José de Souza Martins

'Celebração do 7 de Setembro de 2022 será o réquiem da pátria'

Flavio Cabral, Valter Pomar, Marcos Napolitano, José de Souza Martins e Werneck Vianna analisam o que há para celebrar no 7/9 e os desafios para reconstruir o país

João Vitor Santos e Patricia Fachin / IHU Online

Aniversários são sempre momentos de revisões e projeções, por mais que alguns resistam. Com uma nação não é diferente. No Brasil, que em breve comemorará 200 anos de independência de Portugal, o 7 de Setembro de 2021 parece ter um gosto estranho. Afinal, ainda patinamos num atoleiro de crises. Na política e entre as instituições que devem resguardar essa independência e democracia, disputas estéreis parecem ainda tragar a população para esse lamaçal. Assim, ao invés de desfile e paradas cívicas nas ruas, o país aguarda atônito a promessa de manifestações e até confrontos entre apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e aqueles que não aceitam o negacionismo, o populismo, a corrupção e o totalitarismo, ou mesmo quem não aguenta mais tantas mortes pela Covid-19 e não tem trabalho e o que pôr na mesa. Então, o que este 7 de Setembro de 2021 significa? É nesse debate que o Instituto Humanitas Unisinos - IHU mergulha, consultando algumas vozes que podem nos ajudar a clarear o horizonte.

Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, há apenas uma razão para celebrarmos o 7 de Setembro deste ano: “a resistência do povo brasileiro, de várias camadas sociais, a esse regime arbitrário que tenta negar e destruir o sistema de liberdade que construímos ao longo das últimas décadas”. Em entrevista ao IHU via plataforma de videochamadas Microsoft Teams, ele diz que as manifestações previstas para esta terça-feira “são tambores de guerra que rufam do lado do governo”. E acrescenta: “para o governo, a legalidade é sentida como algo muito perigoso e por isso é preciso interromper a legalidade democrática, porque ela se volta naturalmente contra a natureza autocrática desse governo”.

Já o sociólogo José de Souza Martins não vê motivos para celebrarmos a data. “Rigorosamente falando, não temos nada a celebrar. Estamos passando, coletivamente, por um dos piores momentos da história brasileira”, disse em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Ao invés de manifestações nas ruas, sugere, “talvez seja o momento de pensar na pátria em silêncio, em casa e nas igrejas, já que será feriado. Como um ato de contrição e de reflexão crítica sobre nossos erros políticos e nossos impasses históricos. A pátria está em perigo porque mergulhada no abismo da incerteza, dos desmandos do mau governo, da falta de um projeto de nação, de um reconhecimento das radicais necessidades dos simples, dos desvalidos, dos socialmente excluídos, dos famintos, das famílias em número cada vez maior, de adultos e crianças, que dormem ao relento, sob frio e chuva”.

O historiador e dirigente político Valter Pomar é direto ao considerar que “o Brasil precisa de uma nova independência. Aquela que será bicentenária em 2022 manteve a monarquia e a escravidão, sem falar que deixamos de ser colônia portuguesa para virar semicolônia inglesa”. Na entrevista concedida por e-mail ao IHU, ainda insiste na necessidade de ações de resistência ao atual governo, mas também faz a tão falada autocrítica à oposição. “Me preocupo mais com certas atitudes de setores da esquerda, tipo não defender o Fora Bolsonaro, tipo não querer fazer manifestações de rua, tipo propor não fazer o Grito dos Excluídos no dia 7 de setembro, tipo achar que 2022 está garantido etc. Acho que falta lógica para estes setores ‘quietistas’ da esquerda”, critica.

Já o historiador pernambucano Flavio Cabral diz que esse cenário do Brasil de 2021 lembra muito os confrontos de Pernambuco em 1820, quando um certo governador régio da província ignorava as transformações do mundo. “Muitas vezes Luís do Rego não queria observar as reformas políticas desencadeadas a partir de 1820. Frequentemente ele juntava os aliados e fazia determinado tipo de manifestação, conclamava as pessoas a ficarem do lado dele, da dita liberdade”, explica, na entrevista concedida ao IHU via chamada de áudio pelo WhatsApp. O curioso é que Rego defendia uma tal liberdade, mas na verdade queria assegurar a velha ideia de despotismo esclarecido e as benesses de um governo régio nas províncias. “Foi um momento crucial de nossa história, em que vemos como as independências foram diferentes nas províncias. Quando vi o anúncio dessas manifestações de 7 de Setembro de 2021, fiquei lembrando desse momento aqui de nosso estado, com o governador de um lado e os liberais de outro, se atracando”, completa.


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Marcos Napolitano, um dos historiadores referência quando o assunto é Brasil Republicano, compreende as crises que temos vivido especialmente a partir de 2016. “Mesmo com os avanços das políticas públicas que tivemos desde 1995, mas sobretudo entre 2003 e 2016, corrupçãofisiologismo político e desigualdade social crônica permaneceram como chagas nacionais”, observa na entrevista concedida por e-mail ao IHU. Por isso, acredita que “construir um país mais democrático e igual passa pela revalorização da racionalidade, institucionalidade e decoro na política, pela construção de consensos civilizatórios mínimos entre setores da esquerda e da direita republicana e liberal visando reconstruir as políticas públicas voltadas para alguma inclusão social e isolar – política e institucionalmente falando – o autoritarismo de extrema direita”.

Flavio José Gomes Cabral é doutor e mestre pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru - Fafica, professor de História da Universidade Católica de Pernambuco - Unicap. Ainda é pesquisador associado do Museu de Arqueologia e Ciências Naturais da Unicap e tem se dedicado a temas como América portuguesa (séculos XVIII e XIX), leitura, movimentos messiânicos, imprensa, cultura política da Independência do Brasil, história de Pernambuco, História municipal.

Valter Pomar é historiador formado pela Universidade de São Paulo - USP, mestre e doutor em História Econômica pela mesma instituição. Foi secretário de Cultura, Esportes e Turismo da Prefeitura Municipal de Campinas de 2001 a 2004. É professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC - UFABC e dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores - PT.

Marcos Napolitano é doutor e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo - USP, onde também graduou-se em História. Atualmente, é professor titular de História do Brasil Independente e docente-orientador no Programa de História Social da USP. É assessor ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e do CNPq. Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar, e na área de história da cultura, com foco no estudo das relações entre história e audiovisual, tem, entre seus livros publicados, Coração Civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) - ensaio histórico (São Paulo: Intermeios - Casa de Artes e Livros, 2017) e 1964: História do Regime Militar Brasileiro (São Paulo: Editora Contexto, 2014).

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor-visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016).

Confira as entrevistas.

IHU – O que temos a celebrar neste 7 de setembro e o que significa a data em meio à crise política em que o país está imerso?

Flavio José Gomes Cabral – O 7 de Setembro é um momento bastante interessante, porque tem toda uma tradição, mas também é um momento de fazermos várias reflexões. É sim um momento a se celebrar, mas é uma celebração com o intuito de podermos fazer contrapontos, observar o que avançamos e o que temos ainda por avançar. Que liberdades foram essas? Para quem foi essa liberdade da Independência?

Flávio Cabral: "7 de setembro é momento a se celebrar e observar o que avançamos e o que temos ainda por avançar". Foto: Unicap

O quadro do Grito do Ipiranga é muito sugestivo, especialmente a figura daquele senhorzinho à esquerda de D. Pedro, que está com uns bois. Enquanto temos ali no centro a figura daquele que seria o futuro imperador, temos o povo que está ali sem saber bem o que estava acontecendo. Que grito é esse que se está ouvindo? Ali, claramente se percebe que poucos estão escutando, poucos ouviram. Os indígenas, os negros, as mulheres, as classes excluídas em que a Independência não avançou sobre as suas condições.

Na obra clássica de Pedro Américo, Independência ou Morte, o professor chama atenção para a imagem do homem com seus bois ao fundo à esquerda, bem em cima, que parece estar alheio a toda a movimentação
(Imagem: reprodução Google Artes)

Podemos também celebrar alguns avanços de crescimento tecnológico, mas ainda temos muito a fazer nesse sentido. Ainda temos uma educação que precisa ser bastante melhorada para atender os reclames das classes menos privilegiadas. Temos também uma saúde que não é para todos. Assim, temos mais o que pensar do que vamos querer, porque essa liberdade ainda está muito limitada a alguns grupos. É um Brasil que ainda não olhou para toda sua população.

Então, o 7 de Setembro é um momento celebrativo sim, mas também é um momento de fazer uma reflexão. Tocam-se os tambores, coloca-se toda a cavalaria na rua, é feito todo aquele estardalhaço, mas aquilo ali parece esconder que por detrás de tudo tem um país que está descalço, um país que ainda precisa avançar, e muito.

O Brasil precisa de uma nova independência. Aquela que será bicentenária em 2022 manteve a monarquia e a escravidão, sem falar que deixamos de ser colônia portuguesa para virar semicolônia inglesa
Valter Pomar

Valter Pomar – Temos que celebrar a disposição de luta de uma parte importante do povo brasileiro. Afinal, o Brasil precisa de uma nova independência. Aquela que será bicentenária em 2022 manteve a monarquia e a escravidão, sem falar que deixamos de ser colônia portuguesa para virar semicolônia inglesa. Precisamos de uma independência de verdade, com efetiva igualdade e liberdade para a imensa maioria de nosso povo. E isso só virá com muita luta, com muita disposição de fazer transformações verdadeiramente revolucionárias.

Valter Pomar: "Precisamos de uma independência de verdade, com efetiva igualdade e liberdade para a imensa maioria de nosso povo". (Foto: 180 Graus)

Marcos Napolitano – Datas comemorativas são sempre uma oportunidade de a sociedade refletir sobre seu passado, seu presente e seus projetos de futuro. Estas reflexões devem ser críticas, e ir além da mera celebração ufanista. Acho que o "Sete de Setembro" é uma data que deve propiciar uma reflexão sobre que nação queremos ser e que podemos ser.

