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Marcelo Burgos: A matriz ideológica da milícia e o fenômeno bolsonaro

A milícia é um fenômeno, sobretudo, econômico, de construção de novas bases materiais na vida urbana. E nesse caso, o fato de parte da Barra da Tijuca aderir ao mesmo projeto político da população mais fortemente submetida ao jugo das milícias, indica que o modo de exploração econômica caro à milícia pode estar dando lugar a uma nova superestrutura que é, por princípio, antiestatal e genuinamente neoliberal

O Rio de Janeiro tem muito a ensinar sobre o fenômeno Bolsonaro para o Brasil, e embora isso seja óbvio, ainda não foi suficientemente levado a sério. Examinar a forma pela qual a milícia se espraiou no estado e como ela se converteu em um discurso que avançou sobre áreas ricas da cidade pode ser um bom começo. Afinal, a relação entre o atual presidente e seus filhos com a milícia não é apenas pessoal, mas ideológica, e isso precisa ser melhor compreendido.

Um bom ponto de partida para esse argumento aparece nos mapas apresentados pelo cientista político Antônio Alkmim em seminário recente, realizado pela PUC-Rio, e que também contou com a participação do deputado federal Marcelo Freixo (PSol-RJ). Ao fazer a cartografia do voto na cidade do Rio de Janeiro, Alkmim chama a atenção para o fato de que no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro teve sua maior concentração de votos no corredor que vai da região litorânea da Barra da Tijuca, onde vive parte da elite econômica da cidade, à região de Jacarepaguá, reduto principal e originário das milícias.

Elaboração Antônio Alkmin

Esse achado é ainda mais reforçado quando se analisa o perfil dos votos nas últimas eleições municipais realizadas dois anos depois. Além do candidato Eduardo Paes (DEM-RJ), que afinal se elegeria, e dos demais candidatos de centro esquerda e esquerda, concorreram o então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), sobrinho de Edir Macedo e representante da Igreja Universal, e o deputado federal Luiz Lima (PSL-RJ). Esses dois últimos disputavam o voto de direita e extrema direita. O mapa não podia ser mais sugestivo: enquanto Luiz Lima recebe quase toda a sua votação (cerca de 11% do total) nesse mesmo corredor composto pela Barra e a região de Jacarepaguá, Crivella impera em bairros da zona oeste da cidade onde a presença das igrejas neopentecostais é mais forte.

Elaboração Antônio Alkmin
Elaboração Antônio Alkmin
Duas constatações para uma análise

Desses mapas, cirurgicamente apresentados por Alkmim, tiramos pelo menos duas constatações que podem nos levar a uma análise de mais largo alcance da milícia como ideologia. Primeiro, o campo evangélico pode até ter algumas afinidades eletivas com o fenômeno bolsonaro, mas guarda autonomia em relação a ele; e segundo, a classe média e alta da Barra e os redutos empobrecidos e subjugados pela milícia apresentam uma surpreendente identidade política.

Explicar o quadro extraído desses mapas nos parece um exercício fundamental se queremos iluminar as raízes do fenômeno bolsonaro. Neste artigo, apresento algumas pistas que poderão ser úteis para a sua compreensão e o combate político e cívico desse monstro que nasceu no Rio e expandiu seus tentáculos pelo país.

Quanto à primeira constatação, não creio ser novidade, mas tampouco custa lembrar, que o campo evangélico é muito mais complexo do que se costuma acreditar. E se é verdade que algumas de suas grandes denominações têm se transformado em eficientes máquinas políticas, ainda assim, estamos falando de um terreno aberto a disputas, e que por isso mesmo pode hoje servir a Bolsonaro, como ontem serviu ao PT. O fato de Crivella ter galvanizado seu voto nos principais redutos evangélicos revela, sem dúvida, um poder de extração de voto importante, mas com baixa potencialidade para se converter em nova matriz ideológica. Para isso acontecer seria necessária uma base econômica própria, e nesse caso importa não esquecer que estamos falando basicamente de uma massa de trabalhadores empobrecidos e precarizados.

Apesar da emergência econômica das classes populares no período Lula-Dilma ter emprestado sentido ascendente e afirmativo à moralidade neopentecostal, a condição subalterna dessa população e a forma com que se relacionam com a esfera pública, comprometem seu poder transformador, tornando-a necessariamente dependente de alianças políticas e culturais para se autorreproduzirem.

