joe biden

Luiz Sérgio Henriques: A corrupção da realidade

É o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista

Depois dos espantosos acontecimentos sucessivos à derrota eleitoral de Donald Trump, que culminaram no assalto ao Capitólio, acompanhado em tempo real por todo o mundo, pode-se afirmar que a esfinge do nacional-populismo contemporâneo não guarda nenhum segredo para ninguém.

Singularmente reativos à globalização e à construção de uma ordem internacional capaz de regular minimamente essa mesma globalização, que confundem de propósito com um fantasmagórico “governo mundial”, os diferentes nacionalismos mundializaram-se à sua maneira e renderam-se, ainda que de modo enviesado, às novas realidades. Não é de estranhar, por isso, que tenham até subtraído do movimento histórico dos trabalhadores a ideia de uma “internacional” que informalmente os congrega e entre eles difunde experiências “revolucionárias” ou que parodiam grotescamente as velhas revoluções.

Nada difícil, também, imaginar que serão bem parecidos os problemas que colocam, ou ainda vão colocar, para cada uma das democracias em cuja sala de comando já entraram ou ameaçam entrar. E cabe falar propriamente de ameaça, pois, como o caso norte-americano deixa evidente, trata-se de grupos com pretensões antissistêmicas, avessos à ideia simples, mas fundamental, de que eleições podem ser ganhas ou perdidas e que uma democracia de verdade repousa na recíproca legitimação dos contendores. Ninguém está fora do jogo, desde que recuse a violência e demonstre lealdade às instituições e suas normas, escritas ou não.

Chega a ser obsceno, depois da trágica experiência dos totalitarismos do século 20, transformar adversários em “inimigos internos” ou “traidores da pátria”, como se fazia, e se faz, nas ditaduras de qualquer tipo ou natureza – nas que se instauraram em nome da “segurança nacional” e nas que aviltaram a palavra “socialismo”. Por esse caminho se abdica da lógica política em favor da lógica da guerra e se entra num campo minado onde o combate salutar entre partidos, que sempre supõe acordos e compromissos, degenera no jogo feroz de facções inconciliáveis. Partidos e outros atores razoáveis são elementos de civilização, mesmo quando se defrontam duramente; facções são fatores de barbárie, ruína e perdição.

A experiência norte-americana dos nossos dias é ilustrativa, sob uma série de aspectos. O que impressiona, já à primeira vista, são os sintomas de loucura de massas advindos do que o angolano José Eduardo Agualusa, com mira certeira, chamou de corrupção da realidade. A fabricação consciente de “fatos alternativos”, ao que se diz, aproxima a Rússia putinista e a versão trumpista dos Estados Unidos, mas, evidentemente, há mais gente mundo afora envolvida nesse festim diabólico. Se, seguindo uma boa tradição de pensamento social, devemos considerar os fenômenos ideológicos uma realidade material como qualquer outra, e não mera aparência maldosamente arquitetada pelas “classes dominantes”, há na desfaçatez com que se mente, no volume e na velocidade com que se aciona o mecanismo propagador de absurdos, algo pérfido e doloso.

Mente-se, hoje, para pôr de pé estratégias manipulatórias como talvez nunca tenhamos visto antes, até porque estamos às voltas com a irrupção impetuosa da internet e das redes sociais. Não a mentira piedosa, como a da trama do conhecido Adeus, Lenin, filme em que o filho busca manter a mãe comunista, egressa de coma, na ilusão de que a Alemanha Oriental ainda resistia e gozava de boa saúde, quando o muro já tinha desabado havia meses e ela, a Alemanha Oriental, era mais um retrato na parede.

Mente-se, ao contrário, como estratégia determinada de grupos que aspiram à subversão da ordem democrática, como nos Estados Unidos, ou à manutenção da ordem autocrática, como na Rússia. Trata-se, quase se diria, de engano deliberadamente construído, que, no entanto, amplas parcelas da população, com menor ou nenhum grau de consciência, sofrem passivamente, entregando-se às mais extravagantes teorias da conspiração e superstições pré-científicas e anticientíficas.

Destroem-se assim alguns dos consensos mais básicos que estruturam a vida em sociedade. A deslegitimação das instituições – a começar do processo eleitoral, fundamento das democracias sistematicamente posto sob suspeição por todos os candidatos a autocrata – parece ser o resultado propositalmente buscado. E a realidade assim corrompida é o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista: o culto do homem providencial, a fixação no mando pelo mando, a dominação bruta, sem capacidade de direção e convencimento.

Não é a primeira vez que extremistas vestem fantasias “revolucionárias”, afirmando representar o homem da rua contra elites degeneradas. Há quase cem anos houve quem, na direita extrema, conjugasse demagogicamente “nacionalismo” e “socialismo”, com os resultados sabidos. Só que agora, até mais do que antes, podemos quase tocar com as mãos na dimensão universal da democracia e do conjunto de valores, particularmente liberais, que ela por sua própria natureza implica.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Werneck Vianna: Hic Rhodus hic salta

Nesse tempo de espantos algo já se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald Trump que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou por princípios opostos de política externa será ungido com a faixa presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente constituído, exemplar no processo de criação da ONU.  O eixo do mal, portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam não terão como operar sem o amparo do sistema de quem faziam parte.

Cerra-se um ciclo que se iniciou no governo Thatcher, aprofundou-se com Reagan e culminou com Donald Trump, em que se tentou com a fórmula neoliberal nos devolver ao capitalismo vitoriano. As promessas de um novo tempo, contudo, se encontram embaçadas pelo flagelo da pandemia que nos assola e tolhe a livre movimentação das forças sociais embora estimulem a procura por soluções cooperativas supranacionais. Nesse sentido, o esforço mobilizado para o combate contra ela ainda mais reforça o processo de transição em que estamos envolvidos para uma era de superação do modelo de estado-nação em favor de organizações multinacionais que se comprometam com os ideais da igual-liberdade.

Essa transição não será um processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da invasão do Capitólio quando se intentou obstar a certificação das eleições por um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de supremacistas brancos, neonazistas, de milicianos, de uma gente sem eira e beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as bênçãos do governante do país.

Conduzir essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu caminho, a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20 em nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua sociedade.

Tal como testemunha o caso brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que integravam sua constelação, entre os quais o Brasil, contudo a necessária admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.

O princípio da realidade nos aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições, inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa marcha que se tem pela frente, pois não se podem dar as costas à fortuna que nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens, ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de prolongar o abjeto governo que aí está.

A tragédia amazônica, se permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas, na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia do ministro Pazzuelo.

Nessa direção, o movimento ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.

Cassandras nos aconselham a não partir para o mar alto, e nos relembram dos políticos liliputianos com que contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de forças esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos, basta, fora.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio


Ruy Castro: Sugestões no vazio

É inútil sugerir ao homem mais poderoso do mundo que se mate; ele nem leva em consideração

No domingo último (10), este colunista sugeriu ao presidente Donald Trump que, por sua incapacidade de aceitar a derrota nas urnas de seu país —de aceitar ser um perdedor—, fizesse como Getulio Vargas, que, ao também se ver diante do fim, matou-se e passou à história como um mártir. Se Trump fizesse o mesmo, muitos americanos que o detestam começariam a vê-lo com simpatia. Até este momento, no entanto, Trump nem considerou minha sugestão.

Realmente, há um quê de patafísico em um colunista brasileiro, escrevendo em código --a língua portuguesa--, oferecer tal conselho ao homem mais poderoso do mundo. Como era natural, Trump me ignorou, e Jeff Rosen, seu ministro da Justiça, poupou-se do ridículo de vir em cima de mim. Os horrores que Rosen escuta sobre seu chefe por todas as mídias dos EUA são mil vezes piores, e mesmo contra esses ele nada pode fazer, porque a Constituição americana garante a liberdade de opinião.