Napolitano: "Sete de setembro é uma data que deve propiciar uma reflexão sobre que nação queremos ser e que podemos ser". Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

Da minha parte, acho que a sociedade nacional brasileira, mesmo com seus conflitos e contradições, deve buscar alguns consensos mínimos em torno da democraciapluralidade culturalinclusão social e direitos humanos, como base do seu projeto civilizacional. Isto significa rechaçar – no cotidiano, na cultura, nas eleições, nas instituições jurídicas e políticas – todos os projetos autoritários e regressivos que nos ameaçam.

Há uma coisa importante a celebrar: a resistência do povo brasileiro
Luiz Werneck Vianna

Luiz Werneck Vianna – Há uma coisa importante a celebrar: a resistência do povo brasileiro, de várias camadas sociais, a esse regime arbitrário que tenta negar e destruir o sistema de liberdade que construímos ao longo das últimas décadas. Apenas isso.

José de Souza Martins – Rigorosamente falando, não temos nada a celebrar. Estamos passando, coletivamente, por um dos piores momentos da história brasileira. O país desgovernado, a economia em crise e mal administrada, a sociedade em estado de anomia, na incerteza, sobrecarregada de problemas sociais sem perspectiva de solução.

Celebrar uma data como a do aniversário da Independência depende muito de que o fato celebrado esteja corretamente inscrito na memória social. Significa que a população se conceba como nação, que tenha memória de fatos históricos de que ela se considere propriamente herdeira. E essa efeméride, como outras, não o está na identidade do brasileiro.

Brasil: colônia do Estado brasileiro

Desde o próprio dia 7 de setembro de 1822, não só o acontecimento vem sendo usurpado como episódio da história do povo e como memória do povo. Como já mostrou Fernando Henrique Cardoso, em artigo dos anos 1970, a independência brasileira não resultou de uma revolução que definisse um ator coletivo, uma sociedade rebelada contra a dominação colonial, agindo como sujeito social e político. Único país da América Latina em que a Independência não foi feita por meio de uma revolução da sociedade contra a dominação colonial.

Não foi aquele acontecimento o fato inaugural da sociedade civil entre nós, dotada de identidade e vontade coletiva. Foi o Estado que proclamou a Independência, na pessoa do herdeiro da Coroa, para uma sociedade sem protagonismo histórico. E assim permanecemos. Deixamos de ser colônia de Portugal para ser colônia do Estado brasileiro e por meio dele colônia do Exército. As revoluções populares no Brasil, como a de Canudos e a do Contestado, como as tentativas do período ditatorial, foram não raro induzidas para legitimar a repressão em nome do Estado totalitário.

Neste 7 de setembro os cúmplices desse projeto anti-histórico e antinacional estarão nas ruas, de moto, a pé ou a cavalo para desafiar e sufocar o alento de liberdade e de independência refugiado em nosso peito
José de Souza Martins

Já na documentação das revoluções tenentistas está claro que o objetivo dos militares era tutelar a sociedade porque supostamente desprovida dos atributos da cidadania. Uma sociedade em que a grande massa do povo vinha da escravidão.

Essa mesma mentalidade nos domina até hoje. Na palavra e nos atos do atual governante, dos que o rodeiam e bajulam e dos próprios militares, o projeto da tutela do povo muda de forma, mas permanece. Neste 7 de setembro os cúmplices desse projeto anti-histórico e antinacional estarão nas ruas, de moto, a pé ou a cavalo para desafiar e sufocar o alento de liberdade e de independência refugiado em nosso peito.

história política brasileira, no ato da Independência, inaugurou o roteiro de um desempenho político subalterno do povo, um povo conformista e manipulado. A história das revoluções brasileiras não é uma história do povo. Frequentemente é uma história das forças armadas, uma história de imposições e não uma história de conquistas sociais e políticas.

Deixamos de ser colônia de Portugal para ser colônia do Estado brasileiro e por meio dele colônia do Exército
José de Souza Martins

José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)

Dia da Independência: símbolo da militarização da pátria

Há muitos anos a celebração do Dia da Independência deixou de ter a relevância e o brilho que costumava ter até meados dos anos 1960. Desde o Estado Novo, o 7 de setembro fora capturado pela mentalidade do regime e, particularmente, pela acentuação da militarização que ocorreu no período da Segunda Guerra Mundial com a participação direta da Força Expedicionária Brasileira nos campos de batalha da Itália. Um desempenho épico que emocionou o povo brasileiro. Nas escolas as crianças desfilavam nesse dia, como soldadinhos de um exército imaginário. Vencido o Estado Novo, o 7 de setembro continuou a ser um episódio dos símbolos da militarização da pátria, uma pátria em guerra, mesmo já não havendo guerra. Uma pátria de inimigos imaginários e inventados por gente que tem poder, mas não tem cultura política, como se vê nestes momentos dolorosos de uma pátria entre parênteses.

golpe militar de 1964 reacentuou a mentalidade militarizante dos símbolos pátrios. O Brasil que não conseguira construir uma identidade nacional civil, democrática e pluralista foi subjugado pela concepção equivocada de que o patriotismo só o era na perspectiva militar, sendo impossível um patriotismo civil. Embora não haja nada mais patriótico do trabalho de milhões de pessoas que construíram este país, muitos produzindo riqueza ainda crianças, tendo como única recompensa a pobreza de futuro, o desvalimento, o abandono. Sei do que estou falando. Conheço essa história desde os onze anos de idade, já no trabalho, ganhando muito menos do que valia o meu trabalho para uma pátria que me roubava a infância.

Essa realidade afastou os civis e democráticos da concepção patrioteira de pátria e de celebração da pátria. Durante a ditadura, porque o país estava dominado pela ideia de uma pátria militarizada e de uma sociedade civil defeituosa porque oposta à militarização e à repressão militar, porque civil.

Cresceu o desinteresse pelas celebrações patrióticas. As novas gerações sentindo-se desencaixadas e sem motivação. A ideia de uma pátria de todos era desmentida pela realidade de uma pátria de alguns, um número enorme de brasileiros sem acesso a direitos próprios de uma sociedade democrática, excluídos.

É difícil esperar algo da ideia de pátria neste 7 de setembro, num momento de desilusão, amargura, morte e luto incompatíveis com sentimentos de comunidade e de pátria.

A ideia de uma pátria de todos era desmentida pela realidade de uma pátria de alguns, um número enorme de brasileiros sem acesso a direitos próprios de uma sociedade democrática, excluídos
José de Souza Martins

IHU – O que vislumbra para as manifestações desse dia?

Flavio José Gomes Cabral – Penso nessas manifestações com muito cuidado, com certo temor e receio. Não vai haver desfile, etc., mas se conclama o povo a ir para rua defender determinadas causas. Isso é muito complicado em um momento em que se dizia que devemos comprar armas e o alimento fica para depois. Então, quem comprou armas e não comprou alimento? O armamento é uma coisa complicada.

As manifestações são por liberdade, mas que liberdade é essa? Parece haver liberdades que extrapolam determinados limites da própria liberdade. Precisamos realmente pensar, refletir, sobretudo, com receio em relação a esses chamamentos. Que chamamentos são esses?
Flavio Cabral

Por isso vejo que esse é um momento em que devemos ter muito receio do que pode acontecer. As manifestações são por liberdade, mas que liberdade é essa? Parece haver liberdades que extrapolam determinados limites da própria liberdade. Precisamos realmente pensar, refletir, sobretudo, com receio em relação a esses chamamentos. Que chamamentos são esses? Que ruas são essas que estarão aí salpicadas de pessoas e o que essas pessoas estão portando? E que busca de liberdade é essa que estão querendo? Me parece que é uma liberdade mais para atender a demanda do chefe da nação, o chefe do Executivo nacional. Nunca escutei em nenhum momento coisa desse tipo. Quando isso vem da voz de uma pessoa que ocupa uma posição tão importante, nos deixa de sobreaviso. O que essas ruas vão fazer?

Temos que aprender muito com a História, o que aconteceu em momentos como esses. As pessoas iam para a rua, mas pensando no direito de cada um, quando um não olha para o outro. Não é o momento para esse tipo de manifestação, ao menos se realmente é como ouvimos na mídia. O que se diz é que há um chamamento para defender uma liberdade que seria a do chefe do Executivo nacional, que está propondo a não observância de determinadas questões, até mesmo inconstitucionais.

História

Aqui em Pernambuco, nós tivemos passagens de nossa história muito complicadas. Essa independência de que falamos é um longo processo, é interessante ver também como se dá o processo de independência nos estados. Eu estudo muito o período depois da Revolução do Porto [movimento liberal que eclodiu a 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto, em Portugal, e que teve repercussões no Brasil. O movimento resultou no retorno (1821) da Corte Portuguesa, que se transferira para o Brasil durante a Guerra Peninsular, e no fim do absolutismo em Portugal, com a ratificação e implementação da primeira Constituição portuguesa (1822)], e o governo de Luís do Rego Barreto, um sujeito que governou Pernambuco a partir de 1817 e vai ser chamado de déspota pelos liberais da época.


Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Protestos contra Bolsonaro em Brasília (24/07/2021). Foto: Ricardo Stuckert
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Muitas vezes Luís do Rego não queria observar as reformas políticas desencadeadas a partir de 1820. Frequentemente ele juntava os aliados e fazia determinado tipo de manifestação, conclamava as pessoas a ficarem do lado dele, da dita liberdade. Aliás, liberdade que, naquela época, tinha um sentido diferente, era liberdade de imprensa, liberdade de pensar e tudo isso ele reprimia. Mas, no momento em que vem a notícia da revolução do Porto e tudo muda, vai haver um governo que não será mais régio, e sim uma junta que passa a governar. E ele, então, luta aqui em Pernambuco até o fim para não entregar o governo e fazer as reformas, e as ruas se sublevam, tanto do lado dos partidários dele, como do lado do liberalismo, dos constitucionais.

