças em temas como nepotismo, improbidade administrativa ou impunidade parlamentar. Ou em defender alterações na Lei de Ficha Limpa.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, anuncia agora uma reforma política “profunda”, que pretende amenizar a legislação de cláusulas de barreira para atuação plena no Congresso dos partidos, acabar com a proibição de coligações nas eleições proporcionais e certamente amenizar as barreiras a candidatos condenados, como estava na versão original da PEC da Impunidade.

Os partidos que não conseguirem atingir as metas em 2022 para a eleição da Câmara perderão pela primeira vez o direito de ter financiamento público, tempo no rádio e televisão de propaganda eleitoral e até mesmo estrutura de gabinete e presença em comissões e na Mesa da Câmara.

Essa é uma tentativa de repetir uma experiência já vivida. As cláusulas de barreira foram aprovadas em 1995, para vigorar dez anos depois. Teoricamente, os partidos teriam tempo suficiente para se organizar. Em 2006, esses mesmos partidos entraram no Supremo Tribunal Federal contra as novas regras, e os ministros acataram os apelos em nome de “defender as minorias”. Chegamos aonde chegamos.


Míriam Leitão: Vida mais curta e outros recuos

Em 2030 ainda se sentirá o efeito da pandemia nas estatísticas brasileiras. As projeções refeitas da população podem registrar de um milhão e meio a três milhões menos brasileiros do que haveria se não tivesse ocorrido a pandemia. A crise sanitária reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em 2,2 anos, segundo cálculos atualizados da demógrafa Ana Amélia Camarano, e isso mexe com todas as outras projeções. Há vários efeitos da pandemia na vida das pessoas. A participação da mulher no mercado de trabalho caiu aos níveis dos anos 1990. A morte dos mais velhos pode impactar fortemente a renda de milhões de famílias.

Há muito tempo os demógrafos calculam o momento em que o número de habitantes do país passará a diminuir anualmente, em vez de aumentar. Cada demógrafo ou instituto faz um cálculo diferente, dependendo das premissas. Mas uma coisa é certa: o encolhimento vai acontecer mais cedo e de forma mais intensa por causa da redução da expectativa de vida que está ocorrendo agora.

— Comparando a projeção que eu fiz em 2018 para a população brasileira com a que faço diante da diminuição da expectativa de vida, concluo que haverá um milhão e meio de brasileiros a menos na população. Na projeção do IBGE, o número pode ser de três milhões de brasileiros a menos. Alguns dados ainda nem se conhece, como a queda da taxa de fecundidade — diz a pesquisadora do Ipea.

Ana Amélia vinha chamando a atenção nos seus artigos e entrevistas para o fenômeno do prolongamento da vida no Brasil, e todas as mudanças decorrentes disso. Os brasileiros vivendo mais mudavam os seus hábitos e isso tem impacto na economia. A demógrafa costuma usar a expressão “os novos velhos” para se referir a pessoas com mais de 60 anos que estão mudando o conceito do que é ser velho:

— A recomendação médica era para a pessoa sair de casa, fazer exercício, encontrar os amigos para ter uma velhice saudável. O mercado de trabalho começava a rever seus conceitos, aceitando pessoas mais velhas. Um mercado de consumo de viagens, turismo e entretenimento se voltava para esse segmento. A pandemia mudou tudo isso.

As pessoas com mais de 60 anos são o alvo principal de um vírus que tem matado no Brasil numa intensidade alarmante. Para permanecer vivos, eles precisam abandonar os bons hábitos:

— Os idosos precisam mesmo se proteger porque 77,6% das mortes ocorrem na faixa com 60 anos ou mais. É justamente o grupo que tem um impacto crescente no consumo de lazer, turismo. Quem ainda estava no mercado de trabalho saiu pelo medo de se contaminar ou foi demitido porque aumentou o preconceito contra os idosos. A pessoa saiu da ideia da “melhor idade” para a do “grupo de risco”.

A população idosa continua sendo a que mais cresce, porque no passado nasceu muita gente, mas ela vai crescer menos. Aumentou para quase oito anos a diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres. A desigualdade de expectativa de vida entre negros e brancos deve aumentar.

— E é a população preta e parda que está mantendo o Brasil funcionando, mesmo no isolamento social — lembra a pesquisadora.

São muitas as consequências e as sequelas desta pandemia. Há a mortalidade indireta. Muitas pessoas não puderam ser tratadas de outras doenças porque os hospitais estavam lotados pela Covid ou porque adiaram exames preventivos. O número de mamografias no SUS, segundo o alerta feito pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, na Globonews, foi menos de 50% em 2020 comparado a 2019.

— O câncer de mama é o que mais mata mulher no Brasil — lembra Ana Amélia.

Existem outras consequências. Há 21 milhões de domicílios nos quais a renda dos idosos é mais da metade da renda da família:

— Nesses domicílios há seis milhões de crianças com menos de 15 anos. Quando morre o idoso, a família não fica apenas órfã, ela fica mais pobre.

