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Imagem: reprodução | Metrópoles -or Anna Beatriz Anjos, Caio de Freitas Paes, Júlia Rohden e Matheus Santino

No Brasil, cônsules honorários sob suspeita de lobby, venda de sentenças e grilagem

Metrópoles

Um cargo desconhecido, fora da carreira diplomática, mas que permite alguns privilégios. Esse é o cônsul honorário, um posto voluntário que muitas vezes é usado por pessoas que abusam do status para enriquecer, burlar leis ou fazer lobby político.

Investigações realizadas por jornalistas de 46 países encontraram cerca de 500 cônsules honorários, atuais e antigos, envolvidos em escândalos ou crimes. Foram essas as descobertas da investigação Diplomacia nas Sombras, uma colaboração do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), da ProPublica e de outros 59 veículos, entre eles, a Agência Pública e o Metrópoles, no Brasil.

A Agência Pública, em parceria com o Metrópoles, encontrou doze casos de cônsules honorários que atuaram no Brasil e estavam envolvidos em suspeitas ou escândalos relacionados a corrupção, grilagem de terras e contrabando.

Entre os casos, um cônsul honorário foi suspeito de comandar uma organização criminosa que montava máquinas de jogos de azar para vender no Brasil e no exterior. Outro caso envolveu um homem que disse ser cônsul honorário quando seu carro foi parado pela polícia. No porta-malas do carro estava um dos maiores traficantes do país na época, Nem da Rocinha, que foi preso naquele momento. Outra pessoa que ocupou o cargo de cônsul honorário e se envolveu em um escândalo foi um empresário do setor financeiro denunciado por lavagem de dinheiro durante a operação Lava Jato.

Um caso escandaloso é o de Adailton Maturino dos Santos, que se dizia cônsul honorário da Guiné-Bissau. Por conta do cargo, o empresário brasileiro encontrou-se com desembargadores e juízes de diversas instâncias e lidou até mesmo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enquanto participava de um esquema de grilagem de terras no oeste da Bahia.

Outros dois cônsules honorários da índia participaram do lobby pela venda da Covaxin, a vacina produzida pela empresa indiana Bharat Biotech, para o governo Bolsonaro. Mas, além de um problema de sobrepreço, a compra foi suspensa pelo Ministério da Saúde, após auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontar suspeitas de fraudes em documentos apresentados pela empresa mediadora da venda no Brasil.

O Brasil tem cerca de 300 cônsules honorários atuando em outros países. Além disso, existem cerca de 265 representantes de países estrangeiros com o mesmo cargo em terras brasileiras.

O que é um cônsul honorário?

A principal atribuição do cônsul honorário brasileiro no exterior é auxiliar brasileiros que moram ou que estejam de passagem no país onde atual. “O cônsul honorário acaba fazendo uma espécie de ponte nos lugares onde não há o consulado oficial, mas reporta o trabalho que faz ao consulado mais próximo. Tem a função de apoiar aquela comunidade, de ser uma figura de representação. Se tiver alguma emergência, ele pode ser o primeiro contato do país com seus nacionais”, explica Lucas Mesquita, professor e coordenador de pós-graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).

No Brasil, o cônsul honorário é um cargo não remunerado – mas aprovado pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE) – com duração de quatro anos, e que pode ser renovado. Qualquer cidadão, brasileiro ou estrangeiro, pode ocupar o cargo, que não conta com pré-requisitos formais. De acordo com o Itamaraty, geralmente são escolhidos candidatos que tenham conhecimento básico do português e que mantenham vínculos com a comunidade brasileira do país.

“Os cônsules honorários, ademais das limitadas funções consulares a eles atribuídas, estão, em geral, atrelados a atividades profissionais particulares remuneradas. São selecionados localmente entre residentes do Estado que recebe, para um trabalho voluntário”, informou o Ministério em nota à Pública.

No caso de representantes de países estrangeiros que atuam no Brasil, o cônsul honorário precisa da autorização do governo brasileiro através do “exequatur”, uma autorização concedida de um Estado para o outro para que o cônsul de um país seja admitido em outro.

De acordo com o Itamaraty, diferente dos cônsules de carreira, os honorários não têm imunidade penal e nem passaporte diplomático – e portanto podem ser sujeitos a medidas legais e ações policiais. Mas, apesar de não receberem salários, o status do cargo pode abrir portas no mundo político e facilitar o trânsito com personalidades importantes.