Fazia-se muita panfletagem, mas havia fortes confrontos, prendendo pessoas com muita violência. Foi um momento crucial de nossa história, em que vemos como as independências foram diferentes nas províncias. Quando vi o anúncio dessas manifestações de 7 de Setembro de 2021, fiquei lembrando desse momento aqui de nosso estado, com o governador de um lado e os liberais de outro, se atracando, inclusive os que conseguiram a liberdade depois dos problemas de 1817 [Revolução Pernambucana], que saíram da Bahia e foram combater o governador no norte da província, em Goiânia. Aliás, este ano se celebra o bicentenário da Junta de Goiânia, que tentava combater, desestabilizar e que foram verdadeiramente confrontos.

Quando vi o anúncio dessas manifestações de 7 de Setembro de 2021, fiquei lembrando desse momento aqui de nosso estado, com o governador de um lado e os liberais de outro, se atracando
Flavio Cabral 

Militares na rua

Luís do Rego botava os militares na rua, enquanto do outro lado os senhores de engenho arregimentavam pessoas para combater. Tudo isso hoje me lembra muito aquele momento conflitante que foi o ano de 1822. No final todo o conflito foi decidido pelas cortes de Lisboa, determinando a saída do governador porque não tinha mais condições de manter governadores régios nas províncias da América Portuguesa. Muitas vezes olho esse quadro que vivemos e penso nessa conexão lá atrás com Pernambuco, numa ocasião que foi bastante difícil.

Valter Pomar – Logo saberemos quantas pessoas vão atender a convocatória do bolsonarismo. Eles estão fazendo um esforço imenso – nas redes, nos quartéis, nas igrejas e empresas aliadas – e estão difundindo um discurso agressivo e golpista. Portanto, é possível que haja bastante gente nas manifestações deles e é possível que cometam atos de violência. Não devemos descartar, inclusive, que promovam “atentados com falsa bandeira”, promovidos pela extrema direita mas atribuídos à oposição.

Da nossa parte, devemos nos esforçar para que em todas as cidades do país haja manifestações pelo Fora Bolsonaro, preparadas por atividades menores nas periferias, nos locais de trabalho, de moradia, de estudo, nos espaços de cultura e lazer. Quanto maior o comparecimento, maior será a segurança das manifestações. Devemos estimular as organizações partidárias, sindicatos e movimentos a organizarem blocos, que compareçam unidos e identificados aos atos, assim como dispersem em ordem ao final. Devemos contribuir, também, para que todas as manifestações organizem sistemas de comunicação e de registro em vídeo e fotografia dos atos. E para que todas as manifestações contem com equipes que impeçam a ação de provocadores e infiltrados.

Nosso objetivo no dia 7 de setembro não é o de colocar mais pessoas que eles; nossos objetivos são realizar o Grito dos Excluídos, como fazemos desde 1995, e garantir o direito democrático à manifestação
Valter Pomar 

Ou seja, além das medidas sanitárias de proteção contra o vírus, é preciso tomar medidas políticas e de segurança contra os cavernícolas aliados do vírus. Nosso objetivo no dia 7 de setembro não é o de colocar mais pessoas que eles; nossos objetivos são realizar o Grito dos Excluídos, como fazemos desde 1995, e garantir o direito democrático à manifestação, ameaçado não apenas por Bolsonaro mas também por governos como o do estado de São Paulo, que tentou impedir que a oposição pudesse se manifestar no dia 7 de setembro.

Marcos Napolitano – Acho que será o retrato de um país ainda muito polarizado e dividido. Embora a extrema direita autoritária não tenha o mesmo apoio social do passado recente, ainda estão muito mobilizados e com apoiadores ativos em setores-chave: polícias militares, lideranças religiosas, comunicadores populares, pequenos empresários, grandes entidades empresariais. O raio social atingido por estes grupos é muito grande, e suas redes de comunicação são muito competentes.

Luiz Werneck Vianna – Na verdade, são tambores de guerra que rufam do lado do governo. Para o governo, a legalidade é sentida como algo muito perigoso e por isso é preciso interromper a legalidade democrática, porque ela se volta naturalmente contra a natureza autocrática desse governo. Esse governo não está satisfeito com o tipo de autoritarismo que tem vivido; ele quer mais. Ele quer ter o controle político e social de tudo na sociedade para fazer não sei bem o quê.

Esse governo não está satisfeito com o tipo de autoritarismo que tem vivido; ele quer mais. Ele quer ter o controle político e social de tudo na sociedade para fazer não sei bem o quê  
Luiz Werneck Vianna

Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)

José de Souza Martins – Os apelos autoritários em favor de uma exibição de força e de poder de dominação de grupos minoritários e alienados poderão levar às ruas aqueles que acham que patriotismo é usar cueca verde e amarela. Os que se acham os únicos patriotas da pátria. É possível que até hostilizando os que têm sido satanizados como antipatriotas porque adversários da prepotência e da estupidez na política.

Talvez seja o momento de pensar na pátria em silêncio, em casa e nas igrejas, já que será feriado. Como um ato de contrição e de reflexão crítica sobre nossos erros políticos e nossos impasses históricos. A pátria está em perigo porque mergulhada no abismo da incerteza, dos desmandos do mau governo, da falta de um projeto de nação, de um reconhecimento das radicais necessidades dos simples, dos desvalidos, dos socialmente excluídos, dos famintos, das famílias em número cada vez maior, de adultos e crianças, que dormem ao relento, sob frio e chuva.

Seria muita hipocrisia falar em pátria e em celebrar a pátria que reduz a isso multidões de pessoas inocentes. No Brasil, a categoria povo é cada vez mais a categoria de vítima.

Esta não é uma hora de alegria e festa. Pela primeira vez em toda a história do Brasil independente esta é uma hora de pranto e de dor. Uma hora de medo.

Esta não é uma hora de alegria e festa. Pela primeira vez em toda a história do Brasil independente esta é uma hora de pranto e de dor. Uma hora de medo
José de Souza Martins

IHU – Como construir um Brasil não só independente, mas também democrático e igual?

Flavio José Gomes Cabral – Este talvez seja o grande desafio, aquilo que não conseguimos. A Independência a gente comemora, está lá, mas cadê essa igualdade, cadê essa democracia? Não aguento ouvir essa história de que ‘nossa democracia é jovem’. Nossa democracia não é jovem, pelo amor de Deus! Há momentos em que ela tem rupturas, para e instaura determinados governos com momentos autoritáriosditaduras. Agora, inclusive, vivemos um momento bastante autoritário.

Isso me mostra ainda uma fragilidade de nossa democracia. Há momentos que nosso mandatário joga, bate, grita para ver a reação. E acho que, muitas vezes, os congressistas de modo geral param. Podemos dizer que se está fustigando um golpe, etc., mas precisamos de um Estado mais sólido para enfrentar esses desafios. Porque paira um medo de uma ditadura, com alguma aliança que pode ter por trás e de que não temos muita clareza. A democracia está aí, mas há medos sobre essa democracia em determinados momentos.

Não aguento ouvir essa história de que ‘nossa democracia é jovem’. Nossa democracia não é jovem, pelo amor de Deus!
Flavio Cabral

Também, em alguns momentos, se usa da ideia da liberdade para extrapolar a própria democracia. É complicado e o resultado disso é o que vemos aí: temos uma exclusão muito grande. Muitas pessoas debatem esses problemas que vivemos hoje, mas muitas não. Mesmo com toda mídia temos pessoas que não falam ou não querem falar, porque também nem sempre quem cala está consentindo. Por tudo isso acho que somos um povo que ainda precisa de mais mobilização, defender seus direitos, dizer ‘não, basta!’. E os excluídos? Esses, então, seguem desde 1822, ou ainda antes, sem ter seus lugares na sociedade ou não se deixa que eles tenham seus lugares de fala. O que sempre me vem à cabeça no 7 de Setembro é a questão: no que avançamos e no que retrocedemos?

Valter Pomar – No curto prazo, derrotando o bolsonarismo e o neoliberalismo, elegendo Lula e implementando um programa de transformações democrática e popular. Mas isso não basta: nosso país precisa de uma revolução, nosso país precisa de socialismo. Não há outra maneira de garantir soberania, liberdade, igualdade e desenvolvimento em favor das maiorias.

Nosso país precisa de uma revolução, nosso país precisa de socialismo. Não há outra maneira de garantir soberania, liberdade, igualdade e desenvolvimento em favor das maiorias
Valter Pomar

Para isso, não bastam alguns anos de governos progressistas, que fazem políticas públicas populares, para depois serem derrubados por golpes que fazem a história andar para trás. Nossa classe dominante não se contenta em manter o país submisso aos Estados Unidos, optou também por um modelo primário exportador, que ademais serve de estufa para os capitais financeiros.

Desde 1980 está em curso uma desindustrialização que – apesar dos esforços em sentido contrário feitos entre 2003 e 2016 – destruiu boa parte do que foi feito depois da revolução de 1930. E sem uma potente indústria, o Brasil não tem como garantir empregos, salários, aposentadorias e políticas públicas de bem-estar social para os mais de 210 milhões de habitantes de nosso país. Sem destruir o pacto das elites, sem abandonar o modus operandi da conciliação e da transição pelo alto, sem uma versão plebeia da revolução de 1930, continuaremos sendo um país em que boa parte da população é periodicamente lançada no desemprego, na fome, no desespero, sem o direito nem mesmo de ter acesso à moradiaágua limpasaneamento básico.