Fenômeno econômico

O caso da milícia é diferente É, acima de tudo, um fenômeno econômico, de construção de novas bases materiais na vida urbana. E nesse caso, o fato de parte da Barra da Tijuca aderir ao mesmo projeto político da população mais fortemente submetida ao jugo das milícias, indica que o modo de exploração econômica caro à milícia pode estar dando lugar a uma nova superestrutura que é, por princípio, antiestatal e, por isso mesmo, genuinamente neoliberal. Quanto a isso, a cena da comemoração da vitória de Bolsonaro em torno da sua casa em condomínio da Barra teve efeito simbólico poderoso. O monstro gestado na extração da mais valia nas áreas populares havia se convertido em discurso capaz de arrastar as classes médias e altas da cidade.

Enquanto fenômeno fundamentalmente econômico, a milícia é global, fazendo-se presente, ainda que de diferentes maneiras, em diversas áreas populares do planeta, especialmente no hemisfério sul. E por suas próprias características, a lógica da milícia anima um discurso antiestatal e antipolítica. No mundo da milícia, o que vale é a lei do mais forte, que não reconhece direitos nem regulação; sua concepção de sociedade é a do hobbesianismo social: indivíduo, apetites, competição e eliminação física daqueles que representam um obstáculo aos seus negócios. A versão neoliberal do mundo periférico.

No Brasil, e muito especialmente no Rio de Janeiro, a principal singularidade desse fenômeno é o fato dele estar umbilicalmente associado à participação de policiais (majoritariamente militares, mas não apenas) da ativa e aposentados, que se valem de seu poder de fogo (literalmente) para impor a favelas e bairros empobrecidos seu domínio econômico, militar e político. A partir dessa condição, exercem um controle totalitário sobre os territórios onde pontificam, avançando sua empresa econômica especialmente nas franjas das cidades, lá onde o ilegal e o legal se misturam ao ponto de se tornarem indistinguíveis

Essa estreita conexão com forças policiais caracterizadas por uma cultura violenta, historicamente forjada na forma com que lidam com as favelas e periferias das cidades, empresta à forma miliciana brasileira o recurso a um discurso de ordem e o uso do medo como instrumento de dominação. No Rio de Janeiro, onde o fenômeno ganhou sua máxima expressão, a dominação ideológica miliciana cresceu e se alimentou da guerra ao tráfico, que transformou os territórios populares em campos de guerra. O terror das operações policiais nas favelas, e os enfrentamentos entre os próprios bandos de traficantes, retroalimentados pelas estratégias de segurança pública, serviram à perfeição para conferir à exploração econômica praticada pela milícia um discurso paraestatal de manutenção da ordem por meio da manipulação do medo.

Fenômeno bolsonaro

Essa característica da milícia no país é fundamental para que se possa compreender a natureza autoritária do fenômeno bolsonaro. De fato, na sua imaginação não está em jogo um autoritarismo de estado, à moda dos regimes militares sul-americanos dos anos de 1960 e 1970, mas sim um autoritarismo societal. O antiestatismo radical do modo de exploração da milícia é inconciliável com a presença de um Estado forte (autoritário ou não). Daí fazer parte do coquetel ideológico que está produzindo, a combinação entre a apologia do armamento da população e a defesa de uma noção de liberdade individual em face da autoridade do Estado que rejeita qualquer noção de coesão e solidariedade. Nada disso, vale frisar, pode ser facilmente digerido pelas lideranças das Forças Armadas, que, no entanto, se deixaram embalar pelo canto da sereia da raiz autoritária do fenômeno bolsonaro, não percebendo talvez o corpo inteiro do monstro. Mas essa hipótese ainda precisaria ser melhor investigada, afinal, o chefe da Casa Civil e agora ministro da Defesa, general Braga Netto, esteve à frente da intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro ao longo de 2018, e é impossível que não tenha mapeado a extensão da milícia na vida da cidade e de sua região metropolitana. O próprio assassinato de Marielle Franco, ainda no primeiro mês da intervenção, obrigaria a isso.