Há vários exemplos revelados pela investigação transnacional do ICIJ. Em Myanmar, um cônsul sancionado pelos Estados Unidos e outros governos supostamente se utilizou de suas conexões para ajudar no fornecimento de armas para a brutal junta militar do país durante sua campanha genocida contra minorias étnicas. Um antigo cônsul no Egito foi condenado por tentar contrabandear mais de 21 mil artigos de antiguidade para fora do país em um contêiner diplomático, incluindo máscaras de múmia e um sarcófago de madeira.

Outros casos internacionais apontam que o cargo muitas vezes serve como um escudo diplomático; acusados tentam escapar de inquéritos criminais com alegações falsas de imunidade legal, confundindo e obstruindo o trabalho da polícia.

Fabrício Bertini Pasquot Polido, professor associado de Direito Internacional Privado, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Faculdade de Direito da UFMG, lembra que os cônsules honorários possuem alguns privilégios junto à justiça do país onde atuam: não são obrigados a depor sobre fatos relacionados ao exercício de suas funções – como atendimento ao cidadão, às empresas locais –, nem a exibir correspondência e documentos oficiais. Possuem uma certa imunidade, embora não completa.

“Agora, se não estiver no exercício da função, essa imunidade não se aplica, porque as atividades que esse cônsul exerce podem exorbitar as funções de representação”, explicou. “Por exemplo, se ele se envolve em atividades ilícitas ou corrupção de empresas, ele não pode usar essa imunidade e pode ser obrigado a depor e mostrar documentos e informações desses atos específicos que exorbitem a função de representação”.

Segundo MPF, cônsul honorário da Guiné-Bissau foi peça-chave de esquema de corrupção e grilagem

A história de Adailton Maturino dos Santos mostra como um título de cônsul honorário abre muitas portas. Munido de um título de cônsul honorário da Guiné-Bissau, o empresário brasileiro encontrou-se oficialmente com desembargadores e juízes, e teve entrada até mesmo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

No mesmo período, ele e sua esposa, Geciane Maturino, seriam peças-chave de um milionário esquema de corrupção judicial e grilagem de terras no extremo oeste baiano, conforme revelado pela operação Faroeste da Procuradoria-Geral da República (PGR) em novembro de 2019. As investigações apontam Adailton Maturino como um dos responsáveis por um esquema de compra e venda de sentenças junto à cúpula do Tribunal de Justiça (TJ) da Bahia, com participação até de ex-presidentes do tribunal, para a tomada ilegal de mais de 360 mil hectares de terras no Cerrado do extremo oeste Baiano, na fronteira da soja.

De acordo com a investigação, Maturino teria formado uma organização criminosa junto a membros do Judiciário e supostos proprietários de terras para tomar a posse da chamada fazenda São José, em Formosa do Rio Preto (BA). Usando uma matrícula de terras datada de 1981, o grupo obteve decisões favoráveis na justiça estadual, como a controversa expansão da área referente à matrícula, de 43 mil para mais de 360 mil hectares, com a subsequente regularização da posse por um dos juízes presos, anos depois, por envolvimento no esquema. O grupo de Maturino teria se utilizado desta matrícula para forçar fazendeiros instalados na área a pagarem pelo uso da terra por meio de um acordo, referendado por políticos baianos à época, que garantiria, anualmente, mais de R$ 1 bilhão ao grupo do cônsul honorário.

Segundo o MPF,“ofícios enviados pela embaixada da Guiné-Bissau à justiça qualificaram Adailton como “diplomata” e cônsul honorário” e a esposa dele, Geciane Maturino, como “diplomata” e “conselheira especial” do ministro de Comércio, Turismo e Artesanato do país africano. No entanto, o Itamaraty informou ao MPF, em um documento revisado pela Pública, que “não autorizou, em qualquer momento, a designação de Adailton e Geciane como agentes diplomáticos ou consulares”.

Adailton Maturino se reuniu com autoridades da Guiné-Bissau e membros influentes do Judiciário e da política brasileira nos últimos cinco anos, mesmo período dos fatos investigados pela PGR na operação Faroeste. Em agosto de 2017, por exemplo, acompanhou o presidente da Assembleia Nacional Popular guineense, Cipriano Cassamá, e a embaixadora do país, Eugénia Pereira Saldanha Araújo, em uma reunião com a Justiça Eleitoral para “estreitar os laços de cooperação” entre as duas nações.

Dali em diante, Maturino participou de solenidades com políticos, como na concessão de um título de cidadão honorário a um embaixador angolano pela Câmara Municipal de Salvador (BA). E foi até agraciado com o mesmo título pela Câmara Municipal de Teresina (PI).