Marcos Napolitano – Esse é um desafio histórico muito grande, e que sofreu retrocesso nos últimos anos. A crise conjuntural de 2016, ao lado do déficit histórico – institucional e social – em relação aos direitos civis e direitos humanos, abriram espaço para aventureiros, ressentidos e autoritários de extrema direita. Mesmo com os avanços das políticas públicas que tivemos desde 1995, mas sobretudo entre 2003 e 2016, corrupçãofisiologismo político e desigualdade social crônica permaneceram como chagas nacionais.

Este quadro alimentou muitos ressentimentos em relação à política, sobretudo na classe média conservadora, seduzida pelo populismo autoritário da extrema direita, também apoiado por amplos setores da elite econômica. Estes segmentos perceberam que a crise de 2016 era a janela de oportunidades para destruir as políticas públicas de distribuição de renda e inclusão, e impor reformas econômicas antipopulares. Aliás, eles conseguiram boa parte dos seus objetivos, apesar da pandemia, que exigiu uma nova presença do Estado na vida social.

Portanto, o desafio para construir um país mais democrático e igual passa pela revalorização da racionalidade, institucionalidade e decoro na política, pela construção de consensos civilizatórios mínimos entre setores da esquerda e da direita republicana e liberal visando reconstruir as políticas públicas voltadas para alguma inclusão social e isolar – política e institucionalmente falando – o autoritarismo de extrema direita, que hoje é a grande ameaça à democracia. Inclusive à instável e incompleta democracia liberal que temos desde 1988.

O desafio para construir um país mais democrático e igual passa pela revalorização da racionalidade, institucionalidade e decoro na política, pela construção de consensos civilizatórios mínimos entre setores da esquerda e da direita republicana e liberal visando reconstruir as políticas públicas voltadas para alguma inclusão social e isolar o autoritarismo de extrema direita
Marcos Napolitano

Luiz Werneck Vianna – Primeiro de tudo, derrotar e deslocar esse regime estúpido e grosseiro que nos assola e, a partir daí, tentar reconstituir os nexos, os laços na sociedade no sentido de fortalecer e dar vida nova às instituições que têm sido tão importantes nessa hora de resistência democrática.

As lutas igualitárias virão daí, das instituições democráticas, da organização popular, do voto, da expressão da vida da sociedade democrática e livre. A igualdade vem daí; não vem por um decreto. É um processo, um acúmulo de forças, de uma sociedade como a brasileira que nasceu autoritária, sob o signo da escravidão e do latifúndio, e até hoje não se libertou desses estigmas e dessas presenças nefastas na nossa vida.

José de Souza Martins – Fazer desta hora de incerteza um momento de oportunidade para o desenvolvimento de uma autoconsciência social crítica, isto é, de superação da euforia sem raízes na realidade contraditória que nos faz cada vez mais muito menos do que somos, do que podemos ser e do que queremos ser. Do que é justo que sejamos.

IHU – Em 2022 celebraremos 200 anos da Independência. Quais são as expectativas para o próximo ano?

Flavio José Gomes Cabral – É um ano que coincide com a data celebrativa e de grandes eleições que vão movimentar o país. Será um momento conturbado, que já se mostra pelo que vemos agora. Serão momentos difíceis, de se recorrer a tribunais, de muitas brigas para poder ganhar as eleições. E tudo é muito complicado.

Também não sei se teremos programação governamental em comemoração aos 200 anos. Lembro que, quando jovem, acompanhei o auê, no governo Médici, dos 150 anos da Independência, com desfiles, inclusive trouxeram os restos mortais de D. Pedro para o Brasil, que desfilou por todos os estados até ser levado ao Ipiranga. Quer dizer, o Estado fez a festa, envolveu todo mundo num momento difícil que se vivia, em plena ditadura Médici. Assim, a festa era vista como um bálsamo. Então é um caminho de mão dupla, pois se por um lado se fica alegre, também se coloca muita coisa debaixo do tapete. Agora, temos praticamente os mesmos problemas.

Em outro sentido, o trabalho que a academia tem feito é bacana, e ainda precisamos avançar mais com a historiografia. Este é nosso trabalho de historiadores e historiadoras, avançar com a historiografia, estudar as independências nos estados, ver o que foi escrito. Estamos sempre fazendo revisões, mas é um campo que tem sido muito estudado, em que se avança muito. Gosto muito dessa área, é o que trabalho aqui desde Pernambuco. É um momento bacana para fazermos essas reflexões. Enfim, será um ano tenso e espero que possamos sair dessa sem grandes atropelos.

Valter Pomar – Minha expectativa é que haverá muitos conflitos e que vai triunfar quem tiver mais força nas ruas. Há uma crise no mundo, há uma crise em nosso país, crises múltiplas. E há no governo uma extrema direita, apoiada pelo partido militar e por outras forças reacionárias, grupos que já demonstraram não estar de brincadeira. Eles não pretendem perder a eleição e farão tudo para evitar isso, inclusive se necessário colocando em questão as próprias eleições.

Neste sentido, a luta pelo impeachment de Bolsonaro continua sendo fundamental, pois cada dia a mais deste cavernícola no governo é um dia a mais de conspiração contra o povo, contra a soberania, contra o desenvolvimento e contra as liberdades. As pesquisas mostram que, se as eleições fossem hoje, Lula venceria. Mas as eleições não são hoje e a classe dominante possui muitas alternativas, desde apoiar Bolsonaro de novo, passando por forjar uma “terceira candidatura”, até mudar as regras do jogo, por exemplo via o tal semipresidencialismo.

Portanto, 2022 não será como 2002; e mesmo que tudo corra como desejamos, os problemas que enfrentaremos serão muito maiores do que os vividos entre 2003 e 2006. Logo, é preciso guarda alta, disposição de luta e clareza sobre o que está em jogo. Até porque, para os Estados Unidos é fundamental ter o Brasil como aliado na batalha que os gringos travam contra a ChinaBolsonaro é parte do problema, mas nossos inimigos são muitos. Podemos triunfar, mas para isso é preciso saber que as eleições serão como uma guerra.

A depender do que acontecer, nosso bicentenário de Independência poderá significar um novo começo ou nosso atestado de óbito como coletividade nacional, caso a extrema direita ganhe as eleições, e tenhamos mais um mandato de terra arrasada e inapetência administrativa
Marcos Napolitano

Marcos Napolitano – Tenho esperanças de que as eleições possam mudar o quadro político atual. Mas não tenho tanta certeza disso. Há vários fatores que podem ajudar a extrema direita a ser reeleita: o antipetismo/antilulismo visceral (ainda muito forte entre eleitores da classe média), a dificuldade da esquerda petista e dos liberais em estabelecer coalizões eleitorais viáveis entre si (mesmo no segundo turno), a permanência de um núcleo social fidelizado da extrema direita que poderá criar factoides para tumultuar o ambiente político e disseminar fake news para iludir o eleitor.

A depender do que acontecer, nosso bicentenário de Independência poderá significar um novo começo ou nosso atestado de óbito como coletividade nacional, caso a extrema direita ganhe as eleições, e tenhamos mais um mandato de terra arrasada e inapetência administrativa. Hoje, eu não arriscaria um palpite do que vai acontecer, mas ao menos acho que o debate nacional será intenso. Tomara que seja esclarecedor e produtivo, mas eu também tenho minhas dúvidas quanto a isso.


Motociata de Santa Cruz do Capibaribe para Caruaru. Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
Leilão 5G. Foto: Isac Nóbrega/PR
Reunião com o Emir de Dubai, Mohammed bin. Foto: Alan Santos/PR
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Bolsonaro participa de cerimônia do 7 de Setembro, no Palácio da Alvorada. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Cerimônia em Memória dos Pracinhas. Foto: Alan Santos/PR
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
05/11/2021 Cerimônia de Anúncios do Governo Federal ao Estado
Motociata na cidade de Piraí do Sul com destino a Ponta Grossa. Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR
Reunião com o representante para Política Externa e de Segurança da União Europeia e Vice-Presidente da Comissão Europeia, Josep Borrell Fontelles. Foto: Alan Santos/PR
Apoiadores na rampa do Palácio do Planalto. Foto: Marcos Corrêa/PR
Encontro com o Presidente da Funai, Marcelo Xavier e lideranças indígenas. Foto: Isac Nóbrega/PR
Visita à Estátua de Padre Cícero em Juazeiro do Norte - CE Foto: Marcos Corrêa/PR
Cerimônia Militar em Comemoração ao Aniversário de Nascimento do Marechal do Ar Alberto Santos-Dumont. Foto: Marcos Corrêa/PR
Solenidade Militar de Entrega de Espadins aos Cadetes da Força Aérea Brasileira. Foto: José Dias/PR
Missa com parlamentares e familiares. Foto: Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro bate um pênalti na Arena da Condá, Chape, em Chapecó. Foto: Alan Santos/PR
Presidente, ministros e aliados posam para fotografia nos trilhos da FIOL. Foto: Marcos Corrêa/PR
Motociata de Santa Cruz do Capibaribe para Caruaru. Foto: Marcos Corrêa/PR
Inauguração das novas instalações da Escola de Formação de Luthier e Archetier da Orquestra Criança Cidadã (Recife-PE). Foto: Marcos Corrêa/PR
Motociata pelas avenidas de Goiânia. Foto: Alan Santos/PR
Operação Formosa - 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
Centenário da Convenção de Ministros e Igrejas Assembléia de Deus no Pará. Foto: Isac Nóbrega/PR
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Motociata de Santa Cruz do Capibaribe para Caruaru. Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
Leilão 5G. Foto: Isac Nóbrega/PR
Reunião com o Emir de Dubai, Mohammed bin. Foto: Alan Santos/PR
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Bolsonaro participa de cerimônia do 7 de Setembro, no Palácio da Alvorada. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Cerimônia em Memória dos Pracinhas. Foto: Alan Santos/PR
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
05/11/2021 Cerimônia de Anúncios do Governo Federal ao Estado
Motociata na cidade de Piraí do Sul com destino a Ponta Grossa. Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
 Cúpula de Líderes do G20. Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR
Reunião com o representante para Política Externa e de Segurança da União Europeia e Vice-Presidente da Comissão Europeia, Josep Borrell Fontelles. Foto: Alan Santos/PR
Apoiadores na rampa do Palácio do Planalto. Foto: Marcos Corrêa/PR
Encontro com o Presidente da Funai, Marcelo Xavier e lideranças indígenas. Foto: Isac Nóbrega/PR
Visita à Estátua de Padre Cícero em Juazeiro do Norte - CE Foto: Marcos Corrêa/PR
Cerimônia Militar em Comemoração ao Aniversário de Nascimento do Marechal do Ar Alberto Santos-Dumont. Foto: Marcos Corrêa/PR
Solenidade Militar de Entrega de Espadins aos Cadetes da Força Aérea Brasileira.  Foto: José Dias/PR
Missa com parlamentares e  familiares. Foto: Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro bate um pênalti na Arena da Condá, Chape, em Chapecó. Foto: Alan Santos/PR
Presidente, ministros e aliados posam para fotografia nos trilhos da FIOL. Foto: Marcos Corrêa/PR
Motociata de Santa Cruz do Capibaribe para Caruaru. Foto: Marcos Corrêa/PR
Inauguração das novas instalações da Escola de Formação de Luthier e Archetier da Orquestra Criança Cidadã (Recife-PE). Foto: Marcos Corrêa/PR
Motociata pelas avenidas de Goiânia. Foto: Alan Santos/PR
 Operação Formosa - 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
Centenário da Convenção de Ministros e Igrejas Assembléia de Deus no Pará. Foto: Isac Nóbrega/PR
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Luiz Werneck Vianna – É difícil saber. Prever, neste país, é muito difícil. Aliás, como se tem dito frequentemente, o passado aqui muda também a cada dia. Não dá para prever um passado que não se consegue reconstituir; está sempre sujeito a novas narrativas.