Do mesmo modo, faz parte de seu modelo autoritário a negação da política e de suas instituições, a começar pelos partidos. Sua estética dispensa os ritos e as mediações da política (o presidente no seu discurso de vitória na sala de sua casa). E sua ética recusa o princípio da representação, não no sentido clássico do “populismo”, mas de uma forma inteiramente nova. Em suas mãos, a política é completamente instrumentalizada, servindo apenas como meio de destruição do estado e da regulação pública. Não por acaso, câmaras de vereadores e prefeituras são especialmente importantes para os milicianos. Afinal, são elas que governam as cidades, e que deveriam regular o acesso ao solo, à construção civil, ao transporte público, e ao comércio e serviços em geral, em suma, aos principais ativos econômicos agenciados pela milícia. A infiltração na vida política se faz como um movimento que encurta as distâncias que eram próprias aos velhos esquemas clientelistas. Sem precisar gastar energia com as mediações políticas, a milícia avança diretamente ao legislativo e ao poder público, para, de posse deles, destruir qualquer obstáculo à livre realização de seus negócios. O mais preocupante, porém, é que essa evocação a uma ordem desprovida de poder público e dominada pelo medo imposto pela força paramilitar, e esse discurso antiestado, ainda que tosco, agrada e atrai setores do mercado e seus representantes. Afinal, como se sabe, o neoliberalismo vai bem com qualquer tipo de autoritarismo. Quanto a isso, o fato do governo Bolsonaro ter como ministro da economia um homem que quando jovem fez parte dos “Chicago boys” da ditadura de Pinochet, dispensa outras evidências.

A conversão do neoliberalismo miliciano em uma original matriz ideológica está em curso, e sua melhor expressão é a conformação de uma nova elite econômica, forjada pela produção e reprodução de capital alimentado pelo consumo popular. Com isso, também entram em cena estratégias de transformação de capital econômico e político em capital social e simbólico. Condomínios de luxo, escolas privadas, vida noturna, restaurantes, salões de beleza e academias perfazem circuitos de transformação do domínio econômico em novos símbolos de status. E tudo, claro, bem azeitado pelo uso intensivo das redes sociais. O fato é que os homens truculentos que controlam os becos das áreas populares, erguendo barricadas e cobrando pedágios espúrios de comerciantes e moradores, e impondo ágios em preços de aluguel e de botijões de gás, já transitam (com suas mulheres) pelos espaços valorizados da cidade, ostentando símbolos de riqueza que mal disfarçam sua base econômica.

Aderência do neopentecostalismo

O mais dramático é que essa nova burguesia, com seu antiestatismo e seu peculiar autoritarismo, tem conseguido aderência – ainda que circunstancial – à moralidade difusa do neopentecostalismo. É verdade que na voz de milicianos a evocação à Bíblia chega a ser um gesto obsceno (Bolsonaro citando versículos de João na sala de sua casa após a vitória), mas o peculiar apelo à ordem que vem da milícia pode casar bem com a fetichização da família e a perseguição a minorias sexuais, tão presentes em parte do discurso evangélico. De igual modo, a agenda do “Escola sem Partido”, que recusa a moralidade laica e republicana da escola pública, na exortação do que chamam de “ideologia de gênero”, reúne uma suposta defesa da moralidade cristã a um discurso contra o Estado, do qual a escola pública é talvez a sua mais importante expressão.

Igualmente relevante, e talvez ainda mais surpreendente, é que essa burguesia miliciana, que garante sua forma de reprodução não de práticas corruptas, mas da corrupção como prática, a começar pelo próprio uso dos recursos policiais, tenha conseguido aderência ao discurso anticorrupção, o qual, levado ao extremo, se encontra com a negação da política e a criminalização de suas instituições, não dispensando para isso nem mesmo a violação de princípios básicos do devido processo legal.

Mas é preciso que se reafirme que nem os aderentes ao discurso do combate à corrupção, nem os evangélicos neopentecostais precisam ser, necessariamente, aliados da ideologia miliciana. Eles não são, com certeza, “farinha do mesmo saco”.

Foi preciso uma pandemia devastadora para que o sinal de alerta soasse com mais força entre os liberais e conservadores que não se reconhecem com o antiestatismo e a antipolítica da ideologia miliciana. E talvez isso somente tenha ocorrido porque a pandemia revelou o mais perturbador elemento dessa ideologia, que de modo algum é surpreendente para quem conhece de perto a ética da milícia: o neoliberalismo miliciano nutre desprezo pela vida alheia – para quem viu o filme, é impossível não lembrar: da barbárie sangrenta de “Bacurau”. A antena sensível de Kleber Mendonça Filho captou a brutalidade de um novo tipo de sujeito, que já não reconhece o outro como humano. Esse novo tipo de sujeito bem pode ser lido como uma visão alegórica do mundo miliciano. E certamente não é por acaso que o mesmo cineasta, alguns anos antes, em “Som ao Redor”, interligue um grupo de milicianos das ruas de Recife com a herança do canavial escravocrata da zona da mata pernambucana.