Apresentando-se como cônsul honorário da Guiné-Bissau, reuniu-se oficialmente também com desembargadores, como em 2018, quando acompanhou uma comitiva do país africano em um encontro com o então presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, Erivan Lopes. A reunião visava um “processo de parceria” entre o tribunal e o país africano.

Maturino não era o único a exibir um título questionável. Rui Barai estava nessa mesma reunião e apresentou-se como “ministro das Relações Exteriores da Guiné-Bissau”. Mas o material obtido pela Pública mostra que o suposto ministro das Relações Exteriores da Guiné-Bissau teria envolvimento no mesmo esquema de corrupção e grilagem.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), Rui Barai não era ministro, mas um “encarregado de negócios” da embaixada da Guiné-Bissau, e teria assinado pedidos de “emplacamento diplomático de veículos” para a esposa de Adailton, “com o claro intuito de blindagem patrimonial” do casal, por conta do esquema no oeste da Bahia.

Presos inicialmente em novembro de 2019, durante a 1ª fase da operação Faroeste, o cônsul honorário da Guiné-Bissau e sua esposa ficaram detidos até março passado, quando a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça revogou as prisões preventivas de ambos.

A Agência Pública procurou a defesa do casal, mas não houve resposta até o fechamento deste texto.

A defesa de ambos tem negado as acusações e alegado que o inquérito que deu base à operação Faroeste “é confuso e com muitas interpretações”.

A Pública também enviou perguntas à embaixada da Guiné-Bissau no Brasil. Não houve resposta até o fechamento desta reportagem e, caso haja, o texto será atualizado.

Conexão com a Covaxin e um contrato de R$ 1 milhão

Um ofício do Ministério das Relações Exteriores ao Ministério da Saúde, em 06 de janeiro de 2021, mostra que dois cônsules honorários da Índia estiveram em uma reunião na Embaixada do Brasil em Nova Delhi sobre a venda da vacina indiana Covaxin durante a pandemia de Covid-19. Eram eles o cônsul honorário da Índia em Belo Horizonte, Élson de Barros Gomes Jr., e o do Rio de Janeiro, Leonardo Ananda Gome. Ambos eram também presidentes das Câmaras de Comércio Brasil Índia naquelas cidades.

Francisco Maximiano, dono da Precisa Medicamentos, empresa responsável por intermediar a venda da Covaxin no Brasil, ressaltou que a delegação que o acompanhava tinha um “perfil mais elevado do que o habitual” porque a visita à Índia era um esforço para estreitar relações com companhias do país. Ele defendia que a parceria com a fabricante indiana Bharat Biotech ajudaria a “romper o oligopólio” da vacinação no Brasil.

Além da Precisa Medicamentos, também participaram do encontro representantes da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) – ambas instituições são associadas à Câmara de Comércio que tem os dois cônsules honorários como presidentes.

No dia seguinte, em 07 de janeiro de 2021, Leonardo Ananda Gomes e Elson de Barros estiveram ainda junto com funcionários da Precisa Medicamentos e da ABCVAC em visita à sede da Bharat Biotech.

Uma foto da visita foi publicadas nas redes sociais da Câmara de Comércio Índia-Brasil, mostrando os dois cônsules honorários junto à indiana Suchitra Ella, sócia da Bharat Biotech que se tornou membro do Conselho Consultivo da Câmara de Comércio Índia-Brasil. “A Ilustríssima Sra. Suchitra Ella é uma das sócias da Bharat Biotech, empresa responsável pelo desenvolvimento da Covaxin, vacina que irá ajudar a salvar vidas no Brasil. Ademais, Bharat Biotech é parceira da Precisa Medicamentos, empresa associada à Câmara de Comércio Índia Brasil”, informou outra publicação na rede social em março de 2021.

O lobby funcionou – ou quase. Logo após o encontro na Embaixada em Nova Delhi, em 8 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro escreveu uma carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, dizendo que a Covaxin havia sido selecionada para o Programa Nacional de Imunizações (PNI). Vale lembrar que, na época, ainda não havia sido concluída a última fase dos estudos clínicos da Covaxin – e Bolsonaro estava ignorando as ofertas da Pfizer.