Eu não quero manifestar um otimismo, mas acho que já podemos dizer que a sociedade demonstrou – e vem demonstrando – uma forte capacidade de resistência ao ver as suas conquistas destruídas. Esse é o caminho que sinaliza para o futuro.

Agora, quem será o candidato à presidência da República, sabe-se lá. Depende ainda, sobretudo, de como vamos assediar esse regime autoritário, minando as suas bases que estão, pelo visto, bastante minadas, para abrir caminho para conquistas mais interessantes, avançadas. Quem sabe, um candidato expresse melhor essas tendências e encontra essa possibilidade de vocalização. Acho que boa parte da sociedade está torcendo por isso e está procurando essa solução.

Qualquer que seja ela, a celebração de 2022 será o réquiem da pátria, a terra do brasileiro expatriado
José de Souza Martins

José de Souza Martins – Todos os anos neste dia refaço criticamente aquela imagem monumental do quadro de Pedro Américo que, no Museu do Ipiranga, em São Paulo, celebra o momento da Independência. Todos os anos.

Padeço porque aquele quadro é uma mentira triste. Conheço palmo a palmo o trajeto do retorno de Dom Pedro, de Santos a São Paulo, naquela tarde de 7 de setembro de 1822. Sei até nomes de modestos lavradores e tropeiros que moravam à beira daquele trecho da estrada, mamelucos, antigos índios administrados, libertados em 1757. Gente bem brasileira. Síntese dos muitos que ainda somos. Nasci e cresci naquela região. Li os testemunhos dos que acompanhavam o príncipe herdeiro na viagem.

Ele não estava napoleonicamente vestido com aquele fardamento de gala, coberto de medalhas. Estava vestido com uma fardeta. Estava doente e abatido. Não estava montado naquele cavalo de raça, monumental. Vinha montado numa mulinha baia, que era assim que se viajava naqueles tempos.

No quadro, o povo virou soldado, o regente virou imperador, a mulinha que carregava o príncipe no lombo, virou cavalo de raça, o punctun do quadro é o não somos da Independência.

Aquele quadro nos diz que o verdadeiro povo brasileiro não cabia no imaginário da Independência, que não tínhamos competência para criar uma nação altiva e independente. A mulinha do 7 de setembro foi abandonada pela pátria no próprio ato do nascimento da nação. Ela não era o que queríamos ser. Acabamos sendo uma pátria sem povo nem soberania, uma pátria de parada, de desfile.

Qualquer que seja ela, a celebração de 2022 será o réquiem da pátria, a terra do brasileiro expatriado. Será um dia de fome e sede de justiça, um dia tristemente de um verde e amarelo desbotado pela cobiça de poucos, pelo afã de riqueza e poder da minoria sem escrúpulo.

Provavelmente, será o dia de decisão da eleição de outubro. Porque nesse dia teremos a oportunidade de nos vermos no espelho do que não somos.

Me preocupo mais com certas atitudes de setores da esquerda, tipo não defender o Fora Bolsonaro, tipo não querer fazer manifestações de rua, tipo propor não fazer o Grito dos Excluídos no dia 7 de setembro, tipo achar que 2022 está garantido etc. Acho que falta lógica para estes setores “quietistas” da esquerda
Valter Pomar 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Valter Pomar – Nos últimos meses vi alguns setores questionando por quais motivos o povo brasileiro não estaria fazendo o mesmo que fez, recentemente, parcela do povo chilenoparaguaiocolombiano e até parte do estadunidense, para citar só estes casos. Acho este um tema muito interessante, mas confesso que me preocupo menos com a atitude do povo e me preocupo mais com certas atitudes de setores da esquerda, tipo não defender o Fora Bolsonaro, tipo não querer fazer manifestações de rua, tipo propor não fazer o Grito dos Excluídos no dia 7 de setembro, tipo achar que 2022 está garantido etc. Acho que falta lógica para estes setores “quietistas” da esquerda.

Pois é óbvio que, para dar um exemplo apenas, se aceitarmos ser tirados da rua agora, o que impediria a extrema direita de usar o mesmo método a partir do 8 de setembro até a eleição presidencial? Ou alguém acha que vamos ganhar a eleição, sem fazer campanha? Ou alguém acha que a campanha eleitoral será tranquila? Ou alguém acha que a extrema direita não vai dobrar a aposta?

O caso é o seguinte: é preciso que a esperança vença o medo desde agora, não apenas na eleição de 2022. Só uma imensa mobilização popular derrotará o bolsonarismo e o neoliberalismo. É verdade que, para haver mobilização popular, não basta que a esquerda dê o exemplo. Mas se a orientação da esquerda se limitar a um “aguarde em casa e venha votar”, o desfecho será nossa derrota. Por isso dia 7 de setembro estarei nas ruas. Sabendo dos riscos. Mas como já disseram, não se derrota Al Capone com Woodstock. Muito menos com WO

Leia mais

Fonte: IHU Online
http://www.ihu.unisinos.br/612628-7-de-setembro-a-historia-de-uma-liberdade-incompleta-e-da-resistencia-de-um-povo-algumas-analises


José de Souza Martins: Amazônia em transe

Das pranchetas do economismo ideológico nunca saiu nada socialmente inteligente

Dirigentes de três dos maiores bancos brasileiros apresentaram, ao vice-presidente da República, um plano para a Amazônia. Mas um plano que está muito longe de reconhecer e enfrentar os aspectos mais graves da problemática realidade econômica e social da região, de seus habitantes e do país, no que a Amazônia nele é ou pode ser.

Convém lembrar que, na perspectiva do que já foi chamada de Amazônia Legal, aquela região constitui bem mais da metade do território brasileiro. As personagens e os destinatários da proposta, no entanto, nela correspondem a muito menos do que é a população da Amazônia problemática e em crise.

Nada diz de significativo aos nossos compatriotas indígenas e aos desvalidos da economia tradicional e camponesa, cuja situação de risco e abandono é o que tem motivado as restrições econômicas ao que da Amazônia devastada e excludente buscam os mercados dos países ricos. Das pranchetas do economismo ideológico nunca saiu nada socialmente inteligente, embora lucrativo para poucos a curto prazo e destrutivo para a nação a prazo longo.

Num país como este, suas peculiares características sociais e humanas são muito diferentes do que se pode ver, compreender e interpretar desde as estreitezas neoliberais e monetaristas de Chicago. A boa vontade dos bancos ganharia sentido se temperasse o poder dos economistas dessa corrente com o bom senso investigativo e interpretativo dos cientistas sociais, que há mais de meio século têm estudado sistematicamente a Amazônia e os problemas sociais dos amazônidas.

São esses cientistas que podem apontar na realidade social e econômica o que de fato é problema para o país. Além do que, sem ouvir e compreender as vítimas, dificilmente se chegará a uma proposta que convença os inquietos e desconfiados lá fora e aqui dentro. O Brasil está sendo colocado diante do falso dilema de civilização ou lucro.

Os que dizem agora que querem salvar a Amazônia, com as ciências sociais enxergariam uma Amazônia também indígena, cuja cultura é estigmatizada pelos leigos e improvisadores que menosprezam os seres humanos e suas alternativas para as estreitezas mentais do primado do lucro e da lucratividade. Os que menosprezam porque pensam o mundo e a vida na perspectiva estéril da mentalidade das classes ociosas, como as definiu Thorstein Veblen (1857-1929).

A proposta apresentada é para acalmar os que, nos países desenvolvidos, inquietam-se com os desdobramentos políticos na opinião pública interna de restrições significativas, de natureza social e moral, à importação de produtos originários de uma economia suspeita porque delinquente e socialmente incorreta.

Faltou na proposta o remédio para as ilegalidades na realidade amazônica, da grilagem ao trabalho análogo ao do escravo. Os poderes das economias dominantes têm medo das consequências políticas da consciência social crítica comprometida com a primazia da condição humana.

O que os proponentes, aparentemente, não perceberam é que as objeções e restrições aos produtos da Amazônia não têm a ver somente com queimadas e com o modo de produzir de uma economia retrógrada, ainda que aparentemente moderna.