Supõe-se também que, se um presidente da República, de qualquer país, deixar-se afetar por uma sugestão tão descabida é porque deve ser um idiota, impróprio para governar. Se um sujeito se chega a ele dizendo "Mate-se" e ele salta pela janela, imagine se um de seus ministros lhe propuser botar fogo na mata enquanto ninguém está olhando --ele será capaz de topar.

Mas Trump não é um idiota, nem Rosen. Os dois, aliás, estão muito ocupados --Rosen mandando os trumpistas arruaceiros do Capitólio para a cadeia (que jeito?), e Trump deixando de ser o homem mais poderoso do mundo. Os militares já o abandonaram, assim como a Suprema Corte e, cada vez mais, seus colegas Republicanos. Se bobear, logo só lhe restará a família Bolsonaro.

Ah, sim, sem ilusões estendi aquela ingênua sugestão a Jair Bolsonaro. Mas, pela reação que ela provocou dentro do governo, o homem mais poderoso do Brasil só pode estar considerando a ideia.


Merval Pereira: Defender a democracia

Como a democracia nos Estados Unidos, apesar dos últimos acontecimentos, continua sólida, a notícia saiu na edição digital do New York Times sem grande destaque. Mesmo assim, é inusitada para os padrões deles a nota dos chefes-militares das Forças Armadas americanas garantindo a defesa da Constituição e repudiando os ataques ao Congresso ocorridos há dias em Washington.

Garantem apoio à posse de Biden e pedem aos comandados, dentro e fora dos Estados Unidos: “Estejam prontos, mantenham os olhos no horizonte e permaneçam focados na missão”. Para nós, que temos uma democracia que tenta se consolidar em meio ao turbilhão autoritário liderado por um presidente que não tem respeito às leis, a nota dos generais americanos tem uma significação maior, e pode servir de exortação  aos nossos generais, que há muito tempo já convivem com ataques à democracia por parte do presidente Bolsonaro e suas milícias, e não se posicionam firmemente contra claros avanços autoritários.

Ao endossarem, ou ao menos parecer endossar, as agressões de Bolsonaro às leis e à civilidade, os militares tornam-se cúmplices de um governo responsável por inúmeros ataques à democracia, culminando com a repugnante politização da COVID-19 que colocou o país como o segundo com maior número de mortes totais, e faz com que, mesmo diante da tragédia revisitada de mais de mil mortes diárias em média, ele se sinta em condições de fazer piada sobre a suposta ineficácia da vacina Coronavac produzida no Instituto Butantan.

É a única vacina que temos, cuja aprovação corre o risco de ser atrasada para permitir que o presidente Bolsonaro faça uma solenidade oficial no Palácio do Planalto para tornar-se dono de um programa de vacinação que desdenhava.  

Cresce no mundo a sensação de que é preciso levar a sério as ameaças retóricas de populistas como Trump e Bolsonaro, e impedir que prosperem. Não levá-las a sério pode permitir que se concretizem. A atitude do Congresso americano, de levar adiante mais um processo de impeachment do (ainda?) presidente Donald Trump também serve de exemplo e advertência aos congressistas brasileiros.

Também lá nos Estados Unidos não há maioria para destituir Trump, mas mesmo assim a Câmara insistiu, pois atitudes de “incitamento à insurreição”, como está descrito na acusação votada ontem, precisam de uma resposta, mesmo que seja simbólica.

Desta vez, porém, há ainda uma pequena chance de que o processo vá adiante no Senado, seja pela revolta de alguns senadores republicanos que prometem aderir à oposição, seja pelo artifício parlamentar de deixar para continuar o processo após a posse de Joe Biden, dia 20, quando os democratas já terão a maioria também no Senado.

Se condenado pelo Senado, duas votações decidirão o futuro de Trump: se ele perderá os benefícios concedidos a um ex-presidente; e se será proibido de se candidatar novamente. Enquanto a votação do impeachment necessita da aprovação de dois terços do Senado, as duas sanções  complementares necessitam apenas da maioria simples para serem aprovadas.  

Diante do infame discurso de Trump incitando seus militantes a marcharem contra o Capitólio no dia da confirmação oficial da vitoria de Joe Biden à presidência, alguns deputados republicanos aderiram ao impeachment, gesto puramente simbólico, pois os democratas tinham votos suficientes na Câmara para aprovar.

Aqui entre nós, com mais de trinta pedidos de impeachment trancados na gaveta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, alega-se que não há ambiente político para a aprovação de um processo de impeachment, que perturbaria o cenário político.

Depois de dois anos em que o próprio presidente perturba o equilíbrio institucional com declarações e atitudes inconcebíveis em quem ocupa a presidência da República, já está na hora de uma reação firme de repúdio, mesmo que o Centrão impeça a concretização do impedimento de Bolsonaro. Os políticos fisiológicos e os radicais de direita sairiam fortalecidos, mas desmoralizados.


Oliver Stuenkel: Como o fim da Guerra Fria contribuiu para a polarização dos EUA

Colapso da União Soviética eliminou a ameaça existencial que ajudava a estabilizar a política norte-americana

Quando ficou sabendo da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, meu pai ficou extasiado. Correu pela casa gritando “Caiu o Muro!”, como se seu time de futebol tivesse vencido o campeonato. Horas depois, toda a família estava na estrada em direção a Berlim, onde dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram para saudar cidadãos da Alemanha Oriental, que entravam na parte Ocidental de Berlim pela primeira vez. Sem compreender o significado geopolítico daquele episódio na época, me impressionei com meu pai abraçando pessoas desconhecidas, todo o mundo aos prantos.

Como a vasta maioria da sociedade norte-americana, meu pai, um berlinense que passou a adolescência nos Estados Unidos, viu no colapso da União Soviética um triunfo histórico dos EUA. Ele fazia questão de que minhas irmãs e eu cursássemos parte do Ensino Médio em uma escola nos Estados Unidos. À primeira vista, a década de 1990 lhe dava razão: foi um período marcado por um boom econômico nos EUA e muita confiança de um país que se via, pela primeira vez na história, sem rival no planeta.

Em retrospectiva, porém, ficou claro: o colapso da União Soviética plantou na sociedade norte-americana a semente da polarização destrutiva, hoje uma marca registrada da política contemporânea dos EUA. Os debates políticos nos Estados Unidos durante a Guerra Fria não foram sempre civilizados evidentemente. A carreira do senador Joseph McCarthy, um charlatão famoso nos anos 1950 por liderar o combate a supostos comunistas infiltradosno Governo norte-americano, é prova disso. Durante expressiva parte desse período histórico, porém, havia consenso na população americana de que, diante da ameaça soviética, haveria limites aos ataques a oponentes na política doméstica. Afinal, a disputa contra a URSS gerava uma espécie de acordo nacional, que unia todos os atores políticos nos EUA, independentemente de suas convicções ideológicas.

Livre de preocupações sobre a sobrevivência do país, o tom na política norte-americana nos anos 1990 mudou para pior. Carente do grande projeto nacional de derrotar o comunismo, a política começou a priorizar intrigas que apequenaram a elite política dos EUA. Liderado pelo deputado republicano Newt Gingrich em 1999, o processo de impeachment de Bill Clinton —do qual seria absolvido pelo Senado depois—indicava uma abordagem de vale-tudo e a demonização dos opositores. Duas décadas mais tarde, a fragilidade da democracia americana revelou-se ainda mais flagrante quando seguidores pró-Trump invadiram o Capitólio para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Como escreve Janan Ganesh, “o fim da Guerra Fria foi uma vitória da qual os Estados Unidos nunca se recuperaram.”