Mas a vacina nunca chegou a ser vendida no Brasil. Em agosto, o Ministério da Saúde cancelou o contrato, após uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontar suspeitas de fraude em documentos apresentados pela Precisa. A CGU, no entanto, descartou suspeitas de sobrepreço nas doses da Covaxin levantadas anteriormente pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), e informou que o preço praticado mundialmente pela empresa nas negociações era de US$ 15 a dose. A vacina indiana tinha a dose mais cara entre as negociações feitas pelo Brasil com fabricantes.

Os senadores da CPI também colocaram a lupa sobre a atuação dos dois cônsules honorários, depois do jornal O Globo revelar um repasse de R$ 1 milhão feito pela Precisa Medicamentos para a Câmara de Comércio Índia Brasil. As transferências ocorreram em 17 e 23 de fevereiro de 2021, às vésperas da assinatura do contrato da Precisa com o Ministério da Saúde para a compra de 20 milhões de doses da Covaxin, no valor total de R$ 1,6 bilhão. Parlamentares suspeitaram que este dinheiro pudesse ser uma “recompensa” por ajudar a viabilizar o contrato.

A CPI também investigou viagens para a Índia feitas por um grupo de empresários em diferentes vôos, mas em dias próximos, entre dezembro de 2020 e junho de 2021. Assim como a Câmara de Comércio Índia Brasil, as empresas dos representantes que viajaram nesse período receberam repasses da Precisa.

Questionado sobre os registros de pagamento à Câmara de Comércio e as viagens dos representantes à Índia durante a CPI, Maximiano não respondeu. “Vou exercer o direito ao silêncio”, disse. Ele foi indiciado no relatório final da CPI por fraude processual, fraude em contrato, improbidade administrativa, falsidade ideológica e uso de documento falso. Com o fim da CPI, a Polícia Federal e o MPF passaram a investigar o contrato de compra da Covaxin.

O relatório final da CPI, entretanto, não menciona os dois cônsules.

A Agência Pública entrou em contato com a Câmara de Comércio Índia Brasil e tentou contactar os dois cônsules honorários, mas foi informada que ambos estavam viajando e não poderiam responder aos questionamentos da reportagem. A embaixada da Índia também não retornou.

Ao jornal O Globo, a Câmara respondeu que as transferências feitas pela Precisa foram para patrocinar eventos e os integrantes da associação negaram que tenham ajudado no contato inicial entre Precisa e Bharat Biotech.


Maria Cristina Fernandes: Centrão dá autonomia ao BC e captura Anvisa

Desapego pela regulação sugere que bloco apenas acumula créditos para cobrar de Guedes em breve

O novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) escolheu o projeto que dá autonomia ao Banco Central para marcar sua estreia na condução da mesa diretora da Casa. Convém cautela, porém, com o zelo demonstrado pelo Centrão na regulação dos mercados.

Se a preocupação é blindar o Banco Central das interferências políticas dos governantes de plantão, falta explicar por que o cuidado não é extensivo à Agência de Vigilância Sanitária, a mais importante das reguladoras de mercado no Brasil da pandemia. Quem lidera a pressão para submeter a Anvisa aos caprichos do lobby da vacina russa é o líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), outro integrante do núcleo duro do Centrão.

Difícil imaginar onde bateria o dólar hoje se a Câmara dos Deputados resolvesse, por exemplo, acrescentar um artigo ao projeto aprovado pelo Senado estabelecendo prazo para o Banco Central intervir no câmbio quando a moeda americana disparar. Foi mais ou menos isso que fez a MP 1003/2020. Deu prazo não para a Anvisa analisar mas para aprovar o uso emergencial de vacinas cinco dias depois de protocolado o pedido para a análise da agência.

Ricardo Barros, o deputado que liderou a aprovação da medida provisória no formato que melhor convém à empresa que pretende trazer a Sputnik V ao Brasil, comandou o Ministério da Saúde no governo Michel Temer. Foi um teste de resiliência para o SUS, mas não se ouviu, durante aquele governo, o então ministro dizer que “enquadraria” a Anvisa.

A pressão desmedida sobre a Anvisa aconselha ceticismo em relação à lua de mel de Lira com a equipe econômica do governo e os investidores que nela ainda creem. Lira pinçou, da extensa pauta de prioridades do governo federal, um dos projetos menos polêmicos para sinalizar boa vontade com Guedes & cia. A pergunta que cabe fazer agora, dado o desapego do Centrão pela boa regulação do mercado, é onde o bloco quer chegar.