Fala-se na necessidade de uma boa propaganda que diga ao mundo que o Brasil cuida do ambiente e cuida dos indígenas. A fumaça da floresta queimada e o grito dos que padecem os efeitos da predação e da iniquidade lucrativas dizem que não. O interesse pela Amazônia tem sido, historicamente, limitado aos imediatismos do capitalismo rentista. Não se trata de usar a terra e a natureza, mas de consumi-las, o que é a negação do próprio capitalismo.

O problema da Amazônia já havia chegado à consciência das pessoas esclarecidas de diferentes países há meio século. A questão indígena, a da violência fundiária e a ambiental brasileiras já estavam em debate na Europa e mesmo nos anos 1970, quando a voracidade da economia neoliberal tentou impor-se com base na falsa premissa de que a Amazônia estava disponível para ser ocupada predatoriamente.

Há décadas, indígenas brasileiros têm comparecido a debates, conferências e manifestações na Europa para expor a situação em que se encontram. O eminente e lúcido cacique Raoni Metuktire, do grupo linguístico kaiapó, tem sido ali recebido como herói da humanidade, com seu imponente e belo diadema plumário e seu solene batoque labial e ritual, impondo respeito e acatamento. Coisa que o governo atual não consegue.

Raoni é um dos melhores diplomatas populares brasileiros, porque entre os que têm poder tem o que falar e sabe falar a quem sabe ouvir O interlocutor do verdadeiro Brasil. Significativamente, foi depreciado pelo presidente brasileiro na assembleia-geral da ONU em 2019.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - A degradação do Outro nos Confins do Humano" (Contexto).


José de Souza Martins: "Coxinhas" de ontem estão a caminho de se tornar os "mortadelas" de amanhã

Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro

As simplificações na definição das desigualdades sociais da população expõem a confusa pobreza do nosso entendimento das diferenças sociais que nos afligem. Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro. Sem compreender que identidade têm e o que nela personificam socialmente, isto é, como manifestam e expressam sua diversidade e diferenças.

Os nomes classificatórios que damos, sem nenhum cuidado, tanto aos ricos quanto aos pobres, não expressam senão o viés ideológico que amortece nossa consciência social. Somos bons para inventar nomes para os outros e péssimos para reconhecer e compreender a condição social que expressa os interesses que demarcam seu agir e seu horizonte, seu ser propriamente social.

Em 2018, nos embates de rua, o vocabulário pobre de nossa política expôs nossa consciência: o Brasil está socialmente dividido entre "coxinhas" e "mortadelas". Os "mortadelas" não se deram conta de que muitos "coxinhas" daquele ontem eram "mortadelas" de anteontem. Do mesmo modo que os "coxinhas" de ontem já estão a caminho de se tornar os "mortadelas" de amanhã.

Nossa carência de consciência crítica nos faz supor que fazemos política porque somos contra os rótulos que colamos nos adversários. O que não nos faz a favor de uma sociedade nova e democrática, baseada no direito à diferença e no reconhecimento da legitimidade da pluralidade social.

As eleições de 2018 mostraram que nossos critérios de reconhecimento das identidades diferenciais da sociedade brasileira não correspondem às subjetividades respectivas. Nem correspondem ao que são as pessoas distribuídas por diferentes categorias sociais. Não temos clareza quanto a quem é o eleitor-protagonista, nem esse eleitor tem clareza quanto a quem elege.

Os técnicos do classificacionismo social têm uma concepção rentista da pobreza, baseada em bens e dinheiro. Há numerosas pessoas, sobretudo no Brasil rural, cuja condição social não é definida pelo ganho monetário, mas pelo modo de vida, até pela produção direta dos meios de vida. Falar em fome é necessário e urgente, mas a fome não decorre sempre nem apenas da insuficiência de dinheiro para sobreviver. Há os que não têm dinheiro, mas têm o que comer. E há quem tem dinheiro, mas passa fome.

Nem todo trabalhador é pobre. Nem todo rico não trabalha. Aliás, em nossas classificações estatísticas, nem todo rico é propriamente rico. A classe média entra de cambulhada tanto na categoria dos ricos quanto na dos pobres. Depende das conveniências de quem fala. Muitas vezes depende de quem quer lesá-la politicamente.

A polarização pobre e rico nunca deu conta da diferenciação da sociedade brasileira. Do mesmo modo, que nunca foi verdadeiro que os pobres votam na esquerda e os ricos votam na direita. O Partido dos Trabalhadores cresceu e chegou ao poder com o apoio decisivo dos ricos. Perdeu o poder porque seus adversários tiveram o apoio decisivo dos trabalhadores. Isso ficou claro nos resultados eleitorais da região do ABC, suposto reduto do PT. A sociedade muda e a política roda.

Somos uma sociedade caracterizada por uma diversidade de padrões de classificação social. O que os economistas dizem que são classes sociais não o são. São apenas estratos de rendimentos. O que muitos sociólogos dizem que são classes sociais nem sempre são. São agrupamentos de coincidências sociais.

Classe social envolve cultura de classe e destino. O que os diferentes grupos da população dizem o que eles próprios são é completamente desencontrado com a classificação que se lhes pode atribuir com base em critérios objetivos. Não levamos em conta, no esforço de entender a nossa diversidade social, que as pessoas nunca sabem exatamente o que são quanto à estrutura de classes sociais. Acham que são uma coisa quando na verdade são outra.

É impossível compreender esta sociedade de desigualdades tão peculiares sem compreender que elas são o rótulo das diferenças sociais e que uma sociedade como esta não pode existir senão pela mediação da falsa consciência que a desfigura e a viabiliza ao mesmo tempo. As categorias sociais vivem desnorteadas pelo desencontro entre o falso e o verdadeiro.

O PT jactou-se, em seus últimos anos de poder, de ter transformado o Brasil pobre num país de classe média. Muita gente acreditou nisso. É claro que, quando se assume essas rotulações sociais, supõe-se orientações no modo de falar, de vestir, de comer, de viver e de votar. Mas, em 2018, a população votou como classe média. Em 2002, votara como classe trabalhadora, o que de modo algum quer dizer classe operária.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de ‘Moleque de Fábrica’ (Ateliê Editorial).


O Estado de S. Paulo: Polarização de extremos será rejeitada pelo eleitor, diz sociólogo

O professor José de Souza Martins acha que candidatos indicam que “o mesmo de sempre prevalecerá”, mas o eleitor rejeitará polarização entre extremistas

José Nêumanne, de O Estado de S. Paulo

“A enorme competência teatral de Lula acobertou a incompetência política do partido para se sobrepor a interesses que contrariavam sua ideologia e seus compromissos com as bases populares”, disse o sociólogo José de Souza Martins, protagonista da série Nêumanne Entrevista da semana. Para ele, “o PT se empenhou em dividir o Brasil até o ponto extremo de dividir famílias, destruir amizades, inviabilizar harmonias, até mesmo distanciar pais e filhos. No Brasil do PT, hoje, só existe lugar para quem subscreve tanto a ideologia quanto os atos do PT e do petismo”. Por outro lado, o ex-docente da USP que lecionou em Cambridge, Universidade da Flórida e Lisboa, constatou que “não houve um gesto do governo Temer que de fato se orientasse para a prática da justiça social, a começar do enquadramento, no mesmo rigor que vitimou quem trabalha, dos privilegiados dos três Poderes”. E previu que, com a rejeição aos extremistas nas urnas, haverá “uma reproposição do centro-esquerda como eixo do processo político brasileiro”.

José de Souza Martins é doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, de que foi docente e professor titular. Foi professor visitante da Universidade da Flórida (EUA) e da Universidade de Lisboa. Em 1992 foi eleito professor da Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge (Inglaterra) para o ano acadêmico de 1993-1994 e fellow do Trinity Hall. Membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão (Genebra, 1996-2007). Coordenador pro bono da Comissão Especial da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, em 2002, que elaborou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto) e de Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder (Contexto). É colaborador semanal do suplemento Eu & Fim de Semana, do jornal Valor Econômico.

Nêumanne entrevista José de Souza Martins

Nêumanne – No começo do século 21, durante o primeiro governo Lula, o Brasil vivia um tempo de bonança e paz, com pleno emprego, políticas sociais a todo vapor, reservas internacionais bombando e inflação sob controle. Tudo parecia ir às mil maravilhas. Mas, no fundo do cenário, o ovo da serpente – um escândalo de corrupção inédito na História, mais tarde revelado nos casos mensalão e petrolão – ameaçava essa calmaria. Até que ponto a rapina generalizada foi responsável pela crise ética, financeira, econômica, política e social que reverteu tudo do melhor para o pior dos mundos?

José de Souza Martins – O “melhor dos mundos” estava sendo minado pela crise econômica internacional. Não obstante, o governo Lula beneficiou-se do legado do governo de FHC. Não concretizou grandes avanços sociais nem protagonizou reformas sociais e políticas inovadoras. Conseguiu manter sob tênue controle as adversidades econômicas da população mais pobre. A superficialidade de suas medidas revelou-se no súbito declínio das condições de vida dos que teriam sido, e não foram, elevados à condição de uma nova classe média. Além disso, a corrupção que se seguiu mostrou que esse governo só conseguiu sobreviver consorciando-se com o que havia de pior na política brasileira, na da troca de favores. O governo Lula, no entanto, conseguiu evitar que chegassem à superfície os graves problemas sociais que se precipitaram no governo Dilma e no governo Temer.

N – Em 2013, a insatisfação da grande maioria da população levou o povo às ruas num movimento de revolta popular que, pelo menos à época, parecia ser inédito na História do Brasil. No entanto, nada de que o povo se queixou nas ruas foi modificado em profundidade e, no fim, o poste escolhido por Lula e pelo PMDB de Temer, Dilma Rousseff, ganhou a eleição mais fraudada da História e que ainda receberia o aval da Justiça Eleitoral. Por que aconteceu isso tudo dessa forma, em sua opinião, professor?