A última vez em que um candidato à presidência dos EUA ganhou mais de 400 votos no Colégio Eleitoral foi em 1988, quando George Bush pai, piloto da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, com longa experiência de política externa, venceu na vasta maioria dos Estados norte-americanos. Não se trata de uma coincidência. Desde então, todas as eleições presidenciais revelam um país profundamente dividido, com ambos os lados acusando o outro de inimigo da pátria, cuja vitória representaria o fim da república. Não surpreende, tampouco, que mais presidentes tenham sofrido processos de impeachment desde o fim do confronto ideológico com os soviéticos do que nos primeiros dois séculos da república estadunidense.

Nesse contexto, a ascensão da China e a emergência de uma guerra fria entre os EUA e esse país asiático teriam o potencial de ajudar a sociedade americana a superar suas profundas divisões, que hoje representam ameaça à estabilidade política do país? À primeira vista, parece que não —afinal, apesar do seu sistema político formalmente parecido com o da União Soviética, qualquer um que pousa no aeroporto de Pequim ou Xangai logo percebe que a sociedade chinesa é profundamente capitalista e pelo menos tão materialista e individualista quanto a dos Estados Unidos. Enquanto na Guerra Fria (1947-1991) havia pouca interação econômica entre os EUA e a União Soviética, hoje, milhares de empregos norte-americanos dependem da China, dificultando um confronto como o proposto por Donald Trump nos últimos quatro anos. Um vasto número de estudantes chineses, muitos deles filhos da elite política da China, assegura a sobrevivência das universidades norte-americanas. Além disso, diferentemente da União Soviética, a China não tem planos de exportar seu modelo político ou econômico. Transformar o regime comunista chinês em bicho-papão com o fim de unificar os EUA não seria nada fácil.

Por outro lado, tudo indica que Trump é apenas sintoma de um novo consenso anti-China em Washington, reflexo de uma sociedade cada vez mais preocupada com o deslocamento de poder para o gigante asiático. O bloqueio de aplicativos chineses pelo Governo dos EUA e a disputa pela supremacia digital entre as duas potências, simbolizada pela atuação do Governo norte-americano contra a empresa chinesa Huawei, representam somente o começo de um novo sistema internacional marcado por esferas de influência de natureza tecnológica, dividindo o mundo em países que ou usam tecnologia americana ou preferem a chinesa. Parece provável que líderes políticos nos EUA tentarão aproveitar esse novo cenário para incitar o nacionalismo que ajudou a estabilizar o debate político durante a Guerra Fria.

Um estrategista da equipe de transição do Governo Biden me disse recentemente que a postura de Trump em relação à China era “talvez o único ponto de convergência que temos [com os Republicanos]”. Só o tempo dirá se esse entendimento será suficiente para ter início uma reaproximação entre Democratas e Republicanos de forma a superar a hiperpolarização que se apoderou da política norte-americana.

*Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Amanda Mars: Trump dinamita o final com o qual sonhava

Até quarta-feira, o presidente republicano imaginava uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate. O ataque ao Congresso o deixa mais isolado e silenciado que nunca

Silenciado nas redes sociais, repudiado pelo establishment republicano, abandonado por uma série de altos funcionários de seu Gabinete e derrotado nas urnas, Donald Trump nunca esteve tão sozinho como agora. Sua última grande batalha contra o sistema dos Estados Unidos, na qual tentou reverter o resultado das eleições presidenciais espalhando acusações infundadas de fraude, serviu de teste final sobre as lealdades, e também sobre as forças democráticas, e o presidente se deu mal.

O secretário de Justiça William Barr, nomeado pelo próprio Trump, não encontrou nenhum fundamento da alegada grande operação fraudulenta; as autoridades republicanas dos Estados cujos resultados eleitorais foram contestados pelo mandatário resistiram às suas pressões; a Suprema Corte, de maioria conservadora e com três dos nove juízes nomeados por ele, decidiu por unanimidade não envolver-se; e no último momento, na quarta-feira, quando o Congresso se reuniu para certificar em Washington a vitória eleitoral do democrata Joe Biden, apenas um punhado de legisladores fiéis ao presidente se animou a torpedear o processo.

Naquele 6 de janeiro, já escrito para sempre nos livros de história, o magnata nova-iorquino resolveu fazer uma nova demonstração de força. Pela manhã, antes que os membros do Congresso se reunissem para ratificar Biden, convocou um comício em frente à Casa Branca, aproveitando a enorme quantidade de seguidores que tinham chegado de todo o país. Depois, incentivou-os a ir protestar diante do Capitólio, a ser fortes, a recuperar o país sem fraquejar.

Até quarta-feira, Donald Trump tinha planejado uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate, pensando em se manter como uma voz destacada do eleitorado conservador. Tinha revelado inclusive sua intenção de voltar a ser candidato nas eleições presidenciais de 2024 e, pelo que seu entorno vazou para a imprensa, pensava em anunciá-la formalmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ninguém gosta tanto de um bom espetáculo como esse empreendedor imobiliário de 74 anos que conquistou a presidência mais poderosa do mundo ao saltar dos reality shows para a política. Irritado com a linha da TV conservadora Fox News —outra que o abandonou, segundo seu ponto de vista—, pensava em lançar uma plataforma própria para continuar conectado com suas bases. A batalha de fundo era o controle do eleitorado republicano. Alguns membros de sua família, como sua filha, Ivanka, e seu filho mais velho, Donald, também consideraram a possibilidade de seguir uma carreira política. Em suma, para a família Trump, a política estava apenas começando.

Todos esses planos se complicaram para Trump depois do violento assalto de seus seguidores radicais ao Congresso, uma revolta — instigada por sua campanha dos últimos meses— na qual morreram cinco pessoas e que pôs a imagem dos Estados Unidos, a democracia mais poderosa do mundo, em uma situação vergonhosa.

Segundo o procurador Ken Kohl, do gabinete do Ministério Público dos EUA em Washington, o Departamento de Justiça não planeja, pelo menos por enquanto, denunciar por crimes de incitação à violência o presidente ou outros que discursaram no comício da manhã de quarta-feira diante da Casa Branca (como seu filho Donald Jr.), onde foi aceso o pavio. No entanto, o Partido Democrata pretende submeter Trump a um processo de impeachment, ou seja, a um julgamento político no Congresso para decidir sobre sua destituição, a não ser que ele renuncie ou seu próprio Gabinete o deponha recorrendo à 25ª emenda da Constituição (estas duas últimas opções são improváveis).

Resta para Trump pouco mais de uma semana na Casa Branca, mas, se for condenado nesse processo, o Senado poderia votar também para incapacitá-lo como candidato no futuro. O impeachment teria caminho livre na Câmara dos Representantes, que iniciaria o processo e tem maioria democrata, mas seria complicado no Senado, onde ocorreria o julgamento político em si, no qual um presidente só pode ser condenado por maioria de dois terços dos votos —o que, atualmente, o partido de Joe Biden não tem.

“É muito difícil que tenham tempo para tudo isso; o que os democratas querem fazer é prejudicá-lo politicamente, evitar que possa se candidatar nas eleições em 2024, e buscam o apoio dos republicanos para isso, mas essa não é sua prerrogativa, é uma prerrogativa dos eleitores”, considera o jurista republicano Robert Ray, que atuou como procurador independente no caso Whitewater, um escândalo imobiliário que atingiu Bill e Hillary Clinton nos anos noventa.