É simples. Lira acumula créditos para cobrar lá na frente. Se alguém comemora a aprovação do projeto de autonomia do BC na Câmara é porque ainda não se deu conta de que a cobrança desta fatura vai tornar a vida dos autônomos mandatários do banco um inferno.

Não faltam evidências de que esta cobrança imporá um custo fiscal difícil de carregar. Não porque o Brasil não possa se endividar, mas porque o faz sem rumo nem sinal de onde pretende chegar. E apesar disso, tem a anuência dos juízes e bandeirinhas em campo, como foi o caso na manobra que permitiu jogar para 2021 gastos de até R$ 40 bilhões do Orçamento de guerra não executados no ano passado.

Se o fizeram em 2020, voltarão a fazê-lo este ano quando o novo comando do Congresso sinaliza que quer acochambrar tudo, do auxílio emergencial aos novos gastos de Estados com a pandemia e até uma segunda rodada de suporte às empresas. Tudo na modalidade de “crédito extraordinário”.

A Constituição é clara. Trata-se de um recurso a ser usado em caso de imprevisibilidade e urgência. Numa pandemia, prever esses gastos deveria ser a rotina, não a exceção. Por isso, deveriam estar contidos na Lei Geral do Orçamento, cuja comissão mista foi instalada ontem. Para isso, no entanto, os novos gastos teriam que cumprir as regras fiscais e abrir espaço com uma tesourada que ninguém no Centrão ou no Palácio do Planalto quer dar. Vai que alguém lembra dos R$ 9 bilhões reservados para as quatro novas fragatas da Marinha.

A fatura não para por aí. O Centrão não desistiu dos bancos públicos. Falhou na tentativa de arrebanhar a presidência do Banco do Brasil, mas ainda cobiça diretorias e não apenas no BB, mas na Caixa Econômica Federal e até no BNDES. Se alguém acha que assim também é demais, basta ver o que se passa com a Anvisa.

Bolsonaro ainda não decidiu se vai acatar o pedido do presidente da Anvisa para vetar o jabuti do Centrão na MP, mas a permanência de Ricardo Barros na liderança do governo sugere que o presidente da República começou a campanha pela reeleição na oposição.

A julgar pelo desempenho em campo de seus adversários, vai querer fazer olé com o chapéu alheio. Rodrigo Maia levou o cesto de roupa suja do seu time para a beira do Lago Paranoá e o PSDB se consome em disputas internas entre um governador impopular em seu próprio Estado e um deputado com contas a prestar na Justiça.

O PT fulanizou a pré-campanha antes da hora e o bloco dos excluídos do bolsonarismo hoje se dedica mais às fusões partidárias e à sobrevivência das nanolegendas do que a saber por que, num país que gastou R$ 524 bilhões no combate à covid-19 em 2020, faltam oxigênio, medicamentos, UTIs e sobra energia para o lobby das vacinas.

É natural que Bolsonaro queira antecipar a campanha. Tem duas razões para fazê-lo. Primeiro porque é bom nisso. Depois porque, tendo terceirizado o governo para o Centrão, resta-lhe ocupar o vácuo da oposição. Já disse que gostaria de ver a mãe vacinada. O próximo passo é entrar na fila para virar jacaré. Mais um pouco e se vacina contra a derrota em 2022.

A dúvida é saber por que os adversários se deixam pautar. É a covid-19 e a crise econômica que mantêm Bolsonaro na defensiva, não a campanha eleitoral. É claro que os partidos precisam discutir alianças, fusões, nomes, estratégias, mas não com a bola em campo.

O maior flanco de Bolsonaro é a pandemia e é dela que ele vai tentar primeiro se livrar. Vai entregar o ministro da Saúde aos leões. Depois se insurgirá, como o fez no início da pandemia, contra prefeitos e governadores a quem delegará a responsabilidade pelo genocídio. A sanção com ou sem vetos da MP das vacinas indicará o papel que assumirá frente ao Centrão.

O segundo maior flanco do presidente é a economia. O déficit público, que caminha para R$ 800 bilhões, é uma bomba de efeito retardado. No filme que o Brasil já viu antes, explode assim que passa a reeleição.

É este o esquema tático de uma pelada de várzea que frustrará a plateia. O presidente jogou a isca da sucessão presidencial antecipada, a oposição engoliu e o Centrão, por enquanto, governa. Arthur Lira e seu bloco, porém, jogam em todas as posições, menos na de carregadores de caixão.