J – Vejo a situação daquele momento de um modo diferente. A grande maioria da população não foi à rua. Aquela parte que foi à rua o foi dividida e polarizada. A única diferença em relação a momentos anteriores da história do petismo foi a de que cresceu significativamente o número de brasileiros dispostos a manifestar descontentamento com o governo e com o petismo. A população começou a distinguir o petismo de um lado e Lula de outro.

Embora Temer tivesse sido eleito na mesma chapa de Dilma, ao chegar ao poder não foi fiel ao programa subscrito pelos dois em nome do acordo político do PT com o PMDB. Promoveu uma ruptura do acordo. A população que foi à rua contra Dilma e o PT não o foi para se manifestar a favor de Temer e muito menos de uma ruptura com o PT por meio de Temer. Neste ano, os dados indicam uma rejeição quase absoluta de Temer, ao mesmo tempo que indicam uma opção eleitoral tão acentuada por Lula que não há como não entender que as manifestações de 2013 foram contra o governo Dilma, contra o fato de ele ter abandonado itens referenciais das lutas subscritos por seu partido.

As manifestações de rua foram muito mais para contestar a incompetência política de Dilma, que, por sua vez, fez acordos políticos que os apoiadores do partido nunca aceitariam, como o apoio ao agronegócio, a interrupção da reforma agrária e o abandono da política indigenista. O crescimento do desemprego e o agravamento dos problemas sociais solaparam bases importantes do apoio ao petismo.

N – O impeachment de Fernando Collor de Mello não abalou a democracia, apesar de ter deposto logo o primeiro presidente eleito pelo voto direto desde 1960. A seu ver, o mesmo processo de descontinuidade que interrompeu o segundo mandato de Dilma Rousseff na metade – depois daquele círculo virtuoso que foi o tema da primeira pergunta que lhe fiz – deu início a este mar de tormentas em que o País parece naufragar agora?

J – A crise que vem até nós começou mais cedo, com o mensalão. O PT e o governo Lula foram engolidos pela política de coalizão, perderam as referências de partido da ética, a grande bandeira do petismo e do próprio Lula, e entraram no regime da troca de favores e da opção do poder pelo poder. Lula até mesmo temeu não ser reeleito em 2006. E só o foi devido ao apoio dos grupos de Igreja e à lealdade das bases no Brasil remoto e na periferia. As descobertas do mensalão e da Lava Jato mostraram conexões do PT com o que havia de pior na política brasileira, as oligarquias e a troca de favores. As mesmas práticas que levaram ao impedimento de Collor já indicavam os fatores persistentes do que se poderia chamar de crise da Nova República, como a batizou Tancredo Neves. Ela culmina com o impedimento de Dilma. Com Lula e Dilma o PT mostrou que não tinha condições de se insurgir, em nome de uma opção propriamente social, contra os vícios do sistema político brasileiro. A enorme competência teatral de Lula acobertou a incompetência política do partido para se sobrepor a interesses que contrariavam sua ideologia e seus compromissos com as bases populares. Por outro lado, há a distância enorme de uma geração inteira entre a eleição de Lula, em 2002, e os movimentos de rua de 2013. O abismo de gerações vitimou o PT, que não conseguiu manter erguida a bandeira da justiça social, acima das desigualdades crescentes.

N – Depois do impeachment de Dilma Rousseff, eclodiu a situação crítica que levou à amargura do desemprego, afligindo 13 milhões de lares brasileiros, e, acima de tudo, da desilusão, que, segundo o IBGE, agora tortura 24 milhões de nossos trabalhadores. Até que ponto, a seu ver, esse fel envenena as relações sociais entre patrícios, criando a luta fratricida que se tornaram a política, as relações sociais e até familiares, nas batalhas retóricas das redes sociais e das tribunas públicas?

J – O desemprego já vinha crescendo. As opções de política econômica do PT, surpreendentemente, não conseguiram se orientar por valores social-democráticos, nosso máximo de opção política socialmente transformadora, associando desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. Ao mesmo tempo, o PT e Lula, em particular, empenharam-se em encontrar no PSDB um bode expiatório na fakenews do que chamaram de herança maldita. O PT se apresentou como vítima da crise que, na verdade, ele próprio protagonizara. Com isso recusou-se a, ou não se revelou capaz de, abrir uma frente de salvação nacional, uma coalizão verdadeira, que levasse a um pacto capaz de assegurar a unidade nacional. O PT se empenhou em dividir o Brasil até o ponto extremo de dividir famílias, destruir amizades, inviabilizar harmonias, até mesmo distanciar pais e filhos. No Brasil do PT, hoje, só existe lugar para quem subscreve tanto a ideologia quanto os atos do PT e do petismo.

N – Vivemos hoje sob a égide do vice eleito na chapa de Dilma, Michel Temer, que se tornaria, depois do impeachment da titular, o mais impopular presidente de nossa História. Suas tentativas de equilibrar as contas públicas goraram no debate parlamentar e a falta de perspectivas da quase totalidade da população desassistida do Brasil dificulta a busca de saídas viáveis tanto na economia quanto na política. No que falharam, a seu ver, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na criação desse nó górdio?

J – Falharam completamente quando decidiram impor uma reforma econômica e trabalhista que pune a vítima, aquele que trabalha e carrega nas costas a economia do País. Não houve um gesto do governo Temer que de fato se orientasse para a prática da justiça social, a começar do enquadramento, no mesmo rigor que vitimou quem trabalha, dos privilegiados dos três Poderes.

N – A chamada Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal transmitiu à população a sensação de que, enfim, os “donos do poder”, definidos por Raymundo Faoro, estavam sendo punidos. A Operação Lava Jato trouxe a lume a ação da polícia, dos procuradores e dos juízes federais de primeira instância, que, ao apenar empreiteiros, entre os quais o maior de todos, Marcelo Odebrecht, e figurões da política, entre eles o mais popular, Lula, pôs fim à trágica constatação de que só pretos, pobres e prostitutas conheciam a realidade de nosso inferno prisional. Confirmado na segunda instância, esse combate à corrupção na política e na administração pública parece minguar na cúpula do Judiciário e pelo poder dos dirigentes partidários em geral. O senhor acha que ainda é possível que o resultado da eleição pelo menos mine essa sabotagem dos poderosos e privilegiados ou teremos de esperar a próxima eleição ou a próxima geração?

J – O número de vítimas da ordem econômica iníqua e mal administrada é extenso, não tem cor nem condição social. Os movimentos de rua de 2013 foram movimentos da classe média, a mais ameaçada pelo petismo e mais indignada com os problemas sociais que se espalharam por todo o País, independentemente de classes sociais. O fato de que não tenha sido feita uma verdadeira reforma política deixou o povo brasileiro sem canais de mediação representativos para expressar nestas eleições não só descontentamento, mas, sobretudo, vontade de mudança política em direção a outra orientação doutrinária, diversa das que têm prevalecido. O quadro das candidaturas ao Legislativo e aos governos de Estado indicam que o mesmo de sempre prevalecerá. E que o novo governo não terá nem meios nem vontade de propor uma grande e radical reforma de nossa representação política defeituosa, injusta e conservadora.

N – Na condição de intelectual e, sobretudo, como acadêmico respeitado, como o senhor reagiu à notícia de que toda a memória histórica e cultural e todo o conhecimento científico amealhados em 200 anos de existência do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, arderam? A quem o senhor atribui maior responsabilidade por aquela catástrofe anunciada?

J – Visitei o Museu Nacional pela primeira vez em 1955, quando me iniciava como pesquisador autodidata. Ví, com emoção, as coleções etnográficas e o meteorito do Bendengó, que só conhecia de fotografias em livros. E lá voltei muitos anos depois, já professor da USP, para fazer um seminário sobre meu livro O Cativeiro da Terra. A mesma emoção que tivera quando visitei pela primeira vez, em 1947, ainda criança, o Museu do Ipiranga, uma visita que me pôs diante das possibilidades da vida intelectual.

O que aconteceu no Rio apenas confirma o que nos meios intelectuais há muito se desconfiava, o risco de desastres nos edifícios que abrigam instituições culturais, por imprópria ou nenhuma manutenção. O Estado brasileiro nunca teve grande respeito por essas instituições e os governantes nunca entenderam corretamente a função cultural e social dos museus. Nem a importância da memória social de que são abrigo em sua função de referência de nossa concepção de pátria e de nossa identidade como povo e nação. No geral, nossos políticos têm mais apreço pelas caríssimas quinquilharias de seus privilégios do que pelos signos de referência da representação política que nos usurparam. A responsabilidade é do governo, mas é também de todos nós. Se excluíssemos das nossas opções eleitorais aqueles que não são animados pela consciência de pátria e pelo respeito à memória da pátria, diminuiríamos riscos como esses.

N – O que de positivo, na sua opinião, se poderá extrair de eleições gerais cujos principais expoentes são Lula, condenado, preso e, por isso, inelegível, e Bolsonaro, ocupante de um leito de unidade de terapia intensiva, vitimado por um ataque desferido pela intolerância com trágicas consequências para o Estado de Direito?

J – No meu modo de ver, nem Lula prisioneiro, em cumprimento de sentença por crime comum, nem Bolsonaro, ferido injustamente e hospitalizado, são referências apropriadas para avaliação das eleições presidenciais deste ano. Não é a condição de cada um que define o cenário da eleição. A prisão de Lula não lhe tolheu a influência eleitoral. A hospitalização de Bolsonaro não encolheu a eficácia de sua candidatura. Lula influenciará os resultados da eleição por meio das contradições e dos legados de sua biografia política. Muita gente votará pensando em Lula ou porque o quer influente, ou porque rejeita sua influência. Bolsonaro, de biografia bem mais pobre que a de Lula, carrega muito mais contradições do que o ex-presidente da República. Nem por isso representa o fracasso do momento político. Sua liderança nas pesquisas de opções eleitorais é muito indicativa de que os brasileiros estão à procura de um candidato diferente em relação a nomes consagrados. Há certo cansaço político que se reflete nas escolhas desse nome.