Além dos episódios violentos no Congresso, o que estará à espera de Trump quando ele deixar o Governo é a Justiça. A procuradoria de Manhattan está investigando seu histórico tributário e, graças a uma vitória na Suprema Corte, terá acesso a oito anos de suas declarações, como parte de inquéritos sobre pagamentos a mulheres para ocultar possíveis infidelidades matrimoniais durante a campanha de 2016 e sobre uma possível fraude fiscal. Além disso, a procuradora de Nova York Laetitia James está analisando possíveis acusações contra sua construtora por alterar o valor real de seu ativos para obter empréstimos.

O Departamento de Justiça também terá o caminho livre para reativar o caso de obstrução à Justiça durante a investigação da trama russa —Trump já não terá a imunidade presidencial— e, por outro lado, continuam os processos por sua conduta pessoal: uma ação de sua sobrinha Mary Trump por fraude em uma herança e duas por difamação, uma destas movida pela escritora E. Jean Carroll, que o acusa de uma agressão sexual supostamente cometida nos anos noventa.

Essas questões, porém, já estavam na mesa antes do pleito de novembro e não minaram o apoio ao presidente, que perdeu as eleições, mas obteve 74 milhões de votos, quase 12 milhões a mais do que em 2016. A dúvida é se o magnata conseguirá manter sua capacidade de mobilizar as bases a partir de agora; se realmente, como afirma, poderá continuar sendo o líder dos eleitores conservadores depois de ser expulso do poder político, com menos atenção da mídia e com outros republicanos já pensando em varrê-lo do mapa para entrar na corrida pela Casa Branca.

Para o estrategista político Rick Wilson, um dos fundadores do The Lincoln Project, uma plataforma de republicanos contra Trump, o presidente perdeu “seu superpoder”, ou seja, seu alto-falante nas redes sociais, Twitter e Facebook, “e não poderá se comunicar com seus seguidores tão facilmente quanto antes”.

Wilson relativiza o peso dos 74 milhões de votos que Trump recebeu nas eleições, e alerta que metade deles é de “republicanos comportamentais”, ou seja, eleitores que “votarão em republicanos aconteça o que acontecer, porque para eles as eleições são uma alternativa entre socialismo e liberdade, luz e escuridão, bem e mal”. Resta, acrescenta o estrategista, essa outra metade que participa do culto à figura do magnata nova-iorquino. “Mas o grande cisma com que esta nação se defronta é se as pessoas que se dizem republicanas, que acreditam nos princípios conservadores, estão bem servidos com Trump”, assinala. Para o Partido Republicano, diz ele, o que ocorreu quarta-feira foi “devastador”.

Fala-se muito sobre os próximos movimentos de Trump. Renegado como nova-iorquino, espera-se que ele se mude para a Flórida, principalmente por conveniência fiscal. Um personagem tão singular como esse, alérgico às derrotas e orgulhoso até a agonia, não pode ser considerado varrido do mapa. Se vir opções, continuará lutando pelo controle dos eleitores republicanos, mas ninguém acredita mais que ele tenha coragem de convocar outra manifestação para coincidir com a posse de Biden.


Sergio Lamucci: Problemas à vista na relação com os EUA

Governo brasileiro não fez nenhum gesto para se aproximar de Biden

A menos de dez dias da posse de Joe Biden como presidente dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro segue distante da nova administração americana. Não construiu pontes com o novo líder americano, fazendo questão de reafirmar os seus laços com Donald Trump, que se recusa a reconhecer a derrota nas eleições e termina o governo apostando ainda mais na divisão do país, ao ter incitado a invasão do Congresso.

Essas atitudes de Bolsonaro vão dificultar a relação do Brasil com os EUA, por mais que Biden seja visto como um político pragmático. O Brasil ficará ainda mais isolado no cenário externo, enfrentando problemas especialmente por causa da atitude do governo Bolsonaro em relação ao ambiente, que será uma das prioridades do novo presidente americano.

Na semana passada, Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral dos EUA, afirmando que a causa da crise americana é “basicamente a falta de confiança no voto”. Segundo ele, “lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.” A apoiadores, o presidente disse ainda o Brasil terá “um problema maior que os EUA” em 2022, caso não haja uma mudança no sistema eleitoral por aqui, com o voto impresso.

Bolsonaro usa o exemplo do pleito americano para mais uma vez colocar em xeque a credibilidade das eleições brasileiras, indicando que poderá repetir a estratégia de Trump no ano que vem, se o resultado for desfavorável a ele. O presidente já disse várias vezes que houve fraudes nas eleições de 2018, em que venceu Fernando Haddad (PT) com grande folga. Com essa estratégia, Bolsonaro subordina os interesses do país aos seus interesses pessoais.

Por mais que seja próximo de Trump, já passou da hora de Bolsonaro buscar uma aproximação com Biden. O brasileiro só foi cumprimentar o presidente eleito americano 38 dias após as eleições, sendo o último líder dos países que integram o G-20 a reconhecer a vitória do candidato democrata.

Em entrevista ao Valor em outubro, Thomas Shannon, ex-embaixador americano no Brasil entre 2010 e 2013, destacava que “a agenda do Partido Democrata não é favorável ao presidente Bolsonaro”, citando temas ambientais, por exemplo, embora tenha afirmado que Biden entende o valor estratégico do Brasil para os EUA.

Ex-subscretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Shannon conhece profundamente a política do Partido Democrata para a América Latina. Já em artigo para a revista “Crusoé”, publicado em 1º de janeiro, Shannon deixou claro o impacto que podem ter para as relações entre Brasil e EUA as declarações de Bolsonaro sobre o resultado das eleições americanas - e isso antes de o brasileiro repetir, na semana passada, as insinuações de fraude no pleito americano.

Shannon escreve que Biden “conhece a importância do Brasil e tem um conhecimento bem desenvolvido da trajetória histórica de nossa cooperação”, sendo ainda um político que “verá a relação com o Brasil não em termos pessoais, mas em termos dos interesses e valores que ligam nossas duas nações”.

Depois de apontar essas características de Biden, Shannon afirma que, “dito isso, o governo Bolsonaro tem feito quase todo o possível para complicar a transição na relação bilateral”, lembrando que o presidente e membros de sua administração expressaram preferência por Trump. Ele destaca ainda que Bolsonaro criticou Biden após comentários do então candidato democrata durante um debate, pedindo uma ação mais orquestrada do Brasil sobre o desmatamento”. Na ocasião, o americano disse que pretendia reunir outros países para garantir US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia - caso contrário, o Brasil enfrentaria “consequências econômicas significativas”.

Segundo Shannon, “essa gafe, no entanto, perde relevância quando é comparada com a disposição do presidente Bolsonaro de repetir as alegações infundadas de fraude” feitas por Trump sobre as eleições dos EUA. “A preferência partidária baseada na amizade pessoal é perdoável, assim como a defesa da soberania nacional. No entanto, atacar a integridade e a credibilidade do processo eleitoral americano é um ataque à legitimidade da democracia americana e à Presidência de Joe Biden. É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido.”

Nesse cenário, “o tom da parceria única entre Brasil e Estados Unidos agora depende em grande parte do Brasil”. Pelo que se vê até o momento, porém, o governo Bolsonaro não está disposto a fazer gestos de boa vontade para a nova administração americana. Não foi apenas o presidente brasileiro que questionou as eleições americanas. No Twitter, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse na semana passada que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O líder da diplomacia brasileira também levanta dúvidas sobre o pleito que levou à vitória do novo presidente americano.

Nessa toada, o Brasil não deverá ter vida fácil com o governo de Biden. Na semana passada, o novo presidente indicou Juan Gonzalez para o cargo de diretor-sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional. Em outubro, Gonzalez afirmou que “qualquer um, no Brasil ou em outro lugar, que pensa que pode avançar numa relação ambiciosa com os EUA enquanto ignora assuntos importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos claramente não está ouvindo Joe Biden em sua campanha”.