O ataque mais frontal às milícias, no Rio e no país, dependeria de dois processos complexos: uma ampla reforma urbana e uma profunda reforma da polícia. Sem isso, elas deverão continuar a contar com condições muito favoráveis para se expandir. É preciso pegar um atalho. Por isso, o alvo nesse momento deve ser a cabeça do monstro, que é a sua expressão ideológica, a qual ainda se encontra em seu momento expansivo, buscando ampliar suas alianças. A comunhão entre os eleitores empobrecidos das áreas dominadas por milícias e os endinheirados e remediados da Barra denota, na ecologia peculiar do Rio de Janeiro, seu potencial de expansão. Para se combater esse coquetel ideológico será necessário, antes de mais nada, cortar seus nexos com o campo evangélico, retirando-lhe uma fonte importante de discurso moral. Quanto a isso, a demonstração cabal de seu desapreço pela vida, incompatível com qualquer leitura da Bíblia é, sem dúvida, o mais importante a ser feito. Do mesmo modo, é preciso revelar com maior intensidade que as práticas corruptas da milícia vão muito além das “rachadinhas”. Um caminho seria o do aprofundamento da investigação jornalística e jurídica dos escaninhos que permitem a estonteante expansão imobiliária das regiões dominadas por milicianos. Quanto a isso, as ruínas do edifício que desabou na favela da Muzema, e a história das centenas de outros que ainda estão de pé, certamente tem muito a revelar.

Quanto às reformas, viriam depois, mas terão que vir…

Marcelo Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio


Le Monde Diplomatique: Brasil, novo laboratório da extrema direita

O modelo neoliberal colocado em prática no Chile após o golpe militar de 1973 nos dá um panorama do que pode ocorrer no Brasil em um futuro governo de Jair Bolsonaro. E isso não é casual

Por Joana Salém e Rejane Hoelever

Ainda impactados pelos resultados eleitorais no Brasil, muitos se perguntam como a avalanche de votos na candidatura de Jair Bolsonaro e do general Hamilton Mourão (PSL) ocorreu e o que exatamente pode acontecer em um governo de extrema direita no país. Ainda estamos longe de ter as respostas, mas as conexões entre seu principal guru econômico, o empresário Paulo Guedes, e a ditadura de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990) nos trazem pistas valiosas sobre o modelo subjacente à sua plataforma.

Paulo Roberto Nunes Guedes, de 69 anos, era até há pouco quase desconhecido do público. Embora fosse colunista da revista Época e do Globoe fundador do Instituto Millenium, sua trajetória perfilada pela repórter Malu Gaspar mostrou que Guedes se manteve por décadas isolado do mainstream: rechaçou todos os planos econômicos e ministros da Fazenda que ocuparam a Esplanada nos últimos 35 anos, de José Sarney a Dilma Rousseff.1 Lendo alguns de seus artigos, fica claro o porquê. O economista demonstra aversão ao pacto social expresso na Constituição de 1988, que se interpõe como um obstáculo ao seu projeto político. Para ele, o Brasil sofre de uma “maldição dirigista”, que obstrui o “irreversível processo evolucionário […] rumo à Grande Sociedade Aberta” [sic].2

No Dia dos Trabalhadores de 2017, Guedes escreveu: “a direita hegemônica governou por duas décadas, e a esquerda hegemônica por três, ambas com um modelo econômico dirigista, desastroso”.3 Em sua mente, os trinta anos de democracia brasileira, com Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma, fazem parte da mesma “hegemonia de esquerda”. Diante de tal tábula rasa, não é difícil depreender suas preferências políticas. Se o sistema de direitos sociais garantidos na Constituição de 1988 chegou até o presente, pelo menos no papel, Guedes faz parte do grupo que pretende exterminá-lo, surfando na onda autoritária de Bolsonaro. Isso significa radicalizar a destruição do pacto democrático. Mas como?