Luiz Carlos Azedo: Centrão X Anvisa - Novo front de guerra da vacina se forma no país

Líder do governo na Câmara e ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros está à frente das críticas mais incisivas à agência responsável por autorizar o uso de imunizantes no Brasil. Parlamentar ressalta que a legislação se impõe sobre normas internas

A polêmica entre o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, é a primeira queda de braços entre os políticos do Centrão e os militares do governo Bolsonaro após a eleição do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Colega de bancada de Lira, Barros foi um dos protagonistas da campanha que conquistou 302 votos na Casa. Engenheiro e ex-prefeito de Maringá (PR), o líder do governo é um dos nomes cotados para substituir o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, do qual foi titular no governo Michel Temer. Quer liberar vacinas importadas em cinco dias, sem testagem no Brasil.

Médico e contra-almirante, Barra Torres comanda a Anvisa como se estivesse num navio. Responde por tudo a bordo e tem prestigiado o corpo técnico da autarquia, cujo padrão de excelência é reconhecido internacionalmente. A pressão de Barros sobre a Anvisa, segundo o próprio, é uma questão do Congresso e não do governo. Os deputados e senadores voltaram do recesso pressionados pelos eleitores a resolverem logo o problema da vacina. “A Anvisa tem seu ritmo e sua visão de velocidade e, o Congresso tem a velocidade do povo. Fomos para a base e vimos o retorno: o maior receio é da falta de vacina”, justificou. O parlamentar tem sido duro com os técnicos da Anvisa, defendendo a mudança de legislação, se for o caso, para liberação dos medicamentos.

Barra Torres, que vem atuando sob fortes pressões do próprio presidente Jair Bolsonaro, dos governadores e do corpo científico, é diplomático, mas politizou a crise. “A quem interessa o enfraquecimento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária?”, pergunta. Em entrevista, na semana passada, disse que sempre teve uma boa relação com Barros e defendeu a agência: “É a mais rápida do mundo em análise de protocolos vacinais”, disse. Barra Torres nega que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ou qualquer ministro da Saúde em sua gestão tenha feito qualquer tipo de pressão à Anvisa, antes ou durante a pandemia de covid-19: “O presidente da República, Jair Bolsonaro, nunca, em momento algum, exerceu qualquer tipo de pressão sobre a agência. Nunca fez um pedido, nunca disse 'gostaria que aprovasse isso ou aquilo'. E ele é o chefe do Executivo. Nunca fez”, afirmou Torres.

Briga de laboratórios

O que esticou a corda entre o líder do governo na Câmara e o presidente da Anvisa foram as dificuldades para liberação das vacinas já aprovadas no exterior para uso imediato no Brasil, entre as quais a vacina russa Sputnik V. Das 11 vacinas já em uso no mundo, todas aprovadas por agências reguladoras reconhecidas internacionalmente, somente duas, até agora, estão sendo usadas no Brasil, o que aumentou o estresse entre os políticos e a agência. Segundo Ricardo Barros, a exigência de 10 dias para a liberação do uso emergencial, como queria a Anvisa, é ilegal. “O presidente deve sancionar a medida aprovada pelo Congresso que estabelece 5 dias; a própria Anvisa havia estabelecido um prazo de 72 horas”, esclarece.

Segundo Ricardo Barros, a exigência de testagem em território nacional para vacinas já aprovadas por agências reguladoras no exterior custa US$ 80 milhões, o que dificulta a compra de vacinas. “Sem essa exigência, não faltará vacinas; todos os governos e planos de saúde poderão comprar. Cerca de 50 milhões de brasileiros têm plano de saúde, haverá vacina pra todos”, argumenta o líder do governo.

No caso da Sputnik V, há um ingrediente a mais: a disputa entre a Fiocruz e o Butantan e a União Química, fabricante da Sputnik V no Brasil. O presidente da empresa, Fernando Marques, acusou os laboratórios públicos de dificultarem a chegada de vacinas produzidas por laboratórios privados. A Sputnik V é produzida pela farmacêutica, que tem um acordo com o Fundo Soberano da Rússia e o Instituto Gamaleya para receber tecnologia e trazer doses prontas do imunizante para o Brasil.

Até o momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autorizou duas vacinas, produzidas por laboratórios públicos brasileiros: a Coronavac, do Butantan, e a AstraZeneca, da Fiocruz. A Sputnik é a primeira fabricante privada a firmar contrato de venda de vacinas com o governo brasileiro. Seriam 10 milhões de doses, inicialmente. Mas, antes da nova vacina ser utilizada, a União Química precisa obter a autorização de uso emergencial da vacina no Brasil.