O foco do americano em políticas ambientais, atuando possivelmente em conjunto com a União Europeia (UE), colocará mais pressão sobre o Brasil nesse campo. Isso poderá afetar as exportações brasileiras, assim como atrapalhar o fluxo de investimentos estrangeiros para o país. O governo Bolsonaro, porém, não parece preocupado em ter bom um relacionamento com Biden, como já não tem com boa parte dos países da UE e com a China. Sem aliados importantes no cenário internacional, o Brasil caminha em 2021 para ficar ainda mais isolado.


Elio Gaspari: Os últimos dias de Trump

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou

Em julho de 2016, o bilionário Michael Bloomberg, disse durante a convenção do partido Democrata: “Eu reconheço um vigarista quando o vejo”. Referia-se a Donald Trump. Passaram-se quatro anos, e a questão da vigarice do doutor foi para a mesa da procuradora-geral do estado de Nova York. Em Washington, a questão tornou-se outra: a eventual aplicação do dispositivo constitucional que permite empossar o vice caso o titular esteja incapacitado. Quando essa emenda foi aprovada, pensava-se num cenário no qual o presidente está sob intensos cuidados médicos. No espetáculo da série “Os últimos dias de Trump”, a invocação do dispositivo nada tem a ver com uma anestesia geral, por exemplo. Trata-se de incapacidade por maluquice.

Trump é visto como um narcisista psicótico por muita gente que não gosta dele. Em julho passado, sua sobrinha Mary (psicóloga) publicou um livro com o subtítulo “O homem mais perigoso do mundo”. Parecia futrica familiar.

Desde novembro, Trump sustenta que venceu a eleição “de lavada”. Na terça-feira, os candidatos republicanos perderam a eleição na Geórgia. No dia seguinte, seus guardiões fizeram o que fizeram. (“We love you”, disse Trump.) Os senadores e deputados americanos foram obrigados a deixar o prédio. Numa decisão histórica, voltaram aos plenários horas depois. Na quinta-feira, confirmaram o resultado eleitoral. A senadora republicana que perdeu a cadeira tirou sua assinatura do pedido de recontagem dos votos da eleição presidencial na Geórgia. Duas integrantes do primeiro escalão de seu governo foram-se embora, e seu fiel ex-procurador-geral acusa-o de ter traído o cargo.

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou. Isso só acontecia em filmes ruins. Desde o dia em que tomou posse, garantindo que ela foi assistida por uma multidão jamais vista, estava no tabuleiro a carta de que se tratava de um mentiroso. Quatro anos depois, com o seu negativismo eleitoral e a mobilização de seus seguidores para a invasão do Capitólio, Trump encarna o personagem do teatrólogo Plínio Marcos em “Dois perdidos numa noite suja”: “Sou o Paco Maluco, o perigoso”.

A série “Os últimos dias de Trump” não terminou. Se ele queria ir jogar golfe na Escócia no dia da posse de Joe Biden, deve buscar outro pouso. A primeira-ministra Nicola Sturgeon disse que lá o doutor não entra, pois o país está em lockdown.

Faltam dez dias para o fim da série, e Trump ainda surpreenderá a plateia. A Associação Americana de Psiquiatria continua funcionando, com sede a poucos minutos da Casa Branca. Isso, porque malucos existem.

A poesia de Grant no caos de Trump

Durante as horas em que a anarquia trumpista tomou conta do Capitólio, deu-se um momento de poesia histórica. Sem dar a menor bola, centenas de manifestantes passavam por baixo do monumento ao general Ulysses Grant, comandante das tropas vitoriosas da União durante a Guerra da Secessão (1861-1865).

A estátua equestre é um retrato excepcional da figura de Grant. Enquanto o gênero coloca os homenageados em posições combativas, como o Duque de Caxias de Victor Brecheret, o Grant do escultor Henry Shrady está encolhido, parece um tropeiro com frio. Assim era ele. Teve uma carreira militar medíocre, tentou a vida fora do Exército e faliu. Bebia mal. Ele comandava tropas do Norte quando chegou com o filho a um hotel de Washington e o recepcionista disse-lhe que só tinha quartos no sótão. Tudo bem até a hora em que ele assinou a ficha: “Ulysses S. Grant”.

Na cena da rendição dos rebeldes numa casa de Appomattox havia dois comandantes. Um chegou num bonito cavalo, com faixa na cintura e espada com punho de ouro cinzelado. O outro, com o uniforme amarfanhado (há quatro dias não o trocava) e as botas enlameadas. O bonitão era Robert Lee, que estava se rendendo e pedindo comida para seus soldados.

Desde jovem, quando participou da invasão do México, Grant impressionava pela sua capacidade de manter o sangue frio nos piores momentos de uma batalha e diante do massacre de suas tropas. (Isso numa pessoa que tinha horror a carne mal passada, pelo que viu no curtume de seu pai.)

Quanto maior a confusão, maior era a calma de Grant. Sua figura no meio da anarquia dos guardiões de Trump a foi mais uma homenagem ao general que botou os escravocratas do Sul de joelhos.

Grant foi eleito presidente e governou de 1869 a 1877. Um desastre. O general meteu-se com o papelório, e no fim da vida estava quebrado. Pagou suas contas escrevendo um livro de memórias. Ele e a mulher estão sepultados num mausoléu em Nova York, na altura da rua 122. O balcão de perfumes da Bloomingdale’s recebe mais fregueses num mês do que sua tumba do casal em um século.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, encantado com o legado da Olimpíada de 2016 e com o desenvolvimento imobiliário gerado pelo Porto Maravilha. O cretino adorou a ideia do prefeito Eduardo Paes de convocar um plebiscito para decidir o que fazer com a falecida ciclovia Tim Maia.

Eremildo propõe que no plebiscito sejam feitas mais duas perguntas:

Quem foi o responsável pelo desastre que matou duas pessoas e torrou R$ 45 milhões?

A prefeitura não tem mais o que fazer?

Baleia Rossi

O pelotão palaciano acordou para a possibilidade de o deputado Baleia Rossi ganhar a presidência da Câmara dos Deputados.

Mayrink, um artista

Gustavo Mayrink colocou um tesouro na rede. É o site “Geraldo Mayrink”, com dezenas de textos de seu pai, falecido em 2009, depois de mais de 40 anos de atividade jornalística.

Ele falava calado e escrevia como poucos.

As quatro primeiras frases de seu perfil do jogador Garrincha entraram para a história da maestria jornalística:

“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol.”

Num tempo de más notícias, os textos de Geraldo Mayrink permitem um reencontro com a alegria de seus leitores.

Notas incorretas

No vídeo que mostra os guardiões de Trump no salão que fica debaixo da cúpula do Capitólio, eles se comportaram como respeitosos visitantes de um museu.

O vídeo que mostra o tiro dado por um policial na manifestante que estava do outro lado de uma porta, matando-a, foi coisa de seguidor do ex-governador Wilson Witzel.

(Em tempo: se os trumpistas de Washington fossem negros, os mortos da quarta-feira teriam passado da dezena.)

Macaco fora do galho

No dia em que o Brasil bateu a marca dos 200 mil mortos pela Covid, Bolsonaro avisou que se o Brasil não usar o sistema de voto impresso, terá os mesmos problemas que aqueles criados por Trump nos Estados Unidos.

Tudo bem. Seria o caso de ele combinar que na próxima epidemia o presidente do Tribunal Superior Eleitoral acumulará o cargo com o de ministro da Saúde. Certamente, ele não falará em cloroquina, “gripezinha” nem “conversinha” de segunda onda.