E ainda encolheu o mercado de trabalho para a mulher:

— A participação da mulher no mercado de trabalho voltou aos níveis dos anos 1990. Muitas tiveram que deixar o emprego para cuidar dos filhos, outras foram demitidas, as mulheres trabalham muito nos serviços e no comércio. Houve queda forte também no número de vagas para empregadas domésticas.

Depois da pandemia haverá muito trabalho para combater todos os efeitos desta tragédia que vivemos.


Carlos Andreazza: Um modo de privatizar

O Parlamento esteve paralisado — por mais de semana — em decorrência do caso Daniel Silveira; escada para que Arthur Lira pusesse em marcha o trator que pretendeu alargar a câmara de blindagem que distingue a casta política brasileira. Afinal, a PEC da Impunidade não prosperaria. Mas foi a agenda legislativa do Brasil — ainda sem Orçamento para 2021, ainda sem solução para a volta do auxílio emergencial — na semana em que o país bateu o recorde de mortos pela peste em um só dia.

Nada mais se moveu no Congresso, desde a prisão do deputado, senão a tentativa corporativista de subverter o princípio da imunidade parlamentar para que crimes como o de Silveira — contra a ordem democrática — restassem autorizados. O Parlamento, à cata de escudar seus investigados por corrupção, quase aceitou dar guarida à fábrica de conflitos que ataca a própria democracia representativa. Exemplo perfeito do que produz a sociedade entre bolsonarismo e Centrão. Exemplo também de por que a natureza — para o golpismo — da base social que elegeu Bolsonaro contamina e interdita qualquer pauta reformista.

Avalie-se a constituição da persona do presidente e do fenômeno reacionário que encarna — exercício que mostra como sempre foi improvável crer que um seu governo pudesse reformar o Estado. Um sujeito cuja ignorância econômica forjou-se na segunda metade da década de 1970; péssimo militar cujos rudimentos sobre economia beberam do fetiche de um Brasil Grande induzido pelo governo central.

O apego ao tamanho da superfície estatal aumentaria com a chegada a Brasília. No curso de três décadas, Bolsonaro — aboletado nas bordas fartas (aquelas recheadas de catupiry) da pizza do establishment — se estabeleceria como bem-sucedido líder classista, agente contra qualquer esboço de diminuição do território em que ergueu frutífera (sim, laranjas) empresa familiar.

Um tipo que, para acrescentar complexidade ao reformismo impossível, tornou-se competitivo nacionalmente ao incorporar a demanda de ressentimentos variados contra o sistema de que sempre foi parte, eleito presidente associado a (e dependente de) um ímpeto por ruptura institucional, movimento desestabilizador em essência, que tem personificação em Daniel Silveira e efeito materializado na revolução dos caminhoneiros que travou o país em 2018.

Um presidente — com cabeça de sub-Geisel, que, agora desde o Planalto, orienta-se em função dos interesses dos mesmos grupos de pressão (armados, não raro amotinados) de quando era vereador — que é o próprio núcleo provedor da instabilidade avessa ao mais mínimo programa de reformas do Estado. Isso, claro, se houvesse projetos para reformar o Estado. Não há. Porque a Bolsonaro se juntou — para compor este raro espetáculo de estelionato eleitoral — um ministro da Economia incompetente como gestor público e que, politicamente autoritário, apaixonou-se pelo populista autocrata que o chefe é. Reformas?

Não se iluda mais, amigo liberal. Daqui até 2022, com algumas migalhas para as viúvas de um Guedes de fantasia, a parceria entre iguais — Bolsonaro e Lira — trabalhará por proteção e reeleição; o que significará mais Estado, contida na ideia de proteção a defesa das mamas em que os presidentes da República e da Câmara engordam há décadas. (Mas você pode acreditar que os estudos modais para a capitalização da Eletrobras avançarão celeremente até que a operação esteja pronta, a ser realizada à véspera ou no próprio ano eleitoral.)

Veja-se a maneira como vai humilhada a tal PEC Emergencial, prioridade de Paulo Palestra. Um projeto que se tentou requentar socado como contrapartida à retomada do auxílio; transformado, porém, numa frondosa árvore de jabutis perversos, a ponto de se haver condicionado a retomada urgente do auxílio ao fim dos pisos constitucionais para Saúde e Educação. Uma aberração. Que não prosperará — felizmente. Mas de cujo impasse se insinua, tocado pela pressa, o improviso. Tem método. O bolsonarismo depende de volubilidades.

O ciclo da fortuna bolsonarista, beneficiado e acelerado pela peste, consiste em prolongar — pela inação calculada — a circulação do vírus, provocar o caos (pela falta de vacinação em massa), atribuir responsabilidades a inimigos artificiais (governadores) e colher créditos extraordinários, para os gastos populistas que financiarão 2022, liberados pela urgência em enfrentar problemas deliberadamente gerados pelo governo Bolsonaro.