De positivo, nestas eleições, parece-me que será a recusa da polarização dos extremos ideológicos e políticos. Nesse sentido, uma reproposição do centro-esquerda como eixo do processo político brasileiro.

N – O que o senhor espera das investigações policiais e judiciais dos três atentados históricos deste ano: a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes no Estácio, o tiro contra o ônibus da caravana de Lula numa estrada do Paraná e a facada desferida no candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro, em Juiz de Fora? Será que polícia, Ministério Público e Justiça realmente desvendarão a verdade sem máscaras nem fantasias e, assim, produzirão o efeito benéfico necessário no clima político nacional?

J – Em princípio, deve-se esperar que a justiça será feita. Não posso julgar a Justiça, em casos como esses, se o rito judicial ainda não se consumou.

N – Até que ponto chegamos agora, a seu ver, ao fundo do poço e, ao mesmo tempo, ao local exato da inflexão, que seja capaz de interromper o círculo vicioso e permitir a reconstrução da estrada institucional que nos leve de volta ao clima de bonança e aparente fartura de 15 anos atrás?

J – Não sei se já chegamos ao fundo do poço. Sem dúvida, o momento é crítico. A crise certamente ainda terá desdobramentos no próximo governo. O maior indício nesse sentido é o de que nenhum dos candidatos com mais probabilidade de chegar ao poder, nem os respectivos partidos, tem um projeto político para o Brasil nem tem programas de superação de nossas contradições e nossos impasses. Estão dominados por teses de reiteração do que já é conhecido e até mesmo de retorno a momentos da história política brasileira que tiveram avanços, mas também contradições e recuos.


José de Souza Martins: Os modernos inimigos de Galileu

Convidado pelo Reitor, o Papa Bento XVI deveria ter sido o orador que, na quinta-feira, dia 17 de janeiro, faria a conferência inaugural do ano acadêmico da Universidade La Sapienza, de Roma. No entanto, grupos de professores e alunos da universidade levantaram objeções à sua presença numa universidade pública. Invocaram a premissa do caráter laico da Universidade e questionaram as posições conservadoras do teólogo que este Papa também é. Em face do questionamento, conservador e retrógrado, aliás, o Vaticano preferiu cancelar a aula de Bento XVI.

O gesto da impugnação de sua presença e de sua aula nele vitimou, também, os profissionais do conhecimento, os pensadores, os cientistas, tanto os que creem quanto os que não são católicos e mesmo os que não creem. É justo o temor quando se descobre que nos próprios redutos da liberdade de pensamento essa liberdade tenha sido sacrificada por aqueles que dizem defendê-la.

Não se tratava de um sermão, em que a recusa seria até compreensível por parte de quem não professa uma religião. No plano intelectual, filosófico, sociológico e político pode-se discordar do Papa e ele mesmo, em mais de uma ocasião, tem convidado seus ouvintes e leitores, católicos e não católicos, crentes e não crentes, a terem com suas idéias e interpretações um diálogo crítico. Foi o que demonstrou quando foi à Academia Católica da Baviera, em 2004, debater com o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas os fundamentos morais do Estado liberal.

O ministro da Universidade e da Pesquisa, em face do ocorrido, questionou o autoritarismo dos atos de impugnação da presença do Papa em La Sapienza e o fez em nome do astrônomo Galileu Galilei, condenado pela Inquisição a abjurar suas descobertas científicas relativas ao fato de que a terra gira em torno do sol e não o contrário. Mas Galileu estava certo e a Inquisição estava errada. O Papa compreendeu que estava agora na posição de Galileu. E, como Galileu, disse a seu modo “E no entanto, se move”, distribuindo o texto da aula densa e erudita, questionada antes de ser ouvida.

O conhecimento não resulta de um monólogo. Em sua conferência, o Papa trataria do conflito entre o bem e o interesse na busca da verdade. Defenderia a universidade e sua missão específica no campo do conhecimento e do ensino. Falaria como professor universitário que foi e optou por continuar a ser, mesmo sendo Papa.

O que aconteceu em Roma não foi fato isolado. Em muitos lugares vem acontecendo o mesmo, como ocorre aqui no Brasil. Em nome da esquerda, grupos que são de fato de direita impugnam a manifestação verbal e escrita daqueles que lhes são fundamentadamente críticos. É um silêncio que, se silencia quem poderia e deveria falar, empobrece e ensurdece quem deveria e poderia ouvir.

* José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil. Professor titular aposentado de Sociologia e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pela Contexto, publicou os livros A sociabilidade do homem simples, Sociologia da fotografia e da imagem, Fronteira, O cativeiro da terra, A política do Brasil lúmpen e místico, A Sociologia como aventura, Uma Sociologia da vida cotidiana e Linchamentos.


José de Souza Martins: O preço da perversidade

Um conjunto relativamente extenso de questões está vinculado à inesperada eleição do republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, derrotando no colégio eleitoral Hillary Clinton, democrata, que teve a maioria dos votos populares. Questões relativas ao fato de que estas eleições americanas representaram o ápice de um processo político mundial de redefinição da própria política, de anulação dos sujeitos tradicionais e típicos da concepção de política inaugurada com a Revolução Francesa, da própria concepção de povo. As transformações neste episódio não dizem respeito apenas à sociedade americana e ao capitalismo que ela representa e centraliza.

Na campanha, Trump não falou em nome de uma doutrina política nem mesmo em nome de seu partido. Falou em nome da multidão que não se identifica com os canais históricos de expressão da vontade política. Falou em nome da antipolítica, de um capitalismo que não é o capitalismo da Bolsa, de quem especula e ganha sem trabalhar, mas sim o capitalismo do bolso, de quem só pode ganhar se tiver trabalho. Ainda assim, esses eleitores são os que pensam o trabalho no marco da possibilidade de ascensão social, de negar-se sendo o outro que a sociedade de consumo promete. Trump falava sério. Não é estranho que seu primeiro discurso tenha sido um discurso de teor keynesiano, o trabalho gerador de emprego e renda para reincluir os esquecidos. Um plausível discurso rooseveltiano. Mas há um milenarismo bufo em sua fala populista e nacionalista, que não houve em outros atores bufos da política contemporânea, como Bóris Yeltsin, que demoliu a União Soviética sem propiciar sua superação. Ou como Berlusconi, melancólica expressão da decadência da Itália culta e civilizada.

O voto desta eleição americana foi contra o que representa Wall Street, mas não foi contra o que representa o Tio Patinhas. A personagem decisiva no eleitor decisivo foi, mesmo, a classe média do Pato Donald, com sua frustração e sua ira acumuladas nas várias décadas da globalização que em vários lugares anulou identidades nacionais, aniquilou regras históricas de integração social e de atuação política, que aplainou as fantasias da igualdade jurídica na competição com base na desigualdade econômica. Não há aí nenhuma novidade: sob a máscara da cidadania perfeita a sociedade moderna tem sido a sociedade da iniquidade perfeita, a dos ardis que dizem a cada um o que é não sendo.

As pesquisas eleitorais enganaram os analistas costumeiros munidos de elaboradas técnicas de adivinhação do que vai acontecer. Só o Los Angeles Times, pró-Clinton, associado à Universidade do Sul da Califórnia, acertou, fazendo suas previsões com base em minúcias de mentalidade e de comportamento eleitoral e político, supostamente irrelevantes, que acabariam decisivas no resultado final das eleições. Mais antropologia e sociologia do que ciência política.

Nesse assunto, as ciências sociais se equivocaram ao deixar de lado o que é próprio do homem comum e cotidiano dos tempos atuais. E, ao deixarem de lado em suas análises a extensa categoria de pessoas que nem são ricas nem são pobres, motivadas por carências próprias, abandonadas pelo classificacionismo pseudo-sociológico que conhece por imputação e não por investigação, mais dedutivo do que indutivo, mais para confirmar o supostamente sabido do que para descobrir o não sabido. Deixaram de lado as multidões tolhidas e silenciadas, as vítimas da manipulação política e ideológica para as quais não há lugar no catálogo de anomalias relevantes da sociedade atual. Caso do desemprego, dos favorecimentos falsamente corretivos da pobreza, os recursos de maquiagem dos defeitos e feiuras do mundo contemporâneo. Caíram nas ilusões que inventaram.

Isso tem acontecido também aqui no Brasil, os analistas perdidos mais entre acusar do que explicar, aprisionados pela estreiteza de considerações pouco convincentes sobre direita e neodireita. Não será por aí que proporão a compreensão do que vem acontecendo no País, especialmente desde as manifestações de rua de 2013, até a cassação de Dilma Rousseff e ainda o que virá pela frente. Criaram o artifício do neo-isto, neo-aquilo, que acaba sendo neo-coisa-nenhuma: neoliberalismo, neodireitismo, neoesquerdismo; neopentecostalismo político.

Na verdade, lá e cá, os eleitores destas manifestações eleitorais recentes opuseram-se ao capitalismo da ordem social regulada pelos auxílios, benefícios e favorecimentos aos desvalidos e marginalizados, os sobrantes, desempregados e subempregados, os estrangeiros clandestinos e baratos, à pobreza conveniente e lucrativa.

Ao capitalismo de remendos e curativos, de caridades compreensíveis mas iníquas do ponto de vista dos que sucumbem sob o peso de taxações, de tributações que mantêm bolsas e cotas, à violação do princípio da igualdade e da competição, a isso reage eleitoralmente a vítima. Mandaram o recado: não se corrige perversidades econômicas com injustiças.


Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br