El País: Norte-americanos vivem apreensão e ansiedade com os últimos dias de Trump na Casa Branca

Trump não irá à posse de Biden em 20 de janeiro, a primeira vez que isso acontece desde 1869

Donald Trump está cada vez mais sozinho e, ao se sentir quase encurralado, é possível que em vez de lamber as feridas ao final de sua presidência, decida que a melhor defesa diante da enxurrada de críticas é um bom ataque. Trump provou ao longo dos últimos quatro longos anos que pode ser imprevisível e errático em suas decisões. A oposição democrata e um número cada vez maior de republicanos que começam a abandoná-lo vivem com incerteza, ansiedade e até medo os 12 dias que restam até que no próximo dia 20 o presidente Trump deixe definitivamente a Casa Branca.

Ele já deu vários murros no tabuleiro internacional. Há pouco mais de um ano, o mandatário republicano surpreendeu ao ordenar um ataque com drones contra o poderoso general iraniano Qasem Soleimani, desatando tensão máxima no Oriente Médio ao acabar com um dos homens fortes do aiatolá Ali Khamenei, em um golpe duríssimo a Teerã. Além disso, Trump se lançou a desenhar um novo mapa geopolítico acabando com décadas de diplomacia com a China e inaugurando uma nova Guerra Fria com a grande potência em ascensão. Há mais exemplos: como mudar a posição internacional sobre Jerusalém, ao mudar à cidade santa a embaixada dos EUA, e talvez a última mudança drástica da política em Washington, com o apoio ao Marrocos ao reconhecer sua soberania sobre o Saara Ocidental, o que significou ignorar as resoluções da ONU.

Diante das dúvidas sobre o que ainda pode ordenar um presidente ferido, que deixará como legado uma tentativa de insurreição insuflada por ele mesmo contra a democracia dos Estados Unidos, os líderes democratas estão tentando adotar medidas sérias. Além de seu pedido para que seja aplicada a 25° emenda e a realização de um impeachment a toda pressa do mandatário, a presidenta da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, se movimentou no terreno do prático e explicou na sexta-feira que conversou com o chefe do Estado Maior Conjunto, o general Mark Milley, para manter “um presidente instável” longe dos códigos nucleares que controla.

Proteger a população

“A situação desse presidente volátil e instável não poderia ser mais perigosa e devemos fazer todo o possível para proteger a população americana de seu desequilibrado ataque ao nosso país e nossa democracia”, escreveu Pelosi em uma carta. A presidenta da Câmara de Representantes afirmou que recorreria ao julgamento político contra Trump se o vice-presidente, Mike Pence, não iniciasse o processo para que seu Gabinete retirasse Trump do poder com a emenda constitucional por incapacidade.

Enquanto isso, o presidente flerta com a ideia de conceder um perdão a si mesmo para evitar possíveis investigações judiciais quando abandonar a Casa Branca. Um presidente perdoar a si mesmo seria algo inédito na história dos Estados Unidos, mas Trump já falou em público diversas vezes sobre essa opção, defendendo que tem o “direito absoluto” a fazê-lo. O republicano colocou essa opção durante a investigação da chamada trama russa, que verificou as supostas ligações entre a Rússia e sua campanha nas eleições de 2016.

O caso foi fechado sem que Trump fosse acusado por qualquer crime. Mas o promotor especial da investigação, Robert Mueller, afirmou o tempo todo que o mandatário não foi eximido, o que faz com que potencialmente possa ser processado quando deixar a Casa Branca. A maior ameaça legal que Trump enfrenta hoje é uma investigação por fraude do Estado de Nova York relacionada aos seus negócios. Ainda que esse seja um caso de alcance estadual que não estaria protegido por um perdão presidencial, uma vez que Trump é investigado como pessoa particular, sem vínculo com as decisões tomadas desde sua chegada ao poder em 2016.

A agenda diária de Trump até o dia da posse de seu sucessor, o democrata Joe Biden, é uma incógnita. “O presidente trabalhará do começo da manhã até tarde da noite. Fará muitas ligações e muitas reuniões”, disse a mensagem de sexta-feira enviada à imprensa pela Casa Branca.

Apesar de seu pedido para cicatrizar as feridas após o ataque ao Capitólio, Trump estaria supostamente planejando sigilosamente viajar na semana que vem à fronteira sul de seu país para lembrar em seus últimos dias, ao lado do muro que queria ampliar com o México, sua posição de falcão na política migratória. Também estaria pensando, de acordo com o The New York Times, em conceder uma entrevista antes de deixar o poder.

No Twitter, antes de sua conta ser suspensa definitivamente, o mandatário anunciou que não irá à posse de Biden, a primeira vez que isso acontece desde 1869. Quebrando a tradição, a família Trump sairá da Casa Branca rumo a sua residência da Flórida no dia 19, e não no 20. Quase uma saída pela porta dos fundos.


Paulo Fábio Dantas Neto: A República na América

“(...) Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles, embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem(...)”. (Hannah Arendt, “Da Revolução”)

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto. Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a república norte-americana a se defender.

Uso de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados por ações da política externa de seu Estado.  Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.

Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões - como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.

Em contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações revolucionárias, mas da sua derrota.   

Como coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação (a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade política quando a lei - sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da própria República.   Numa palavra, na República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.

É sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante um processo cumulativo de inclusão política.  A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração) como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo, impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd.  A visão dessa floresta é a da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software em constante atualização.

Foi contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6.  O Capitólio é o edifício símbolo do hardware que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram, ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.

Mas eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa, para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de uma “nova” esquerda.  Até porque, conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do país - passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal, enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma tática defensiva motivada pelo fator Trump. 

Para outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris, seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto mais atores políticos relevantes - no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos anti-racistas  se deixarem persuadir por esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a República que há na América segue sendo referência.   

Desdobramento lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna, provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições robustas e atitude política republicana possam domar um populista de extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.

*Cientista político e professor da UFBa.


Ascânio Seleme: Justiça de um homem só

Nenhuma dúvida. Donald Trump tinha mesmo que ter sido afastado das redes sociais que usou durante todo o seu mandato para organizar a extrema direita em torno de seu projeto pessoal

Nenhuma dúvida. Donald Trump tinha mesmo que ter sido afastado das redes sociais que usou durante todo o seu mandato para organizar a extrema direita em torno de seu projeto pessoal. A turba ignara trumpista nunca se deu conta de que estava seguindo um homem arrogante e ambicioso que jamais pensou nos interesses do seu país. Os terroristas que invadiram o Capitólio na quarta-feira, no ápice da marcha golpista do mais infame presidente que os EUA já tiveram, apenas repetiam com a virulência do líder o discurso falso de que a eleição do adversário democrata havia sido fraudada.

Como Trump, há inúmeros outros líderes globais que abusam dessas plataformas para disseminar medos, mentiras e ameaças, ultrajando seus povos e suas nações. No Brasil, sabemos que Jair Bolsonaro e seu gabinete do ódio manipulam estas ferramentas para mentir e enganar, buscando tão somente confrontação e dividendos políticos. Tanto Trump quanto seu similar nacional, ambos golpistas potenciais, sofreram esporádicas e tardias sanções de Facebook, Twitter, Instagram e outras redes. A certa altura, o manda-chuva Mark Zuckerberg chegou a dizer que não podia se arrogar no direito de definir o que é verdade e que é falso na tormenta antidemocrática que estes canais de comunicação instantânea se transformaram.