De Chicago para o Chile

Guedes doutorou-se em Economia na Universidade de Chicago em 1978, um centro da corrente austro-americana do neoliberalismo, onde figuras como Milton Friedman já eram proeminentes.4 Como lembra o próprio Friedman no livro Liberdade de escolha, eram tempos em que seus “apóstolos” estavam “pregando no deserto”. Forjada em Chicago, a visão econômica extremista de Guedes não encontrou representatividade suficiente no Brasil até agora. Mas o contrário ocorreu no Chile. Primeiro laboratório da “doutrina do choque”, como Naomi Klein5 designou o processo resultante da aliança Friedman-Pinochet, lá os correligionários de Guedes encontraram pares perfeitos para seu plano econômico após 11 de setembro de 1973: o militarismo e o fascismo chilenos prometiam ao mesmo tempo repressão e “inovação”.

Vem da ditadura de Pinochet a inspiração das recentes propostas de Guedes para previdência e educação, alicerçadas na ideia de um “Estado subsidiário”. Antitética em muitos aspectos à Constituição brasileira de 1988, a Constituição chilena de 1980 foi imposta pela ditadura e preservada até hoje. Ao contrário do Estado garantidor de direitos, o Estado subsidiário chileno é desresponsabilizado de promover bem-estar e convertido em fiador da expansão dos mercados, o que ocorre por meio de transferências volumosas de recursos públicos ao setor privado e de um perverso endividamento popular.

Em Chicago, Paulo Guedes doutorou-se com uma tese de 63 páginas datilografadas.6 Seu trabalho, segundo apurou a Folha de S.Paulo, “nunca foi publicado nem teve repercussão no Brasil”,7 o que teria gerado em Guedes um ressentimento com colegas mais destacados. Essa amargura tornou-se pública recentemente, quando ele chamou sua ex-aluna, a economista Elena Landau, de “medíocre”,8 alegando que havia sido reprovada em seu curso de mestrado na PUC-Rio. Elena Landau, nove anos mais jovem que Guedes, foi uma das mais importantes economistas das privatizações de FHC, quando coordenou a venda da Eletrobras nos anos 1990, pela Comissão Nacional de Desestatização. Com o histórico escolar em mãos, Landau desmentiu o antigo desafeto: “Paulo é que era um péssimo professor. Faltava às aulas, não corrigia exercícios”.9

Também desperta suspeitas a forma como o professor Paulo Guedes ingressou na Universidade do Chile, no início dos anos 1980, auge da ditadura, após uma larga onda repressiva que varreu intelectuais críticos. Como mostra Federico Fullgraf,10 as universidades foram vistas pela ditadura chilena como um dos principais “teatros de guerra”, um território a ser retomado do “inimigo marxista”. No lugar dos opositores, foram colocados professores alinhados com o pensamento único que se impôs manu militari no ambiente acadêmico chileno. Desde a década de 1950, Milton Friedman e seus consortes atraíram economistas chilenos para Chicago, buscando reinseri-los em postos acadêmicos nas principais universidades do país. Contudo, foi apenas com Pinochet que a experiência política dos Chicago Boys se consolidou. E Guedes se integrou a esse fluxo.

Junto com ele, o colega e empresário chileno de origem árabe Jorge Constantino Demetrio Selume Zaror, de 67 anos. Ao voltar de Chicago, onde conheceu Guedes, Selume também integrou a cátedra de Economia da Universidade do Chile, mas em poucos anos tornou-se diretor de Orçamento da ditadura Pinochet e dirigiu operações de privatização de empresas estatais, como a Chilectra e a Entel. Simultaneamente, construiu um império financeiro que incluía bancos e propriedades. Entre elas, a fazenda Rupanco, de 47 mil hectares, que havia sido entregue aos trabalhadores pela reforma agrária durante o governo de Salvador Allende, mas em 1979 foi apropriada pelos militares e transferida para a companhia El Cabildo S.A., que mais tarde passou para as mãos do clã de Jorge Selume.11 Segundo Fullgraf, “Selume é uma espécie de porta-voz oficioso do núcleo duro empresarial pinochetista”.12

Foi assim, ocupando o lugar de professores arbitrariamente expulsos de seus cargos pela ditadura, que Guedes abandonou seus empregos parciais na PUC-Rio, no IMPA e na FGV-Rio, recebendo, segundo ele próprio, um “irrecusável” salário de US$ 10 mil. Perguntado sobre seus vínculos com a ditadura chilena, entretanto, tergiversa: fala sobre suas supostas qualidades acadêmicas para ser contratado e menciona um episódio no qual sua sala teria sido inspecionada pela polícia política de Pinochet.13