Porque o auxílio voltará — sempre se soube, mesmo quando se apregoava a mentira de que o vírus cedia, e a economia se recuperava em V. E a PEC Emergencial avançará, tudo indica, como síntese do liberalismo do amanhã de Guedes; minguando no Senado até resultar num corpo de compensações fiscais desprovidas de impacto imediato. Isso se o auxílio não regressar sem o estabelecimento de qualquer resposta fiscal — nem mesmo as empurradas ao futuro. A pandemia — que é sustentada no Brasil — desculpa e justifica. Reaja-se.

É o que querem Bolsonaro e seus parceiros do Centrão: um cheque especial, à margem do teto de gastos, para investir em popularidade e apaniguados — e que se dane a dívida pública. O minion Guedes topa. O presidente informa que as privatizações devem ficar para 2023. Não mente. A autocracia é um modo de privatizar. Guedes fica. Sabe bem ao que serve.


Andrea Jubé: A pandemia pela cartilha do coronel

Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid

O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.

Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.

Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.

Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”

De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.

O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.

Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.

A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.

No Brasil, a perda de centenas de milhares de vidas, vítimas da covid-19, não despertou empatia em segmentos da classe política nem em segmentos da população. As aglomerações em bares e outros locais públicos, e festas clandestinas, ocorrem à luz do dia. Políticos e populares ainda resistem à adesão aos cuidados mais comezinhos, como uso de máscaras e distanciamento social.

Um dos papéis das autoridades na pandemia deveria ser a conscientização dos brasileiros quanto à relevância de seguir os protocolos sanitários para coibir a disseminação do vírus.

A pandemia está em escalada galopante, mas os números não assustam. Um ano depois, chegamos ao pior momento da pandemia, com uma média móvel de 1.208 mortes diárias. São cinco Boeings caindo por dia, pela metáfora do neurocientista Miguel Nicolelis.

Contabilizamos mais de 10 milhões de contaminados, e mais de 255 mil óbitos. É como se enterrássemos de uma vez a população de uma cidade inteira do tamanho de São Carlos (SP), ou Foz do Iguaçu (PR), sem direito a velório. As UTIs estão lotadas em todos os Estados.

O comportamento dos políticos que se omitem, ou que propagam discurso negacionista, estimula a conduta de uma parcela de brasileiros que resiste a encarar a pandemia.

Ontem a doutora Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista da Rede D’or, alertou em entrevista à “Globonews” que estamos à beira de um colapso nacional. Ela atribuiu o quadro dramático também a uma parcela de brasileiros que se esbaldou no carnaval em festas clandestinas, favorecendo o contágio.

Na quinta-feira, quando o Brasil atingiu um recorde de mortes por covid-19 (1.582), o presidente Jair Bolsonaro criticou, sem base científica, o uso de máscaras, em um comportamento que estimula seus seguidores a imitá-lo.

Ontem o correspondente no Brasil do “The Washington Post” alertou que a tragédia em curso no Brasil pode ter “implicações globais”. Ele afirmou que se o Brasil não controlar o vírus, vai se transformar no “maior laboratório aberto do mundo para o vírus sofrer mutação”, favorecendo a “disseminação de variantes mais letais e infecciosas”.

Em outra frente, governadores e políticos independentes, ou da oposição, buscam saídas para driblar a lentidão do Programa Nacional de Imunização, e também para cobrar responsabilidade das autoridades que podem ser acusadas de negligência.

Mais da metade dos governadores enfrentam a ira de empresários, de seus opositores e de segmentos da população por adotarem “lockdown” ou medidas restritivas, como toque de recolher, no esforço de conter o vírus. Ontem o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu imediato “lockdown” nos Estados com mais de 85% de ocupação de leitos, e de um toque de recolher nacional.

Sob ataque de Bolsonaro, hoje os governadores reúnem-se em Brasília com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na base eleitoral de Lira, em Arapiraca, segunda cidade mais importante de Alagoas, causou comoção na semana passada a morte de uma enfermeira vítima da covid-19. Ela se recusou a tomar a dose da Coronavac, a que tinha direito por ser profissional de saúde, por duvidar da comprovação científica do imunizante, embora autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Lira perdeu a oportunidade de se manifestar para condenar a disseminação de “fake news”, mazela que contribuiu, pelo menos lateralmente, para a morte de sua conterrânea, quiçá eleitora.

Diante dessa conjuntura, no Senado, alguns parlamentares voltam a carga contra o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana para pressioná-lo a instalar a CPI da covid.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que os fatos mais recentes sobre a pandemia “precipitam a instalação da CPI”. Ele cita, por exemplo, o depoimento modificado do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, à Polícia Federal; o embate do presidente com os governadores; a persistência do discurso negacionista.

O Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real têm em comum a falta de empatia pelo semelhante, ou seja, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, de compartilhar a dor do outro. Mas, ao contrário do personagem, também falta a alguns políticos uma dose de pragmatismo para que se movimentem para salvar seus eleitores. A Justiça Eleitoral não instala urnas no cemitério.