Bobagem. Podia pelo menos ter tentado instituir em cada país um sistema de controle formado por membros de entidades civis, como as brasileiras OAB e ABI, e buscar apoio nos grupos de mídia profissionais para estabelecer um sistema eficiente de controle contra mentiras e manipulação no uso das redes. Dinheiro não seria problema para estas gigantes, mas a medida não seria boa para os negócios. Em determinados momentos no passado recente, algumas ações foram tomadas, mas muito mais para dar uma satisfação à opinião pública do que para de fato impedir o mau uso das plataformas. Deixou-se a coisa seguir de maneira solta, com bloqueios aqui e ali, até que se deu a invasão do Congresso americano, seguida de uma comoção mundial.

Aí, Zuckerberg acordou. Do alto de seu poder de dono das mais poderosas plataformas, defenestrou Trump de Face e Insta pelo menos até o fim do seu mandato. O Twitter o tirou do ar por 12 horas, seguido pelo Snapchat, que o suspendeu. Foi atrasado, mas por pouco não foi tarde demais. Imaginem se aquela turba tivesse conseguido empastelar o parlamento do maior país da terra. Suponham que os contrapesos não tivessem funcionado e Trump houvesse vencido a disputa impedindo a certificação da vitória de Joe Biden. A ordem global seria fortemente abalada graças a premissas falsas, ao ódio e a mentiras difundidas sistemática e livremente pelas redes sociais.

Logo depois da eleição de Biden, Trump fez um pronunciamento mentiroso, com as alegações falsas de fraude repletas do seu ódio contumaz. As emissoras de TV que transmitiam a fala ao vivo o tiraram do ar. As redes o mantiveram insuflando suas massas aturdidas. Por que a diferença entre elas? Porque as emissoras são controladas por gente e as redes não têm controle, ou são orientadas por algoritmos que incentivam a desordem, porque dá audiência. Agora, depois do vergonhoso cerco ao Capitólio, no limite de uma disrupção institucional que se espalharia globalmente, se fez a tardia reflexão, ou justiça. Mais grave, foi iniciativa isolada, iniciada por um homem só. Mark Zuckerberg.

O que o planeta precisa é de imediato e efetivo controle das redes para que atentados como o que vimos esta semana não consigam sequer brotar. Se por um lado as redes têm enorme potencial de difundir ideias e transmitir ensinamentos bons e gratuitos, por outro podem servir a golpistas como Trump e suas cópias mundo afora. Não se trata de um bicho de sete cabeças. É preciso cortar o acesso de quem mente, quem inventa, quem manipula informação. Se isso não for feito imediatamente por determinação inequívoca de governos democráticos, pode haver outras tentativas de golpe apoiadas nas redes sociais. E, se não forem novamente nos EUA, é muito possível que Zuckerberg não as veja ou simplesmente as ignore.

GOLPISTAS UNIDOS

Jair Bolsonaro não abandonou Donald Trump nem depois deste ter admitido que chegaram ao fim suas tentativas de golpear as instituições democráticas americanas. No dia seguinte à invasão do Capitólio pela turba trumpista, nossa excelência ainda nos ameaçou: “No Brasil pode ser pior”. Embora seja um crime de responsabilidade, a bravata não passa de uma bobagem rematada que por ora não se deve temer. Por duas razões. A primeira é que os aloprados de Bolsonaro são como aqueles 300 do ano passado, que não chegam a 30 e não valem dez. Segundo, porque aqui há um outro lado da mesma forma agressivo e disposto ao confronto. Ou vocês acham que os militantes da esquerda barulhenta deixariam a coisa correr solta como em Washington? Aqui o risco é outro, o da violência desmedida entre dois lados.

AINDA DÁ TEMPO

O presidente Jair Bolsonaro cometeu na quinta-feira mais um crime de responsabilidade, pelo qual pode ser afastado das suas funções, ao ameaçar o Brasil depois da invasão do Capitólio nos EUA. Na semana passada já havia perpetrado outro, ao fazer apologia à tortura.

PREVISIBILIDADE

Pelo menos em um ponto deve-se concordar com o candidato de Bolsonaro para a presidência da Câmara. O deputado Arthur Lira (corrupção, lavagem de dinheiro, bens bloqueados, agressão doméstica) diz que sua eleição seria uma vitória da previsibilidade. Exatamente. Com ele no comando da Casa, teríamos dois anos sem vento. O governo nadaria de braçadas e o presidente poderia seguir cometendo seus rotineiros crimes de responsabilidade sem desassossego. Se com Rodrigo Maia já foi aquela moleza, imagina com o Lira amigo do peito.

VOTO VIRTUAL

Lira protestou contra o possível voto virtual para a eleição da Câmara. Perguntou: “Qual a verdadeira intenção por trás disso?”, sugerindo que Rodrigo Maia e seu candidato Baleia Rossi estariam armando alguma. Pode? Só falta ele pedir o voto impresso. O atraso do atraso se manifestou pela boca do parlamentar bolsonarista.

PONTO POSITIVO

Cláudio Castro, o governador que caiu de paraquedas no Palácio das Laranjeiras, ganhou ponto importante ao indicar o mais votado da lista tríplice do Ministério Público para chefiar a entidade. Ele não se dobrou à pressão do zero das rachadinhas. Coragem é uma das qualidades que se espera dos homens públicos, inclusive para tomar decisões que contrariam pressões poderosas.

PONTO NEGATIVO

Em Belo Horizonte, o prefeito Alexandre Kalil, reeleito no primeiro turno com quase 70% dos votos, voltou a fechar o comércio e todos os serviços não essenciais para conter a transmissão de coronavírus. No Rio, cidade que registra mais mortes no país, que tem 2048 leitos do SUS fechados e as pessoas aguardam na fila por vagas em hospitais públicos, o prefeito Eduardo Paes chegou a mandar reabrir as áreas de lazer na orla (depois voltou atrás) e já elabora plano para a volta presencial das aulas nas escolas municipais. Disse não entender porque shoppings estão abertos e escolas fechadas. Melhor fechar os shoppings, não é, prefeito?

FALTA DE CARÁTER

Bater na imprensa já não causa surpresa a ninguém. No Brasil tem sido assim desde a era petista. Bolsonaro disse esta semana que a imprensa “potencializou” a pandemia de coronavírus, chamando-a de “mídia sem caráter”. Em tom próprio, mais virulento, o capitão apenas repetiu o que se ouve desdea Era dos franklins e dos dirceus.

SERINGAS E AGULHAS

A ideia de Jair Bolsonaro de esperar o preço das seringas e agulhas baixar para só então comprá-las é de uma “inteligência” que acomete a poucos. Valendo-se da regra de mercado, o Brasil só compraria os suprimentos e iniciaria a vacinação quando o mundo inteiro já tivesse sido imunizado. O Ministério da Saúde fez de conta que não ouviu o presidente desmiolado e anunciou que as compras serão feitas diretamente pelo governo federal, sugerindo que vai proibir os estados de tomarem iniciativas isoladas. Como se fosse possível este tipo de intervenção. Daí ficou clara a estratégia. O objetivo era tentar atingir o plano de São Paulo de iniciar a vacinação por conta própria, antes da União, seguindo seu próprio calendário.

NOSSOS PREÇOS

Os preços na Europa, mesmo com 1 Euro valendo mais do que 6 Reais, estão em alguns casos mais em conta do que no Brasil. Exemplo: Quatro pessoas podem jantar num bom restaurante em Lisboa, Madri ou Roma pagando alguma coisa como 100 Euros (R$ 660,00). Isso com entradas e uma boa garrafa de vinho. No Rio, um jantar nestas mesmas condições em restaurantes do mesmo padrão no Leblon ou em Ipanema não sai por menos de R$ 800,00.