Aposentadoria privatizada e choque de pobreza

Nos anos em que Guedes viveu no Chile, José Piñera, o mais poderoso Chicago Boy e irmão do atual presidente, Sebastián Piñera, colocava em prática a privatização completa da previdência, decretada pelo ditador Pinochet em 13 de novembro de 1980. Nesse sistema, formado hoje por um oligopólio de seis fundos privados de pensão (AFP), os assalariados são obrigados a entregar 10% do salário para especulação capitalista, sem contribuição patronal. Atualmente, após trinta anos de contribuição, 90% dos chilenos recebem aposentadorias que valem metade do salário mínimo do país, cerca de 154 mil pesos (R$ 821).14 Sintomaticamente, a privatização da previdência excluiu os militares.

Impulsionado por um discurso pró-capitalização que pautou as fracassadas tentativas de reforma da previdência de Michel Temer em 2017, o sistema AFP chileno representa o confisco da aposentadoria de mais de 10 milhões de trabalhadores. Hoje, cinco das seis AFPs existentes administram nada menos que 69,6% do PIB do país e 94,6% das contribuições previdenciárias, tendo acumulado em 2017 lucros de US$ 1,5 milhão por dia, segundo calculou a Fundación Sol.15

O sistema de arrecadação é individualista, não solidário, pois cada trabalhador depende exclusivamente de si mesmo para “incrementar” o valor de sua pensão. Para piorar, os pensionistas ficam suscetíveis à volatilidade do mercado, aprisionados a uma modelagem matemática blindada pelas próprias AFPs. Nos últimos anos, a crise da aposentadoria tem levado a dramáticos números de suicídio de idosos no Chile: quase mil em apenas cinco anos. Desde 2016, a indignação popular contra a previdência privada no Chile ganhou as ruas em gigantescas manifestações, com o movimento #No+AFP.

No Brasil, o projeto que aprofundaria a deterioração da previdência pública foi rechaçado pela população em 2017. Mas a resistência popular foi apenas um dos fatores que obstruiu sua aprovação no governo Temer, que se viu emaranhado com as custosas dinâmicas de chantagens de um sistema partidário corrupto. Não é demais lembrar que o próprio Paulo Guedes é investigado na Operação Greenfield da Polícia Federal, sob suspeita de gestão fraudulenta de sete fundos de pensão, que lhe teria rendido R$ 6 bilhões entre 2009 e 2013. Há indícios de lavagem de dinheiro com uso da empresa HSM Educacional S.A., por meio da qual o anunciado futuro ministro recebeu quantias milionárias por “palestras”.16

A cruzada privatista de Paulo Guedes encontra, de um lado, a resistência das ruas e, do outro, uma máquina emperrada da governabilidade, na qual todos querem participar do butim. Por isso, saudosista de Pinochet, a ele convém que seu “choque de capitalismo”17 se imponha com militarismo. E em benefício próprio.

Clãs neopinochetistas e big data

Em Santiago, o Instituto Millenium possui um irmão ideológico com muito mais influência sobre a política do seu país: o Instituto Libertad y Desarrollo (LyD), um aparelho privado, de caráter empresarial, fundado em 1990 no luxuoso bairro de Las Condes. Organizado por empresários e ministros do alto escalão da ditadura Pinochet, entre eles Hernán Buchi, Carlos F. Cáceres, Cristián Larroulet e Luis Larrain Arroyo, o instituto é reconhecido por sua habilidade de realizar portas giratórias, isto é, quando executivos de grandes corporações entram no governo e consolidam, por dentro do Estado, suas posições no mercado.18

Desse aparelho saíram dez quadros de alta relevância no atual governo de Sebastián Piñera, que recentemente declarou: “no [aspecto] econômico Bolsonaro aponta na direção certa”.19 Não é apenas a família Piñera que vê a onda bolsonarista com bons olhos. Seu concorrente de extrema direita nas eleições chilenas de 2017, José Antonio Kast, é quem mais tem investido na aliança. O empresário de origem alemã obteve 523.213 votos, alcançando o quarto lugar na última corrida presidencial. No dia 18 de outubro, Kast veio ao Rio de Janeiro para encontrar-se com Bolsonaro. Em sua conta do Facebook, publicou uma foto sorridente ao lado do capitão: “Hoje nos reunimos com Jair Messias Bolsonaro e lhe desejamos o maior êxito na eleição. Presenteamo-lo com a camisa do Chile, para que sigamos fortalecendo a relação entre ambos países e juntos construirmos uma aliança que derrote definitivamente a esquerda na América Latina”.20