JÁ ERA

Quem foi a Portugal fazer um bom negócio imobiliário, foi. Não vai mais. O metro quadrado no Bairro Alto, na Graça, no Chiado ou na Alfama, que já foi barato para os padrões cariocas, hoje vale mais do que o do Leblon, o bairro mais caro do Brasil.


BBC Brasil: 'Tribalismo masculino' - a seita violenta ligada ao 'viking' em invasão ao Congresso dos EUA

Um homem branco, musculoso e tatuado com o torso nu, a cabeça envolta por chifres e pelos de bisão, o rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido leve e da cor da pele se tornou o ícone da invasão à sede do Congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira (06/01). Ele não era o único vestido assim

Ricardo Senra, BBC Brasil em Londres

Mas o que pareceu para muitos uma estratégia isolada para chamar atenção de fotógrafos também pode guardar as ideias de um movimento com objetivos contraditórios, radicais e violentos — da ode ao confronto físico e à guerra ao ódio contra mulheres, gays e suas conquistas por direitos iguais na sociedade.

Quem explica é a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, que pesquisa a masculinidade e dedicou parte de suas leituras recentes ao chamado "tribalismo masculino", ou "masculinismo".

"O princípio dos grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução", diz.

Para os adeptos, a vestimenta "tribal" funcionaria como uma espécie de elogio aos primórdios da humanidade, antes de consensos globais em torno de paz, igualdade, direitos humanos e conquistas de mulheres e grupos LGBTQs.

As primeiras referências acadêmicas ao grupo surgiram há décadas, mas se tornaram mais frequentes nos anos 2000, graças a debates em fóruns anônimos e na deep web.

Desde 2016, ano de eleição de Donald Trump, essas ideias vêm ganhando força em meio a uma complexa teia de novos grupos impulsionados por negacionistas da ciência e teorias de conspiração, como a chamada alt-right, ou "direita alternativa", e, mais recentemente, o QAnon (veja mais abaixo).

Caça e guerra

Além do exemplo que ficou famoso, outros manifestantes trumpistas desfilaram visuais "tribalistas".

Um deles foi fotografado vestindo algo semelhante a uma pele de urso sob um retrato de Charles Sumner, importante senador que defendeu a abolição da escravidão no século 19. Na mão esquerda, o militante segurava um cajado. Na direita, um escudo policial.

"Os masculinistas não acham que a mulher tenha um papel na sociedade, eles são mais extremos. Os cristãos nos EUA veem um papel nas mulheres de cuidar da família. Os masculinistas as odeiam."

Como acontece em outros grupos sociais, o termo engloba um universo heterogêneo de adeptos. Em comum a todos os grupos, conta a professora, há "um elogio ao tipo de homem viril que se acredita ter sido perdido nas últimas décadas".

"Eles reivindicam uma virilidade da caça, da guerra. Alguns são mais religiosos, outros não são. Há grupos que se identificam com romanos, com espartanos. Outros, por exemplo, reivindicam uma estética viking, ou se identificam com grupos indígenas norte-americanos, como no caso do sujeito de Washington, que estava com uma roupa de bisão norte-americano", explica Pinheiro-Machado.

"Roupas de couro, corpo tatuado, isso perpassa a todos", diz.

"É um universo que remete à conquista, à invasão, a capturar mulheres para estuprar, botar em cativeiro para reprodução, em um cenário totalmente distópico em que os homens precisam estar entre homens para resgatar sua virilidade perdida."

Perigo

Entre os principais riscos associados ao grupo, a professora destaca como "mais evidente, preocupante e imediato a violência contra as mulheres".

"O feminicídio é inspirado na ideia de posse de mulheres, que é um fenômeno que sempre existiu, mas que é estimulado por um contexto político", diz.

"Outra consequência imediata é a perseguição de pessoas que estudam gênero e sexualidade, como a professora Lola (Aronovich, da Universidade Federal de Fortaleza) e a Debora Diniz (das universidades de Brasilia e Brown, nos EUA)."

Ambas são vítimas de constantes ataques e ameaças online vindas de grupos radicais identificados com masculinistas brasileiros, alguns investigados pela polícia.

Muitos vídeos associados a tribalistas circulam há anos também em português — algo que se tornou mais frequente, segundo a professora, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

Em um dos filmes, um homem vestido de gladiador surge sobre um cavalo dizendo que o Brasil precisa se livrar de "ameaças comunistas e feministas".

Em outro, um paulista com roupas que imitam gregos de Esparta pede que homens lutem por sua virilidade.

Em fóruns abertos, grupos de brasileiros vão além e chegam a defender abertamente estupros e assassinatos de mulheres.

QAnon

Após ter fotos estampadas em jornais no mundo inteiro, o homem que viralizou após a invasão de ao congresso dos EUA em meio aos debates para a certificação da eleição de Joe Biden foi identificado em redes sociais.

"Para onde vamos, vamos todos", frequentemente abreviado como "WWG1WGA!" (em inglês) é um dos slogans mais populares do QAnon
Legenda da foto,"Para onde vamos, vamos todos", frequentemente abreviado como "WWG1WGA!" (em inglês) é um dos slogans mais populares do QAnon

Conhecido como "Q Shaman", Jake Angeli, de 32 anos, vive no Arizona e é um conhecido influencer (influenciador, em inglês) da extrema-direita americana.

Vestindo sempre referências a povos tradicionais indígenas dos EUA ou a vikings, ele já foi fotografado militando em protestos a favor de Donald Trump — ou fazendo oposição em atos organizados por grupos como o Black Lives Matter.

Nas redes, ele se tornou um dos porta-vozes do movimento QAnon, uma teoria conspiratória ampla e completamente infundada que diz que o presidente Trump estaria travando uma guerra secreta contra pedófilos e adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa.

Seus apoiadores vaticinam que esta luta levará a um dia de ajuste de contas, em que pessoas proeminentes, como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton, serão presas e executadas.

Adeptos do movimento impulsionam hashtags e coordenam ataques aos que consideram inimigos — políticos, celebridades e jornalistas que eles acreditam, sem qualquer prova, estar encobrindo pedófilos.

Não são apenas mensagens ameaçadoras online: vários apoiadores do movimento foram presos após fazerem ameaças ou tomarem medidas concretas na "vida real".

Em um caso notável em 2018, um homem fortemente armado bloqueou uma ponte sobre a Represa Hoover. Mais tarde, Matthew Wright se declarou culpado de uma acusação de terrorismo.

Anti-gays que fazem sexo com homens

página de dicionario em ingles com o texto: "Uma pessoa, de qualquer gênero, que ama homens, ou que é atraída sexualmente por homem"

O principal ícone dos tribalistas masculinos ou masculinistas é o americano Jack Donovan, autor de livros e vídeos reproduzidos milhões de vezes online.

Segundo Pinheiro-Machado, Donovan e seus seguidores ilustram o eixo mais extremo dos masculinistas.

"Não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas", diz.

"Há uma devoção e um amor à estética masculina", continua a professora. "Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBTQ."

Em seu livro Androfilia (2006), Donovan faz ataques à cultura gay e a associa a "inimigos da masculinidade". Ao mesmo tempo, ele classifica seu desejo por homens como uma "defesa a um ideal masculino".

As teses do autor são descritas por críticos como preconceituosas e ameaçadoras, especialmente para homens gays que não têm perfis hipermasculinos — ou são descritos como "afeminados".

Segundo Matthew Lyons, um dos autores do livro Key Thinkers of the Radical Right (Pensadores-chave da Direita Radical, em tradução livre), publicado em 2019 pela editora da Universidade de Oxford, o tribalismo masculino de Donovan também parte do princípio de que gênero seria algo "natural e imutável" — em oposição direta à existência de pessoas transexuais.