Além da admiração por Pinochet, Kast e Bolsonaro compartilham uma política de clãs.21 O senador Felipe Kast, sobrinho de José Antonio Kast, concorreu às prévias dentro da coligação na qual triunfou Piñera e foi seu ministro do Planejamento no governo anterior. Na campanha das prévias, Felipe Kast contou com a colaboração especial de Jorge Selume, filho homônimo do empresário que estudou com Guedes, um psicólogo de 37 anos, recentemente nomeado secretário das Comunicações do governo de Piñera. No portfólio de Selume, o filho, há um diploma da Universidade Andrés Bello (que pertence à multinacional Laureate, dirigida por seu pai) e anos de trabalho para a Cambridge Analytica. Não menos importante é o fato de que o psicólogo Selume é dono da Artool, a maior empresa chilena de big data.

Se há indícios de que a campanha de Bolsonaro no Brasil pode ter sido agraciada – como foi a de Donald Trump nos Estados Unidos – com o roubo de milhões de dados pessoais de cidadãos nas redes sociais, entre elas o WhatsApp, e a difusão de fake news em escalas totalmente inéditas, a extrema direita chilena detém todas as ferramentas para reproduzir os mesmos métodos.

Portas giratórias da educação privada

O estreito círculo da extrema direita brasileira e chilena se fecha com o empresário Jorge Selume. Como dissemos, ele foi colega de Paulo Guedes em Chicago nos anos 1970. Nos anos 1980, construiu um império econômico graças à maior operação financeira realizada no Chile até então. Junto a Las Diez Mesquitas, um consórcio de empresários árabes, comprou o Banco Osorno e o vendeu ao Santander em 1985 por US$ 495 milhões.22 Na mesma época, ocupava a Diretoria de Orçamento do regime Pinochet.

Hoje fica cada vez mais claro que educação e cultura são fronteiras prioritárias para a expansão dos negócios neopinochetistas. O psicólogo Jorge Selume, por meio da Artool, criou uma poderosa máquina de comunicação e marketing político. Com ela, em 2016 alavancou a eleição de 46 prefeitos do partido Renovación Nacional com uso de técnicas da Cambridge Analytica. Além disso, entre os principais clientes da Artool estão o Banco de Chile e o Banco Santander, que juntos reúnem pelo menos metade da população com conta bancária no país.23

Enquanto isso, Jorge Selume, o pai, há algum tempo investe no ramo da educação e tornou-se um dos mais influentes executivos da multinacional Laureate, sob suspeitas de fraudes no sistema de acreditação da educação privada.24 No Brasil, a Laureate tem priorizado o ensino a distância. Não por coincidência, Guedes defende um “choque de inclusão digital no ensino básico”, Bolsonaro fala em ensino a distância para crianças e o nome de Stavros Xanthopoylos, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Educação a Distância, foi cotado para o Ministério da Educação de um futuro governo de extrema direita. Caso a pasta ainda exista.25

 O que nos aguarda?

Em sua primeira entrevista à imprensa internacional após a publicização de sua conexão com Bolsonaro, em novembro de 2017, Guedes afirmou: “Os últimos trinta anos foram um desastre – corrompemos a democracia e estagnamos a economia […]. Deveríamos ter feito o que os Chicago Boys defendiam”.

Questionado por associar-se a um conhecido defensor da ditadura militar brasileira, em meio a um evento organizado pelo banco Crédit Suisse em São Paulo, Paulo Guedes classificou esse tipo de pergunta como um “patrulhamento” e, ao mencionar suas longas conversas com Bolsonaro, repetiu um de seus bordões favoritos: “Quer saber se a ordem está conversando com o progresso?”.26

Não é muito difícil decifrar a mensagem por trás dessas linhas. A primeira vez que a América Latina viu uma união orgânica entre militares e Chicago Boys em um governo foi em 1973 no Chile, um capítulo da história mundial escrito com baldes de sangue. Aos brasileiros resta saber que situação essa perigosa associação ainda pode engendrar.

 

*Joana Salém faz doutorado em História Econômica na USP; Rejane Hoeleveré professora de Ciências Sociais da FGV Rio e faz doutorado em História na UFF.